Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
294/11.6T2ILH.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 10/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTE DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATO DE MÚTUO / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / DIREITO PROCESSUAL CIVIL / MÁ FÉ
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: 456.º, N.º 2, AL. B), 506.º;
NCPC: ARTS. 542.º, N.º 2, AL. B), 665.º, 679.º
CÓDIGO CIVIL: ART. 473, N.º 2
Sumário :
I - O princípio da concentração da alegação, enunciado para a contestação, valia para a réplica; a correcção de omissões da defesa à excepção e à reconvenção ficou precludida, salvo quanto à alegação de factos supervenientes (artigo 506º do Código de Processo Civil, na versão aplicável à data dos articulados da presente acção);

II - Em recurso, não podem ser considerados factos relativos à contestação da ré que não pudessem ter sido conhecidos em 1ª instância;

III - Não obstante não recair sobre as partes nenhum ónus de alegação de factos que beneficiem a parte contrária, é incontestável que a lei censura a conduta processual que conduza à «omissão de factos relevantes para a discussão da causa», seja dolosa, seja negligentemente.– arts. 456º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil anterior e artigo 542.º, n.º 2, al. b), do CPC despacho 2013;  

IV - A obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa pode ocorrer, nomeadamente, quando o objecto de que se trate «for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou»; não pode assim excluir-se liminarmente a possibilidade de utilização de um documento do qual possa vir a resultar o desaparecimento da causa justificativa de determinados pagamentos;

V - O Supremo Tribunal de Justiça não pode substituir-se ao Tribunal da Relação na apreciação do enriquecimento sem causa alegado subsidiariamente na contestação; o disposto no artigo 665º. nº 2 do Código de Processo Civil, para a apelação, não é aplicável no recurso de revista (artigo 679º do Código de Processo Civil).

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Em 29 de Abril de 2011, AA intentou uma acção contra BB – Indústria de Mobiliários. SA, de quem foi trabalhador e gerente, pedindo: a declaração de nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo entre ambos celebrado em 1997, no montante de € 17.457,93; a restituição dessa quantia; a condenação da ré no pagamento de € 12.220,59 de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até integral restituição.

A ré contestou, em 23 de Maio de 2001. Invocou ter já pago parte da dívida, € 2.628,69, negou serem devidos juros até à citação, por se encontrar de boa fé, invocou a prescrição dos juros vencidos “para além dos últimos cinco anos” e opôs a compensação com um crédito sobre o autor, no montante de € 42.845,78, “soma de vários empréstimos que a ré efectuou ao autor entre Fevereiro de 1995 e Março de 2003, inclusive”, correspondentes ao pagamento das prestações mensais de um empréstimo contraído juntos da Caixa CC, para aquisição de uma fracção autónoma de um determinado prédio, identificado nos autos. Disse ainda que em 10 de Novembro de 1995 acordaram que a restituição se faria através da transmissão da titularidade da referida fracção; mas que o autor nada cumpriu, apesar de interpelado por carta de 15 de Abril de 2003. Subsidiariamente, a ré pediu que “mesmo que a título de enriquecimento sem causa, o que se invoca, sempre estaria o autor obrigado a restituir à ré as quantias” que somam € 42.845,78, que discrimina. Diz ainda que o autor lhe deve € 13.856,21 de juros de mora vencidos.

Em reconvenção, pediu a condenação do autor no pagamento do excesso do seu contra-crédito.

Em 16 de Junho de 2011, o autor replicou. Interessa agora especialmente ter em conta que veio alegar que a fracção autónoma em causa fora comprada em seu nome (à data, era administrador da ré) e de sua mulher, que contraíram empréstimo junto da Caixa CC para o efeito, garantido por hipoteca, porque a ré não conseguiu obter o empréstimo que solicitou; que ficou acordado que as prestações do empréstimo seriam pagas pela ré; que assim sucedeu entre Fevereiro de 1995 e Março de 2003; que efectivamente acordaram que o autor “se prontificava a vender à ré”, ou a quem esta indicasse, a fracção, passando o então adquirente a pagar as prestações, junto da Caixa CC; que, portanto, nunca se obrigou a restituir quaisquer quantias; que “está, como sempre esteve, disposto” a “vender à R. ou a quem ela indicasse o apartamento referido (…)”, mas que “nunca foi para tal interpelado”, pois “recebeu uma carta da ré, datada de 15/04/2003 (…), não para proceder à transmissão do referido imóvel, como falsamente alega, mas sim para outorgar (a favor de …) uma procuração para vender o mesmo”. Disse ainda que o depósito das quantias que a ré entregou para pagamento das prestações do empréstimo correspondeu ao cumprimento de uma obrigação natural, não podendo ser repetido; que não deve juros nenhuns; mas que, à cautela, invocava a respectiva prescrição. Referiu ainda uma reunião de 21 de Junho de 2000, na qual se acordou no valor em dívida nesse momento; afirmou que a ré litigava de má fé e pediu a sua condenação em multa e indemnização, concluindo que deve ser absolvido do pedido reconvencional e que a acção deve proceder.

Houve tréplica.

No saneador, julgaram-se prescritos “os juros anteriores aos 5 anos que precederam a citação, isto é, os juros anteriores a 4.5.06, de cujo pedido a ré é absolvida (…)”; e igualmente “prescritos os juros anteriores aos 5 anos que precederam a notificação do pedido reconvencional, isto é, os juros anteriores a 27.5.06, sendo o A./reconvindo absolvido do pedido reconvenional nesta parte (…).

A acção e a reconvenção foram julgadas parcialmente procedentes, pela sentença de fls. 305, de 17 de Abril de 2013:

– O autor foi condenado “a pagar/restituir à ré a importância de 25.387,85 € (…), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido reconvenional até integral pagamento”;

– A ré foi condenada no pagamento de “juros moratórios ao autor, à taxa legal, vencidos sobre” € 17.457,93 “no período que medeia entre a citação da ré e a notificação ao autor da contestação”.

Para o efeito, entendeu-se na sentença que as partes tinham celebrado entre si vários contratos de mútuo inválidos por falta de forma, salvo, no que respeita aos mútuos concedidos ao autor, quanto aos que são posteriores à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 343/98, de 6 de Novembro e cujo valor não excede os € 2.000,00; que, sejam nulos, sejam válidos os mútuos, sempre existirá a obrigação de restituição; que procedem a compensação oposta pela ré e o pedido de condenação do autor no excesso; que os juros devidos em consequência da declaração de nulidade se contam apenas, quanto aos que são devidos pela ré, pelo “período que medeia entre a citação da ré – data em que ocorre a interpelação – e a notificação da contestação”.

A sentença, todavia, acrescentou a seguinte consideração, a propósito dos “vários empréstimos”: que eles “surgem num contexto muito específico, pois o que estava em causa, inicialmente, era uma operação de financiamento, intervindo o autor e outro membro da empresa ora ré na aquisição dos imóveis que se destinavam a saldar um crédito sobre a sociedade que os construiu. Certo é que a situação foi-se consolidando ao longo do tempo, não tendo sido transferida a propriedade do imóvel – que permanece na titularidade do autor – nem satisfeito o débito que esteve na origem da referida operação, não existindo, por isso, razões justificativas para que as verbas adiantadas não sejam devolvidas por parte de quem as recebeu – o autor – sob pena de enriquecimento sem causa – art. 473º do Código Civil – dado que o património do mesmo foi aumentado à custa do empobrecimento (diminuição) do património da ré, que satisfez as respectivas prestações decorrentes da concessão de crédito solicitada pelo autor na Caixa CC”.

Rejeitou, ainda, que estivesse em causa qualquer obrigação natural, por parte da ré; e observou que a prova de que as partes acordaram em que a restituição à ré das quantias por esta emprestadas “seria efectuada através da transmissão da titularidade (…) da fracção (…) “faz(…) inculcar a ideia que as partes tiveram em vista ou uma promessa de dação em cumprimento (… ) ou uma novação (…), sendo certo, no entanto, que em nenhuma dos casos o negócio se mostra cumprido, pelo que permanece incólume a obrigação inicial – restituição decorrente do mútuo ou da nulidade do mesmo –, quanto mais não seja por perda do interesse do credor – neste caso a ré – na respectiva prestação – artº 808º, nº 1, do Código Civil”.


2. Em 28 de Maio de 2013, o autor recorreu para a Relação e apresentou alegações nas quais, por entre o mais, insistiu em que nunca a ré lhe tinha emprestado dinheiro, “ficando ele obrigado a restituir outro tanto” (fls 336): “Em suma, não pode ser considerado um contrato de mútuo, aquele contrato mediante o qual uma das partes se obriga a liquidar as amortizações de um empréstimo bancário contraído para aquisição de um imóvel, obrigando-se a outra parte a vender-lhe ou a quem ela indicar o imóvel objecto do referido empréstimo” fls. 337). Vir a parte que se obrigou a liquidar as referidas amortizações, mais tarde exigir de outra a restituição dos montantes prestados, sem que nunca interpele a mesma para proceder à venda do imóvel como havia ficado acordado, constitui litigância de má-fé por parte daquela”

Pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 393, de 14 de Janeiro de 2014, a sentença foi revogada. O autor foi absolvido do pedido reconvencional e a ré foi condenada a pagar-lhe a quantia de € 17.457,93, com juros contados desde a citação.

Em síntese, a Relação, alterando alguns pontos da decisão de facto, considerou que a ré não tinha conseguido fazer prova do contrato de mútuo que invocara:

«Ora, vista a factualidade apurada nos autos (…), facilmente se conclui que a reconvinte não logrou fazer prova da existência do invocado vínculo contratual. Com efeito, independentemente da qualificação jurídica do acordo celebrado entre a reconvinte e o autor reconvindo, tal como emerge da factualidade apurada – afigurando-se ter aquele actuado como “figura de palha” em negócio simulado também por interposição de pessoa – a verdade é que a obrigação por si assumida foi a de transmitir o direito de propriedade da fracção para a reconvinte ou a favor de quem esta indicasse, quando para tal interpelado. Admite-se que o reconvindo tenha incorrido em mora quanto ao cumprimento de tal obrigação e não se encontre sequer em condições de a cumprir no imediato, dado que onerou a fracção através da constituição de hipoteca que garante um empréstimo pessoal. Todavia, o que não pode é transformar-se tal obrigação, sem mais, numa obrigação de restituir as quantias pagas pela ré a título de amortização do empréstimo contraído junto da C AA, de que apenas esta beneficiou, ao abrigo de um invocado, mas de modo nenhum demonstrado, contrato de mútuo.

Ponderou o Mm.º juiz “a quo”, ainda que lateralmente, que “estando em causa inicialmente uma operação de financiamento, intervindo o autor e outro elemento da sociedade ré na aquisição dos imóveis que se destinavam a saldar um crédito sobre a sociedade que os construiu, certo é que a situação foi-se consolidando ao longo do tempo, não tendo sido transferida a propriedade do imóvel – que permanece na titularidade do autor – nem satisfeito o débito que esteve na origem da referida operação, não existindo, por isso, razões justificativas para que as verbas adiantadas não sejam devolvidas por parte de quem as recebeu – o autor -sob pena de enriquecimento sem causa – art. 473º do Código Civil – dado que o património do mesmo foi aumentado à custa do empobrecimento (diminuição) do património da ré, que satisfez as respectivas prestações decorrentes da concessão de crédito solicitada pelo autor na Caixa AA”.

Tais considerando, porém, não os podemos subscrever. Com efeito, tendo o autor assumido, nos termos do acordo celebrado, e conforme se deixou já referido, a obrigação de transmitir para a ré ou para quem esta indicasse, o direito de propriedade sobre a fracção em causa, sobre a ré/reconvinte recaía inequivocamente o ónus da alegação e prova de que aquele incorreu em incumprimento definitivo, em ordem a ser ressarcida dos prejuízos sofridos, aí podendo ser considerados os valores aqui reclamados e até eventual perda de chance de uma venda vantajosa. O que não pode é tal efeito ser decretado ao abrigo de uma obrigação de restituir com origem num indemonstrado contrato de mútuo – sendo certo que sobre a reconvinte recaía, também aqui, o ónus da respectiva prova, consoante dispõe o n.º 1 do art.º 342.º – ou ininvocado instituto do enriquecimento sem causa, mesmo desconsiderando o seu carácter residual.

O que vem de se dizer conduz à conclusão de que o recurso interposto merece procedência, devendo ser revogada a sentença proferida no segmento impugnado, sendo substituída por decisão que absolva o autor reconvindo do pedido reconvencional formulado. Consequentemente, e por não haver lugar à operada compensação, subsiste a condenação da ré no pagamento ao autor da quantia por este peticionada, acrescida dos juros de mora contados da data da citação.»


3. A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões, nas alegações que apresentou:

«A) A ora recorrente BB – Indústria de Mobiliário S.A. entende que foi invocado nestes autos o instituto de enriquecimento sem causa – artigo 30º da sua contestação e artigo 47º da reconvenção.

B) A fracção autónoma descrita, e em causa nos autos, foi comprada pela Caixa CC S.A. em processo de execução em que eram executados o reconvindo e a sua mulher já depois de ter ocorrido a produção de prova nestes autos, sendo legal a apresentação do doc. 1, que se junta e se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.

C) A referida fracção autónoma já não é propriedade do reconvindo e de sua mulher, não podendo estes dispor da mesma para efeitos de cumprimento de qualquer negócio, ainda que válido e eficaz, designadamente a transmissão do direito de propriedade desse imóvel para a esfera jurídica da reconvinte.

D) Por conta das entregas efectuadas pela reconvinte na conta de depósitos à ordem titulada pelo reconvindo, este viu aumentado o seu património em valor de € 42.845,78. enquanto que a reconvinte se viu desembolsada e despojada de igual quantia.

E) Entre o enriquecimento do reconvindo e o empobrecimento da reconvinte existe uma relação de causa e efeito, havendo uma correlação directa entre um e outro, pois não existiria um sem o outro.

F) Não existe qualquer razão para que o reconvindo mantenha na sua posse as quantias por ele recebidas da reconvinte, pois não pode ficar com o dinheiro e com o imóvel, sendo que este já foi transferido para terceiro através de venda judicial em processo executivo intentado contra o reconvindo e mulher.

G )Não se vislumbra qualquer outro mecanismo jurídico de que a reconvinte possa lançar mão para fazer valer os seus direitos, designadamente de lhe serem restituídas todas as quantias por si entregues ao reconvindo e por este recebidas, no montante total de € 42.845,78.

H) Concluindo, entende a recorrente que o douto acórdão recorrido fez errada interpretação do disposto no artigo 473º e seguintes do C.C.

Nestes termos e nos melhores de direito, (…), deve o presente recurso de revista obter bom e integral provimento e, por esta via, ser revogado o douto acórdão recorrido e, assim sendo, ser o autor reconvindo condenado a pagar/restituir à ré reconvinte a importância de €25.387,85 (vinte e cinco mil trezentos e oitenta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos), que resulta da diferença entre a quantia de €42.845,78 e a quantia de €17.457,93 – acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido reconvencional até integral e efectivo pagamento, tudo com as demais consequências legais, seguindo-se os demais termos até final».

O autor contra-alegou, sustentando a manutenção do acórdão recorrido e concluindo assim:

«1 - Apesar de o instituto do enriquecimento sem causa ter sido mencionado da contestação/reconvenção, não foram pela ré/reconvinte elencados, como lhe competia, factos consubstanciadores de tal alegação, o que só agora, em sede de recurso para este Venerando Tribunal vem fazer.

2 - Já depois de se ter conformado, aceitado e aplaudido a decisão proferida na primeira instância, não tendo posto em crise, em sede de resposta ou recurso subordinado, a desconsideração por aquele do referido instituto.

3 - A fracção autónoma descrita e em causa nos presentes autos, foi adjudicada pela Caixa CC em processo de execução, instaurado contra o autor/reconvindo e a mulher, na sequência do incumprimento do pagamento das prestações referentes ao empréstimo contraído, porquanto a ré, desde Abril de 2003, que deixou de proceder ao pagamento dos mesmos, como se havia obrigado, tendo dado causa a esse incumprimento.

4 - Pelo que, a fracção autónoma em causa nos presentes autos já não é propriedade do autor/reconvindo, por culpa exclusiva da ré/reconvinte que desde Abril de 2003 deixou de proceder ao depósito das quantias referentes à amortização do empréstimo junto da Caixa CC.

5 - O autor/reconvindo adquiriu o imóvel em causa, contraindo uma dívida em seu nome junto da Caixa CC, divida que durante algum tempo pagou a expensas suas, dívida essa por si contraída apenas e só no interesse e a solicitação da ré/reconvinte, para que esta recuperasse parte do seu crédito mal parado junto da sociedade "DD, Lda.".

6 - Pelo que não houve qualquer enriquecimento do autor/reconvindo ...

7 - O autor/reconvindo nunca recebeu, para si, quaisquer quantias por parte da ré/reconvinte, as quais foram sempre entregues directamente à instituição bancária C AA, apara amortização do empréstimo contraído.

8 - Existe e existia outro meio de a ré/reconvinte fazer valer os seus direitos, assim queira sujeitar-se às normais regras do exercício do contraditório por parte do autor/reconvindo e bem assim dar cumprimento ao ónus da prova, como lhe cabe.

9 - Tendo o Tribunal recorrido dado cabal cumprimento e feito a mais correcta das interpretações ao disposto no art. 473º do Código Civil, cabendo à ré/reconvinte ter alegado na sede própria as razões de facto que sustentavam a sua alegação no artigo 30º da contestação (e não petição inicial, como certamente por lapso refere nas suas alegações).

10 - Na verdade, os termos do acordo (ou contrato) feito pelas partes consta expressamente da declaração junta a fIs. 97 dos autos que aqui se dá como integralmente reproduzida.

11 - Existindo pois o compromisso da ré/reconvinte em provisionar a conta da Caixa CC titulada pelo autor onde era descontada a prestação referente ao empréstimo para habitação, o qual, como resulta do teor do depoimento da supra referida testemunha João Fernandes, foi contraído no interesse da própria ré, tendo-se o autor obrigado a, quando para tal fosse interpelado, vender a fracção em causa à ré ou a quem ela indicasse.

12 - Na verdade, as partes celebraram entre si um contrato atípico, o que fizeram ao abrigo do princípio da liberdade contratual, mediante a qual são as partes que determinam o conteúdo e os efeitos dos negócios jurídicos. As partes são livres de fixar o conteúdo dos contratos, de celebrar contratos diferentes dos previstos na lei ou de incluir, nos que aí estão previstos, as cláusulas que entenderem, desde que utilizem essa liberdade dentro dos limites que a lei lhes impõe.

13 - Pelo que. a R. ao alegar que o A. lhe deve as quantias que agora veio reclamar vem deduzir pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, agindo com manifesto abuso de direito, alterando a verdade dos factos e omitindo outros relevantes para a decisão da causa,

14 - Litigando assim de má-fé, pelo que deverá ser condenada em multa e indemnização condignas, a fixar segundo o livre arbítrio e prudência do Tribunal, o que desde já se requer nos termos e para os efeitos do artigo 543º do Código de Processo Civil, mas nunca em valor inferior a €1.500,00.

15 - Sendo certo que a indemnização a fixar, deverá consistir ainda no reembolso de todas as despesas a que a má-fé da litigante, ré /reconvinte, tenha obrigado a parte contrária, autor/reconvindo, e bem assim na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pelo A. como consequência directa ou indirecta da má-fé da R..

a) Termos em que, se requer muito respeitosamente a V. Exas se dignem negar provimento ao Recurso ora apresentado pela ré/reconvinte, e em conformidade manter a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, absolvendo assim o autor/reconvindo do pedido contra si formulado, com as legais consequências;

b) Condenar a ré/reconvinte em multa e indemnização condignas, a fixar segundo o prudente arbítrio deste Venerando Tribunal, sem prejuízo da obrigação do reembolso das despesas tidas pelo autor/reconvindo, a que a má-fé da litigante (ré/reconvinte) o tenha obrigado. »


4. Vem provado o seguinte, conforme resulta do acórdão recorrido:

«1. O autor trabalhou por conta e no interesse da ré entre 1983 e 1990 (alínea A) dos factos assentes).

2. Data em que adquiriu uma quota equivalente a 10% do capital social, tendo sido designado sócio gerente da mesma, cessando assim funções como trabalhador nesse ano (alínea B) dos factos assentes).

3. Tendo sido readmitido ao serviço da ré em 2 de Novembro de 1995, novamente como trabalhador, após a venda da sua participação social (alínea C) dos factos assentes).

4. Aí permanecendo, exercendo funções de director comercial, até 31 de Dezembro de 2000 (alínea D) dos factos assentes).

5. Durante o ano de 1997, foi celebrado entre o autor e a ré um contrato mediante o qual o autor emprestou à ré a quantia de 3.500.000$00, não tido tal negócio sido reduzido a escrito (alínea E) dos factos assentes).

6. Em data anterior a Janeiro de 1998, a Ré forneceu mobiliário, designadamente cozinhas, a “Construções DD, Ldª, sociedade que, nessa data, atravessava um difícil período económico-financeiro, evidenciado dificuldades em cumprir as suas obrigações para com a ré, sua credora (alínea I) dos factos assentes).

7. Para saldar esses débitos, a ré decidiu ficar com dois apartamentos que as Construções DD construíram no Vale …, S. Sebastião, Setúbal (alínea J) dos factos assentes).

8. A ré não tinha à época disponibilidade financeiras suficientes para proceder ao distrate da hipoteca que onerava as fracções, em ordem a permitir a transmissão do direito de propriedade a seu favor, tendo tido necessidade de recorrer a financiamento junto da C AA, que se negou a conceder-lho (alínea L) dos factos assentes).

9. Para ultrapassar este impedimento na concessão do financiamento bancário, foi acordado entre ré e autor que o empréstimo para aquisição de um dos apartamentos seria contraído em nome do autor (art. 19º da base instrutória).

10. O qual se obrigou a mais tarde fazer a cedência do mesmo à ré (art. 20º da base instrutória).

11. Foi acordado entre o autor e a ré que esta pagaria sempre as prestações referentes ao empréstimo contraído pelo autor junto da C AA, prontificando-se ele a vender o apartamento em causa à ré ou quem esta indicasse (art. 21º da base instrutória).

12. Ficou ainda acordado que a ré pagaria todos os impostos inerentes ao imóvel, designadamente a contribuição autárquica e o IMI (art. 22º da base instrutória).

13. Por escritura de 25.1.95, o autor e sua mulher adquiriram a Construções DD, Ldª, por dez milhões de escudos, a fracção AH, do prédio urbano sito no Vale …, freguesia de S. Sebastião, Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº … – AH (doc. de fls. 82 e ss.) (alínea F) dos factos assentes).

14. Em 10.11.95, autor e ré acordaram por escrito que o autor se prontificava a vender à ré, ou a quem esta indicasse, a fracção AH do 9.º andar do Lote 42 da Urbanização …, em Setúbal, ficando o novo adquirente obrigado a proceder ao pagamento das prestações em falta para a completa liquidação do empréstimo contraído junto da C AA (alínea N) dos factos assentes e resposta aos artigos 15.º e 16.º).

15. Pela mesma escritura, o autor e mulher constituíram-se devedores à C AA da quantia de dez milhões e oitocentos mil escudos que aquela emprestou para aquisição do imóvel, valor que se obrigaram a pagar no prazo de 25 anos a contar daquela data, nas condições de fls. 88 e ss. (alínea G) dos factos assentes).

16. Todos os pagamentos do empréstimo referido no ponto anterior deveriam ser efectuados através de débitos na conta de depósito à ordem titulada pelo autor e mulher na C AA com o nº … - …, do balcão de Águeda (alínea H) dos factos assentes).

17. Foi acordado entre autor e ré que seria a ré a providenciar pela provisão da conta referida em 16., procedendo para o efeito a depósitos mensais da quantia equivalente à prestação do empréstimo (alínea M) dos factos assentes e resposta ao art.º 17.º).

18. Nos meses compreendidos entre Fevereiro de 1995 (inclusive) e Março de 2003 (inclusive), e nos termos do acordo celebrado, a ré, através de cheques que emitiu, procedeu ao depósito na conta referenciada em 16. das quantias necessárias à satisfação das prestações mencionadas em 15. (resposta ao art.º 5.º).

19. No ano de 1995 tais depósitos atingiram a quantia de 6.452,05€ (resposta ao art.º 6.º).

20. No ano de 1996 os depósitos em causa atingiram o montante de 6.517,16€ (resposta ao art.º 7.º).

21. E no ano de 1997 a quantia de 6.160,15€ (resposta ao art.º 8.º).

22. E no ano de 1998, a quantia de 4.984,09€ (resposta ao art.º 9.º).

23. E no ano de 1999, a quantia de 3.723,23€ (resposta ao art.º 10.º).

24. E no ano de 2000, a quantia de 4.549,48€ (resposta ao art.º 11.º).

25. E no ano de 2001, a quantia de 4.704,81€ (resposta ao art.º 12.º).

26. E no ano de 2002, a quantia de 4.704,81€ (resposta ao art.º 13.º).

27. E no ano de 2003, a quantia de 1.050,00€ (resposta ao art.º 14.º).

28. Foi remetida ao autor a carta de fls. 98, datada de 15.4.03, que aqui se dá por reproduzida (alínea O) dos factos assentes).

Esta carta, dirigida a AA,  tem o seguinte conteúdo:

(…) atendendo a que não se dignou responder às solicitações de m/ constituinte, supra identificada (a ré), venho pela derradeira vez solicitar que me envie procuração para vender o apartamento passada a favor do Sr. EE ou da D. FF, administrador da BB – Indústria de Mobiliário, S.A., ou compareça neste escritório para resolver, de uma vez por todas, este assunto que muitos problemas estão a causar à minha constituinte. Caso não compareça neste escritório no próximo dia 22 de Abril, pelas 11h30m para tratar deste assunto, ou nada diga no prazo máximo de dez dias a contar de hoje, tomarei vossa ausência e vosso silêncio como vontade em não resolver este assunto sem recurso a tribunal (…”

29. O autor e sua mulher, GG, constituíram em 29/6/2009, a favor da Caixa CC S.A., hipoteca voluntária sobre o imóvel identificado em F), para garantia do capital de 30 000,00 €, com montante máximo assegurado de 47.355,00 € hipoteca essa para garantia de um crédito pessoal (alínea P) dos factos assentes).»

5. O recurso foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

Com as alegações de recurso, a recorrente juntou um documento: uma “certidão permanente” da qual resulta que a fracção em causa neste processo foi comprada pela Caixa CC, em processo executivo, a AA e GG; da certidão consta, como data de apresentação, o dia 24 de Fevereiro de 2013.


6. Antes de mais, cumpre observar que, mais uma vez, o autor vem invocar litigância de má fé por parte da ré; mas sem razão, porquanto não existem nos autos indícios de a ré ter deduzido “pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar” ou de ter agido “com manifesto abuso de direito”.


7. E vem ainda o autor, na revista, sustentar o seguinte:

 – Que a recorrente, se pretendia ver apreciado o enriquecimento sem causa – invocado como fundamento de excepção, no artigo 30º da contestação, e de reconvenção, quanto ao excesso do contra-crédito alegado – haveria de “ter reclamado” da omissão de apreciação desse fundamento do “seu pedido de compensação”, “ou, até mesmo, apresentando (…) recurso subordinado” (pontos A) e B)) das alegações. O recorrido esquece que a recorrente, sendo vencedora em 1ª instância, não tinha legitimidade para interpor recurso de apelação, nem sequer recurso subordinado; e, ainda, que a Relação não se limitou a omitir a apreciação do enriquecimento sem causa, afirmou não ter sido invocado e que a falta de alegação e prova de incumprimento definitivo impedia a procedência da compensação, mesmo que com fundamento em “ininvocado instituto do enriquecimento sem causa”;

– Que a recorrente não invocou “um único facto consubstanciador” do enriquecimento sem causa; que só podem considerar-se, para o efeito, os que alegou na contestação, os factos que então utilizou, em primeiro lugar, para pedir a restituição com fundamento na nulidade dos mútuos que invocou e, subsidiariamente, para pedir essa restituição com fundamento em enriquecimento sem causa. Quanto a este ponto, é certo que não poderão ser considerados, em recurso, factos relativos à contestação da ré, que não pudessem ter sido conhecidos em 1º Instância;

– Que foi a recorrente quem primeiro entrou em incumprimento, e que não lhe é possível vir agora, no recurso de revista, algar factos consubstanciadores de enriquecimento sem causa, deixando-o a ele, recorrido, sem possibilidade de defesa, impedido de exercer o contraditório, e justificando a hipoteca de 2009, a execução e a aquisição pela Caixa CC, por entre o mais. Mas a verdade é que a recorrente invocou ter interpelado o recorrido para lhe passar uma procuração para vender, sem êxito; e invocou o enriquecimento sem causa. O que significa que o recorrido teve a oportunidade de se opor, na réplica, justificando a nova hipoteca (tenha-se em conta que, o que ficou provado, foi que a hipoteca de 2009 se destinou a garantir um crédito pessoal do autor e de sua mulher) e apresentando toda a defesa que entendesse quanto à alegação de enriquecimento sem causa. Nomeadamente, teve toda a oportunidade de justificar a aquisição pela Caixa CC. Não procede, portanto, a alegação de que não houve nos autos a oportunidade de discutir se houve incumprimento definitivo da sua parte. Acresce que o princípio da concentração valia para a réplica; a omissão da defesa à excepção e à reconvenção, com a extensão que agora invoca, ficou precludida, salvo quanto à alegação de factos supervenientes (artigo 506º do Código de Processo Civil, na versão aplicável à data dos articulados da presente acção);

– Que nunca foi interpelado para “ceder o apartamento à ré ou a quem ela indicasse” (ponto 22 das alegações de revista), remetendo para o demonstrar para a resposta ao quesito 18º (“Por diversas vezes a Ré interpelou o A. para esse efeito? Resposta: não provado). Mas só se compreende o significado deste quesito descobrindo a sua origem no artigo 24º da contestação, como referido ao acordo mediante o qual o autor se obrigou a vender a fracção à ré ou a quem esta indicar; ora, para além de ter conteúdo de direito – o que significa ter interpelado o autor? –, a verdade é que foi dado como provado o envio da carta de fls. 98, cujo conteúdo está acima transcrito.

Essa carta contém uma interpelação para o autor cumprir a obrigação que assumiu; poder-se-á discutir se interpelar para passar uma procuração para venda equivale, ou não, a interpelar para vender; o que implicaria interpretar o compromisso assumido. Mas a carta contém uma interpelação para cumprir


9. A fls. 502, foi lavrado o seguinte despacho, notificado ao autor:


  «1. Com as alegações do recurso de revista, a recorrente juntou um documento: uma “certidão” permanente do registo predial, com a data de apresentação de 24 de Fevereiro de 2013, da qual resulta que a fracção em causa neste processo foi comprada, em processo executivo, a AA e GG, pela Caixa CC.

2. A defesa do autor, relativamente ao pedido de restituição das quantias que o réu alegou ter-lhe entregado, no âmbito da nulidade dos contratos de mútuo que invocou, assentou na afirmação de que não estava obrigado a “restituir quaisquer quantias” (artigo 44º da réplica), mas sim a “vender à R. ou a quem ela indicasse o apartamento identificado em 13º da contestação” (artigo 47º), “o que está, como sempre esteve, disposto a fazer”; só que “nunca para tal foi interpelado” (artigo 49º).

Nunca trouxe ao tribunal de 1º ou de 2ª instância o conhecimento da aquisição da fracção pela Caixa CC, que tornou objectivamente impossível o cumprimento da obrigação que se mostrou disposto a cumprir, não obstante a sentença e o acórdão serem posteriores; nem tão pouco a pendência da execução, na qual a Caixa CC adquiriu a fracção dos autos. Foi assim possível que a Relação lavrasse manifestamente em erro quando afirmou:

“Admite-se que o reconvindo tenha incorrido em mora quanto ao cumprimento de tal obrigação e não se encontre sequer em condições de a cumprir no imediato, dado que onerou a fracção através da constituição de hipoteca que garante um empréstimo pessoal”, acrescentando não estar demonstrado o incumprimento definitivo”.

É incontestável que não recai sobre as partes nenhum ónus de alegação de factos que beneficiem a parte contrária; mas é igualmente incontestável que a lei censura uma conduta processual que implique omissão de “factos relevantes para a decisão da causa” (al. b) do nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil, na versão anterior, al. b) do nº 2 do artigo 542º, na versão actualmente em vigor)

Como claramente resulta dos autos, as instâncias apenas tinham presente a incidência de uma hipoteca para garantia de um crédito pessoal do autor, como ficou provado; e o seu raciocínio assentou manifestamente nesse quadro.

3. Assim, convida-se o autor a pronunciar-se sobre a eventualidade de poder ser considerada litigância de má fé a actuação do mesmo, que, omitindo que a fracção dos autos se não encontrava na sua titularidade, logrou que o recurso de apelação, que interpôs, conduzisse à emissão de um acórdão decisivamente assente num pressuposto errado.

Lisboa, 3 de Junho de 2014».

O autor respondeu, negando ter havido má fé da sua parte e concluiu “requerendo (…) que não seja o A. condenado como litigante de má fé, porquanto não omitiu propositadamente que já não era titular do imóvel, tendo apenas manifestado um estado de espírito, que se mantém ainda hoje, o de cumprir com o acordado com a Ré aquando da declaração outorgada por ambos em 10 de Novembro de 1995 (cfr. doc. 2 juntos com a contestação/reconvenção, que aqui se dá por integralmente reproduzido), considerando, ainda, que o facto de ter sido dado conhecimento ao processo de que a titularidade do imóvel já não lhe pertencia, em nada alteraria a decisão final”.

Ora, da análise do acórdão recorrido decorre que a Relação teve como relevante a circunstância de ter ainda como possível o cumprimento da “obrigação por si [pelo autor] assumida (...) de transmitir o direito de propriedade da fracção para a reconvinte ou a favor de quem esta indicasse, quando para tal interpelado. Admite-se que o reconvindo tenha incorrido em mora, quanto ao cumprimento de tal obrigação e não se encontre sequer em condições de a cumprir no imediato, dado que onerou a fracção através da constituição de hipoteca que garante um empréstimo pessoal” (acórdão recorrido, fls. 409). Não pode assim afirmar-se que “em, nada alteraria a decisão final” ter sido dada a conhecer, no processo, a venda a terceiro.

Também se não considera justificação para o silêncio – num contexto em que era claramente relevante saber se aquela obrigação podia ou não ser ainda cumprida, note-se – a afirmação de que o autor “sabia do processo de execução (e julga que a Ré também, não o podendo contudo afirmar com segurança), mas não tinha presente à data do julgamento que já tinha havido adjudicação do imóvel”, uma vez que o autor era o executado no processo. Na verdade, a litigância de má fé não pressupõe dolo, bastando-se com a negligência grave da parte – que, no caso, claramente ocorre, tendo em conta o litígio e a sua qualidade de executado.


10. Está apenas em causa saber se pode considerar-se que o réu invocou ou não oportuna e suficientemente o enriquecimento sem causa e, em caso afirmativo, se o autor está ou não obrigado a restituir à recorrente as quantias enumeradas nos pontos 19 a 27 da lista dos factos provados, por não existir causa que justifique a sua retenção. Da resposta a esta questão depende saber se é fundada a compensação oposta pela ré, bem como a condenação do autor no pagamento da diferença.

Cumpre, todavia, começar por verificar se é fundada a oposição do recorrido à utilização do documento junto pela recorrente, nestes termos: “… a apresentação do documento junto com as alegações, podendo embora ser considerada tempestiva, não poderá nunca ser considerada relevante para a boa decisão da causa, porquanto, só por si, não demonstra que tenha havido incumprimento do autor ou prejuízo para a ré, não devendo por isso ser aceite e/ou considerado relevante”.

No entanto, a obrigação de restituir, com fundamento em enriquecimento sem causa, pode ocorrer, nomeadamente, quando o objecto de que se trate (aqui, as quantias referidas de 19 a 27 da lista dos factos provados) “for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (nº 2 do artigo 473º do Código Civil). Ora, independentemente de saber quem incumpriu primeiro o contratado, a saída da fracção da titularidade do autor faz objectivamente desaparecer a causa que justificava que as quantias tivessem sido pagas pela ré.

Não pode assim excluir-se liminarmente a utilização do documento.


11. O acórdão recorrido não apreciou a eventualidade de se verificar enriquecimento sem causa, não obstante ter sido efectivamente invocado, a título subsidiário, quer como excepção, quer como causa de pedir da reconvenção.

Não deve ser o Supremo Tribunal de Justiça a conhecer de tal questão, em substituição do Tribunal da Relação. Com efeito, o disposto no artigo 665º. nº 2 do Código de Processo Civil, para a apelação, não é aplicável no recurso de revista (artigo 679º do Código de Processo Civil).

O processo deve assim ser remetido ao Tribunal da Relação para que conheça da eventualidade de enriquecimento sem causa, que se tem como oportunamente invocado e que, eventualmente, merecerá ser apreciado em conjunto com o documento junto pela recorrente com as alegações da revista.


12. Nestes termos, decide-se:

a) Condenar o autor, como litigante de má fé, no pagamento da multa de 10 ucs (dez);

  b) Anular o acórdão recorrido e determinar o envio do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra para que aprecie a questão do enriquecimento sem causa, pelos mesmos juízes, se possível.

           

            Custas pela parte vencida a final.


Lisboa, 02 de Outubro de 2014


            Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

            Salazar Casanova

            Lopes do Rego