Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3130/16.3T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATIVIDADES PERIGOSAS
DIREÇÃO EFETIVA
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A utilização de uma máquina agrícola “capinadeira”, ainda que atrelada a um tractor para a sua locomoção, consiste em «actividade perigosa» para efeitos de aplicação do regime predisposto pelo art. 493.º, n.º 2, do CC, sempre que os danos produzidos se devem em exclusivo ao perigo típico (que deveria ter sido antecipado e neutralizado pela tomada de acções preventivas adequadas e necessárias por um utilizador diligente) resultante de um “evento de laboração ou exploração” da máquina, no âmbito de actuação das suas funções específicas e funcionamento próprio, ainda que na dependência da circulação devida ao tractor associado e promotor dessas funcionalidades.
II - Se os danos produzidos não se geraram na esfera de perigo (e seus riscos próprios de concretização) de um “evento de locomoção ou de circulação” do veículo a que a máquina agrícola se encontra atrelada, não se verifica a produção do perigo ou risco próprio inerente (enquanto unidade circulante autónoma) à condução (ou utilização) de um «veículo de circulação terrestre» que implicasse a aplicação do regime do art. 503.º do CC (com indemnização de danos em conexão com os riscos específicos de um meio de circulação ou transporte terrestre como tal): (i) nem a máquina agrícola se comportou e comporta como veículo no desempenho funcional com que foi utilizada, ao qual se imputa o facto de concretização do perigo que veio a produzir os danos; (ii) nem o veículo tractor a que se associa tem predomínio sobre a função principal da actividade da máquina, à qual se deveu o facto lesivo, antes se assume como um complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz) para a função mecânica da “capinadeira” se concretizar.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 3130/16.3T8AVR.P1.S1
Revista Excepcional – Tribunal recorrido: Relação ..., ... Secção    



Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I) RELATÓRIO

1. AA intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB e cônjuge mulher, CC, «S... Unipessoal, Lda..» e «Axa Portugal, Companhia de Seguros Fidelidade, S. A.”, peticionando a condenação destes a pagarem-lhe: (i) a quantia de € 111.360,00 (cento e onze mil, trezentos e sessenta euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a citação, até efetivo pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais; (ii) as importâncias que se vierem a liquidar em incidente de liquidação pelos danos futuros previsíveis, emergentes da incapacidade parcial permanente que for fixada, dos tratamentos e cirurgias a que tiver que ser submetido, das deslocações que tenha de efetuar para o efeito, dos medicamentos que necessite e demais consequências definitivas e despesas conexas.
Para esse efeito, o Autor alegou os danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência de uma máquina agrícola, composta por tractor agrícola e capinadeira acoplada, quando efectuava a limpeza num terreno, a seu pedido, a qual, manipulada pelo seu proprietário, o primeiro Réu, projectou um fragmento de uma pedra que foi atingir o Autor, no olho direito, causando-lhe as lesões que menciona, que se ficaram a dever à não observância de deveres de cuidado pelo 1.º Réu. Mais alega que os serviços a prestar foram acordados com o 1.º Réu, sendo esta a sua profissão, da qual retira os rendimentos, sendo os 1.os Réus casados. Demanda, por cautela, a Ré Sociedade, uma vez que o 1.º Réu constituiu uma sociedade e desconhecer se o mesmo prestou os serviços em nome individual ou da sociedade, apesar de ter negociado com o 1.º Réu, pessoa singular, e a 3.º Ré, por ter celebrado um contrato de seguro a cobrir os riscos pelos danos causados a terceiros pela circulação do tractor que o 1.º Réu conduzia no dia do sinistro.
Os Réus apresentaram Contestação.
O Autor respondeu às excepções invocadas, pugnando pela sua improcedência.

2. Realizou-se audiência prévia, sendo proferido despacho saneador, em que foi conhecida da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, e da excepção de ilegitimidade processual passiva dos 1.os Réus, sendo ambas julgadas improcedentes. Foi ainda fixado nos termos legais o valor da causa: € 111.360,00.
    
3. O Juiz ... do Juízo Central Cível ... proferiu sentença em 1/9/2020, assim julgando:

“Pelo exposto e na parcial procedência da acção decide-se condenar os réus BB e mulher, CC:

a) No pagamento ao autor da indemnização de:
- 150,00 (cento e cinquenta euros) por mês, correspondente aos 125 dias em que o autor esteve com incapacidade temporária total para o exercício da actividade profissional, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação, até efectivo e integral pagamento.
- 61.000,00 (sessenta eum mil euros), a título de dano biológico e danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, devidos desde a presente sentença, até efectivo pagamento, calculados à taxa legal, até efectivo pagamento;

b) No dano futuro que vier a resultar da necessidade de:
- Agravamento das sequelas, atendendo à possibilidade de agravamento da acuidade visual;
- Ajudas técnicas permanentes em tratamentos médicos regulares, em concreto num regular seguimento em consulta de oftalmologia visando evitar o agravamento do prognóstico, podendo ser necessária a realização de novos tratamentos cirúrgicos;
- Ajudas técnicas, nomeadamente óculos para correção ótica da acuidade visual do olho esquerdo e óculos de sol;
Em valores a liquidar em incidente de liquidação, nos termos previstos pelos artigos 565º do C. Civil e 609º, n.º 2 do CPC;

c) Absolver os primeiros réus do demais peticionado pelo autor;

d) Absolver a segunda ré, “S... Unipessoal, Lda..” e a terceira ré, “Axa Portugal, Companhia de Seguros S. A.” de todos os pedidos contra si formulados nesta acção.

4. Inconformados, os Réus condenados interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação ... (TR...), visando a absolvição do pedido indemnizatório que se arbitrara parcialmente em 1.ª instância a cargo dos Réus

Foram identificadas as seguintes questões decidendas:

1. Do dever deste Tribunal de determinar a baixa do processo à 1ª instância para fundamentação de factos essenciais ao julgamento da causa indevidamente fundamentados (nos termos do art. 662.º n.º 2 al. d) do Código de Processo Civil);

2. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

- do alegado erro na apreciação da prova e, consequentemente, se é de alterar a decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos mencionados pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (os 3, 4 e 9 dos factos provados);

3. Do erro na subsunção jurídica:

3.1. Da errada subsunção do caso no regime do nº 2, do art. 493.º (acidente decorrente de laboração sendo a atividade perigosa), por se enquadrar no regime (…) consagrado no art. 503.º (acidente causado por veículo), ambos do Código Civil, e da ausência de responsabilidade, pessoal, do Apelante pelos danos sofridos pelo Autor/Apelado;
3.2. Da culpa do lesado;
3.3. Da incomunicabilidade da dívida.”

Em acórdão proferido em 25/1/2021, o TR... decidiu rejeitar o pedido de descida dos autos com base no art. 662º, 2, d), do CPC, rejeitou a alteração da decisão sobre a matéria de facto e julgou a apelação improcedente, confirmando integralmente a decisão recorrida.

5. Novamente sem se resignarem, os Réus condenados interpuseram recurso de revista para o STJ, normal (por insubsistência da “dupla conformidade”, que alegam e sustentam) quanto ao segmento relativo à questão da “incomunicabilidade da dívida”, e excepcional quanto às demais questões de direito decididas, invocando para o efeito o art. 672º, 1, a) e b), do CPC.
           
Apresentaram contra-alegações:

— o Autor, invocando a “dupla conformidade decisória” em todos os segmentos decisórios, o que obsta ao conhecimento da revista normal interposta, assim como pugnando pela inadmissibilidade da revista excepcional;

— a «Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A.», igualmente sustentando essa “dupla conformidade decisória” em todos os segmentos decisórios e seu reflexo no objecto da revista normal, e pugnando pela improcedência do demais impugnado em sede de revista excepcional.

6. Incidindo a revista sobre as als. a) e d) do dispositivo decisório correspondente à sentença de 1.ª instância, reapreciada pela Relação:

— foi proferida Decisão Singular pelo aqui Relator, na qual se dispôs (i) não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista normal (tendo em conta a existência de “dupla conformidade decisória” na fundamentação coincidente das instâncias no que toca à questão de direito relativa à “(in)comunicabilidade da dívida” assente na indemnização decretada: Conclusões II. a V. e LIX. a LXXIV.), e (ii) ordenar a remessa dos autos à Formação prevista no art. 672º, 3, do CPC, para análise e verificação da admissibilidade do recurso de revista excepcional (Conclusões VI. a XVII. e XXV. a LVIII.);

— foi proferido Acórdão pela Formação Especial do STJ, que admitiu a revista excepcional para “apreciação da responsabilidade civil extracontratual por danos causados no exercício de actividade perigosa pelo Réu BB, previsto pelo artigo 493º, nº 2 do CCivil, aquando este se encontrava a cortar o mato e desfazer a palha do terreno agrícola, com a utilização de uma máquina agrícola denominada capinadeira.


Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.



II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Objecto do recurso


De acordo com a decisão da Formação, o tema recursivo delimita-se na aplicação do regime do art. 493º, 2, do CCiv. ou, em alternativa, do art. 503º do CCiv. à situação descrita, com as consequências decorrentes da disciplina legal de cada uma das hipóteses de enquadramento normativo em sede de responsabilidade civil.
Tendo em conta esta delimitação, devem ser consideradas as Conclusões XXV. a XXXVII., a saber:

“XXV. Como se conclui pela leitura atenta da motivação de direito da Sentença de primeira instância, considerou o Tribunal que “a utilização de máquinas agrícolas como a dos autos, é uma actividade notoriamente perigosa, matéria sobre a qual as partes não divergem, perigosidade expressamente assumida pelos réus no seu articulado de contestação, perigosidade, quer pela sua natureza, quer pela natureza dos meios que emprega”, resultando inquestionável que a sobredita Sentença moveu-se dentro dos trâmites do art. 493.º, n.º 2, do Código Civil.

XXVI. Sobre essa questão decidenda, juízo idêntico resultou doAcórdão sub specie.

XXVII. Não podemos, no entanto, olvidar que o uso da capinadeira é reconduzível a um outro regime de responsabilidade civil, maxime o da responsabilidade objetiva por acidentes causados por veículos (art. 503.º Código Civil).

XXVIII. Importadestacar queotermoVEÍCULO deveser encaradoemsentidolatíssimo, e é que com muita sagacidade que escreve RAUL GUICHARD, in Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações Das Obrigações em Geral, Universidade Católica, 2018, pág. 402, que:

“O veículo, como se disse, tendencialmente qualquer máquina de locomoção (de coisas ou pessoas) que circule em terra, não tem de ser motorizado (nem releva a forma da sua motorização, indubitavelmente carros elétricos cabem aqui), o modo de tração não importa (não tem de se tratar de tração mecânica, pode, por exemplo, ser uma bicicleta ou um veículo acionado por pedais, ou um carro empurrado manualmente ou de tração animal; abrangidos estão os acidentes provocados por veículos rebocados ou empurrados). Trata-se, genericamente, de máquinas ou veículos a que se associará uma ideia de força, seja pelo seu peso, pela sua dimensão, pela velocidade que alcançam ou até pela potência da propulsão dos seus motores”.

XXIX. Como auxílio interpretativo, é evidentemente imprescindível o recurso aos artigos 105.º a 113.º do Código da Estrada.

XXX.    Necessariamente a capinadeira, máquina agrícola sem tração mecânica, que participa das mesmas características que muitos outros (pacificamente entendidos) veículos de circulação terrestre (nomeadamente no que diz respeito ao peso, aotamanho, aovolume eao perigo inerente), sehaverádereconduzir a uma das diversas figuras supra evocadas, que descortinamos ser máquina agrícola rebocável.

Neste conspecto,

XXXI.O facto lesivo trazido à cognição dos Exmos. Senhores Conselheiros, além de cair sob a copa do art. 493.º, n.º 2, do Código Civil, também cai sob a tutela do regime do art. 503.º, do mesmo diploma, tendo o Assento n.º 1/80 do Supremo Tribunal de Justiça fixado jurisprudência no seguinte sentido:

“O DISPOSTO NO ARTIGO 493.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL NÃO TEM APLICAÇÃO EM MATÉRIA DE ACIDENTES DE CIRCULAÇÃO TERRESTRE”.”
 
XXXII. Sendo este o regime aplicável, e não o seguido pelo Tribunal a quo, salvo o devido respeito que o douto Acordão merece, importa ver quem é a pessoa do responsável.


XXXIII. Como se tem pacificamente entendido, responde pelos danos que o veículo causar:
a) quem tiver a direção efetiva dele (ou seja, quem goza ou usufrui
e
b) o utilizarnoseuprópriointeresse, aindaquepor intermédio decomissário(veja-seANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.a ed.,Almedina, 2000, pp. 655 e ss.).

XXXIV. Resulta dos autos que quem à data do incidente tinha a direção do veículo não era o ora Recorrente, mas sim a Sociedade Ré, pois, conforme é entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, “Quando o sócio gerente de uma sociedade conduz um veículo desta, tudo se passa como sendo a própria sociedade a conduzi-lo” (Ac. de 19.06.2008, proferido no âmbito do proc. n.º 08B1754, in www.dgsi.pt), e “A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo proprietário, por presunção natural extraída a partir do art. 1305º” (Ac. de 06.12.2001, proferido no âmbito do proc. n.º 01A3460, in www.dgsi.pt).

XXXV. Pois bem, é factual que “o tractor e a máquina referidos no artigo anterior eram da propriedade da sociedade ré” (ponto 6 da matéria defactodadacomoprovado), equeoveículoerautilizado noexclusivointeresse da Sociedade.

XXXVI. Não só foi esta a celebrar o contrato de prestação de serviços como, a assim não se entender, sempre seria a Sociedade a enriquecer com o dito serviço, já que sempre foi esse o ânimo do Recorrente, que pretendeu faturar o serviço em nome da sociedade.

Em razão do exposto,

XXXVII. quem deverá responder ao abrigo do regime de responsabilidade objetiva, o único aplicável, é a sociedade, e não o Recorrente, devendo-se ainda atender ao disposto no art. 508.º, n.º 1, do Código Civil, sobre o limite da indemnização, daí que soçobrem osfundamentos esgrimidos pelo Tribunal da Relação ....”


2. Factualidade

Foram considerados provados os seguintes factos:

1º - No dia 19 de outubro de 2013, sensivelmente pelas 11.30h/12.00h, ocorreu um acidente que envolveu uma máquina agrícola em que foram intervenientes o autor, AA e o réu, BB, operador da máquina agrícola e que conduzia o trator ao qual a máquina estava acoplada;
2º - O réu BB é sócio gerente da Ré, S... Unipessoal, Lda., que se dedica à atividade de aluguer de máquinas e equipamento agrícola com operador, preparação de terrenos e sementeiras, terraplanagens (desaterros, aterros, escavações, nivelamento de terrenos, etc.) e limpeza de locais de construção, sociedade com o NIPC ... (fls. 76 a 77).
3.º - A sociedade ré, referida no artigo anterior, foi constituída em 11-01-2012, tem como único sócio e gerente o réu BB, que é o seu único trabalhador (fls. 76-77);
4º - Para efetuar a limpeza do mato de um terreno de cultivo sito no Lugar ..., o autor contratou os serviços do réu BB para no dia referido em 1º - 19.10.2013 -, proceder à realização dos trabalhos ajustados, designadamente para cortar o mato e desfazer a palha do terreno agrícola;
5º - Utilizando o réu BB, para esse efeito, uma máquina agrícola denominada capinadeira, acoplada ao trator de matrícula EO-..-...
6.º - O trator e a máquina referidos no artigo anterior eram da propriedade da sociedade ré (fls. 78 e 472, 498, 499).
7.º - Para contratar os serviços pretendidos, como os referidos em 4º, o autor sempre se dirigiu ao réu BB e não à sociedade ré, de todas as vezes que dele precisou para efetuar trabalhos na agricultura, sempre foi a ele quem explicou o que pretendia que fosse feito, sempre foi a ele que pagou os trabalhos que encomendou, trabalhos que não eram reduzidos a escrito ou faturados.
- Também o autor, na data e hora supra referidos em 1º, estava no terreno, local onde exercia há vários anos, uma pequena agricultura, de subsistência, contratando terceiros, como o réu, quando necessitava.
- Por volta das 11.30h/12.00h, o Autor, pretendendo proceder ao pagamento dos serviços prestados pelo Réu BB, aproximou-se do local onde este se encontrava, tendo permanecido a cerca de 30/40 metros do mesmo.
10º - E ali permaneceu, aguardando que o réu BB finalizasse tais trabalhos.
11º - O Réu BB continuava a manobrar o trator e a capinadeira e, a determinada altura, no decurso dessa atividade, saíram, vindos da máquina, detritos não concretamente apurados que foram na direção do autor, atingindo-o a uma velocidade tal que este nem se conseguiu esquivar,
12º - Vindo a atingi-lo no olho direito.
13º - De imediato o Autor começou a sangrar do olho direito.
14º - E foi acometido de dores insuportáveis.
15º - O Réu BB não se apercebeu do que tinha acontecido, tendo continuando a laborar mais uns instantes.
16º - E só com os gestos do Autor acabou por parar o trator e a capinadeira, abeirando-se do autor.
17º - A filha do autor conduziu-o ao Centro de Saúde ... para ser assistido, onde deu entrada pelas 12h34m (fls. 29),
18º - Apresentando, à entrada, “laceração da conjuntiva e deformação da pupila” acompanhado de “visão turva” (fls. 29).
19º - Foi-lhe realizada a lavagem da ferida e colocado um penso oclusivo (fls. 29).
20º - De seguida o autor foi conduzido para o Hospital ... EPE (Hospital ...) onde deu entrada no mesmo dia, no serviço de urgência, às 13.54h (fls. 30 e 319), apresentando “Hemorragia do Vitreo”, “Laceração conjuntival” (fls. 30).
21º - No mesmo dia do acidente teve alta hospitalar, sendo-lhe prescritas hidratação oral reforçada e repouso absoluto, para além de alguns fármacos de uso oftalmológico e com a indicação de passar a ser seguido no Hospital ... em ..., por se tratar do hospital da sua residência (fls. 30).
22º - No dia 25 de outubro de 2013, o autor deslocou-se novamente ao serviço de urgência dos Hospital ... por queixas de dores (fls. 31 a 34), tendo-lhe sido dada alta novamente, para domicílio, com prescrição medicamentosa e recomendação de necessidade de repouso e hidratação reforçada (fls. 319).
23.º - Em 25 de outubro de 2013 apresentava uma visão inferior a 1/10, com a menção de que “não parece melhorar com estenopeico” (fls. 33 e 319).
24º - O Autor cumpriu as prescrições médicas, mas não melhorou, tendo sido hospitalizado nos Hospital ... em 14.11.2013, onde permaneceu durante 5 dias, tendo nesse período sido submetido a uma cirurgia de vítreo – retina e catarata do olho direito –, no dia 14.11.2013 (fls. 35 a 37 e 319).
25º - E no dia seguinte, 15.11.2013, foi novamente operado em virtude do deslocamento da retina que desenvolveu no mesmo olho (fls. 35 a 37 e 319).
26º - Após, o Autor foi remetido para casa, com indicação de não fazer quaisquer esforços;
27º - O que o Autor, a par da medicação prescrita, cumpriu;
28º - Em consulta nos Hospital ... no dia 02.02.2014, foi constatado medicamente aquilo de que o Autor já se tinha apercebendo, ou seja, de que está quase cego do olho direito, apresentando, nessa data, uma acuidade visual inferior a 1/10 no olho direito e de 10/10 no olho esquerdo (fls. 37).
29.º - Em 1-10 2016 foi submetido a cirurgia ao olho direito para remoção do óleo de silicone implantado em 15-11-2013 (fls. 319)
30.º - Fez nova cirurgia de vítreo e retina com tamponamento interno com óleo de silicone em 11-10-2016 por redescolamento de retina pós remoção de óleo de silicone (fls. 319).
31.º - O autor tem sido seguido na consulta de cirurgia Vitero-Retina, onde foi observado em 23-01-2017. Foi registada melhor acuidade visual inferior a 1/10 (conta dedos) no olho direito e 8/10 no olho esquerdo (fls. 319);
32.º - À data do sinistro o autor estava reformado, era pensionista de velhice do Centro Nacional de Pensões, desde de 01-02-2011 e auferia, em 2017, a pensão mensal de € 297,43, pensão que em 2018 era de € 307,62 (fls. 320 e 528)
33.º - Realizava ainda trabalhos na construção civil como pedreiro, auferindo um rendimento mensal não concretamente apurado;
34.º - Realizava também atividades agrícolas e pecuárias para consumo próprio e de terceiros, obtendo um rendimento não concretamente apurado;
35º - Criava os seus animais, designadamente galinhas, coelhos, porcos, vacas, cabras.
36º - E ainda cultivava terras, assim produzindo vários legumes e vegetais, tais como milho, batata, feijão, cereais, frutas, legumes diversos,
37º - Produtos e animais esses que se destinavam ao consumo do seu agregado familiar.
38.º - As atividades referidas nos artigos anteriores contribuíam para a economia e o sustento do agregado familiar.
39.º - Como consequência do sinistro o autor apresenta, ao nível da face, uma discreta perda do paralelismo entre os olhos com discreto desvio do eixo do olho direito para a direta. Discreta ptose palpebral direita. Acuidade visual no olho direito inferior a 1/10.
40.º - O défice funcional temporário total é fixável em 9 dias.
41.º - O défice funcional temporário parcial é fixável em 116 dias;
42.º - O período de repercussão temporária total na atividade profissional é fixável em 125 dias.
43.º - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 25 pontos, sequelas que em termos de repercussão permanente na atividade profissional como pedreiro, são compatíveis, mas implicam esforços significativamente acrescidos, sendo impeditivas do desempenho de certas tarefas que obrigam a permanecer em estruturas elevadas, como andaimes e escadotes.
44.º - É de admitir a existência de dano futuro, considerando como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quando clínico, o que pode obrigar a uma futura revisão do dano, atendendo à possibilidade de agravamento da acuidade visual.
45.º - O autor necessitará de ajudas técnicas permanentes em tratamentos médicos regulares, em concreto o autor deve manter um regular seguimento em consulta de oftalmologia visando evitar o agravamento do prognóstico, podendo ser necessária a realização de novos tratamentos cirúrgicos.
46.º - O autor necessitará de ajudas técnicas, nomeadamente óculos para correção ótica da acuidade visual do olho esquerdo e óculos de sol.
47.º - O dano estético é fixável em 4, numa graduação de 1 a 7 pontos.
48.º - O quantum doloris é fixável em 3 numa graduação de 1 a 7 pontos, tendo em consideração as lesões sofridas, o período de recuperação, o tipo de traumatismo, os tratamentos efetuados, assim como o sofrimento psicológico inerente à perceção da perda irrecuperável da acuidade visual no olho direito.
49.º - Após o sinistro o autor deixou de conseguir exercer as atividades de pedreiro e agrícolas, o que ocorreu pelo menos durante os tratamentos e intervenções cirúrgicas, retomando-as, de forma gradual, mas não com a mesma frequência que fazia, tendo-as diminuído, por força das limitações visuais.
50º - O autor manteve a esperança de recuperar a visão, o que não se verificou.
51.º - O Autor, em cada um dos períodos de pós-operatório, sentiu dores fortes momentâneas que se agudizavam, deixando-o em permanente inquietação e sofrimento.
52.º - Além disso, a perda da visão que sofreu significou uma alteração profunda no seu quotidiano.
53º - Sente-se triste e desnorteado.
54º - A falta de acuidade visual do olho direito implica um maior esforço do olho esquerdo e dessa forma, cansando a vista esquerda.
55º - À data do acidente o Autor era um homem robusto, saudável, bem constituído, trabalhador e alegre.
56º - Tinha 62 anos de idade, pois que nasceu a .../.../1951 (fls. 38).
57º - Agora é um homem mais abatido, taciturno, que se furta mais ao convívio social. Ficou abalado física, moral e psiquicamente. Sente-se desmotivado, inferiorizado e complexado.
58º - Por sua vez, o Réu BB é casado com a Ré CC.
59.º - E exerce profissionalmente a atividade para a qual fora contratado pelo autor.
60º - É da sua atividade que o Réu marido retira as importâncias com que sustenta o seu agregado familiar.
61.º - O réu BB terminou o trabalho que estava acordado com o autor, no dia referido em 1º.
62.º - O réu participou, em nome da sociedade, o sinistro à Companhia de Seguros.
63.º - O autor é uma pessoa que agriculta e amanha terras, sabia que a atividade que estava a ser exercida pelo réu BB exige algum distanciamento das respetivas máquinas;
64.º - Entre a S... Unipessoal, Lda. e a ré Axa Portugal Companhia de Seguros S. A. foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... ...47, relativamente aos riscos inerentes pela circulação do trator com a matrícula EO-..-.., seguro esse de responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros (fls. 101).
65.º - O contrato de seguro referido no artigo anterior incluía os riscos da circulação do veículo em utilização particular, estando excluídas os riscos relativos a: transporte de matérias perigosas; risco de laboração; acerto de vencimento (fls. 101), exclusões respetivamente previstas pelas cláusulas particulares da apólice com os n.os 08, 19 e 22.
66.º - Da mencionada cláusula particular n.º 19 consta o seguinte: Exclusão de riscos de laboração quanto a todas as coberturas. Esta apólice cobre unicamente os danos que resultem de acidente de viação, ou seja, os decorrentes da circulação do veículo seguro como veículo automóvel, nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias Locais. Encontram-se, pois, excluídos, os danos que resultem da sua atividade específica como máquina e da sua própria laboração, e que não sejam diretamente conexos com a circulação (fls. 254).
67.º - O autor pediu ao réu BB o número da apólice do seguro porque queria participar o sinistro à seguradora, número que teve conhecimento pelo mediador de seguros.
68.º - No ano de 2011, o autor declarou os seguintes rendimentos de “trabalho dependente/pensões”: € 3.032.01 (fls. 504).
69.º - No ano de 2012, o autor declarou os seguintes rendimentos de “trabalho dependente/pensões: € 4.226,78 (fls. 510).
70.º - No ano de 2013, o autor declarou os seguintes rendimentos de “trabalho dependente/pensões: € 4.226,74 (fls. 516).

E não provados os seguintes factos (tal como expostos pela sentença de 1.ª instância):

- Da petição inicial:

5.º
10º a 13º: provado apenas o que consta dos artigos 9º e 10º dos factos provados.
23.º Provado apenas o que consta do artigo 17º dos factos provados.
45.º, 46º e 55º: Provado o que consta dos artigos 43º e 49º dos factos provados.
56.º, 59.º, 60.º, 61.º.
65.º Não provado a possibilidade de perder a visão do olho esquerdo por força dos problemas com o olho direito.
66.º
72.º: provado apenas o que consta do artigo 49º dos factos provados. Não provado o restante.
82.º Não provados os valores indicados.
87.º Não provados os valores indicados.
88.º Provado apenas o que consta do artigo 49º dos factos provados.

- Da contestação dos primeiros e segundos réus:

3.º, 4.º, 8.º.
9.º Não provado que o réu BB tenha alertado o autor para se manter afastado do local. No que concerne à distância, provado o que consta do artigo 9º dos factos provados.
11.º não provado que a máquina usada no dia 19 de Outubro de 2013 tivesse, no no dia, o sinal identificado a fls. 79-80, inscrição de alerta para a distância a respeitar quando da sua utilização, com pelo menos 80 metros.
12.º, 14º a 15º: Provado o que consta do artigo 9º, 15º, 16º, dos factos provados.
17.º a 20º
21.º a 23º: Provado apenas o que consta do artigo 67º dos factos provados.
25.º Não provado que o autor soubesse que teria de estar a pelo menos 80 metros de distância.
28.º Não provado que o réu tivesse alertado o autor para manter a distância segura, de 80 metros, da máquina
32.º, 43.º.

- Do requerimento de resposta do autor:

29.º e 30º: Não provado que a máquina em causa não tem cadeados à frente e atrás, faltando inúmeros cadeados que, com o passar do tempo e o uso da máquina, acabaram por se perder, não promovendo o reu BB pela sua recolocação/substituição.


3. Direito aplicável

3.1. O n.º 2 do art. 493º do CCiv. prescreve uma imputação particular de responsabilidade civil extra-negocial (subjectiva mas diferenciada na culpa) relativa a danos causados «no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados». Em causa estão as actividades que, em face de qualquer daquelas duas justificações de periculosidade, “criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber um dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades[1]. Assim sendo, concretiza-se uma responsabilidade fundada na violação de deveres de protecção/segurança do/no tráfego ou deveres de prevenção do perigo, que incidem sobre quem realiza ou exerce a actividade perigosa e dela se serve e beneficia ou desencadeia. Deveres esses predispostos ao fim de tal perigo intrínseco e potencialmente lesivo da esfera de terceiros ser prevenido, com uma diligência acrescida, por quem se encontra em conexão com tal fonte de perigo e fica onerado com a adopção de medidas e providências de cuidado destinadas a evitar a produção de dano (o que justifica o regime mais severo da presunção de culpa estabelecida pela 2.ª parte do art. 493º, 2, do CCiv. [«empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias»] e a irrelevância de alegação de causa virtual)[2].
De todo o modo, estamos perante uma directriz legal genérica que implica uma exegese do intérprete e aplicador da lei na identificação das actividades perigosas[3], necessariamente de acordo com as circunstâncias concretas do caso, tendo em conta as características da actividade lesiva e a forma e o contexto em que se apresenta o padrão da sua realização[4], assim como a ponderação de regras normativas e técnicas (nomeadamente, de segurança) e/ou regras de experiência comum[5].     
Neste encalce, pergunta-se: a actuação de uma máquina/alfaia agrícola designada como “capinadeira” e destinada à função a que está adstrita (corte e limpeza), com locomoção assegurada por estar acoplada a um tractor – cfr. factos provados 1. e 5. –, constitui “actividade perigosa” por natureza e/ou pela natureza dos meios utilizados?

3.2. No caso, a máquina agrícola foi utilizada para “cortar o mato e desfazer a palha do terreno agrícola” – facto provado 4.º.
E, durante as operações de manobra, “saíram, vindos da máquina, detritos não concretamente apurados que foram na direção do autor, atingindo-o a uma velocidade tal que este nem se conseguiu esquivar, vindo a atingi-lo no olho direito” – factos provados 11.º e 12.º.
Tal atingimento deveu-se ao facto de: “o Autor, pretendendo proceder ao pagamento dos serviços prestados pelo Réu BB, aproximou-se do local onde este se encontrava, tendo permanecido a cerca de 30/40 metros do mesmo”; “E ali permaneceu, aguardando que o réu BB finalizasse tais trabalhos” – factos provados 9.º e 10.º.
*

Neste contexto, o acórdão recorrido sustentou a aplicação do art. 493º, 2, do CCiv., sustentando antes disso, para enquadrar a actividade como “perigosa”, o seguinte:
           
“Na qualificação de um mecanismo como veículo, haverá que atender ao fim específico a que se destina ou à funcionalidade do veículo, sendo excetuadas as viaturas que não sejam modos de transporte, nem suscetíveis dessa utilização, nunca podendo uma capinadeira, que apenas se destina à limpeza de terrenos, a cortar e desfazer vegetação, ser considerada veículo.
Com efeito, uma capinadeira nada transporta, nunca sendo modo de transporte nem suscetível dessa utilização.”;

 “Não está aqui em causa um risco especial de uma máquina de circulação terrestre nem o acidente, provocado pela “capinadeira”, foi concretização de tal risco. Está em causa, sim, o funcionamento do mecanismo que, ralando e triturando mato e palha, expeliu detritos (maquinismo esse que se dotado da proteção nunca detritos atingiriam o Autor).
Foi a capinadeira, não modo de transporte nem suscetível dessa utilização, a causadora das lesões, nenhuma relação existindo entre o acidente e transporte, a circulação, mas tão só, com o funcionamento daquela máquina agrícola que “mandou um tiro” contra o Autor (…).
Em causa não está o risco especial causado por veículos mas o risco de laboração da máquina agrícola, denominada capinadeira, que, na sua perigosa atividade, além de cortar e triturar, expele os detritos, que projeta, podendo fazê-lo, como vemos, a muitas dezenas de metros, em elucidativa expressão, autênticos e traiçoeiros “tiros” (vindos de terreno agrícola ou florestal) para quem está ou possa passar, mesmo na rua.
(…)
(…) o risco materializado não está sequer relacionado com o trator em causa, com a circulação e o transporte, mas tão só com a capinadeira, que, na altura do acidente, acoplada ao trator, se encontrava a exercer a sua função específica de laboração – ralar mato e palha –, expelindo, nessa função, os detritos, não sendo o concreto acidente manifestação de qualquer tipo de riscos da atividade viária, estando-se, por isso, não perante acidente que possa ser qualificado como acidente de viação, pois que em causa não está circulação nem transporte, antes, sim, de laboração (ralar e triturar, expelindo detritos) num terreno agrícola.”;

“No caso concreto não está em causa meio de circulação terrestre, antes uma máquina que estando a ser utilizada na sua função específica de cortar o mato e desfazer a palha do terreno agrícola, projetou detritos, provenientes de si, para o olho direito do Autor. Assim, não estando em causa a circulação terrestre mas laboração, não é aplicável o específico regime do artigo 503.º do Código Civil.”;

“(…) os danos do Autor nenhuma conexão têm com os riscos específicos do trator nem com a circulação deste, mas com especiais riscos da laboração da máquina agrícola (altamente perigosa e traiçoeira (...)).”.

Para, uma vez subsumidos os factos à responsabilidade ditada pelo art. 493º, 2, do CCiv., concluir a final:

“(…) quem manobrava a máquina, quem tinha a direção efetiva, era o Apelante, não a Sociedade, a quem nenhum serviço foi solicitado pelo Autor, que a não contratou para o efetuar, antes contratou o 1º Réu, pessoa singular, nenhuma relação se podendo, com ela, configurar, pela qual para ela possa advir responsabilidade nos termos do art. 497º. O Réu atuou por si e não em representação nem ao serviço da Ré Sociedade, nenhuma responsabilidade podendo ser atribuída a esta.”.
*

Entendemos assistir razão ao enquadramento e fundamentação protagonizados pelo acórdão recorrido.

Os danos produzidos na esfera do Autora deveram-se em exclusivo ao perigo resultante de um evento de laboração ou exploração da máquina, no âmbito de actuação das suas funções específicas e do seu funcionamento próprio, ainda que na dependência da circulação devida ao tractor associado e promotor dessas funcionalidades. 
Os danos produzidos não se geraram na esfera de perigo (e seus riscos próprios de concretização) de um evento de locomoção ou de circulação do veículo a que a máquina agrícola se encontra atrelada.
É nesse evento funcional de laboração ou exploração da máquina que se encontra a natureza perigosa da sua utilização, vista objectivamente como aptidão especial (em sentido probabilístico de ultrapassagem do limiar da normalidade)[6] para a produção de danos (mais frequentes e mais graves)[7].
Ora, o mecanismo de corte e trituração que, com base em lâminas ou discos metálicos operando em sistema giratório, a máquina utiliza para a sua função de empreender a limpeza de terrenos em área agrícola e florestal (“capinar”) deve, como actividade vista enquanto “manifestação dinâmica ou de funcionamento”[8], prefigurar-se como sendo por si só causa mais do que provável de um possível efeito danoso, efeito este cuja consumação se potencia se as cautelas no próprio exercício da actividade e na relação da actividade com terceiros não forem tomadas em tempo e de forma conveniente – logo, actividade perigosa pela sua intrínseca natureza de risco e, também, pelos meios (instrumentos da acção) que se apresentam indissociáveis da sua funcionalidade de limpeza.
Nesta exacta medida, o lançamento dos detritos ocasionado durante essa laboração ou exploração – facto gerador do dano sofrido no caso – é manifestamente um perigo que deveria ter sido antecipado e neutralizado pela tomada de acções preventivas adequadas e necessárias por um utilizador diligente – um perigo típico, aprioristicamente considerado e aferido em abstracto[9], sujeito a uma conduta de tutela alheia e norteada pelo “princípio de precaução ou prevenção”[10].
Em suma: uma actividade e um perigo a serem subsumidos na previsão da responsabilidade consagrada no art. 493º, 2, do CCiv.

3.3. Em contraponto, seguindo aquele critério, não nos encontramos no caso perante a produção do perigo ou risco próprio inerente (enquanto unidade circulante autónoma) à condução (ou utilização) de um «veículo de circulação terrestre»[11].
Nem a máquina agrícola se comportou e comporta como veículo no desempenho funcional com que foi utilizada[12], desempenho esse ao qual se imputa o facto de concretização do perigo que veio a produzir os danos (cfr. factos provados 4. e 11.).
Nem o veículo tractor a que se associa tem predomínio sobre a função principal da actividade da máquina, à qual se deveu o facto lesivo, antes se assume como um complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz) para a função mecânica da “capinadeira” (encontrando-se a transitar atrelada) se concretizar.  

Logo, numa lógica de exclusão (sem prejuízo de tal circulação de veículos ser também uma actividade perigosa e dever ser ponderado o seu risco), fora da esfera dos danos indemnizáveis pela responsabilidade objectiva contemplada pelo art. 503º do CCiv. ficam os que não têm conexão com os riscos específicos de um veículo circulante, por serem estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre como tais[13] – como se afigura ser o caso trazido à última análise do STJ, em que não podemos ver o facto danoso como acidente de circulação de veículos, antes um produto da função própria da “capinadeira” (ainda que assistida por um veículo).

3.4. Enquadrando-se a utilização da máquina “capinadeira” no art. 493º, 2, do CCiv., caberia aos Réus afastar a presunção de culpa, demonstrando que foram tomadas pelo Réu explorador da “capinadeira” todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos – tal não ocorreu.

Merecem, por isso, ser sufragadas a fundamentação e as decisões das instâncias quanto à qualificação do trabalho agrícola feito pela máquina “capinadeira” como “actividade perigosa” e aplicação do art. 493º, 2, do CCiv., com as suas consequências e, ademais, as derivadas da exclusão de aplicação (esta pretendida pelos Recorrentes) do art. 503º do CCiv., falecendo as Conclusões sindicadas nesta revista excepcional.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em julgar improcedente a revista.

Custas pelos Recorrentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

STJ/Lisboa, 5 de Abril de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo



SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


________________________________________________


[1] Trata-se da comummente conhecida e usada formulação trazida por VAZ SERRA, “Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades”, BMJ n.º 85, 1959, nt. 37 – pág. 378 (sublinhado nosso), correspondendo à citação de GAETANO QUAGLIARIELLO, Sulla responsabilità da illecito nel vigente Codice Civile, Casa Editrice Jovene, 1957, pág. 80, em referência ao art. 2050 do Codice Civile, inspirador do nosso preceito.
[2] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, VIII, Direito das obrigações. Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade civil Almedina, Coimbra, 2014 (reimp. 2010), págs. 571 e ss, 587, 588, “Artigo 493º”, Código Civil comentado, II, Das obrigações em geral (artigos 397.º a 873.º), coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 434 (para desenvolvimento da categoria dos “deveres do tráfego”, ID., Da boa fé no direito civil, Alemdina, Coimbra, 1983, págs. 831 e ss, em esp. 834);  MARIA DA GRAÇA TRIGO/RODRIGO MOREIRA, “Artigo 493º”, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das obrigações em geral, coord.: José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 325,
                Na origem do preceito (trabalhos preparatórios conducentes ao Anteprojecto do CCiv.), VAZ SERRA, “Responsabilidade pelos danos…”, loc. cit., pág. 375, importou a prescrição do direito italiano como uma “solução intermédia” entre a responsabilidade objectiva e a responsabilidade baseada na culpa, uma vez que a medida ordinária da diligência ordinária foi agravada e inverteu-se o ónus da prova a cargo do lesante (ausência de culpa).
[3] ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 588.
[4] V. Ac. do STJ de 17/5/2017, processo n.º 1506/17.1TBOAZ.P1.S1, Rel. ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA, in www.dgsi.pt.
[5] V. Ac. do STJ de 19/6/2018, processo n.º 230/13.5TBMNC.G1.S1, Rel. CABRAL TAVARES, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ, págs. 379-380 (in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf).
[6] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de responsabilidade civil, Principia, Cascais, 2017, págs. 243 (“envolve uma grande propensão para ocorrência de danos”), 244.
[7] V., por ex., o Ac. do STJ de 10/7/2012, processo n.º 1400/04.2TBAMT.P1.S1, Rel. GABRIEL CATARINO, in www.dgsi.pt.
[8] V. Ac. do STJ de 11/7/2013, processo n.º 95/08.0TBAMM.P1.S1, Rel. ALVES DO VELHO, in www.dgsi.pt.
[9] Por todos, v. o Ac. do STJ de 29/4/2008, processo n.º 08A867, Rel FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt (“A perigosidade a que alude o art. 493º, nº 2, do Código Civil é uma perigosidade intrínseca da actividade exercida, quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e não em função dos resultados danosos em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade, ou risco dessa actividade”: ponto I do Sumário).
[10] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições… cit., pág. 244.
[11] V., com proveito, os Acs. do STJ de 8/5/2013, processo n.º 254/08.4TBODM.E1.S1, Rel. FONSECA RAMOS,  e de 17/12/2015, processo n.º 312/11.8TBRGR.L1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES, sempre in www.dgsi.pt.
[12] V. RAÚL GUICHARD, “Artigo 503º”, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das obrigações em geral, coord.: José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 403.

[13] V. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, sub art. 503º, págs. 514-515, RAÚL GUICHARD, “Artigo 503º”, loc. cit., pág. 405 (enquanto “elemento activo da circulação”). 

Em termos de regime legal do seguro de responsabilidade civil automóvel, o art. 4º do DL 291/07, de 21 de Agosto, determina a exclusão da obrigatoriedade de seguro para os veículos que sejam utilizados em “funções meramente agrícolas ou industriais”.