Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8988/19.1T8VNG-B.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
VIOLAÇÃO DE LEI
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA VINCULADA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

I – É recorrível para o STJ – não sendo abrangido pela regra da irrecorribilidade para o STJ constante do art. 662.º/4 do CPC – o recurso (de revista) que verse sobre o não uso pela Relação dos poderes sobre a matéria de facto que lhe são conferidos pelo art. 662.º/1 e 2 do CPC.

II – Mas o que em tal recurso se admite que o Supremo escrutine (a propósito do “não uso” dos poderes do art. 662.º/1 e 2 do CPC) são violações de direito adjetivo e não violações de direito substantivo.

III – E o “não uso” imputado à Relação (dos poderes que lhe são concedidos) não pode arrancar e/ou assentar em divergências, explícitas ou implícitas, relativamente ao julgamento de facto feito pela Relação (uma vez que tal atuação da Relação é, nos termos do art. 674.º/3/1.ª parte do CPC, insindicável através do recurso de revista); não pode significar que o Supremo irá ser obrigado, para conhecer das violações de direito adjetivo invocadas, a apreciar, em 3.º grau, os meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.

IV – Assim, os erros processuais/adjetivos, passíveis de configurar o “não uso” que o Supremo pode escrutinar, são apenas os erros que são suscetíveis de ser “caçados” a partir do próprio texto do Acórdão da Relação (têm que estar espelhados no próprio texto/conteúdo do Acórdão da Relação recorrido).

Decisão Texto Integral:

8988/19.1T8VNG-B.P1.S1

6.ª Secção

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

Nos presentes autos de incidente de qualificação da insolvência da devedora «Imagina Soft HS, Lda.», foi proferida sentença que decidiu:

a) qualificar como culposa a insolvência de “Imagina Soft HS, Lda.”, declarando afetado pela mesma AA;

b) fixar em 6 anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros;

c) determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condená-lo na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

d) condenar o requerido AA a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do CIRE, que não forem pagos pelo produto da liquidação do ativo, considerando as forças do seu património;

e) indeferir o pedido formulado pelo requerido na oposição, de afetar a esta insolvência culposa BB.

Sentença de que o requerido AA interpôs recurso de apelação, recurso que a Relação do Porto, por Acórdão proferido por unanimidade em 28-2-2022, julgou improcedente, «confirmando integralmente a sentença recorrida».

Ainda inconformado, interpõe o requerido AA o presente recurso de revista, em cujas “conclusões” refere, no que concerne à admissibilidade da revista:

«1. No seu recurso de apelação, o Recorrente requereu a reapreciação da matéria de facto fixada na sentença de 1.ª instância, pelo Tribunal a quo, por via da correção de concretos pontos da matéria de facto dada como provada, bem como pelo aditamento de um conjunto de factos.

2. O acórdão recorrido, que julgou improcedente a impugnação da matéria de facto, não avaliou, de forma correta, a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1.ª instância, porquanto a prova produzida (ou a produzir) impunha decisão e atuação diversa ao Tribunal da Relação, violando a decisão recorrida, deste modo, o disposto nos artigos 11.º do CIRE e 411.º, 413.º, 640.º e 662.º do CPC.

3. O presente recurso visa, assim, nesta parte, sindicar a improcedência da requerida modificação da matéria de facto, com fundamento na violação ou errada aplicação da lei de processo pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC.

4. Em resultado da incorreta e desconforme reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação inequívoco é que inexiste, neste caso, uma situação de dupla conforme que obste à presente revista normal.

5. Para além do mais, não visa este recurso a reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da decisão anteriormente proferida sobre a matéria de facto, a qual lhe está subtraída, mas apenas e tão só a apreciação dos motivos que estiveram na base da decisão quanto à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal a quo, matéria esta que se cinge a questões de aplicação do direito processual e, por isso, ora sindicáveis.

6. Quanto à solução jurídica preconizada no acórdão recorrido quanto aos pressupostos da qualificação da insolvência do Recorrente como culposa, a sua solução dependerá necessariamente da decisão atinente à violação das normas adjetivas previstas nos artigos 640.º e 662.º do CPC.

7. Excecionar-se-á a apreciação do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, por via do disposto no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, porquanto ocorreu, na ótica do Recorrente, a ofensa de uma disposição expressa de Lei que fixa a força de determinado meio de prova (por documento autêntico).

8. Eis as razões que sustentam a admissibilidade do presente recurso de revista em relação as estas matérias, o qual, ademais, se fundamenta na violação pelo Tribunal da Relação do Porto de lei adjetiva, bem como por erro na apreciação da prova, consubstanciada na violação de norma definidora da força probatória plena de meio de prova, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, do CPC.».

O Ministério Público apresentou resposta, sustentando, designadamente, que “estamos perante clara situação de “dupla conforme” entre as duas decisões, o que inviabiliza o recurso de revista para o STJ, nos termos do art. 671.º/3 do CPC.”


*

Distribuídos os autos neste STJ, foram as partes, por se entender que tal Acórdão da Relação não é passível de revista nos termos interpostos, convidadas a pronunciar-se, nos termos do art. 655.º do CPC, sobre a inadmissibilidade da revista interposta.

Ao que o recorrente veio dizer que, a seu ver, deve ser admitido o recurso de revista, argumentando, em síntese, que invocou vícios no processo de formação da decisão da Relação, designadamente, “(i) violação de normas de direito probatório que fixam a força probatória plena de determinados meios de prova e que deveriam ter sido considerados como tal; (ii) o uso manifestamente ilógico de presunções judiciais e, especialmente; (iii) a manifesta falta de uso dos poderes-deveres previstos no artigo 662.º do CPC; todos fatores que inquinam, por completo, o processo de “formação da decisão” da Relação”.

Nada vindo dizer os recorridos.


*

Foi então, em 06/09/2023, proferido despacho, ao abrigo do art. 652.º/1/b) do CPC (ex vi 679.º do CPC), a julgar findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto.

Despacho em que, transcrevendo-se o que antes havia sido exposto no despacho proferido1 nos termos do art. 655.º do CPC, se fez constar:

“ (…)

Dispõe o nº 3 do art. 671 do CPC: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte». O artigo seguinte reporta-se à revista excecional.

O recorrente não pretendeu interpor recurso de revista excecional; por outro lado, não é aludido qualquer motivo por via do qual o recurso seria sempre admissível – o que nos remeteria para o nº 2 do art. 629 do CPC. Assim, tendo em consideração que, como resulta do que relatámos supra, o acórdão da Relação do Porto confirmou por unanimidade o que fora decidido em 1ª instância, haverá que averiguar se existe alguma circunstância por via da qual possamos considerar que se verifica (ou não) o requisito «sem fundamentação essencialmente diferente» a que alude o nº 3 do art. 671.

Estamos no âmbito da chamada “dupla conforme”, ou seja, da existência de conformidade das decisões proferidas em 1ª e 2ª instância.

No que concerne à fundamentação jurídica, a 1ª instância e a Relação do Porto manifestaram idêntico entendimento conducente à decisão final.

O recorrente não sustenta o contrário – o que ele nos diz é que:

- O recurso visa «sindicar a improcedência da requerida modificação da matéria de facto, com fundamento na violação ou errada aplicação da lei de processo pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC» (conclusão 3).

- «Em resultado da incorreta e desconforme reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação inequívoco é que inexiste, neste caso, uma situação de dupla conforme que obste à presente revista normal» (conclusão 4).

- Não visa «este recurso a reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da decisão anteriormente proferida sobre a matéria de facto, a qual lhe está subtraída, mas apenas e tão só a apreciação dos motivos que estiveram na base da decisão quanto à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal a quo, matéria esta que se cinge a questões de aplicação do direito processual e, por isso, ora sindicáveis» (conclusão 5).

- «Excecionar-se-á a apreciação do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, por via do disposto no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, porquanto ocorreu, na ótica do Recorrente, a ofensa de uma disposição expressa de Lei que fixa a força de determinado meio de prova (por documento autêntico)» (conclusão 7).

- «Eis as razões que sustentam a admissibilidade do presente recurso de revista em relação as estas matérias, o qual, ademais, se fundamenta na violação pelo Tribunal da Relação do Porto de lei adjetiva, bem como por erro na apreciação da prova, consubstanciada na violação de norma definidora da força probatória plena de meio de prova, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, do CPC» (conclusão 8).

Vem sendo entendido que a infração de regras de direito adjetivo relacionadas com a apreciação da impugnação da matéria de facto, poderá descaracterizar a dupla conforme.

Abrantes Geraldes exemplifica com situações em que a Relação não admitiu o recurso de apelação, na parte em que foi impugnada a decisão da matéria de facto com fundamento no incumprimento de algum dos ónus previstos no art. 640 do CPC, ou quando recusou a reapreciação dos meios de prova, a pretexto de alegadas dificuldades ou impedimentos decorrentes dos princípios da imediação ou da livre apreciação da prova. Acrescentando: «Nessas situações, e noutras similares em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual que não corresponda a uma mera confirmação do que tenha sido decidido a tal respeito na decisão de 1ª instância, a confirmação da sentença recorrida no segmento referente à apreciação do mérito da apelação não traduz uma efetiva situação de dupla conforme relativamente a tais aspetos de ordem formal, já que as questões emergiram ex novo do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação».

Referindo Teixeira de Sousa: «Compreende-se -- ou melhor, pode compreender-se -- que uma parte vencida na decisão da 1.ª instância não possa recorrer para o STJ se ficou de novo vencida no acórdão da Relação, ou seja, pode aceitar-se que a lei retire de um duplo decaimento da parte a inadmissibilidade da interposição da revista por essa parte. O que não pode admitir-se é que a revista continue a ser inadmissível quando se verifique um (alegado) vício na formação da decisão da Relação, isto é, quando a parte vencida pretenda atacar, não a decisão em si, mas a sua formação. Quanto a este aspeto, a parte não pode ser considerada duplamente vencida, dado que a parte pretende alegar, pela primeira vez, um fundamento de recurso que não podia ter invocado na apelação interposta da decisão da 1.ª instância para a Relação».

Explicando Alves Velho:

«É frequente a interposição de revista excecional fundada na oposição de acórdãos (al. c) do art. 672º-1), nomeadamente quando o Tribunal da Relação, em recurso de apelação que tem por objeto a impugnação da matéria de facto fixada na 1ª instância, a mantém.

Arranca-se, para tanto, da ideia de que, persistindo inalterado o quadro factual considerado na sentença, se estará perante uma situação de “dupla conformidade”.

Ora, estando em causa a valoração da matéria de facto de livre apreciação, que não seja alterada, não se coloca qualquer problema de “dupla conforme” ou de revista excecional pela óbvia razão de que não se está perante uma questão de direito – não sendo caso de prova vinculada -, sendo o objeto de um tal recurso o não uso de poderes da Relação que só a ela competem e dela são privativos quanto à última palavra sobre a apreciação da prova não vinculada. Não haverá, a montante, recurso de revista nos termos gerais, pelo que a excecional estará igualmente arredada (art. 674º-3 CPC).

Diferentemente, porém, quando o recorrente imputa à decisão que impugna a violação de lei processual, nomeadamente os arts. 640º e 662º-1 do CPC, por indevida rejeição do recurso de apelação na parte respeitante à reapreciação da prova, em conformidade com a impugnação feita da decisão da 1ª Instância.

Também aqui o Tribunal da Relação se move no campo de poderes, próprios e privativos, com o conteúdo e limites definidos nessas normas, em ordem a assegurar um efetivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.

Esses poderes da Relação não encontram, porém, correspondência na decisão da 1ª instância sobre a mesma matéria, independentemente da convergência ou divergência sobre o julgamento dos vários pontos de facto, por isso que também são diferentes as normas processuais por que se regem os respetivos julgadores, não podendo falar-se em duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito, ambas determinantes para a decisão, em que a segunda seja confirmatória da primeira, como exige a dupla conformidade.

Assim, embora haja uma decisão sobre a matéria de facto e outra que recai sobre o seu julgamento, mantendo-a, não poderá afirmar-se que, quando se questione o respeito pelas normas processuais dos arts. 640º e 662º pela Relação, que só esta pode violar, se possa falar de uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões sucessivas conformes.

Não se perfila, portanto, em qualquer dos casos, um problema de “dupla conformidade” e de revista excecional».

Será, todavia, uma circunstância dessas – de não serem respeitadas pela Relação as normas processuais dos arts. 640º e 662º - que ocorre no caso dos autos, como o recorrente parece aludir quando se reporta «à violação das normas adjetivas previstas nos arts. 640º e 662º do CPC» (conclusão 6)?

No recurso de apelação que interpusera o recorrente pugnara no sentido de:

- Ser alterada a redacção das alíneas C), Q) e W) dos factos dados como provados;

- Ser julgado como não provado o facto constante da alínea X) dos factos provados (4);

- Ser dado como provado o ponto CC) dos factos dados como não provados, bem como vários factos que, na sequência, elenca.

No que concerne à reapreciação da matéria de facto provada e impugnada, a Relação do Porto consignou no acórdão recorrido:

(…)

Ora, face ao que transcrevemos, temos que a Relação do Porto, não só admitiu o recurso de apelação na parte em que foi impugnada a decisão da matéria de facto, como não recusou a reapreciação dos meios de prova (por exemplo, apresentando a justificação de dificuldades ou impedimentos decorrentes dos princípios da imediação ou da livre apreciação da prova).

Não é invocado um vício na formação da decisão da Relação, não se tratando de caso em que o recorrente pretenda atacar não a decisão em si, mas a sua formação.

Não estaremos, verdadeiramente, no âmbito do não uso ou uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto no julgamento da apelação - a Relação apreciou a matéria de facto impugnada pelo apelante, utilizando os poderes que para o efeito a lei lhe confere.

O que aparentemente sucede é que o recorrente discorda da apreciação produzida, apreciação essa que foi no mesmo sentido que a 1ª instância seguira (apenas com uma alteração irrelevante no que respeita ao ponto Q) dos factos provados) – tratando-se, pois, de uma dupla conforme.

Nas supra transcritas conclusões introdutórias o recorrente diz, designadamente, que o recurso visa «sindicar a improcedência da requerida modificação da matéria de facto», em resultado «da incorreta e desconforme reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação», visando o recurso a «apreciação dos motivos que estiveram na base da decisão quanto à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal a quo» - ainda sem concretização da matéria de facto a que se reporta.

Na sequência (conclusões 11 a 20) invoca o recorrente a nulidade por omissão de pronúncia “por falta de exame crítico das provas produzidas”, reportando-se aos pontos C) e W) dos factos provados, bem como a nulidade por omissão de pronúncia “em face da não apreciação de questões de direito” (conclusões 22 a 38).

Depois (conclusões 39 a 59) o recorrente refere-se ao erro na apreciação da prova na fixação do facto provado X) por ofensa expressa de disposição que fixa a força de meio de prova” - trata-se, também, da invocação de erro na apreciação da prova, pretendendo o recorrente que a partir de um documento autêntico junto aos autos resultaria (atentas as regras da experiência e da lógica a que alude) a remoção do facto julgado provado, correspondente ao ponto X) e a sua substituição por facto de sinal contrário.

Até aqui temos, da parte do recorrente, discordância do que a Relação do Porto decidiu relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto - o que, como vimos, não descaracteriza a dupla conforme.

Após (conclusões 60 a 78) o recorrente sustenta que a atuação do Tribunal da Relação consubstancia uma violação do disposto no art. 662, nº 1 e nº 2-a), b) e c) do CPC, impondo-se a alteração dos pontos de facto C) e W) e o aditamento da matéria de facto provada por si promovida, considerando que a Relação apesar de ter tomado conhecimento da impugnação, julgou tal segmento do recurso improcedente na sua quase totalidade. Pretendendo que quanto ao ponto W) o processo seja remetido à Relação para dar cumprimento aos deveres legais previstos nos nºs 2-) e b) do art. 662 do CPC.

Também, agora de novo quanto ao ponto X) dos factos provados, sustenta o recorrente que a Relação deveria ter anulado a decisão de 1ª instância nos termos previstos no art. 662, nº 2-c), bem como ordenar a renovação da produção de prova e a produção de novos meios de prova (conclusões 79 a 93).

Ora, como foi considerado no acórdão do STJ de 3-5-2018: «Vem-se entendendo que o " não uso" dos poderes conferidos à Relação pelo artigo 662.º do CPC não é censurável pelo STJ; na verdade, proibindo a lei o recurso das decisões da Relação que, usando tais poderes, alterem a matéria de facto ou determinem o prosseguimento dos autos para melhor averiguação ou concretização da matéria de facto (alíneas a) a d) do artigo 662.º/2 do CPC), admitir-se, ao invés, o recurso tendo em vista ordenar à Relação o prosseguimento dos autos para esses efeitos com base na censura de que houve por parte da Relação uma omissão, um "não uso" injustificado dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º/2 do CPC, isso levaria a que o STJ necessariamente se tivesse de debruçar sobre a matéria de facto». «Não poderia, na verdade, o STJ, conscienciosamente, sem analisar a matéria de facto registada por gravação pronunciar-se no sentido de considerar que se impunha a renovação da produção de prova por haver fundadas dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento (artigo 662.º/2, alínea a) do CPC); de igual modo a análise da prova sempre se mostraria necessária tratando-se precisamente de ponderar se ocorre dúvida fundada sobre a prova realizada tendo em vista decidir que se justifica a produção de novos meios de prova (alínea b); mutatis mutandis quanto à decisão de anulação seja por se considerar indispensável a ampliação da matéria de facto seja porque, não permitindo a prova produzida uma alteração da matéria de facto, os factos provados são deficientes, obscuros ou contraditórios».

É de considerar, pois, a insusceptibilidade da revista, nesta parte, sendo certo que, como consta da transcrição acima efetuada e o recorrente não nega, a Relação tomou conhecimento da impugnação, aduzindo as razões concretas pelas quais decidiu no sentido da manutenção, na generalidade, da decisão de 1ª instância.

Por fim, o recorrente pugna pelo aditamento dos factos não provados por si referidos como 1) a 14) e pela consideração como provado do facto não provado CC) (conclusões 94 a 114). Volta a defender a produção de novos meios de prova com vista a esclarecer e a apurar a alegada qualidade de gerente de facto de BB, com vista ao alargamento do incidente de qualificação à sua pessoa, com vista à sua afetação; ou, a anulação da decisão da 1.ª instância, por ser manifestamente indispensável a ampliação da matéria de facto, por forma a apurar qual o grau de culpa do recorrente na insolvência.

A Relação do Porto motivou a sua decisão em não proceder ao aditamento dos factos propostos pelo recorrente; no que respeita à produção de novos meios de prova e à anulação da decisão da 1.ª instância, por ser indispensável a ampliação da matéria de facto remetemos para o que expusemos supra.

Parece-nos, em conclusão, que no caso se constituiu dupla conforme, nos termos do nº 3 do art. 671 do CPC, o que impede a interposição de revista dita “normal”.

(…)”

Após o que, transcrito o que foi exposto no despacho proferido nos termos do 655.º do CPC, se explanou o seguinte:

“(…)

Mantém-se integralmente o que foi expendido no despacho acabado de transcrever.

Há que delimitar devidamente o que, quando se invoca que a Relação fez “mau uso dos poderes que lhe são concedidos", está e/ou pode estar validamente sob revista.

Como se referiu, o Acórdão da Relação confirmou, com idêntica fundamentação, o sentenciado em 1.ª Instância.

Verificando-se uma situação de dupla conformidade (cfr. 671.º/3 do CPC), fica impedida a “revista normal”, regra esta que é “contornável” com a interposição, nos termos do art. 672.º do CPC, da “revista excecional” – o que, no caso, não foi feito – e ainda pela “brecha” aberta por este Supremo ao obstáculo colocado pela dupla conforme.

Efetivamente, fixou este Supremo o entendimento de que o controlo do uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto pela Relação é questão que emerge “ex novo” no acórdão da Relação e, por isso, em tal hipótese, quando se recorre de revista do uso (ou não uso) que a Relação fez de tais poderes, não se verificará uma conformidade decisória com o decidido na 1.ª Instância que obste ao recurso de revista.

Mas, claro, sendo a revista admissível por a questão que se diz suscitar dizer respeito ao controlo pelo STJ do uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto em 2.ª instância, só esta questão constitui objeto válido duma revista assim (com base em tal “brecha”) tornada admissível, não se podendo aproveitar a revista que em tais termos se diz intentar (por forma a que o acórdão da Relação comporte revista) para incluir no objeto da mesma outras e diversas questões (ou, porventura mais exatamente, apenas outras e diversas questões).

O objeto válido duma revista como a presente, admitida “nos termos normais”, está circunscrito ao errado uso (ou não uso) dos poderes concedidos à Relação, mas – é o ponto – sobre este estrito e exato objeto o A./recorrente nada verdadeiramente diz ou invoca.

É que o que o Supremo controla/escrutina – o que é passível de comportar tal revista, por não ocorrer uma conformidade decisória que obste ao recurso de revista – é o errado uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto e não a errada reapreciação da matéria de facto (por parte da Relação): o que em tal estrito objeto está em causa (e que o Supremo controla/escrutina, nos termos da “revista normal”) é a possível violação de normas de direito adjetivo relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, ou seja, o que se diz nos arts. 640.º e 662.º do CPC.

O que aqui (numa “revista normal” assim admitida) estará em causa – sendo-se prático e claro – são aquelas hipóteses em “que a Relação rejeite pura e simplesmente a impugnação da decisão da matéria de facto por motivos ligados à falta de identificação dos pontos de facto impugnados, à omissão de indicação dos meios de prova ou à falta de enunciação da resposta alternativa. Por exemplo, a Relação não admitiu o recurso de apelação, na parte em que foi impugnada a decisão da matéria de facto, com fundamento no incumprimento de alguns dos ónus previstos no art. 640.º; ou, noutro plano, que demanda a aplicação do art. 662.º, recusou a apreciação dos meios de prova, a pretexto de alegadas dificuldades ou impedimentos decorrentes dos princípios da imediação ou da livre apreciação da prova.”2.

Dito doutro modo, no escrutínio que o Supremo faz do uso dos poderes da Relação não cabe ou entra a reapreciação da matéria de facto por parte do Supremo, ou seja, o Supremo não vai escrutinar se o que foi dado como provado pela Relação foi ou não bem dado como provado, ou seja, se corresponde à exata e correta apreciação da prova produzida.

Ainda de doutro modo, não cabem ou podem ser invocadas, ao abrigo do controlo sobre “o uso (ou não uso) que a Relação fez dos poderes que lhe são concedidos", divergências relativamente ao julgamento de facto feito pela Relação, agindo esta ao abrigo do princípio da livre apreciação de meios de prova, seja esta a prova testemunhal, documental ou pericial, atuação essa da Relação que, nos termos do art. 674.º/3/1.ª parte do CPC, é insindicável através do recurso de revista.

Efetivamente, a competência do Supremo, como é sabido, é dirigida à aplicação do direito aos factos fixados pelas instâncias, razão pela qual o recurso de revista tem como fundamento a violação da lei, substantiva ou processual (cfr. art. 674.º/1/a) e b) CPC), sendo o julgamento da matéria de facto pela Relação, em princípio, definitivo; o que significa, repete-se, que foge ao controlo do e pelo Supremo uma 2.ª reapreciação3 das provas sujeitas à livre apreciação do julgador,

Em síntese e repetindo, quando se convoca o “errado uso dos poderes concedidos à Relação” (para o acórdão da Relação comportar revista), o que, em consonância, tem que ser invocado é que o acórdão da Relação está eivado de erro de aplicação da lei processual – v. g., que rejeitou indevidamente o recurso sobre a matéria de facto e que não procedeu sequer a qualquer reapreciação da matéria de facto – e não que o acórdão da Relação errou na reapreciação da prova produzida.

Porém, como circunstanciadamente se refere no despacho transcrito – ter errado na apreciação da prova produzida – é apenas isto que o A/recorrente faz.

É certo que o Supremo vem admitindo que pode sindicar o uso de presunções judiciais que padeçam de evidente ilogicidade.

Sem prejuízo, como já se referiu, de fugir ao controlo do Supremo as provas sujeitas à livre apreciação do julgador, vem sendo entendido que o Supremo pode verificar se o iter percorrido pela Relação respeitou as regras legais do procedimento probatório, nomeadamente, no que concerne às presunções judiciais, que o Supremo pode verificar se tal meio de prova era admissível, se o seu raciocínio não padece de ilogismo manifesto e se o uso da presunção judicial parte dum facto base conhecido; tudo isto na estrita media em que, segundo o art. 351.º do C. Civil, “as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal” e em que, segundo o art. 349.º do C. Civil, “presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”

Acaba, porém, por se tratar, como resulta do que vem de se referir, duma via de controlo muito estreita e reduzida, em que, acentua-se, face ao preceituado nos referidos arts. 674.º/3 e 682.º/2 do CPC, está vedado ao Supremo, como tribunal de revista, indagar e sindicar erros intrínsecos na formação da convicção do julgador; em que, insiste-se, o Supremo não se mete na reapreciação dos meios de prova sujeitos à livre apreciação; e em que, no fundo e em síntese, o Supremo se limita tão só a verificar se o resultado final ao nível da decisão da matéria de facto foi prejudicado por errada aplicação das regras de direito probatório material.

Seja como for, ao contrário do que agora pretende dar a entender, o recorrente não invocou nas alegações de revista – aliás, não identifica sequer o passo das alegações de revista em que o tenha explicitamente feito – o uso manifestamente ilógico das presunções judiciais por parte do Acórdão da Relação.

E quanto à errada aplicação de regras de direito material – quanto a, como se sustenta, não se haver respeitado a força probatória plena de documentos autênticos e/ou a força probatória de confissão judicial – não é por tal errada aplicação estar encerrada/oculta na fixação da matéria de facto que as coisas se passam de modo diverso do que sucede com qualquer outra errada aplicação de regras de direito material, isto é, havendo (como é o caso) dupla conforme, para poder haver revista de tal errada aplicação das regras de direito material, o único caminho é a revista excecional (é invocar que há contradição jurisprudencial com um acórdão que reconheceu as forças probatórias que aqui e agora não foram respeitadas); e não sustentar-se que, em tal hipótese, ocorre uma errada aplicação da lei do processo (quando o que está erradamente aplicado é a lei substantiva, são as regras de direito material).

Uma coisa é o que se dispõe no art. 662.º/1 do CPC – sobre as alterações que a Relação deve efetuar à matéria de facto – outra, diversa, é considerar-se que qualquer erro/omissão da Relação nesse estrito âmbito (não alterando o que já vinha “errado” da 1.ª Instância) foge à dupla conforme.

E se está subtraído ao Supremo reapreciar a matéria de facto (que a Relação julgou ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova), se o Supremo não pode escrutinar se o que foi dado como provado pela Relação foi ou não bem dado como provado, se corresponde à exata e correta apreciação da prova produzida, também não pode o Supremo – como é evidente, a nosso ver, salvo o devido respeito – meter-se a apreciar os motivos que estiveram na base da decisão da matéria de facto por parte da Relação4, uma vez que não se “apreciam os motivos” sem se escrutinar o que, por força da lei, não pode ser escrutinado.(…)”


*

Vindo agora o recorrente requerer que sobre a matéria de tal despacho recaia Acórdão da Conferência, nos termos do disposto no art. 652.º/3 do CPC.

Não foi apresentada qualquer resposta.


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Mantém-se o que foi expendido no despacho reclamado, acabado de transcrever.

Dispõe o art. 662º/4 do CPC que “das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”5.

O que parece significar que são insindicáveis pelo STJ todas as decisões do Tribunal Relação em que:

- é ordenada a renovação da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento (alínea a);

- é ordenada, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova (alínea b);

- é anulada a decisão de 1ª instância por ser deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, não constando do processo todos os elementos que permitiriam a alteração da decisão de facto, ou quando se considere indispensável a sua ampliação (alínea c);

- é determinada a fundamentação da decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, que se revelou insuficiente (alínea d).

E dizemos parece, uma vez que se desenha uma interpretação do art. 662.º/4 do CPC que entende, pese embora a sua letra, ser de admitir recurso de revista das decisões previstas nos n.º 1 e 2 do art. 662.º do CPC “quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjetivo conexas com a apreciação da matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento dos deveres previstos no artigo 662º”6.

Sendo em linha com tal entendimento que neste Supremo vêm sendo tirados Acórdãos (citados pelos recorrente/reclamante) em cujos sumários se diz que não é abrangido pela regra da irrecorribilidade para o STJ o recurso de revista que verse sobre o não uso ou sobre o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto conferidos pelo art. 662.º/1 e 2 do CPC, embora também se observe que será só o não uso dos poderes pela Relação que deve ser considerado como não abrangido pela regra da irrecorribilidade (sob pena de se esvaziar o comando do art. 662.º/4 do CPC7 e de passar a caber – onde a letra da lei parece dizer exatamente o contrário – sempre revista para o Supremo).

E vem isto a propósito de mostrar que a questão da admissibilidade (ou não) da revista com fundamento na violação dos n.º 1 e 2 do art. 662.º do CPC não tem a simplicidade que parece resultar quer do texto do art. 662.º/4 do CPC quer dos sumários que, aparentemente ao arrepio do texto da lei, anunciam uma ampla recorribilidade.

Mas, é o que se pretende enfatizar, seja qual for a interpretação que se faça do art. 662.º/4 do CPC – mais ab-rogatória ou menos ab-rogatória – há uma “linha” que não poderá/deverá ser ultrapassada: a demonstração do “não uso que a Relação fez dos poderes que lhe são concedidos"8 não pode arrancar e/ou assentar em divergências, explícitas ou implícitas, relativamente ao julgamento de facto feito pela Relação, agindo esta ao abrigo do princípio da livre apreciação de meios de prova, seja esta a prova testemunhal, documental ou pericial, uma vez que tal atuação da Relação é, nos termos do art. 674.º/3/1.ª parte do CPC, insindicável através do recurso de revista.

Não se pode aproveitar a revista que se diz intentar com fundamento no não uso dos poderes do art. 662,º/1 e 2 do CPC (por forma a que o acórdão da Relação passe a comportar revista) para suscitar a reapreciação da matéria de facto e colocar o Supremo, tendo em vista sindicar o “uso” que a Relação fez dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662.º do CPC, a reapreciar a matéria de facto (foge ao controlo do Supremo uma 2.ª reapreciação das provas sujeitas à livre apreciação do julgador).

Repare-se:

A possibilidade de renovação da produção de certos meios de prova está prevista, no art. 662.º/2/a) do CPC, para as situações em que subsistam dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoente ou sobre o sentido do depoimento; e, claro, as “dúvidas sérias” que possibilitam a renovação têm que ser da Relação, não sendo o Supremo que se vai debruçar sobre a prova produzida e, a partir daí, da apreciação que faça da mesma, concluir que a Relação devia ter tido “dúvidas sérias” e que por isso devia ter ordenado a renovação da sua produção.

Se o Supremo não pode escrutinar a exata e correta apreciação da prova produzida (das provas sujeitas à livre apreciação do julgador), também não pode “escrutinar” se a Relação podia/devia ou não ter tido “dúvidas sérias” e, em consequência, terão que ser necessariamente muito limitadas e excecionais as situações que hão de poder caber no campo de aplicação do art. 662.º/2/a) do CPC.

É aliás sintomático o exemplo que o Prof Teixeira de Sousa dá duma possível situação de violação (pela Relação ) do art. 662.º/2/a) do CPC: “a Relação teve dúvidas sobre o sentido do depoimento de uma testemunha, dado que, v. g., não percebeu a que facto se referia esse depoimento ou não entendeu se a testemunha tinha de facto presenciado o facto, no entanto, em vez de, como lhe impõe o art. 662.º/2/a), mandar renovar o depoimento da testemunha, a Relação considerou o facto não provado e decidiu de acordo com a regra do non liquet (art. 414.º do CPC); em tal hipótese, o Supremo pode censurar a não uso pela Relação do poder de ordenar a não renovação da prova9.

Se a Relação não exprime “dúvidas sérias” e/ou se, exprimindo-as, não incorre em nenhum vício processual na fixação do facto (relacionado com as “dúvidas sérias”), fica afastada a possibilidade de se invocar o art. 662.º/2/a) do CPC para interpor e admitir revista.

Não se pode subverter pela invocação (e por uma interpretação ampla do art. 662.º/2 do CPC) as demais regras processuais: cabe aqui lembrar que, após alguma controvérsia sobre o exato modo de invocar a falta ou deficiência da gravação (se devia ser deduzida reclamação contra a nulidade processual ou se a mesma podia ser deduzida na apelação), o atual art. 155.º/5 do CPC veio dispor que “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”, o que significa, a nosso ver, que as “dúvidas sérias” (que dão lugar à aplicação do art. 662.º/2/a) do CPC) não poderão sequer radicar em deficiências de gravação10.

Do mesmo modo, quanto ao art. 662.º/2/b do CPC: trata-se aqui de uma possibilidade a que a Relação pode aceder quando se lhe deparar uma dúvida objetiva e fundada sobre a prova que foi realizada e que possa ser resolvida, por exemplo, através da junção de documentos na posse de entidades administrativas; trata-se duma possibilidade/mecanismo cuja utilidade e pertinência deve ser avaliada pela Relação, ponderando a sua necessidade em face das provas, de que deve fazer uso de acordo com critérios de objetividade (quando percecione que determinadas dúvidas sobre a prova ou falta de prova de factos essenciais poderão ser superados mediante a realização de diligências probatórias suplementares) e sem subverter, por via de um mecanismo que deve ser excecional, as boas regras processuais ligadas aos princípios do dispositivo, da preclusão, da auto responsabilidade das partes (dos momentos próprios para produzir a prova, designadamente a documental) e da imparcialidade, pelo que, não podendo o Supremo escrutinar a exata e correta apreciação da prova produzida pela Relação, também não poderá dizer que ela devia ter tido, onde não teve, “dúvida fundada”.

Identicamente, quando ao art. 662.º/2/c) do CPC: no que aqui (para a questão colocada pela revista) interessa, a Relação tem o poder/dever de anular a decisão proferida pela 1.ª Instância quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto e não constarem do processo todos os elementos que permitam tal ampliação da matéria de facto.

O erro processual em que a Relação incorre (e que abre o caminho da revista, ao abrigo do art. 662.º/2/c) do CPC) estará em a Relação considerar que foram alegados factos, por ela reputados como juridicamente relevantes, que não constam do elenco dos factos provado ou não provados e o processo não conter, a propósito de tais factos, a produção de todos os elementos probatórios para ela própria, Relação, os poder dar como provados ou não provados, sucedendo que, perante isto, a Relação não anula, para que seja produzida a indispensável prova sobre tais factos, a decisão da 1.ª Instância.

O erro da Relação – que pode ser escrutinado pelo Supremo – é o de não “anular” a decisão da 1.ª Instância, numa situação em que essa mesma Relação considera que há factos juridicamente relevantes sobre os quais não foi produzida a indispensável prova.

Tal mecanismo – que não pode subverter, repete-se, as boas regras processuais ligadas aos princípios do dispositivo, da preclusão, da auto responsabilidade das partes e da imparcialidade – não poderá servir, por ex., para suprir as falhas probatórias das partes, em função do que o seu expetável campo de aplicação será restrito àquelas situações em que um tema juridicamente relevante, segundo a Relação, não foi sequer enunciado como “tema de prova” (o que permite supor que sobre o mesmo não foi produzida a indispensável prova).

O que significa – é o ponto – que, se a Relação não reputa sequer uma concreta factualidade como juridicamente relevante, não incorre a mesma em qualquer erro processual (hoc sensu); não é que não esteja a incorrer em erro – pode estar a cometer um erro substantivo, por a factualidade em causa ser relevante – apenas, é o que relava, não incorre em erro processual (hoc sensu).

Voltando ao que acima referimos, o que se admite que o Supremo escrutine (a propósito do “não uso” dos poderes do art. 662.º/1 e 2 do CPC) são violações de direito adjetivo e não violações de direito substantivo; e se a Relação entende erradamente (não estamos a dizer que seja o caso, mas apenas a colocar uma hipótese) que determinada factualidade é juridicamente irrelevante comete um erro de direito substantivo e não um erro processual.

A interpretação que vimos de fazer dos termos e contornos em que o Supremo pode escrutinar o “não uso” pela Relação dos poderes do art. 662.º do CPC conduz, não o escamoteamos, a uma limitada intervenção/escrutínio do Supremo, mas é isso mesmo que decorre do modo como está construída a intervenção do Supremo na fixação dos factos (a ponto de o art. 662º/4 do CPC dizer mesmo, recorda-se, que “das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”).

Ao invés, interpretações ao arrepio do modo restrito como está construída tal intervenção do Supremo conduziriam a que sempre se pudesse invocar a violação do “não uso” dos poderes do art. 662.º/1 e 2 do CPC por parte da Relação (e, por via disso, “forçar” a admissão duma revista).

Repare-se: é fácil em todo e qualquer processo a parte vencida vir dizer que há factos juridicamente relevantes que não foram incluídos no elenco dos factos provados ou não provados e que, por isso, a Relação tinha o poder/dever de anular a decisão da 1.ª Instância para ampliar a matéria de facto; é fácil em todo e qualquer processo a parte vencida vir dizer que a Relação devia ter tido dúvidas sérias e/ou fundadas sobre a credibilidade dum depoimento ou sobre a prova produzida e que, por isso, a Relação tinha o poder/dever de ordenar a renovação de prova ou a produção de novos meios de prova.

Enfim, passaria a ser fácil “distrair” o Supremo da sua verdadeira competência – que, como é sabido, é dirigida à aplicação do direito aos factos fixados pelas instâncias – e far-se-ia dos art. 674.º/3/1.ª parte e 662.º/4, ambos do CPC, quase letra morta, transformando-se a exceção em regra e a regra em exceção.

É por isto que afirmamos/repetimos que toda a e qualquer interpretação que se faça do art. 662.º/4 do CPC – tendo em vista configurar situações do art. 662.º/2 suscetíveis de admitir revista – não pode ultrapassar a “linha” referida, ou seja, não pode significar que o Supremo vai ser obrigado, para conhecer da violação invocada, a apreciar, em 3.º grau, os meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.

E é por isto que dizemos que os únicos erros processuais/adjetivos (do art. 662.º/2 do CPC) que o Supremo pode escrutinar são erros que são suscetíveis de ser “caçados” a partir do próprio texto do Acórdão da Relação11; por exemplo:

- O Acórdão da Relação diz expressamente que teve “dúvidas sérias” sobre o sentido dum depoimento e não ordenou a renovação da prova;

- O Acórdão da Relação diz expressamente que teve “dúvida fundada” sobre a prova dum facto e, admitindo que tal dúvida seria facilmente desfeita por um documento que se sabe que existe, não ordenou a sua junção/requisição;

- O Acórdão da Relação diz expressamente que há factos alegados, por si reputados como juridicamente relevantes, que não foram incluídos nos temas da prova e sobre os quais não foi produzida qualquer prova e não anula a decisão da 1.ª Instância para que seja ampliada a matéria de facto.

Por outras palavras, os erros processuais/adjetivas do art. 662.º/2 do CPC que o Supremo escrutina não podem ser construídos pelo recorrente a partir de considerações e valorações exteriores ao próprio Acórdão da Relação: os erros processuais/adjetivos em causa têm que estar espelhados no próprio texto/conteúdo do Acórdão da Relação recorrido.

Todos os erros que um Tribunal comete num processo serão “erros processuais” – foram cometidos no processo – mas não é esta muito ampla e inoperacional aceção que se tem em vista quando se alude aos erros processais/adjetivos da Relação a propósito do “não uso” dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662.º/2 do CPC: aqui, está apenas em causa a Relação não ter ordenado a renovação da prova, a produção de novos meios de prova e a anulação da decisão de facto nas situações ali previstas e cuja verificação (das situações ali previstas) é reconhecida pela própria Relação.

O que não é o caso da presente revista, em que os erros imputados ao Acórdão recorrido decorrem de argumentos/raciocínios exteriores ao texto do Acórdão ou que não são sequer verdadeiros erros adjetivos/processuais (hoc sensu).

O que o recorrente invoca, repetidamente, é que o Tribunal da Relação apreciou incorretamente a prova, não teve dúvidas onde devia ter tido e deu crédito a quem não o merecia, mas nada disto configura erros processuais/adjetivos que o Supremo possa escrutinar.

Identicamente, quanto à matéria de facto que o recorrente pretende ver aditada, proveniente do articulado de oposição, que o Acórdão recorrido – bem ou mal, não preenche um erro processual do art. 662.º/2/c) do CPC – reputa em “muitos pontos conclusiva, para além de não ter relevo para a decisão da causa”; isto porque – consta do Acórdão recorrido – “respeita, praticamente na totalidade, à atuação de BB, enquanto gerente de facto da sociedade insolvente, matéria que é alheia ao objeto do presente incidente, atendendo a que este não se encontra aqui a ser julgado, pois em nenhum dos pareceres apresentados – pela credora ABEC, pelo Sr. Administrador da Insolvência, pelo Min. Público – foi proposto que este fosse afetado pela qualificação da insolvência como culposa. Para além de que a eventual atuação de BB, como gerente “de facto” da insolvente, nunca seria fundamento para desresponsabilizar o ora requerido, enquanto seu inequívoco gerente de direito (…)”.

Numa situação de “Dupla Conforme”, como é o caso, os erros jurídico-substantivos do Acórdão recorrido são atacados por via da revista excecional, invocando-se designadamente que o entendimento jurídico-substantivo do Acórdão recorrido está em contradição com o que já foi considerado/decidido em anterior Acórdão: a questão dos autos não é diferente daquele que existiria se o Acórdão recorrido aditasse (desse como provada) a matéria em causa, proveniente do articulado de oposição e a seguir, passando à aplicação do direito aos factos, não lhe conferisse o relevo jurídico pretendido pelo recorrente.

Sempre que um tribunal julga “de facto”, sempre que alinha os factos que considera provados e não provados, acaba invariavelmente por desprezar todos os factos (por os considerar juridicamente irrelevantes) que não incluiu em tais alinhamentos e, caso tal “desprezo” esteja errado, tal erro decorre da violação de normas substantivas, ou seja – é o que se pretende evidenciar – o Supremo, para dizer que a Relação devia ter anulado a decisão da 1.ª Instância e mandado ampliar a matéria de facto, teria necessariamente que proceder à apreciação substantiva dos factos em questão, quando o que é suscetível de admitir revista (por “não uso” dos poderes deveres por parte da Relação) são meras violações adjetivas/processuais do Acórdão recorrido (e não verdadeiras violações de direito substantivo por parte da Relação).

E é também por isto que, como se refere no despacho reclamado, a errada aplicação de regras de direito material – não se haver respeitado a força probatória plena de documentos autênticos e/ou a força probatória de confissão judicial – não configura um “não uso” dos poderes/deveres do art. 662.º do CPC: a ter o recorrente razão, do que se trata aqui é de uma errada aplicação de regras de direito material, isto é, havendo (como é o caso) dupla conforme, para poder haver revista de tal errada aplicação das regras de direito material, o caminho é a revista excecional (é invocar que há contradição jurisprudencial com um acórdão que reconheceu as forças probatórias que aqui e agora não foram respeitadas) e não sustentar-se que, em tal hipótese, ocorre uma errada aplicação da lei do processo (o que estará erradamente aplicado é a lei substantiva, são as regras de direito material e, se isto “valesse” como erro processual respeitante ao uso dos poderes do art. 662.º do CPC, então quase tudo o que não está certo no Ac. da Relação fugiria à inadmissibilidade da revista estabelecida pela regra da “Dupla Conforme”).

É fácil em todo e qualquer processo a parte vencida vir dizer que não se respeitou a força probatória plena de documentos autênticos e/ou a força probatória de confissão judicial e assim, se isto preenchesse o “não uso” ou o “mau uso” dos poderes/deveres da Relação, contornar o “obstáculo” da Dupla Conforme e “distrair” o Supremo da sua verdadeira competência.

Observa criticamente o requerente/recorrente que “por forma a permitir ao recorrente a demonstração do “errado uso dos poderes concedidos à Relação”, enquanto «mau uso» ou «não uso» dos poderes/deveres previsto nos artigos 640.º e 662.º do CPC, é imprescindível demonstrar que a Relação, com referência à concreta matéria factual decidenda, não agiu nos termos da Lei processual e que porventura terá errado na apreciação da prova produzida, sendo necessário, pois, preencher os conceitos subjetivos constantes do artigo 662.º, n.º 2, do CPC (tais como “dúvidas sérias”, “dúvida fundada” ou “indispensável”)”.

De outra forma – pergunta o recorrente – “como poderia o Supremo apreciar o cumprimento dos poderes/deveres concedidos à Relação por via do disposto nos artigos 640.º e 662.º do CPC sem indagar, ainda que indiciariamente, acerca da matéria de facto e dos meios de prova examinados pela Relação?”

Respondendo, defende que “seria, pois, impossível ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar o (não) uso dos poderes-deveres previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC sem lhe ser possível aferir, à luz da matéria de facto e da prova produzida, questões como as “dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” (662.º, n.º 2, alínea a)), a “dúvida fundada sobre a prova realizada” (662.º, n.º 2, alínea b)) ou mesmo aferir se constam “do processo todos os elementos que […] permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta” (662.º, n.º 2, alínea c)).

E, continuando, sustenta que “à luz da interpretação normativa levada a cabo pela decisão singular proferida, sempre seria impossível, em termos práticos, o Supremo Tribunal de Justiça verdadeiramente sindicar o «não uso» (ou o «mau uso») dos poderes-deveres titulados pela Relação, o que consubstancia uma inaceitável e inexigível constrição ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e a um processo justo e equitativo titulado pelo Recorrente.” E que “tal interpretação normativa representa igualmente uma restrição desproporcional do direito ao recurso“ e que é por isso “inconstitucional, por violação do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e a um processo justo e equitativo, bem como do direito ao recurso de decisões que afetam direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, enquanto direito constitucionalmente incluído no princípio do Estado de Direito Democrático, direitos esses titulados pelo Recorrente e subjacentes, respetivamente, aos artigos 2.º, 12.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.”

É, em parte, como o recorrente diz e é exatamente por isso, como se procurou explicar, que a sua revista não é admissível.

Importa não perder de vista o sentido das normas que convergem e são para o caso convocáveis:

Definitividade, como regra, do julgamento da matéria de facto pela Relação;

Competência do Supremo dirigida à aplicação do direito aos factos fixados pelas instâncias;

Fugir ao controlo do e pelo Supremo uma 2.ª reapreciação das provas sujeitas à livre apreciação do julgador;

Não haver revista em casos de “dupla conforme” (art. 671.º/3 do CPC); e

Ser inadmissível revista, segundo o art. 662.º/4 do CPC, das decisões da Relação previstas nos n.º 1 e 2 do art. 662.º CPC (662.º/4).

Com o que, tudo ponderado e articulado, não pode surpreender que sejam necessariamente diminutas, em termos práticos, as situações que a interpretação restritiva da inadmissibilidade de revista constante do art. 662.º/4 do CPC (passando a admitir a revista em certos casos) há de consentir.

Interpretação restritiva essa (admissibilidade da revista, aparentemente ao arrepio da letra da lei) que, em caso algum, pode colocar o Supremo a reapreciar a matéria de facto, pelo que é o próprio raciocínio do recorrente – de considerar imprescindível que o Supremo proceda, ele próprio, no caso, a alguma apreciação da prova produzida – que encerra a resposta negativa à admissibilidade da sua revista.

Não havendo neste entendimento/interpretação qualquer inconstitucionalidade, designadamente, por violação, como se invoca, dos artigos 2.º, 12.º/1 e 20.º/1 e 4 da CRP.

Efetivamente, o atual regime da revista estabelece a ideia de que o triplo grau de jurisdição, em matéria cível, não constitui uma garantia generalizada: “Ainda que ao legislador ordinário esteja vedada a possibilidade de eliminar, em absoluto, a admissibilidade do recurso de revista para o Supremo (possibilidade que implicitamente decorre da previsão constitucional de uma hierarquia de tribunais judiciais, tendo como vértice o Supremo Tribunal de Justiça), ou de elevar o valor da alçada da Relação a um nível irrazoável e desproporcionado que tornasse o recurso de revista praticamente inatingível para a grande maioria de casos, o Trib. Const. vem considerando que não existem impedimentos absolutos à limitação ou condicionamento de acesso ao Supremo”12.

E, insiste-se, não se está sequer a fazer uma interpretação limitadora duma norma que permite o acesso ao Supremo, mas sim, ao invés, a fazer uma interpretação duma norma que, ela própria, não permite o acesso ao Supremo, mais exatamente, a fazer uma interpretação no sentido de, em certos casos, limitados (quando do próprio texto do Acórdão da Relação transparecer uma incorreta aplicação do art. 662.º/2 do CPC), a revista ser admissível, desde que, para tal, não sejam desrespeitadas/ultrapassadas as competências do Supremo na fixação dos factos.

E, na mesma linha de raciocínio, são também necessariamente limitadas as situações em que a invocação do uso manifestamente ilógico das presunções judiciais dá lugar à admissibilidade da revista.

Repare-se no que está em causa:

Foi dado como provado no facto X que “o preço acordado no acordo de trespasse de 1.500.000,00€ não foi entregue à insolvente”; e o recorrente entende que “não há qualquer lógica no percurso lógico-dedutivo” efetuado para dar tal facto como provado.

Observe-se pois o processo lógico-dedutivo que o recorrente reputa como sem “qualquer lógica”, ou seja, o que a tal propósito consta do Acórdão recorrido:

“ (…)

A 1ª Instância quanto a este ponto factual fundamentou-o pela seguinte forma: A alínea X) da matéria de facto assente resulta das declarações do senhor Administrador da Insolvência em audiência de julgamento, que, de forma clara e sem hesitar, afirmou não ter encontrado evidências da entrada de tal montante na contabilidade da insolvente, posição corroborada pelas circunstâncias e pelas regras de experiência comum, pois tal quantia não foi apreendida para a massa insolvente, tratando-se de um montante muito elevado, difícil de passar despercebido.

Ouviram-se as declarações prestadas pelo Sr. Administrador da Insolvência. Disse este que o informaram de que houve um trespasse e venda de ativo, mas do que observou dos balancetes analíticos não viu lá lançamentos de vendas, nem do trespasse. (…)

Ora, as declarações produzidas pelo Sr. Administrador da Insolvência confirmam a correção do facto provado X, uma vez que a entrada do preço acordado no trespasse não consta da contabilidade da sociedade insolvente, o que significa que não lhe foi entregue.

E tal facto provado X, a nosso ver, não entra em contradição com o facto provado J, onde se deu como assente que da quantia de 1.500.000,00€ acordada para o trespasse, 150.000,00€ já tinham sido pagos aquando da celebração do contrato-promessa de trespasse, 1.200.000,00€ foram pagos na data da escritura e o remanescente de 150.000,00€ seria pago até ao dia 30.4.2017.

Com efeito, a circunstância de todas estas quantias terem sido referenciadas como pagas não implica que as mesmas tenham sido efetivamente entregues à sociedade insolvente.

Como tal, apoiando-nos nas declarações do Sr. Administrador da Insolvência, que não descortinou a entrada de tão significativo montante nas contas da insolvente, o que não pode passar despercebido, e também nas regras da experiência comum, entendemos ser de manter como provado o facto X. (…)”

Ou seja – é o que se pretende significar – o que se invoca não tem sequer viabilidade como invocação de uso manifestamente ilógico de presunções judiciais – o AI não encontrou “vestígios” da entrada de € 1.500.000,00 na contabilidade da insolvente e, segundo o recorrente, o tribunal, ao dar como provado que a verba não foi entregue à insolvente, incorreu num processo lógico-dedutivo sem qualquer lógica – e, por conseguinte, não pode ser fundamento de admissibilidade de revista.

É fácil, repetindo o que acima se deixou escrito, em todo e qualquer processo a parte vencida vir dizer que a Relação incorreu num processo lógico dedutivo sem lógica na fixação dum determinado facto e, assim, se bastasse invocar, sem qualquer controlo sobre a viabilidade do que se invoca como configurando um uso manifestamente ilógico de presunções, teríamos mais uma vez um modo fácil de contornar o “obstáculo” da Dupla Conforme e de “distrair” (em face da inviabilidade do invocado) o Supremo da sua verdadeira competência.

Acresce – e não é nada despiciendo – que, no caso, o percurso lógico-dedutivo foi exatamente o mesmo na 1.ª Instância e na Relação, ou seja, não se pode dizer que se está perante uma questão que emergiu ex novo do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação (o mesmo é dizer, duma questão que não tenha sido objeto de apreciação na 1.ª Instância), pelo que não se pode dizer que a questão extravasa e não está sujeita à regra da inadmissibilidade da revista em caso de “Dupla Conforme”.

Em conclusão, como se começou por referir no despacho reclamado, há que delimitar devidamente o que, quando se invoca que a Relação fez “mau uso dos poderes que lhe são concedidos", está e/ou pode estar validamente sob revista; assim como há que efetuar uma apreciação sobre a viabilidade da imputação do uso de presunções manifestamente ilógicas e não admitir, como revista, as imputações manifestamente inviáveis.


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III – Decisão

Pelo exposto, ao abrigo do art. 652.º/1/b) do CPC (ex vi 679.º do CPC), julga-se findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 02/11/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Maria Olinda Garcia

Luís Espírito Santo

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1. Pela Relatora inicial, neste STJ, dos presentes autos.↩︎

2. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 415.↩︎

3. Após a 1.ª reapreciação efetuada, como foi o caso, na Relação.↩︎

4. Sem prejuízo da exceção, referida, respeitante ao uso com evidente ilogicidade de presunções judiciais.↩︎

5. Preceito que foi introduzido pelo Decreto-lei nº 375-A/99, de 20 de Setembro, com a inclusão dum n.º 6 no então art. 712.º do CPC↩︎

6. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a página 363.↩︎

7. Como no Acórdão do STJ de 17/10/2023, proferido no Processo nº 1088/12.7TYLSB-C.L1.S1, disponível in ITIJ.↩︎

8. Falamos só em “não uso”, por só este estar em causa na presente revista.↩︎

9. Prova, poderes da Relação e convicção, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, pág. 34.↩︎

10. E se, por ex., a Relação diz que não se ouve também não será o Supremo que irá escrutinar se se ouve ou não.↩︎

11. Como aliás sucede com a situação já estabilizada na jurisprudência do Supremo a propósito da rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto pela Relação (por motivos ligados à falta de identificação dos pontos de facto impugnados, à omissão de indicação dos meios de prova ou à falta de enunciação da resposta alternativa), em que o Supremo se limita a escrutinar se o apelante não cumpriu mesmo, como decidiu a Relação, os ónus do art. 640.º do CPC.↩︎

12. Abrantes Geraldes, local citado, pág. 395.↩︎