Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
308/12.2TAABF.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
SIMULAÇÃO DE CRIME
BURLA
Data do Acordão: 04/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA.
Doutrina:
- Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Penal, p. 91-100;
- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2.ª Edição, p. 988, 989, 990,991, 1015, 1018 e 1021;
- Manuel Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, p. 562 e 573.
Legislação Nacional:
- CÓDIGO PENAL (CP):- ARTIGOS 30.º, N.º 1 E 366.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 04-05-2000, ASSENTO N.º 8.
Sumário :
I - O crime de simulação, consistente na participação à GNR de um facto falso (o furto de um veículo inseriu-se num plano mais amplo: “pretendia o arguido participar o alegado furto, que sabia não se ter verificado, de forma a fazer a posterior participação às entidades seguradoras onde o veículo estava segurado, de forma a receber o valor seguro devido pelo furto”. Esta participação falsa (“simulação de crime”) constituiu pois um meio indispensável, no plano gizado pelo arguido, à consecução de um fim: o recebimento das indemnizações. E portanto há que determinar se esta relação meio/fim entre as duas condutas típicas constitui um concurso aparente ou efetivo, para os efeitos do art. 30.º, n.º 1, do CP.
II - De acordo com esse preceito legal, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. Se a conduta do agente integra um único tipo de crime constitui uma única infração; se preencher vários tipos de crime haverá várias infrações.
III - A unidade de tipo de crime avalia-se de acordo com a unidade de bem jurídico infringido. No caso de várias condutas violarem o mesmo bem jurídico, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas.
IV - Havendo violação de vários bens jurídicos pela atividade do agente, haverá sempre pluralidade de crimes, ainda que exista uma só resolução criminosa (a não ser que as normas concorrentes se excluam mutuamente). É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30.º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia.
V - Esta posição foi porém contestada por Figueiredo Dias, que propõe como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica. A essência do facto punível reside, para Figueiredo Dias, não na mera ação típica, nem na norma (no bem jurídico tutelado), mas no “substrato de vida” dotado de sentido jurídico-penalmente negativo. Daí que, em seu entender, seja a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude do comportamento global a determinar a unidade ou pluralidade de crimes. Em caso de concurso de crimes, ou seja, de prática pelo agente de uma pluralidade de ilícitos típicos, haverá que distinguir entre as situações em que existe uma pluralidade de sentidos de ilicitude, e então estaremos perante um concurso efetivo; e as situações em que o comportamento global do agente é dominado por um único ou predominante sentido dos vários ilícitos cometidos, sendo os restantes dominados ou subordinados, hipótese em que se verifica um concurso aparente.
VI - Ainda segundo este mesmo autor, a dominância de um dos sentidos de ilícito sobre os outros pode resultar de diversos critérios, nomeadamente: unidade de sentido social do acontecimento global/final; instrumentalidade de um ilícito (crime-meio) em relação a outro (crime-fim); unidade de desígnio criminoso; conexão espácio temporal das realizações típicas; serem certos ilícitos meros estádios de evolução da realização típica final. Relativamente à relação de instrumentalidade, ela abarcaria as situações em que um ilícito surge perante o ilícito principal unicamente como meio de o realizar e nessa realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.
VII - Contudo, esta posição doutrinal, meritoriamente preocupada em evitar a violação do princípio da proibição da dupla censura do mesmo facto, acaba por subalternizar, ou mesmo desproteger, de forma insustentável do ponto de vista político-criminal, bens jurídico-penais relevantes, tratados como meros “sentidos de ilícito subordinados”. Com efeito, o crime-meio pode assumir, na conduta executada pelo agente, uma relevância penal superior, pela especial ilicitude ou censurabilidade da conduta, à do crime-fim, sendo então intolerável subordinar a proteção do bem jurídico por ele tutelado à que é concedida por este último. Nesse caso, aliás, dificilmente se poderia dizer que o crime-meio “esgota” o seu sentido ao desempenhar a sua função instrumental. Assim como dificilmente se poderia considerar que a proteção jurídica dada ao crime principal esgotaria a tutela do crime subordinado.
VIII - Haverá concurso aparente entre o crime de simulação de crime e o de burla, como pretende o recorrente? A denúncia falsa do furto do veículo inseriu-se, no plano do arguido, como já vimos, unicamente como meio de obtenção ilegítima de indemnizações por parte das seguradoras. Para ele, essa denúncia era apenas um meio de chegar ao seu objetivo.
IX - Contudo, não se pode dizer que nesse objetivo tenha esgotado o seu sentido e os seus efeitos. Na verdade, o crime de simulação de crime (art. 366.º do CP) é uma infração contra a realização da justiça, direcionada especificamente à proteção da eficácia funcional das entidades titulares do poder investigativo de crimes e outras infrações, em ordem a evitar que elas sejam desviadas para trabalho inútil de investigação, em detrimento da perseguição de infrações efetivamente cometidas.
X - Ao participar um crime falso, o arguido pôs em marcha a atividade investigativa da entidade participada, que autuou a queixa como inquérito, inquérito esse que acabou por ser arquivado, tendo sido desencadeada uma atividade processual completamente inútil, por parte da entidade policial e do MP. Não tendo sido portanto irrelevante a apresentação da queixa as autoridades, não pode considerar-se ter constituído um simples meio do cometimento das burlas pelo arguido.
XI - Não existe nenhuma interligação entre os bens jurídicos protegidos pelos crimes de burla e de simulação de crime. Enquanto este, como se referiu, é crime contra a realização da justiça, aquele é um crime contra o património. A subordinação da punição deste último à do primeiro redundaria na desproteção absoluta do bem jurídico protegido no art. 366.º do CP. O crime de simulação de crime encontra-se pois em concurso efetivo com o crime de burla.
Decisão Texto Integral:

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

AA, com os sinais dos autos, foi condenado no Juízo Central Criminal de ..., da Comarca de ..., por acórdão de 14.9.2018, pela prática dos seguintes crimes:
- dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 256º, nºs 1, e), e 3 do Código Penal (CP), na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, por cada um deles;
- um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art. 366º, nº 1, do CP, na pena de 10 meses de prisão;  
- um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do CP, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão;
- um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 1, do CP, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas, foi o arguido condenado na pena única de 6 anos de prisão.
Deste acórdão recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando:

1. Da condenação

               O Recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de falsificação de documento, um crime de simulação de crime e dois crimes de burla, previstos, respetivamente, nos arts. 256.º, n.º 1, al. e) e n.º 3, 366.º, n.º 1 e 277.º, n.º 1 do Código Penal. E, ainda, ao pagamento de indemnizações às demandantes BB e CC, SA.

Pese embora o Recorrente manter bastas divergências relativamente à matéria de facto julgada provada, nomeadamente aos sucessos que determinaram os presentes autos, pensa também que a prevalência das questões de natureza eminentemente jurídica, nomeadamente de índole processual, é tão intensa que justifica este imediato recurso per saltum, para que se possa repor o curso normal da Justiça.

Vejamos então o percurso dos autos para se chegar ao Acórdão recorrido. Após queixa-crime da companhia de seguros CC, posteriormente acompanhada por outra, da outra companhia de seguros assistente no processo - a BB- e, ainda, de uma denúncia da autoria da nora do Recorrente, DD, foi efetuado inquérito que culminou com o Despacho de Arquivamento de fls. dos autos.

Na sequência de reclamação hierárquica da queixosa BB, veio a ser proferido Despacho de Acusação que deu lugar ao julgamento que se concluiu com o Acórdão recorrido.

Naquele despacho de acusação (ref. 10667403), o Recorrente era acusado da prática, em concurso real e de forma consumada, de:

“1. Um crime de falsificação de documento, previsto e punido nos termos do art. 256.º, n.1

e) e 3 do mesmo diploma.(sic)

2. Um crime de simulação de crime, previsto e punido nos termos do art. 366.º n.º 1 do Código Penal.

3. Dois crimes de burla qualificada, previsto e punido (sic) pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 a).

4. Um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo art. 256.º n.º 1 alíneas e) e n.º 3”.

O Acórdão condenatório, notificado ao Recorrente com a referência 110583736, condena efetivamente por estes crimes. Sucede é que os factos subjacentes à condenação não são os mesmos que justificaram a dedução da acusação.

A)           Da Acusação

Deixamos por agora de parte toda a matéria relativa aos acusados crimes de burla e ao crime de simulação.

Pese embora uma deficiente redação, os factos que determinaram a acusação do Recorrente pelos dois crimes de falsificação vêm suficientemente descritos naquela peça processual, na qual, aliás, se encontram elencados pela ordem cronológica da sua verificação, segundo a perspetiva do Ministério Público.

                Assim, lê-se nas páginas 6 e 7 da Acusação:

“Em data não apurada, mas no mês de julho de 2011, logo que o veículo lhe foi entregue pela oficina devidamente reparado, o arguido colocou as matrículas ...-BI-... no referido veículo.

“As matrículas ...-BI-... apostas no referido veículo não eram e não são s matrículas reais do mesmo.

“A matrícula real atribuída pela entidade pública competente para o efeito ao referido veículo é, como supra exposto, a matrícula alemã RS-...

“Deste modo, desde julho de 2011, o arguido passou a circular como referido veículo como se tratasse do veículo de matrícula ...-BI-....

“Sabia o arguido que as ditas matrículas eram desconformes com a realidade e que só ao Estado cabe emitir e atribuir matrículas aos veículos que circulam na via pública.

“Assim, o arguido trocou as matrículas reais do veículo em causa por esta outra matrícula, apresentando-se nas vias públicas como se fosse as originariamente atribuídas ao veículo.

“Ao utilizar essas matrículas no referido veículo, como fez, visou ele obter, e obteve, efectivamente, o benefício de poder circular com o veículo sem que o mesmo fosse titulado com a apólice de seguro válida e para que não fosse autuado por tal infracção pelos agentes fiscalizadores do trânsito.

“Da mesma forma, agiu com intenção de colocar em causa a fé pública de que a matrícula de um veículo automóvel beneficia, bem como a credibilidade que merecem todos os documentos emitidos por entidade pública, assim causando prejuízo ao Estado.”

Mais adiante, e depois de efetuar a descrição fáctica que determinou a acusação pelos crimes de simulação e burla, o Ministério Público retoma o tema da falsificação, agora com referência à alegada utilização do veículo em causa, originariamente com a matrícula RS- ..., agora com a matrícula também alemã RS-....

Afirma o MP, a fls. 13 e 14 da Acusação:

“O veículo automóvel em causa, com o VIN n.º W0L0AHL3562109707, com a matrícula alemã RS..., encontra-se actualmente em local desconhecido, tendo sido localizado, em data não concretamente apurada, mas em Janeiro de 2012, parqueado numa garagem sita na rua de ..., residência do seu filho, pelo perito da seguradora “CC”, ostentando na ocasião as matriculas também alemãs RS-....

               “Tais matrículas RS-... apostas no referido veículo não eram e não são as matrículas reais do mesmo.

“A matrícula real atribuída pela entidade pública competente para o efeito ao referido veículo é, como supra exposto, a matrícula alemã RS-....

“Nessa ocasião, em data não apurada, o arguido passou a circular com o referido veículo como se se tratasse de um veículo de matrícula RS-....

“Sabia o arguido que as ditas matrículas eram desconforme com a realidade e que só aos Estados cabe emitir e atribuir matrículas aos veículos que circulam na via pública.

“Assim, o arguido trocou as matrículas reais do veículo em causa por esta outra matrícula, apresentando-se nas vias públicas como se fossem as originalmente atribuídas ao veículo.

“Ao utilizar essas matrículas no referido veículo, como fez, visou ele obter, e obteve, efectivamente, um benefício de poder circular com o veículo sem que o mesmo fosse localizado e identificado como sendo um dos outros veículos, quer o de matrícula portuguesa ...-BI-... quer o de matrícula alemã RS-..., de forma a conseguir manter a credibilidade da sua versão de que o veículo de matricula portuguesa havia sido reparado com as peças pertencentes ao RS-..., que teria sido furtado em Albufeira e dessa forma, receber os valores devidos pelas seguradoras.

“Da mesma forma, agiu com intenção de colocar em causa a fé pública de que a matrícula de um veículo automóvel beneficia, bem como a credibilidade que merecem todos os documentos emitidos por entidade pública, assim causando prejuízo ao Estado.”

Caracterizadas as ações do Recorrente que preencheriam o tipo legal do crime de falsificação, segue-se, com evidente coerência interna, o raciocínio lógico-dedutivo que permite estabelecer o tipo subjectivo do crime imputado, a síntese e a indicação dos meios de prova.

                B) Do Acórdão

No decorrer do julgamento, o Tribunal a quo apercebeu-se - e nesta fase não se fará, pela natureza deste recurso, a análise crítica da decisão sobre a matéria de facto - da inexistência de provas suficientes para consolidar a acusação de falsificação de documentos, no modelo proposto pelo Ministério Público, decorrente da utilização das matrículas.

               É assim que na matéria dada como não provada, indica-se, como segue, um extenso conjunto de factos não provados:

“….

2.2. Que o arguido colocou as matrículas ...-BI-... no veículo alemão (RS-D178).

2.3. Desde julho de 2011 o arguido passou a circular com o referido veículo como se se tratasse do veículo de matrícula ...-BI-....

2.4. As matrículas ...-BI-... apostas no referido veículo não eram e não são as matrículas reais do mesmo.

2.5. Em data não apurada o arguido passou a circular com o referido veículo com a matrícula alemã RS-...

2.6. Sabia o arguido que as ditas matrículas eram desconformes com a realidade e que só ao Estado cabe emitir a atribuir matrículas aos veículos que circulam na via pública.

2.7.O arguido trocou as matrículas reais do veículo em causa por esta outra matrícula, apresentando-se nas vias públicas como se fossem as originalmente atribuídas ao veículo.

2.8. Ao utilizar essas matrículas no referido veículo, como fez, visou ele obter, e obteve, efectivamente, um benefício de poder circular com o veículo sem que o mesmo fosse titulado com a apólice de seguro válida e para que não fosse autuado por tal infração pelos agentes fiscalizadores do trânsito.

2.9. Da mesma forma, agiu com intenção de colocar em causa a fé pública de que a matrícula de um veículo automóvel beneficia, bem como a credibilidade que merecem todos os documentos emitidos por entidade pública, assim causando prejuízo ao Estado.”

Todos estes correspondem aos elementos que, na Acusação, preenchiam o tipo objetivo e subjectivo dos dois acusados crimes de falsificação.

Neste quadro decisório, lógica era a consequência - o Tribunal a quo tinha de absolver o Recorrente, sem qualquer dúvida, dos dois crimes de falsificação que lhe eram imputados.

Mas não foi esse o percurso escolhido.

O Tribunal optou por utilizar factos que efectivamente constavam dos autos para imputar dois outros crimes de falsificação ao Recorrente.

De uma forma algo confusa, na fixação da matéria de facto o Tribunal afirma que o Recorrente teria, no mesmo dia da participação crime na GNR de ..., obtido e entregado na seguradora CC, assistente nestes autos, o que se designa como uma “certidão para efeitos de indemnização civil”, “certidão”que mais tarde, a 18 de outubro de 2011, teria entregue também na outra seguradora. E a esta “certidão” teria ainda teria junto ainda um documento obtido na GNR em 18 de outubro de 2011, que atestava que o veículo não fora recuperado no prazo de 60 dias, “tornando possível assim candidatar-se ao recebimento das indemnizações pelo furto, já que se trataria de “documento essencial aos procedimentos internos das seguradoras” (facto 1.20).

São estes dois documentos, alegadamente obtidos pelo Recorrente, que seriam o suporte da falsificação, agora não do documento em si - como acontecia com as matrículas - mas falsificação da declaração incorporada no documento.

Ou seja, factos que na Acusação eram suporte do crime de falsificação foram considerados não provados. E outros, que aparentemente não foram considerados como preenchendo um tipo legal de crime, relevaram agora para a condenação do Recorrente!

   E isto sem que, em qualquer momento, o Tribunal se tivesse lembrado de lançar mão do dispositivo do art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.

    É esta atitude do Tribunal que necessariamente determina a nulidade da sentença, que bem se compreende por se ter negado ao Recorrente um processo justo, que lhe permitisse, até em sede de recurso, apresentar uma defesa consistente.

                C) Concurso de crimes

Deixando de parte esta questão, que seguramente VV Exªs. Senhores Conselheiros irão censurar, mesmo assim e por mera cautela de patrocínio, o Recorrente considera ainda que outros erros foram cometidos na aplicação do Direito.

Mesmo sem poder agora contestar as conclusões do Tribunal recorrido sobre a matéria de facto, sempre se dirá que é injusta a condenação do Recorrente pelos cinco crimes que determinaram aquela violentíssima pena de prisão para um homem de 71 anos de idade.

E isto porque parece evidente a existência de um concurso aparente de infrações, que atravessa e inquina todo este processo.

Na verdade, a punição do agente nos termos que foi definida pelo Acórdão recorrido revela à saciedade uma tripla punição da mesma conduta. A simulação, através da denúncia de um facto - o furto - julgado inexistente, a utilização do documento que incorpora a essa queixa-crime e, posteriormente, de uma declaração de que o veículo não foi roubado são condutas que se incorporam, sem autonomia, na burla.

A punição do agente em concurso efetivo seria uma violência que ao próprio Direito Penal repugna. Como decorre do disposto no art. 30.º do Código Penal, “constitui um só crime continuado a realização plúrima… de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Ora, in casu - casu que agora é apenas o julgado provado no Acórdão recorrido - todas as ações que o Recorrente teria desenvolvido apontavam apenas para um fim: obter indemnizações das seguradoras.

Nunca o agente teria tido a intenção de simular um crime, ou obter ou utilizar um documento falso.

E, por isso mesmo, apenas pelos crimes de burla poderia o Recorrente ter sido condenado.

Diga-se, no entanto, que o prejuízo das assistentes penalmente relevante, dadas as circunstâncias das denúncias anónimas, foi consideravelmente diminuto, no caso da assistente CC e inexistente quanto à BB.

E no que toca à assistente BB, justifica-se que a condenação do Recorrente seja revogada. Para que haja prejuízo criminalmente relevante, necessário é que não seja a vítima a colocar-se em situação de ter prejuízo, ou de facilitar a existência do prejuízo. E, na verdade, a assistente não pagou nenhuma indemnização ao Recorrente. Pagou-a apenas ao credor .... Isto só pode querer dizer que não houve erro ou engano de que esta assistente se possa queixar. Se conhecia suficientemente a situação para recusar o pagamento ao Recorrente, era esse mesmo conhecimento de que deveria ter determinado o não pagamento da indemnização ao .... Se o fez, não foi por erro nem, sequer, por negligência, e foi a própria assistente que se colocou na posição de prejudicada. Como refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário… pág. 679, “o dever de diligência é tanto maior quanto maior for o poder económico da vítima, como sucede com bancos, seguradoras ou outras grandes instituições financeiras e comerciais”. E não é sustentável afirmar que existe um engano parcial, que não favorece nem o agente nem a vítima, mas sim um parceiro de negócios da vítima. Do mesmo autor, cita-se: “O Direito Penal não tutela o descuido ou leviandade da própria vítima da conduta enganosa, por força dos princípios da proporcionalidade e da mínima intervenção”.

               É assim, Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, que se formulam as seguintes

                CONCLUSÕES:

1. O Tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática de dois crimes de falsificação que não constavam, enquanto tal, da Acusação;

2. Sendo que julgou não provados os factos que constituíam o preenchimento do tipo objetivo do crime de falsificação, referente à utilização de matrículas falsas, descritos na Acusação;

3. Decidindo-se assim, o Acórdão ficou ferido de nulidade, em conformidade com o disposto no art. 379.º n.º 1 al. b) do Código do Processo Penal.

4. Mesmo que assim não se entendesse e sem conceder, o Tribunal aplicou mal o Direito ao condenar o Recorrente por cinco crimes, dois de falsificação, um de simulação de crime e dois de burla.

5. Na verdade, entre todos os factos que preenchem os tipos legais enunciados e previstos na legislação penal, existe um concurso aparente, já que a determinação criminosa, a existir, teria apenas por objetivo o recebimento de uma indemnização por parte do agente;

6. Sendo as restantes condutas - de falsificação e de simulação - apenas instrumentais em relação à burla, verificando-se um concurso aparente de crimes, pelo que o Recorrente apenas poderia ter sido punido pelo crime de burla.

7. E mesmo neste caso não pode ser considerada burla a situação que releva do comportamento da assistente BB. Na verdade, esta assistente tinha-se obrigado a, verificado o risco seguro, pagar indemnizações à financeira ... e ao Recorrente. No entanto, pagou apenas àquela e a este não, por entender que se tinha verificado um caso de falsas declarações.

8. Este duplo critério torna irrelevante, em termos penais, o prejuízo desta seguradora, já que foi ela, intencionalmente, que se colocou na situação de prejuízo patrimonial.

               9. Pelo que o Recorrente deveria ter sido absolvido deste crime.

            Respondeu o Ministério Público, dizendo:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

3- São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- Não contém a douta decisão impugnada qualquer erro de julgamento da matéria de facto, ou outro vício que a inquine.

5- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu todo e segundo o que preceituam os arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal, entre outros preceitos legais.

6- O arguido tem um passado criminal que se estende ao longo de várias décadas.

7- O arguido foi unicamente condenado por factos que constam do Despacho de acusação, não tendo o Tribunal “a quo” ultrapassado em nada o objecto do processo.

8- É sabido que o Tribunal não está sujeito às qualificações jurídicas que constem do Despacho de acusação ou de pronúncia, podendo e devendo se para tal se acharem reunidos os requisitos legais, efectuar qualificação jurídica que ache mais adequada e conforme à Lei criminal.

9- Não enferma o Douto Acórdão que o recorrente questiona, de qualquer nulidade, mormente a prevista no artigo 379º, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal ou qualquer outra que a Lei Criminal prevê.

10- O Tribunal “a quo” não podia condenar o arguido em concurso aparente entre os crimes de burla e de falsificação, uma vez que se trata de um concurso efectivo de crimes, pois foram violados bens jurídicos distintos, não devendo proceder a argumentação do recorrente.

11- A doutrina e jurisprudência dominantes: nomeadamente na senda do Assento 8/2000, de 23 de Maio do Supremo Tribunal de Justiça, que:

“Uniformiza a jurisprudência no sentido de em caso da conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, se verificar o concurso real ou efectivo de crimes”.

12- E entre outros, veja-se p. favor o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência de 5-06-2013, no Proc. nº 29/04.0JDLSB-Q.S1, em www.dgsi.pt , etc..

13- Os factos praticados pelo arguido são graves e existem imperativos de prevenção especial e geral a salvaguardar, sendo que o Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida das  penas  parcelares  e  em  cúmulo jurídico aplicadas ao arguido, todos os critérios referidos nos arts.40º, 41º e 71º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a pena única de: 6 anos de prisão, em sintonia com a culpa do arguido, e sem ter olvidado a sua ressocialização.

14- Não contém o Douto Acórdão nenhum vício ou nulidade, dos previstos nos artigos 379 e 410º, n º2, do Código de Processo Penal, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis atinentes ao Direito europeu, constitucional e criminal.

15- O Douto Acórdão recorrido deve manter-se.

Respondeu igualmente a assistente BB, nestes termos:

I – Introdução:

Vem o Arguido interpor recurso, restrito à matéria de direito do acórdão proferido nos autos à margem identificados, no qual, em cúmulo jurídico, o Recorrente foi condenado na pena única de seis anos de prisão.

Sucede que o presente Recurso mais não é do que uma tentativa do Recorrente em anular uma decisão judicial, a qual, no entendimento da Assistente, foi correctamente proferida.

Cumpre apreciar a pretensão do Recorrente, sendo que a mesma alega em síntese:

1. Que o Arguido deveria ter sido absolvido dos dois crimes de falsificação porquanto os factos subjacentes à condenação não são os mesmos que justificaram a dedução da acusação;

2.Existência de um concurso aparente de crimes, pelo que o Arguido apenas deveria ter sido condenado pelo crime de burla;

3. Que a Assistente, BB, se colocou intencionalmente na situação de prejuízo patrimonial, pelo que o Arguido deveria ter sido absolvido do crime de burla.

Importa esclarecer que a Assistente, BB considera que os vícios que o Recorrente alega que padece o douto acórdão, não correspondem com a realidade conforme melhor se explana infra:

1. Que o Arguido deveria ter sido absolvido dos dois crimes de falsificação porquanto os factos subjacentes à condenação não são os mesmos que justificaram a dedução da acusação;

O Recorrente não se conforma com o acórdão que o condenou por dois crimes de falsificação de documento previstos e puníveis pelo Artigo 256º, n.º1 alínea e) do Código de Processo Penal.

Não se concorda, em absoluto com o alegado pelo Recorrente.

Ora, dispõe o artigo 256º do Código Penal:

Artigo 256.º - Falsificação ou contrafacção de documento

 1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;

é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 - A tentativa é punível.

3- Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

4 - Se os factos referidos nos n.ºs 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

 Com efeito, resulta da acusação a imputação ao Arguido de dois crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º n.º1, alínea e) do Código Penal.

E efectivamente, o Arguido veio a ser condenado por dois crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º n.º1, alínea a) do Código Penal.

Vem o Recorrente alegar que os factos subjacentes à condenação não são os mesmos que justificaram a dedução de acusação.

Ora, consta da referida alínea e) do n.º1 do artigo 256º do Código Penal, o que de seguida se transcreve: “e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;”. Ou seja, a que se referem as alíneas a), b), c) e d) do referido artigo e já acima transcritas.

Pelo que a alínea e) do n.º1 do artigo 256º do Código Penal, pela qual o Arguido foi acusado abrange a alínea a) do mesmo artigo, pela qual o Arguido veio a ser condenado.

O Recorrente alega que não foi dado cumprimento ao artigo 358º n.º1 e 3 do Código de Processo Penal.

Ora, a comunicação de uma alteração, mesmo que não substancial dos factos, destina-se a assegurar a possibilidade de defesa e do contraditório por parte do Arguido.

No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2011, disponível para consulta em www.dgsi.pt:A comunicação da alteração não substancial dos factos deve ser fundamentada, concretizando os novos factos indiciados e respectivos meios de prova de onde resulta essa indiciação, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os seus direitos de defesa.”

 Ora, no caso dos presentes autos, não se trata de factos novos, tais factos já constavam da acusação, que o Arguido tinha prestado declarações sabendo que as mesmas não correspondiam à verdade.

Tal facto consta igualmente da acusação da Assistente BB.

Ainda que assim não se considerasse, a defesa do Arguido e o respeito pelo princípio do contraditório nunca foi posto em causa, uma vez que a alínea e) do n.º1 do artigo 256º do Código Penal abrange a alínea.

Assim sendo, verifica-se uma redução da matéria de facto, uma vez que a alínea e) abrange todas as outras alíneas do n.º1 do artigo 256º do Código Penal.

Se tal redução não consubstanciar uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, isto é, se ela não constituir uma alteração substancial dos factos da acusação (acórdão TC n.º330/97, na sequência do acórdão do STJ de 3/04/1991) inexiste a necessidade de comunicação de tal alteração.

2.Existência de um concurso aparente de crimes, pelo que o Arguido apenas deveria ter sido condenado pelo crime de burla;

O Recorrente não se conforma com o acórdão proferido nos autos à margem identificados, no qual, em cúmulo jurídico, o Recorrente foi condenado na pena única de seis anos de prisão.

Não se concorda, em absoluto com o alegado pelo Recorrente. O artigo 30º do Código Penal dispõe o seguinte:

Artigo 30.º - Concurso de crimes e crime continuado

 1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Ora, vem o Recorrente alegar que a sua conduta constitui um só crime continuado porquanto todas as acções desenvolvidas pelo Arguido apontavam para o mesmo fim, obter indemnizações das seguradoras.

O Recorrente ignora por completo os requisitos constantes do artigo 30º n.º2 do Código Penal, nomeadamente a realização plúrima de violações típicas do mesmo bem jurídico, a execução essencialmente homogénea das violações e o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a culpa.

Em caso algum releva para a punição do crime continuado a finalidade pretendida pelo Arguido.

As acções do Arguido não consubstanciam um único crime continuado.

Pelo que, deve ser mantida na íntegra a condenação do arguido.

3. Que a Assistente, BB, se colocou intencionalmente na situação de prejuízo patrimonial, pelo que o Arguido deveria ter sido absolvido do crime de burla.

Vem o Recorrente alegar que a Assistente BB se colocou na posição de prejudicada, pelo que não pode ser considerada burla a situação relativa a ora Assistente.

 Ora, para além da Assistente apenas ter tomado conhecimento da conduta do Arguido após ter efetuado o pagamento ao Banco “DD”, conforme consta da queixa crime apresentada pela Assistente, que se considera integralmente reproduzida.

Como o crime de burla, previsto no artigo 217º do Código Penal, dispõe que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo (...)”, ou seja, nada releva que ao Arguido não tenha sido paga qualquer quantia.

E ainda, é considerado “ofendido” no crime de burla a pessoa cujo património ficou empobrecido, o que é o caso da ora Assistente, cujo o património ficou empobrecido no valor de €11.185,09 (onze mil cento e oitenta e cinco euros e nove cêntimos), valor esse pago ao Banco “DD” em virtude do engano provocado pelo Arguido.

O Arguido, por meio de engano sobre os factos relativos ao “roubo” do veículo (quem bem sabia não ter existido, provocando na Assistentes uma falsa representação da realidade), provocou a prática de atos (nomeadamente o pagamento ao Banco “DD”) por parte da Assistente, que lhe causaram prejuízos patrimoniais.

Ainda que assim não se considerasse, o facto da Assistente ter procedido ao pagamento a que se encontrava contratualmente adstrita e de boa-fé não consubstancia como parece o Recorrente querer demonstrar, uma facilitação da existência do prejuízo nem se ter colocado em tal situação.

Acrescente-se ainda que a Assistente sempre pautou a sua conduta com a diligência que lhe era exigível, com bem sabe o Recorrente.

A Assistente requereu ao Arguido a documentação exigível para comprovação do sinistro, tendo o Arguido procedido à sua entrega, bem sabendo que o conteúdo dos mesmos era falso.

Pelo que a condenação do Arguido no crime de burla bem como ao pagamento da quantia de €11.185,09 (onze mil cento e oitenta e cinco euros e nove cêntimos) a título de indemnização civil por danos patrimoniais, acrescido de juros, deve manter-se na íntegra.

V- CONCLUSÕES:

Do exposto extraem-se as seguintes conclusões:

1) O presente recurso mais não é do que uma tentativa da Recorrente em anular o acórdão, o qual, no entendimento da Assistente, foi correctamente proferido;

2) O Recorrente alega que os factos subjacentes à condenação não são os mesmos que justificaram a dedução de acusação;

3) Consta da alínea e) do n.º1 do artigo 256º do Código Penal, o que de seguida se transcreve: “e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;”. Ou seja, a que se referem as alíneas a), b), c) e d) do referido artigo e já acima transcritas;

4) Pelo que a alínea e) do n.º1 do artigo 256º do Código Penal, pela qual o Arguido foi acusado abrange a alínea a) do mesmo artigo, pela qual o Arguido veio a ser condenado;

5) A defesa do Arguido e o respeito pelo princípio do contraditório nunca foi posto em causa;

6) O Recorrente alega que a sua conduta constitui um só crime continuado porquanto todas as acções desenvolvidas pelo Arguido apontavam para o mesmo fim, obter indemnizações das seguradoras;

 7) O Recorrente ignora por completo os restantes requisitos constantes do artigo 30º n.º2 do Código Penal, nomeadamente a realização plúrima de violações típicas do mesmo bem jurídico, a execução essencialmente homogénea das violações e o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a culpa;

8) Não releva para a punição do crime continuado a finalidade pretendida pelo Arguido;

9) As acções do Arguido em caso algum podem consubstanciar um único crime continuado;

10) O facto da Assistente ter procedido ao pagamento a que se encontrava contratualmente adstrita e de boa-fé não consubstancia como parece o Recorrente querer demonstrar, uma facilitação da existência do prejuízo nem se ter colocado em tal situação;

11) O Arguido, por meio de engano sobre os factos relativos ao “roubo” do veículo (quem bem sabia não ter existido, provocando na Assistentes uma falsa representação da realidade), provocou a prática de atos (nomeadamente o pagamento ao Banco “DD”) por parte da Assistente, que lhe causaram prejuízos patrimoniais.

12) A Assistente sempre pautou a sua conduta com a diligência que lhe era exigível.

13) Face ao exposto deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

1. Do acórdão proferido e depositado em 14.09.2018 veio o arguido interpor recurso para o STJ, circunscrito a impugnação de matéria de direito, em 25.10.2018.

O recorrente alega, em síntese, estar

i) “o acórdão ferido da nulidade prevista na alínea b) do nº1 do art. 379º do CPP por alegadamente “o tribunal ter condenado o recorrente pela prática de dois crimes de falsificação que não constavam, enquanto tal da acusação”.

ii) As condutas integradas nos crime de falsificação e de simulação de crime- sendo apenas instrumentais em relação à burla, ocorre concurso aparente de crimes, pelo que o recorrente poderia apenas ter sido punido pelo crime de burla.

iii) devia ter sido absolvido do crime de burla em que é assistente a seguradora BB”.

2. Nada obstando ao conhecimento do recurso, por estar em tempo (o defensor inicialmente nomeado veio em 3.10.2018 comunicar escusa, vindo a O.A. a nomear novo defensor em 18.10.2018 - fls. 1476 e 1483), e o recorrente ter legitimidade, afigura-se que o recurso deverá ser apreciado em sede de conferência.

3. Da resposta

3.1.Nos termos do art. 432º do CPP recorre-se para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente matéria de direito.

 Ora, o arguido/recorrente foi condenado pela prática:

- de dois crimes de falsificação de documento, pp pelo art. 256º nº1-e) e 3 do CP) na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, por cada um deles;

- de um crime de simulação de crime,  pp pelo art. 366º nº1 do CP, na pena de 10 meses de prisão;

- um crime de burla pp pelo art. 217º nº 1 do CP na pena de 1 ano e 8 meses de prisão,

- um crime de burla qualificada pp pelo art. 217º nº1 e 218º nº1, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 6 anos de prisão.

No recurso que decidiu interpor paras o STJ, o recorrente apenas podia sindicar a medida da pena única fixada, de 6 anos de prisão, de harmonia com o citado art. 432º nº1-c) do CPP, por que fixada em medida superior a 5 anos de prisão, verificando-se não ter impugnado a mesma.

Perante a inadmissibilidade do recurso para o STJ relativamente a todas as penas parcelares, afigura-se resultar prejudicado o conhecimento das questões colocadas pelo recorrente quanto a elas, com ressalva dos poderes de cognição do STJ, nos termos do disposto no art. 434º do CPP.

E caberá dizer não se descortinar padecer o acórdão recorrido de qualquer dos vícios de decisão elencados no nº2 do art. 410º do CPP, nem estar ferido da nulidade prevista na alínea b) do nº1 do art. 379º do CPP, invocada pelo recorrente.

Conforme resulta do confronto da acusação pública deduzida, junta a fls. 983/998 dos autos, e do teor do acórdão proferido, não ocorreu alteração dos factos descritos na acusação - sequer alteração não substancial de factos, com relevo para a decisão da causa.

Ocorreu no acórdão proferido pormenorização de situações descritas na acusação, não integradora do conceito previsto no art. 358º do CPP, vindo o recorrente a ser condenado pelos mesmos tipos legais de crime imputados na acusação.

Como se refere a fls. 1443 do acórdão, “o arguido será condenado a final pela prática de todos os crimes pelos quais vinha acusado (apenas se divergindo da acusação pública na qualificação dos crimes de burla)”. Na acusação deduzida foi imputada a prática de dois crimes de burla qualificada, vindo o tribunal colectivo a condenar o recorrente pela prática de um crime de burla simples e por outro de burla qualificada.

Pelo exposto, considera-se não ter ocorrido a alegada nulidade prevista na alínea b) do nº1 do art. 379º do CPP.

3.2. Como se referiu, em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi o recorrente condenado na pena única de 6 anos de prisão, pena que seria susceptível de impugnação para este STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1-c) do CPP. Contudo, analisada a motivação e as conclusões de recurso, constata-se que aquela pena não é concretamente contestada, não sendo aí objecto de qualquer referência directa e expressa. Por isso, inexistindo impugnação da decisão recorrida na parte referente à pena única aplicada e não se verificando ilegalidade evidente na determinação dessa pena, estará subtraída ao STJ competência para a apreciar.

Pelo exposto, pronunciamo-nos pela improcedência do recurso interposto.

Dado cumprimento ao disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido respondeu, reiterando o teor da motivação e das conclusões apresentadas, nada mais acrescentando.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. A matéria do recurso

Coloca o recorrente as seguintes questões:

- nulidade parcial do acórdão recorrido, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 379º do CPP;

- existência de concurso aparente entre o crime de burla e os crimes de falsificação e simulação de crime;

- não punibilidade da conduta relativa à assistente BB.

É a seguinte a matéria de facto apurada:

1. Factos Provados

1.1 dia 25-02-2011 o arguido AA, adquiriu o veículo de matrícula ...-BI-..., marca “Opel”, modelo “Astra”, VIN 0000000000, pelo preço de 17.500 Euros.

1.2 E, no dia 24/3/2011 o arguido celebrou um contrato de financiamento para aquisição a crédito n.º ... com a entidade bancária “Banco DD Portugal, SA”.

1.3 A 8-4-2011, o arguido celebrou um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice 00000000000, com a sociedade seguradora “CC, SA”, pelo qual era o tomador e segurado do mesmo e pelo qual aquela entidade assumiu a responsabilidade civil perante terceiros emergentes de acidente de viação decorrentes da circulação do veículo com a matricula ...-BI-...

1.4 Tal contrato incluía ainda as coberturas facultativas de choque, colisão e capotamento e de furto ou roubo.

1.5 Logo a 13/4/2011, na vigência deste contrato, o arguido foi interveniente em acidente de viação com o referido veículo de matrícula ...-BI-... sinistro esse que comunicou à seguradora “CC”.

1.6 No seguimento da perícia, a seguradora considerou o veículo como perda total e pagou ao arguido, a título de indemnização, a quantia de 12.436 Euros.

1.7 O veículo acidentado foi entregue ao arguido como “salvado”.

1.8 Para realização da reparação do veículo, o arguido entregou o “salvado” na oficina “...”, sita em ..., na zona de ....

1.9 Para reduzir os custos da reparação, o arguido também procedeu à entrega na mesma oficina de outro veículo da mesma marca e modelo, com a matrícula alemã RS-..., VIN n.º 0000000.

1.10 Todavia, antes da reparação do veículo, decidiu o arguido que seria preferível a reparação do veículo de matrícula alemã, usando as peças do veículo de matrícula portuguesa ...-BI-..., o que solicitou na oficina que fosse concretizado.

1.11 Deste modo, o veículo alemão RS-..., VIN 000007 foi reparado de forma integral, usando para o efeito as peças do veículo ..-BI-..., VIN 00000, que se mostraram necessárias e úteis para tal efeito.

1.12 Em data não apurada, mas no mês de Julho de 2011, o veículo RS-... foi-lhe  entregue pela oficina devidamente reparado,

1.13 No dia 15 de Julho de 2011, o arguido aderiu ao seguro “DD ...”, de protecção de crédito, celebrado entre o Banco DD na qualidade de tomador e a companhia de seguros “BB ”, na qualidade de seguradora e segurado o ora arguido, contrato de seguro que ficou associado ao contrato de financiamento supra referido.

1.14 Por tal contrato, a sociedade seguradora BB obrigou-se a indemnizar o arguido nos casos de perda total do veículo adquirido, resultante de acidente (por colisão, incêndio, raio ou explosão) ou furto/roubo (caso não fosse recuperado nos 60 dias seguintes ao sinistro), que ocorresse em Portugal e durante a vigência do contrato.

1.15 No dia 30-08-2011, o arguido deslocou-se ao Posto territorial da GNR de ..., onde apresentou uma queixa-crime participando que o veículo ...-BI-... fora furtado por pessoas desconhecidas do local onde o deixara estacionado na véspera, mais concretamente, do parque de estacionamento da Rua ...

1.16 Mais participou o furto de objectos pessoais que estavam no interior do automóvel, nomeadamente, uma câmara fotográfica, um “Gps Tomtom”, um telemóvel, uma mala com roupa, etc.

1.17 Todavia, tais factos não correspondiam à verdade, uma vez que o arguido tinha decidido que iria participar o desaparecimento do veículo com a matrícula ...-BI-..., que sabia já desmantelado e, por isso, sem existência física.

1.18 Pretendia o arguido participar o alegado furto, que sabia não se ter verificado, de forma a fazer a posterior participação às entidades seguradoras onde o veículo estava segurado, de forma a receber o valor seguro devido pelo furto.

1.19 Sabia o arguido que os factos por si alegados não correspondiam à verdade e que estava a denunciar falsamente às autoridades policiais a prática de um crime que não se tinha verificado e cuja queixa deu origem aos autos 2358/11.7GBABF, devidamente arquivado por serem desconhecidos os seus autores.

1.20 No seguimento de tal plano e após apresentar a queixa-crime contra desconhecidos, na posse da certidão para efeitos de indemnização civil emitida pela GNR, nesse mesmo dia, o arguido deu entrada da mesma nos Serviços da sociedade “CC, SA”, participando tal situação e requerendo que lhe fosse pago o valor seguro alegadamente devido.

1.21 Mais solicitou que lhe fosse concedido um veículo de substituição.

1.22 Este veículo foi-lhe concedido e foi levantado num balcão de rent-a-car em Viseu no dia 1/9/2011.

1.23 No âmbito desta solicitação, cabia ao arguido receber a título de indemnização da seguradora “CC SA”, a quantia de 5.212,98 Euros, correspondente ao capital seguro à data do furto (17.649,00 Euros) deduzido do valor de 12.436,02 Euros, valor pago no âmbito do processo ..., por se tratar de sinistro ocorrido na mesma anuidade, já supra referido.

1.24 Tal participação, levou a sociedade seguradora a iniciar o respectivo processo de averiguações, de forma a apurar a verdade dos factos.

1.25 Tal valor não veio a ser efectivamente pago em virtude da ofendida detectar que estava perante uma alegação falsa de uma situação de furto inexistente, factos que a levaram a apresentar a queixa-crime contra o arguido que originou os presentes autos.

1.26 Ainda no seguimento de tal plano e após apresentar a queixa-crime contra desconhecidos, na posse da certidão para efeitos de indemnização civil emitida pela GNR, o arguido, no dia 18-10-2011, deu entrada da mesma nos Serviços da sociedade “BB”, participando a mesma situação e requerendo que lhe fosse pago o valor seguro que lhe seria alegadamente devido.

1.27 Tal participação levou a sociedade a iniciar o respectivo processo de averiguações, de forma a apurar a verdade dos factos.

1.28 No âmbito desta solicitação, cabia ao arguido receber a título de indemnização da seguradora “BB” a quantia de 2.391,42 Euros, correspondente ao capital seguro à data do furto, bem como a quantia de 11.185,09 Euros a entregar/pagar ao “Banco DD”, em virtude da existência do contrato de crédito supra referido.

1.29 A quantia de 11.185,09 Euros foi efectivamente paga à entidade bancária e o arguido viu o valor do crédito ao consumo que outorgou para a compra do veículo ...-BI-... que era devido à sociedade “Banco DD” ser amortizado.

1.30 O arguido, no seguimento destas duas participações, entregou posteriormente em ambas as seguradoras o necessário documento emitido em 18-10-2011, pela GNR, que atestava que o veículo não fora recuperado no prazo de 60 dias após a data dos factos, no âmbito dos autos 2358/11.7GBABF, documento essencial aos procedimentos internos das seguradoras.

1.31 Assim, no seguimento de tal plano, nas datas referidas, o arguido solicitou às seguradoras o pagamento dos valores indemnizatórios devidos em resultado do furto do seu veículo, bem sabendo que o mesmo não tinha tido lugar e que não tinha direito a esses pagamentos.

1.32 Tal conduta do arguido, após reparar o veículo de matrícula alemã com as peças do veículo de matrícula portuguesa, e participar o furto do mesmo, situação que soube não ter acontecido, visou o objectivo de se apresentar perante os Serviços das seguradoras onde o veículo de matrícula portuguesa estava segurado, como legítimo ofendido a quem tinha sido furtado o referido veículo.

1.33 Na posse de documento comprovativo da apresentação de queixa perante a GNR, cujo teor sabia falso, o arguido dirigiu-se aos referidos serviços das seguradoras ofendidas, onde se apresentou como sendo ofendido e vítima de uma situação de furto, não obstante saber que os factos que denunciou no Posto Territorial da GNR de ... não correspondiam à verdade.

1.34 Após ser verificado pelos funcionários das referidas Seguradoras que tudo estaria correcto, e que nos requerimentos apresentados figuravam todos os necessários documentos, condição necessária para a efectivação dos pagamentos indemnizatórios, foi iniciado o procedimento interno para o efeito e disponibilizadas as verbas necessárias.

1.35 O arguido, ao apresentar os documentos supra descritos, nos quais constava que tinha sido apresentada uma queixa pelo furto do veículo de matrícula ...-BI-... que não tinha sido recuperado, determinou os funcionários das seguradoras a aceitarem os pedidos de pagamento dos valores seguros, como sendo resultado de uma situação de furto do seu veículo, o que efectivamente conseguiu, apesar de saber que o que declarava não correspondia à verdade.

1.36 Agiu o arguido com intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, à custa do prejuízo de terceiro, apresentando o requerimento/declaração para obtenção dos pagamentos indemnizatórios pelas seguradoras em face do alegado furto do veículo, o que sabia não ser verdade, pois bem sabia que não existira qualquer furto do referido veículo.

1.37 Prejudicou, desse modo, os interesses das sociedades seguradoras, causando-lhes prejuízos.

1.38 O veículo automóvel em causa, com o VIN n.º W0L0AHL3562109707, com a matrícula alemã RS..., actualmente em local desconhecido, mas, em data não concretamente apurada, em Janeiro de 2012, foi localizado pelo perito da seguradora “CC”, ostentando na ocasião as matrículas alemãs RS-..., parqueado numa garagem sita na Rua ..., residência do filho do arguido. 

1.39 Tais matrículas RS-... apostas no referido veículo não eram e não são as matrículas reais do mesmo.

1.40 A matrícula real atribuída pela entidade pública competente para o efeito ao referido veículo é, como supra exposto, a matrícula alemã 000000

1.41 O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas lhe eram vedadas pela Lei Penal.

1.42 A Assistente/Demandante BB é uma companhia de seguros que, no exercício da sua actividade comercial, celebrou em 15 de Junho de 2011, um seguro designado por "DD nº. ...", do qual é tomador o Banco DD e o segurado o ora Arguido/demandado.

1.43 O contrato de seguro em questão está ligado a um outro, celebrado entre o Arguido/demandado e o Banco DD, o qual tinha como objecto o financiamento para aquisição do veículo "Astra Caravan 1.9 CDTI Cosmo", com a matrícula 000000.

1.44 De acordo com o contrato de seguro celebrado, a assistente/demandante BB obrigou-se, em caso de perda total do veículo, resultante de acidente, furto ou roubo, a pagar as indemnizações devidas de acordo com as garantias contratualmente previstas, as quais se transcrevem:

-             GARANTIA DE CANCELAMENTO - Se na data do sinistro o seguro automóvel do veículo não compreender na sua cobertura a perda total ou os danos não forem indemnizáveis ao abrigo de um seguro de responsabilidade civil automóvel ou outro, o capital pendente de amortizar ao Banco "DD" nessa data, excluindo todos os valores residuais finais;

-              GARANTIA DE COMPLEMENTO- Se na data do sinistro o seguro automóvel do veículo compreender na sua cobertura a perda total ou os danos forem indemnizáveis ao abrigo de um seguro de responsabilidade civil automóvel ou outro, o diferencial entre a indemnização do segurador automóvel e o capital em dívida à data do sinistro;

-              GARANTIA DE ENTRADA INICIAL- E indemnizará ainda o segurado pelo montante da entrada inicial que tenha efectuado para a operação de aquisição do veículo.

1.45 Em 18 de Outubro de 2011, o arguido/demandado veio participar o furto da viatura em causa e accionar o seguro correspondente, tendo junto os documentos correspondentes ao furto do veículo.

1.46 Na sequência da participação efectuada, e em resposta a outra interpelação do arguido/demandado, a Assistente/demandante solicitou-lhe que "uma vez que a indemnização por furto ou roubo só se considera devida se o veículo não tiver sido encontrado (...) no prazo de 60 dias”, e caso esse prazo tivesse sido ultrapassado, que fosse enviada cópia da declaração da entidade policial que o comprovasse.

1.47 Tendo o arguido/demandado enviado a documentação necessária, a Assistente/demandante, ao obrigo da Cobertura/Garantia Complemento nos termos do contrato de seguro, efectuou o pagamento do valor devido ao Banco DD de € 11.185,09, e solicitou ao arguido um recibo para que pudesse pagar-lhe o valor respeitante à Cobertura/ Garantia Entrada Inicial, no montante de € 2.391,42.

1.48 Na sequência da análise do processo de sinistro, a ora Assistente/demandante procedeu ao pagamento do montante de € 11.185,09 ao Banco DD e o Arguido/demandado viu o valor do seu crédito ao consumo que outorgou para compra do veículo ...-BI-... que era devido amortizado.

1.49 Assim, no seguimento do plano, o Arguido/demandado solicitou à Assistente/demandante o pagamento dos valores indemnizatórios devidos em resultado do alegado furto do seu veículo, bem sabendo que o mesmo não tinha tido lugar e que não tinha direito a esses pagamentos.

1.50 Tal conduta do Arguido/demandado, após reparar o veículo da matrícula alemã com as peças do veículo de matrícula portuguesa, e participar o furto do mesmo, situação que soube não ter acontecido, visou o objectivo de se apresentar perante os Serviços das seguradoras onde o veículo de matrícula portuguesa estava segurado, como legítimo ofendido a quem tinha sido furtado o referido veículo.

1.51 Na posse de documento comprovativo da apresentação de queixa perante a GNR, cujo teor sabia falso, dirigiu-se aos referidos serviços da Assistente/demandante, onde se apresentou como sendo ofendido e vítima de uma situação de furto, não obstante saber que os factos que denunciou não corresponderem à verdade.

1.52 O Arguido/demandado ao apresentar os documentos necessários para o accionamento do seguro contratado, nos quais constava que tinha sido apresentada uma queixa pelo furto de veículo de matrícula ...-81-... que não tinha sido recuperado, determinou que a Assistente/demandante BB aceitasse o pagamento dos valores seguros, como resultava de uma situação de furto, o que efectivamente conseguiu, apesar de saber que o que declarava não correspondia à verdade.

1.53 Agiu assim o Arguido/demandado com a intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, às custas do prejuízo da Assistente/demandante, tendo para o efeito apresentado os documentos para obtenção do pagamento indemnizatórios pela Assistente/demandante, em face do alegado furto de veículo, o que sabia não ser verdade.

1.54 Prejudicou deste modo os interesses da Assistente/demandante, causando-lhe um prejuízo no montante de € 11.185,09 (onze mil, cento e oitenta e cinco euros e nove cêntimos),

1.55 A Demandante CC, exerce a indústria de seguros em vários ramos.

1.56 No âmbito da sua actividade a Demandante CC celebrou com AA, ora Arguido um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n° ....

1.57 Nos termos do referido contrato, a Demandante assumiu a responsabilidade civil perante terceiros emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo com a matrícula ...-BI-..., doravante designado por BI, incluindo a cobertura facultativa de Furto ou Roubo.

1.58 A Demandante recebeu, nos seus serviços, uma participação de furto do veículo seguro de matrícula ...-BI-..., conforme Queixa-Crime efectuada no Posto Territorial de ..., a que foi atribuído o NUIPC 2358/11.7GBABF.

1.59 Pelo que, após a recepção da participação do furto do veículo BI, a ora Demandante solicitou aos seus serviços técnicos a realização de uma averiguação que permitisse apurar a veracidade das declarações do Arguido,

1.60 Na primeira quinzena de Julho de 2011, o veículo Opel Astra Alemão foi entregue ao Arguido devidamente reparado,

1.61 Tendo ficado na oficina ... diversas partes do veículo BI para possível venda, nomeadamente, duas portas laterais e a porta da bagageira.

1.62 A última inspecção obrigatória a que o veículo BI foi sujeito data de 07/03/2011, ou seja, em data anterior ao acidente que provocou a perda total deste veículo.

1.63 Assim sendo, o veículo BI não podia, à data do alegado furto, circular na via pública,

1.64 Na sequência da participação do alegado furto, a Demandante CC despendeu com o aluguer de um veículo de substituição o montante de € 1.805,08.

1.65 Com a averiguação do alegado furto a Demandante CC despendeu a quantia de € 221,40.

1.66 O arguido já foi condenado

- no processo comum singular 104/91 do Tribunal de ..., por decisão de 12/11/1996, transitada em julgado, pela prática, a 14/12/1989, de um crime de emissão de cheques em provisão, na pena de 15 meses de prisão suspensa por 1 ano, que lhe foi perdoada integralmente pela lei 23/91 de 4/7.

- no processo comum colectivo 134/99 do Tribunal de ..., por decisão de 21/6/2000, transitada em julgado a 7/7/2000,  pela prática a 7/8/1997, de crimes de falsificação de documento e burla, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão;

- no processo comum colectivo 93/99 do Tribunal de ..., por decisão de 30/1/2001, transitada em julgado, pela prática a 2/6/1998, de um crime de ofensas corporais, na pena de 7 meses de prisão;

- no processo comum singular 67/99.2GCTND do Tribunal de ..., por decisão de 30/11/2001, transitada em julgado a 17/12/2001, pela prática a 3/3/1999, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão;

- no processo comum singular 103/00.1TBSPS do Tribunal de ...,  por decisão de 28/1/2002, transitada em julgado a 13/11/2001, pela prática a 12/12/2000, de um crime de desobediência, na pena de 3 meses de prisão;

- no processo comum singular 63/00.9PECBR do Tribunal de ..., por decisão de 19/6/2002, transitada em julgado a 28/10/2002, pela prática a 14/1/2000, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 7 meses de prisão;

- no processo comum colectivo 924/97.0PBVIS do Tribunal de ..., por decisão de 1/4/2004, transitada em julgado a 10/1/2005, pela prática a 7/8/1997, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 7 anos de prisão; 

- no processo comum colectivo 299/10.4GBSCD do Tribunal de ..., por decisão de 20/12/2013, transitada em julgado a 29/1/2015, pela prática a 18/10/2010, de um crime de lenocínio de menores na forma tentada, na pena de 3 anos de prisão; 

- no processo comum singular 169/11.9GATND do Tribunal de ...,  por decisão de 19/5/2015, transitada em julgado a 11/5/2016, pela prática a 31/8/2011, de um crime de burla simples, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa;

- no processo comum singular 265/13.8GCTND do Tribunal de ..., por decisão de 18/3/2016, transitada em julgado a 16/5/2016, pela prática a 1/9/2013, de dois crimes de ofensa a integridade física e um crime de omissão de auxílio, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão e 24 meses proibição de conduzir;

- no processo comum colectivo 193/14.0JAAVR do Tribunal de ..., por decisão de 6/10/2016, transitada em julgado a 7/11/2016, pela prática, a --/6/2014, de um crime de ameaça agravada, dois crimes  de extorsão na forma tentada e 4 crimes de lenocínio, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão;     
1.67 O arguido tem 77 anos, nasceu em ..., em ambiente rural junto com os progenitores que entretanto já faleceram há cerca de 20 anos. … Frequentou a escola em idade normal, tendo terminado o terceiro ciclo já em adulto no ano anterior à anterior detenção. Com 19 anos de idade contraiu o primeiro matrimónio de onde nasceram cinco filhos, relação que entretanto terminou. Já com a idade de 55 anos refere ter casado pela segunda vez, na qual nasceu um filho, atualmente com 17 anos de idade e que vive com a progenitora na Alemanha. … devido aos conflitos que motivaram ambos os relacionamentos não mantém qualquer tipo de contacto com os descendentes. A nível laboral nunca manteve uma profissão fixa tendo trabalhado na construção civil, área vitivinícola, agricultura e camareiro de hotel. A nível de saúde apresenta problemas sendo seguido no IPO… AA desde há cerca de três anos que residia na “Residencial ...” em ..., propriedade de um amigo, …sendo pouco conhecido naquela zona uma vez que apenas ali residia quando vinha a Portugal depois de longos períodos de estadia na Alemanha…deslocando-se pontualmente a Portugal para tratar de assuntos diversos. Em termos judiciais AA apresenta anteriores contactos com a justiça e cumprimento de pena de prisão, tendo sido libertado em 30/08/2009 após o cumprimento de 5/6 da pena de prisão, data em que regressou à sua terra Natal em ... e posteriormente emigrado para a Alemanha. Atualmente apenas mantém o apoio no exterior do amigo CT que lhe trata de todos os assuntos necessários e com quem nunca cortou o contacto. AA encontra-se a cumprir pena efetiva de prisão no Estabelecimento Prisional da .... À data da prisão residia sozinho, não sendo possível perceber se vivia em ... na “Residencial ...” ou na .... A nível económico, refere não viver mal sendo que aufere duas pensões, uma do Estado Português e outra do Estado Alemão, sendo destas que pretende viver quando restituído à liberdade. No Estabelecimento Prisional da ..., fez pedido para colocação laboral mas por falta de vagas ainda se encontra inativo, mantendo o seu tempo ocupado com a leitura e com algum exercício no pátio. Tem mantido um comportamento adequado às normas instituídas, respeitando as normas e os funcionários, contudo, revela dificuldade em manter relações de proximidade com os companheiros de reclusão. Desde que se encontra neste Estabelecimento, ainda não recebeu qualquer visita de familiares ou amigos, sendo o amigo CT o seu único apoio no exterior. … O arguido desvaloriza a sua conduta, não demonstrando sentido crítico nem arrependimento. O impacto da sua reclusão a nível familiar não terá repercussão na sua vida, sendo que pelo que se apurou não existem relações gratificantes no exterior.

2. Factos Não Provados

Dos relevantes para a decisão da causa resultaram não provados os seguintes factos:

2.1 Que foi de €17.965,92 o montante do financiamento concedido ao arguido pelo “Banco DD Portugal, SA” pela aquisição do veículo BI.

2.2 Que o arguido colocou as matrículas ...-BI-... no veículo alemão (000000.

2.3 Desde Julho de 2011 o arguido passou a circular com o referido veículo como se se tratasse do veículo de matrícula ...-BI-....

2.4 As matrículas ...-BI-... apostas no referido veículo não eram e não são as matrículas reais do mesmo.

2.5 Em data não apurada o arguido passou a circular com o veículo RS-... com a matrícula RS-....

2.6 Sabia o arguido que as ditas matrículas eram desconformes com a realidade e que só ao Estado cabe emitir e atribuir matrículas aos veículos que circulam na via pública.

2.7 O arguido trocou as matrículas reais do veículo em causa por esta outra matrícula, apresentando-se nas vias públicas como se fossem as originalmente atribuídas ao veículo.

2.8 Ao utilizar essas matrículas no referido veículo, como fez, visou ele obter, e obteve, efectivamente, o benefício de poder circular com o veículo sem que o mesmo fosse titulado com a apólice de seguro válida e para que não fosse autuado por tal infracção pelos agentes fiscalizadores do trânsito.

2.9 Da mesma forma, agiu com intenção de colocar em causa a fé pública de que a matrícula de um veículo automóvel beneficia, bem como a credibilidade que merecem todos os documentos emitidos por entidade pública, assim causando prejuízo ao Estado.

2.10 Deste modo, usando o veículo supra referido, com a matrícula portuguesa, nas condições descritas, o arguido deslocou-se para esta cidade de Albufeira em 29-08-2011,

2.11 bem sabendo que o veículo que usava tais matrículas era, na verdade, o veículo de matrícula alemã supra referido.

2. A nulidade parcial do acórdão por violação do art. 379º, nº 1, b), do CPP

2.1. Segundo o arguido, o acórdão recorrido é nulo, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 379º do CPP, por o ter condenado por factos que foram julgados não provados.

Considera na verdade o arguido que os factos que integravam na acusação a imputação de dois crimes de falsificação de documento eram (apenas) os referentes à troca pelo arguido da matrícula do veículo automóvel RSD-..., primeiro pela matrícula ...-BI-..., depois pela matrícula RSB-..., factos esses que foram declarados não provados nos nºs 2.2 a 2.11 da matéria de facto.

Perante essa decisão em sede de facto, o recorrente entende que o acórdão deve ser julgado nulo na parte em que o condenou por dois crimes de falsificação.

2.2. Efetivamente, na acusação o Ministério Público imputava ao arguido a prática desses factos que viriam a ser julgados não provados e, na matéria de direito, imputava correspondentemente ao arguido dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, e), e 3, do CP, como qualificação jurídica de tais factos, e só deles.

Contudo, o Tribunal recorrido, apesar de ter dado esses factos como não provados, condenou o arguido pelos aludidos crimes de falsificação, com a seguinte justificação:

Em face da factualidade que ficou provada, donde resulta que a 18/10/2011 o arguido obteve as certidões da GNR comprovativas da pendência do processo pelo crime de furto que participara a 30/8/2011 contra desconhecidos e as apresentou às seguradoras CC e BB visando obter as correspondentes indemnizações por furto do veículo que não lhe eram devidas e a que sabia não ter direito, por não ter ocorrido tal furto, tais documentos preenchem a definição legal de documento vertida na alínea a) do art. 255º do CP, e são documentos autênticos, com força probatória plena, nos termos do disposto nos arts. 363º e 371º do Código Civil, tendo o arguido agido com o dolo genérico do tipo, consubstanciado no conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, com isso, tendo posto em crise a fé pública dos documentos, e, do mesmo passo, com o dolo específico, visando obter os correspondentes benefícios patrimoniais, mostrando-se desta forma também preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo-de-ilícito sob apreciação.

Deste modo, será o arguido condenado a final pela prática de todos os crimes pelos quais vinha acusado, (apenas se divergindo da acusação pública na qualificação dos crimes de burla), em concurso real ou efectivo com os crimes de burla, como é jurisprudência fixada pelo Assento do STJ 8/2000 de 4/5/2000, atenta a natureza distinta dos bens jurídicos tutelados pelas normas que incriminam a falsificação, a burla e a simulação de crime. 

Resulta claro desta transcrição que o Tribunal recorrido entendeu que os factos integradores dos crimes de falsificação são, não os referentes às (não provadas) trocas de matrículas, mas sim as (duas) entregas nas seguradoras de certidões da participação criminal que o arguido fizera na GNR de um furto não ocorrido, tendo o Tribunal considerado que essas certidões preenchem o conceito de documento plasmado no art. 255º, a), do CP, e são documentos autênticos, por força dos arts. 363º e 371º do Código Civil.

Falta porém na matéria de facto um elemento típico do crime de falsificação: a consciência e vontade de lesão do bem jurídico protegido no crime, que é a segurança e credibilidade na força probatória dos documentos.

Na verdade, na acusação fazia-se referência à “intenção de colocar em causa a fé pública de que a matrícula de um veículo automóvel beneficia, bem como a credibilidade que merecem todos os documentos emitidos por entidade pública”, facto esse destinado unicamente a enquadrar a (dupla) falsificação de matrícula do automóvel que, como se viu, foi declarado não provado (facto nº 2.9).

Não se procedeu à alteração dos factos, substancial ou não substancial, ao abrigo dos arts. 358º e 359º do CPP, em termos de incluir neles o elemento em falta.

A matéria de facto provada não contém pois todos os elementos típicos dos crimes de falsificação pelos quais o arguido foi condenado.

A participação criminal “falsa” na GNR (factos nºs 1.15 a 1.17) e posterior entrega de certidões dessa participação nas duas seguradoras, com a consciência de que o facto participado (furto) era falso (factos nºs 1.18 a 1.27), inseriu-se num plano fraudulento destinado pelo arguido a obter uma vantagem patrimonial ilegítima em prejuízo das seguradoras (nºs 1.35 a 1.37).

Ou seja, essa conduta é subsumível aos elementos típicos do crime de burla, mas já não ao de falsificação, pois falta a prova da consciência e vontade de colocar em causa a fé pública dos documentos.

Consequentemente, o arguido deverá ser absolvido dos crimes de falsificação pelos quais foi condenado.

3. O concurso de crimes

3.1. Considera o recorrente que a condenação proferida pelo Tribunal recorrido envolve uma “tripla punição da mesma conduta”. Em seu entender, a simulação do furto do veículo, mediante a apresentação da queixa na GNR, e a utilização subsequente de certidão dessa queixa com vista à obtenção de indemnização por parte das seguradoras são condutas que não têm autonomia, integram-se todas no crime de burla.

Como já vimos, o arguido não poderá ser condenado pelo crime de falsificação de documento, mas a questão colocada por ele mantém pertinência quanto aos crimes restantes. Concretamente a questão é esta: existe concurso efetivo ou aparente entre os crimes de burla e o de simulação de crime?

Efetivamente, o crime de simulação, consistente na participação à GNR de um facto falso (o furto do veículo ...-BI-...) inseriu-se num plano mais amplo: “pretendia o arguido participar o alegado furto, que sabia não se ter verificado, de forma a fazer a posterior participação às entidades seguradoras onde o veículo estava segurado, de forma a receber o valor seguro devido pelo furto” (facto nº 1.18).

Esta participação falsa (“simulação de crime”) constituiu pois um meio indispensável, no plano gizado pelo arguido, à consecução de um fim: o recebimento das indemnizações.

E portanto há que determinar se esta relação meio/fim entre as duas condutas típicas constitui um concurso aparente ou efetivo, para os efeitos do art. 30º, nº 1, do CP.

3.2. De acordo com esse preceito legal, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. Se a conduta do agente integra um único tipo de crime constitui uma única infração; se preencher vários tipos de crime haverá várias infrações.

A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes, tantos quantos os tipos de crime violados; a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime.

A unidade de tipo de crime avalia-se de acordo com a unidade de bem jurídico infringido.

No caso de várias condutas violarem o mesmo bem jurídico, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas.

Havendo violação de vários bens jurídicos pela atividade do agente, haverá sempre pluralidade de crimes, ainda que exista uma só resolução criminosa (a não ser que as normas concorrentes se excluam mutuamente).

É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia.[1]

Esta posição foi porém contestada por Figueiredo Dias, que propõe como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica. A essência do facto punível reside, para Figueiredo Dias, não na mera ação típica, nem na norma (no bem jurídico tutelado), mas no “substrato de vida” dotado de sentido jurídico-penalmente negativo. Daí que, em seu entender, seja a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude do comportamento global a determinar a unidade ou pluralidade de crimes[2].

Em caso de concurso de crimes, ou seja, de prática pelo agente de uma pluralidade de ilícitos típicos, haverá que distinguir entre as situações em que existe uma pluralidade de sentidos de ilicitude, e então estaremos perante um concurso efetivo; e as situações em que o comportamento global do agente é dominado por um único ou predominante sentido dos vários ilícitos cometidos, sendo os restantes dominados ou subordinados, hipótese em que se verifica um concurso aparente.[3]

Ainda segundo este mesmo autor, a dominância de um dos sentidos de ilícito sobre os outros pode resultar de diversos critérios, nomeadamente: unidade de sentido social do acontecimento global/final; instrumentalidade de um ilícito (crime-meio) em relação a outro (crime-fim); unidade de desígnio criminoso; conexão espácio temporal das realizações típicas; serem certos ilícitos meros estádios de evolução da realização típica final.[4] Relativamente à relação de instrumentalidade, ela abarcaria as situações em que um ilícito surge perante o ilícito principal unicamente como meio de o realizar e nessa realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.[5]

Contudo, esta posição doutrinal, meritoriamente preocupada em evitar a violação do princípio da proibição da dupla censura do mesmo facto[6], acaba por subalternizar, ou mesmo desproteger, de forma insustentável do ponto de vista político-criminal, bens jurídico-penais relevantes, tratados como meros “sentidos de ilícito subordinados”.

Com efeito, o crime-meio pode assumir, na conduta executada pelo agente, uma relevância penal superior, pela especial ilicitude ou censurabilidade da conduta, à do crime-fim, sendo então intolerável subordinar a proteção do bem jurídico por ele tutelado à que é concedida por este último. Nesse caso, aliás, dificilmente se poderia dizer que o crime-meio “esgota” o seu sentido ao desempenhar a sua função instrumental. Assim como dificilmente se poderia considerar que a proteção jurídica dada ao crime principal esgotaria a tutela do crime subordinado.

Conclui-se pois que o critério legal consagrado no art. 30º, nº 1, do CP é basicamente o defendido por Eduardo Correia, segundo o qual há concurso (efetivo) de crimes quando os factos praticados pelo agente são subsumíveis a crimes que protegem bens jurídicos diferentes (ou, protegendo o mesmo bem jurídico, forem cometidos em ocasiões diferentes).

3.3. Haverá, no caso dos autos, concurso aparente entre o crime de simulação de crime e o de burla, como pretende o recorrente?

A denúncia falsa do furto do veículo inseriu-se, no plano do arguido, como já vimos, unicamente como meio de obtenção ilegítima de indemnizações por parte das seguradoras. Para ele, essa denúncia era apenas um meio de chegar ao seu objetivo.

Contudo, não se pode dizer que nesse objetivo tenha esgotado o seu sentido e os seus efeitos. Na verdade, o crime de simulação de crime (art. 366º do CP) é uma infração contra a realização da justiça, direcionada especificamente à proteção da eficácia funcional das entidades titulares do poder investigativo de crimes e outras infrações, em ordem a evitar que elas sejam desviadas para trabalho inútil de investigação, em detrimento da perseguição de infrações efetivamente cometidas.[7]

Ao participar um crime falso, o arguido pôs em marcha a atividade investigativa da entidade participada, que autuou a queixa como inquérito, inquérito esse que acabou por ser arquivado, tendo sido desencadeada uma atividade processual completamente inútil, por parte da entidade policial e do Ministério Público.

Não tendo sido portanto irrelevante a apresentação da queixa as autoridades, não pode considerar-se ter constituído um simples meio do cometimento das burlas pelo arguido.

Não existe nenhuma interligação entre os bens jurídicos protegidos pelos crimes de burla e de simulação de crime. Enquanto este, como se referiu, é crime contra a realização da justiça, aquele é um crime contra o património. A subordinação da punição deste último à do primeiro redundaria na desproteção absoluta do bem jurídico protegido no art. 366º do CP.

O crime de simulação de crime encontra-se pois em concurso efetivo com o crime de burla.[8]

Improcede o recurso, nesta parte.

4. A burla cometida contra a assistente BB

Pretende o arguido que o prejuízo patrimonial sofrido pela assistente BB não é penalmente relevante, porque nenhuma indemnização pagou ao próprio arguido, porque foi a própria assistente que se colocou em situação de ter prejuízo ou facilitou a existência do prejuízo. Não teria assim havido erro ou engano de que a assistente se pudesse queixar e portanto não haveria burla.

Esta argumentação não convence. É certo que nenhum pagamento a assistente BB fez diretamente ao arguido. Mas ela teve que indemnizar o Banco DD no montante de 11.185,09 €, montante esse devido em virtude da existência do contrato de seguro de crédito referido no ponto 1.13.

Esse pagamento ficou a dever-se ao facto de o arguido ter apresentado à assistente a certidão da queixa “falsa” e acionado esse seguro. Cumprindo as suas obrigações contratuais, a assistente pagou aquele montante ao Banco DD e o arguido viu o valor do seu crédito ao consumo amortizado (ponto 1.48).

Consequentemente, a assistente ficou lesada naquela quantia devido a facto fraudulento praticado pelo arguido, que obteve um benefício correspondente. Verificam-se pois todos os elementos típicos do crime de burla.

Não procede assim a argumentação do arguido.

5. Medida da pena conjunta

5.1. Face às considerações expostas em 2.2., o arguido deverá ser absolvido dos crimes de falsificação de documento pelos quais vinha condenado, sobrando as penas relativas aos crimes de simulação de crime (10 meses de prisão), burla simples (1 ano e 8 meses de prisão) e burla qualificada (3 anos e 6 meses de prisão).

Estas penas não foram impugnadas na sua medida concreta, pelo que se devem manter. Impõe-se no entanto a determinação de uma nova pena conjunta.

5.2. Estabelece o art. 77º, nº 1, do CP que o concurso de crimes é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o nº 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.

            Optou o legislador penal, na punição do concurso de crimes, por um sistema de pena conjunta, e não de pena unitária, uma vez que impôs a fixação das penas correspondentes a cada um dos crimes em concurso, e é das penas parcelares que se parte para a fixação da moldura penal do concurso (enquanto que, segundo o sistema de pena unitária, seria aplicável uma única pena ao agente, sem determinação prévia das penas referentes a cada infração).

Essa moldura, por sua vez, é construída através da combinação de dois princípios: o da acumulação material e o do cúmulo jurídico. O primeiro manifesta-se apenas por meio do estabelecimento do limite máximo da moldura, que é constituído pela soma aritmética das penas parcelares. O segundo estabelece que a pena é fixada em função de uma consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, aproximando de alguma forma o sistema do da pena unitária, sem porém de forma nenhuma se confundir com este. O princípio da acumulação material é amplamente compensado pelo do cúmulo jurídico, que irá moderar os excessos a que aquele, se isolado, conduziria, permitindo obter decisões que, avaliando a globalidade dos factos no seu relacionamento com a personalidade do agente, apliquem o direito ao caso concreto, apliquem a justiça do caso.

A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua (art. 77º, nº 1, do CP). Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente, neles revelada.

Essa reponderação da factualidade e da personalidade do arguido não envolve nenhuma violação do princípio da proibição da dupla valoração das circunstâncias. Na verdade, na determinação da pena conjunta podem ser valoradas circunstâncias já consideradas na fixação das penas parcelares, desde que essas circunstâncias sejam reportadas ao conjunto dos factos e à apreciação geral da personalidade do agente. É essa avaliação global, que não se confunde com a ponderação das circunstâncias efetuada relativamente a cada crime, que é parcelar, que releva para a determinação da medida da pena conjunta.

São pois avaliações diferentes de factos diferentes (porque a parte não se confunde com o todo), não havendo por isso dupla valoração das mesmas circunstâncias.

A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, como se referiu.

Rejeita-se assim qualquer critério objetivo na fixação da pena conjunta mediante a agravação da pena parcelar mais grave somando uma fração das restantes penas parcelares, e ainda menos por fórmulas matemáticas. Esses critérios conduzem afinal à aplicação de um sistema de pena conjunta que a lei não consagrou: o da “exasperação”, ou seja, aquele que que pune o concurso no quadro da pena mais elevada, agravada em função das restantes penas.

Reconhece-se porém que a amplitude que geralmente assume a moldura penal do concurso de penas, ou seja, a distância entre os limites máximo e mínimo dessa moldura, pode provocar, e muitas vezes provoca, dificuldades na determinação da pena, potenciando a produção de desigualdades ou pelo menos disparidades evidentes nas decisões de tribunais diferentes, e até do mesmo tribunal.

No entanto, essas dificuldades, embora maiores por vezes, não são diferentes das que os tribunais enfrentam quando se trata de aplicar uma qualquer pena cujos limites sejam também afastados.

O que se impõe é portanto uma aplicação muito ponderada e exigente, rigorosamente fundamentada, do critério legal da determinação da pena do concurso, com referência às circunstâncias dos crimes em presença, no seu relacionamento com a personalidade do condenado, e considerando os fins das penas.

Ou seja: o critério adotado pelo legislador português é mais maleável do que as “propostas matemáticas”, impondo ao julgador uma ponderação mais profunda e fundamentada de todos os fatores em presença, permitindo-lhe pois fixar a pena dentro de todo o arco da moldura do concurso, de acordo com o juízo formulado a final sobre a personalidade do agente. É uma solução que apela a um juízo simultaneamente mais rigoroso e prudencial, mais adequado a uma solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua singularidade.

5.3. No caso dos autos a moldura da pena conjunta tem como limite mínimo 3 anos e 6 meses e máximo 6 anos de prisão, não sendo assim demasiado dilatada a amplitude desta moldura.

Analisando globalmente as circunstâncias das diversas condutas imputadas ao arguido, sobressai o seu elevado grau de culpa. Na verdade, o arguido arquitetou um engenhoso plano criminoso com vista à obtenção fraudulenta de valores das seguradoras, plano que envolveu o ludíbrio das autoridades públicas, mediante a participação de uma pretensa infração criminal.

Mostrou neste procedimento o arguido uma personalidade deformada, que não recua perante o abuso da função da autoridade pública na defesa da legalidade, induzindo-a dolosamente em erro, para obter finalidades ilegítimas.

As exigências da prevenção geral são elevadas, no que se refere aos crimes de burla, em que o arguido já tem antecedentes criminais; e também em sede de prevenção especial, impostas pela estratégia montada para a prática dos crimes, mas também pela multiplicidade de crimes praticados desde 1989, de variada tipificação (emissão de cheque sem cobertura, furto, desobediência, ofensa à integridade física, lenocínio), reveladora de uma personalidade rebelde ao direito.

As consequências das burlas foram também relevantes, atentos os montantes dos prejuízos causados.

Numa ponderação conjunta de factos e personalidade, e atentos os limites da moldura penal, já acima referidos, considera-se adequada uma pena única de 4 anos e 9 meses de prisão.

5.4. Essa pena admite a suspensão da execução da pena, por força do art 50º, nº 1, do CP.

Estarão preenchidos os pressupostos da mesma, ou seja, poderá formular-se um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do arguido?

Sabemos que tal juízo é sempre problemático e incerto quando estamos perante arguidos que já apresentam um passado criminal significativo.

A favor do arguido pode invocar-se que neste momento conta 77 anos de idade e que os crimes aqui julgados foram praticados em 2011, há quase oito anos.

Contudo, desde então o arguido cometeu outros crimes (em 2013 e 2014) pelos quais foi condenado sempre em pena de prisão. Atualmente cumpre pena à ordem da última condenação.

Perante esta factualidade, não há elementos minimamente confiáveis para concluir por um juízo favorável, ainda que arriscado, à suspensão da pena.

Aliás, face àquelas condenações, haverá sempre que proceder a um cúmulo superveniente entre todas as penas, momento que será certamente o mais adequado para formular um juízo global sobre a personalidade do arguido e consequentemente sobre a pena conjunta a fixar.

III. Decisão

Com base no exposto, decide-se revogar parcialmente o acórdão recorrido, nos seguintes termos:

1. Absolver o arguido da prática de dois crimes de falsificação de documento que lhe vinham imputados;

2. Manter as penas parcelares referentes aos crimes de simulação de crime, de burla simples e de burla qualificada;

3. Condenar o arguido na pena conjunta de 4 anos e 9 meses de prisão.

Sem custas.

                                    Lisboa, 24 de abril de 2019

Maia Costa (Relator)

Pires da Graça

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[1] Ver especialmente A Teoria do Concurso em Direito Penal, pp. 91-100.
[2] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., pp. 988-989.
[3] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 990-991.
[4] Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 1015-1021.
[5] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 1018.
[6] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 989.
[7] Ver Manuel Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, p. 562.
[8] Neste sentido, Manuel Costa Andrade, ob. cit., p. 573.