Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
786/09.7TAPBL.C4-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Querendo a arguida recorrer de acórdão com vista a fixar jurisprudência quanto a saber se a integração de factos novos não constantes da pronúncia na matéria de facto provada, ainda que sejam irrelevantes para a decisão de mérito a tomar, constitui ou não uma violação do disposto no art. 359.º, n.º 1, do CPP, apenas o poderia fazer apresentando como decisão fundamento uma decisão colegial, ou seja, um acórdão; tendo apresentado com acórdão fundamento uma decisão (sumária) singular, o recurso deve ser rejeitado por não cumprimento dos pressupostos para interposição de um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 786/09.7RAPBL.C4-A.S1

Recurso extraordinário de

fixação de jurisprudência

I Relatório

1. AA, arguida neste processo e identificada nos autos, vem, ao abrigo do disposto nos arts. 437.º, n.º 2, e 438.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação ….., de 10 de julho de 2019, que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida, condenando-a pela prática de um crime continuado de falsificação de documentos, nos termos dos arts. 256.º, n.º 1, als. b), c) e d), e n.º 3, e 30.º, n.º 2, todos do Código Penal (CP), na pena de prisão de 3 (três) anos e 6 (seis) meses.

A arguida interpôs ainda requerimento de arguição de nulidade deste acórdão. O Tribunal da Relação …, por acórdão de 04.12.2019, julgou “improcedente o requerimento em apreciação”. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão sumária n.º 191/…., de 10.03.2020, não conheceu do recurso interposto. Esta última decisão foi notificada ao Ministério Público, por termo, a 11.03.2020, e à arguida por carta registada, expedida a 11.03.2020 (cf. certidão junta aos autos).

2. Foi apresentado como acórdão fundamento uma decisão sumária do Tribunal da Relação …., prolatada nos mesmos autos a 13.09.2017.

Esta decisão revogou o despacho que, após oposição da arguida à continuação do julgamento, nos termos do art. 359.º, do Código de Processo Penal (CPP), determinou a remessa integral dos autos ao Ministério Público. Revogando-o, a decisão sumária determinou que o despacho fosse “substituído por outro que determine a realização do julgamento pelos factos descritos na pronúncia, proferindo-se, a final, decisão de mérito sobre o objecto do processo assim delimitado, tudo em conformidade com as exigências legais”.

3. A arguida interpôs o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, tendo terminado com as seguintes conclusões:

«I. A arguida vem interpôr recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão da Relação … proferido no processo n.º 786/09…… e transitado em julgado a 12.07.2020, para o Supremo Tribunal de Justiça, não sendo admissível recurso ordinário.

II. O referido Acórdão encontra-se em contradição com o que foi decidido no Acórdão da mesma Relação (acórdão fundamento), proferido a 13.09.2017, no mesmo processo (proc. n.º 786/09….), transitado em julgado a 11.12.2017;

III. Em ambos os Acórdãos a questão que se coloca prende-se com o cumprimento do artigo 359º do C.P.P, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, tendo os acórdãos sido proferidos no domínio da mesma legislação.

IV. No Acórdão fundamento, o Tribunal da Relação … decidiu que, nas situações em que existe uma alteração substancial dos factos, com factos novos não autonomizáveis e em que não há acordo dos intervenientes para a continuação do julgamento pelos novos factos, se impõe ao Tribunal a prolação de decisão de mérito vinculada aos factos descritos na pronúncia e desconsiderando os novos factos indiciados na fase de julgamento, ou seja, que deve o Tribunal proferir a final uma decisão de mérito sendo o objeto do processo delimitado pelos factos constantes da acusação ou da pronúncia, considerando assim cumprido o disposto no artigo 359.º do C.P.P.

V) No Acórdão de que se recorre, tratando-se da mesmíssima situação de facto, já que até é o mesmo processo, o Tribunal de 1.ª Instância deu como provados e conheceu dos factos que constituíam alteração substancial dos factos e o Tribunal da Relação entendeu ter sido cumprido o disposto no artigo 359.º do C.P.P..

VI) Desta foram, nos referidos acórdãos são dadas soluções opostas para a mesma questão.

VII) No acórdão fundamento o Tribunal entende, expressamente, que o julgamento só pode ser feito pelos factos descritos na pronúncia, ficando a decisão de mérito limitada por esses factos, no entanto, no acórdão de que se recorre, já é entendido que a decisão de mérito a proferir pelo Tribunal de 1.ª Instância pode comportar factos diferentes dos que constavam da pronúncia, omitindo deliberadamente que os factos dados como provados são os factos que constituem a alteração substancial dos factos.

VIII) O Acórdão fundamento afigura-se ser aquele que está de acordo com o disposto no 359.º C.P.P., mostrando-se um outro entendimento violador Princípios da Legalidade e da Vinculação Temática, corolário do Princípio do Acusatório, consagrado na lei fundamental no art.32.º/5 da CRP.

IX) Também o STJ, no Acórdão de 5.3.2008, proferido no processo 3259/07, do Relator Armindo Monteiro, pronunciou-se quanto esta questão, afirmando que “A lei nova ordena, pois, o prosseguimento dos autos com os factos anteriores, ignorando os factos novos se eles não forem autonomizáveis dos da acusação ou da pronúncia.”, ou seja, no sentido acolhido no Acórdão fundamento.

X) A Recorrente entende que a questão do conflito de jurisprudência deverá ser decidida de acordo com o decidido no Acórdão fundamento, fixando-se a jurisprudência no sentido de que, existindo alteração substancial dos factos, com factos novos não autonomizáveis, não havendo acordo dos intervenientes para a continuação do julgamento pelos novos factos, o Tribunal só pode prosseguir o julgamento pelos factos anteriores, proferindo acórdão que julgue apenas os factos que estavam descritos na acusação ou na pronúncia, devendo ignorar os novos factos, dando assim cumprimento ao disposto no artigo 359.º do CPP.

XI) O Acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro, que tal como foi decidido no Acórdão Fundamento, reconheça que o Tribunal de 1.ª Instância não cumpriu o disposto no artigo 359.º do C.P.P., por não ter limitado a decisão de mérito aos factos constantes da pronúncia.

PEDIDO:

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele ser revogado o Acórdão recorrido, tudo com as legais consequências.»

4.1. Notificada a assistente J. Cordeiro Júnior, LDA, do recurso interposto, esta respondeu concluindo que:

«1ª. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto, pela Recorrente, assenta no aparente conflito entre a Decisão Sumária da Segunda Instância proferida, em 13.09.2017 e, o Acórdão transitado, em 12.07.2020 e, que conheceu do mérito dos autos.

2ª. Atente-se que, a referida Decisão Sumária relegou, o conhecimento do mérito dos autos para momento ulterior e, remeteu-os, à Primeira Instância.

3ª. Ou seja, não se, tratam de Acórdãos proferidos sobre a mesma questão de direito e, que estejam em oposição, entre si, como pretende aparentar a Recorrente.

4ª. A decisão fundamento invocada, pela Recorrente, além de, ser tomado no próprio processo e, não de outro processo como resulta, do preceituado, no artigo 437º nº l do Código de Processo Penal; não se, trata de uma decisão de mérito final.

5ª. A decisão de mérito tomada pelo Coletivo de Juízes da Segunda Instância foi, apenas, tomada, no Acórdão recorrido e, transitado em 12.07.2020.

6ª. Pelo que, não se, verificam por tais, motivos os requisitos para a admissibilidade do recurso interposto, pela Recorrente.

7ª. À contrário, teríamos não um recurso extraordinário, mas um novo grau de jurisdição do mesmo processo.

8ª. O que, salvo melhor entendimento não é admissível, atento, as disposições legais previstas nos artigos 399º; 400º nº l alínea e) e 432º nº l alínea b) do Código de Processo Penal onde se, prevê, apenas, um segundo grau de jurisdição;

Temos em que,

Deve, o recurso de revista extraordinário para fixação de jurisprudência, interposto, pela Recorrente, ser rejeitado, por falta de verificação dos pressupostos da sua admissibilidade, previstos no artigo 437º nº 2 do Código de Processo Penal; mantendo-se, o Acórdão proferido e, transitado, em 12.07.2020 pelo Tribunal da Relação ….., nos seus precisos termos.»

4.2. Notificado o Ministério Público, junto do Tribunal da Relação ….., do recurso interposto, apresentou resposta considerando, em súmula apertada, que «por um lado, não se verificarem soluções diferentes nos apontados acórdãos sobre o eventual recurso ao instituto legal do art.º 359º do CPP (cfr. designadamente as conclusões IV e V) e, por outro, não ser admissível o presente recurso uma vez que não são colocadas em confronto decisões opostas sobre a mesma questão de direito em acórdãos diferentes em processos distintos.»

5.  Distribuído o processo como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 439.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (de ora em diante, CPP), o processo foi com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no art. 440.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da “rejeição” do recurso, de harmonia com o disposto nos arts. 440.º, n.ºs e 3 4, e 441.º, n.º 1, ambos do CPP (Código de Processo Penal), porquanto:

 «nos termos do art.º s 437º, n º s 2 e 4, e 438º, n º 1, do CPP, a prolação de acórdão que esteja em oposição com outro e o respectivo trânsito em julgado constitui um dos necessários pressupostos formais. Como resulta do art.º 97º, n º 2, do CPP, os actos decisórios só tomam a forma de acórdãos quando forem proferidos por um tribunal colegial. Contudo, a recorrente vem invocar como "acórdão" fundamento, como vimos supra, decisão sumária do Tribunal da Relação …..-… Secção, proferida em 13.09.2017, relatada pela Desembargadora … pelo que desde logo falece o apontado requisito de admissibilidade do presente recurso. (Cf. na jurisprudência do STJ, por todos o acórdão tirado em 11.03.2020, no processo n ° 3672 / 17.3T9LSB-A.L1-A.S1, 3a secção, relatado pelo Conselheiro Raul Borges, de que transcrevemos o seguinte excerto do ponto XV, do respectivo sumário:

«XV- Está vedado o uso desde recurso extraordinário [fixação de jurisprudência] relativamente a: Decisões singulares […..]

Decisões sumárias- Acórdão de 29.10.2015, proc. n ° 4 / 07.2GCOVR-A.S1, 5a Secção- Impõe-se rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo arguido (art. 441.°, n ° 1, por referência ao art.° 437.°, n ° 1, ambos do CPP), por via da sua inadmissibilidade, consubstanciada no não preenchimento do pressuposto atinente à necessidade de as decisões, alegadamente em oposição, tratarem-se de acórdãos (na acepção decorrente do disposto no art.0 97°, n ° 2, daquele diploma) logo de decisões colegiais, no caso do STJ, e não de decisões singulares, como sucede com a decisão recorrida que, constitui uma decisão sumária proferida pelo relator nos termos do art.0 417°, n ° 6, do CPP.»

6.1. Notificado deste parecer nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, ex vi art. 448.º, do CPP, respondeu a arguida alegando que:

«1 – É para a Recorrente manifesto que existe uma clara oposição nas decisões proferidas pelo Tribunal da Relação …., quanto à mesma questão;

2 – Independentemente de ter sido proferida uma decisão sumária, esta não pode deixar de ser considerada um “Acórdão Fundamento”, proferido pelo Tribunal da Relação …, já que o foi ao abrigo do disposto no artigo 417.º n.º 6.º alínea d) do CPP, porque a questão a decidir já havia sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado;

3 – Tal decisão não poderá deixar de ter, para efeitos de recurso extraordinário, o mesmo valor de um Acórdão, pois se assim não for, estamos em presença de uma situação de injustificada diminuição dos direitos de defesa, nomeadamente de recurso, que o Direito coloca à disposição dos cidadãos;

4 – No caso, é manifesto que o Acórdão de que se recorre se opõe e viola anterior decisão, proferida pelo mesmo Tribunal da Relação e já anteriormente transitada em julgado;

5 – A ora Recorrente não pode, por aplicação do disposto no artigo 400.º n.º 1, al. f) do CPP, interpôr recurso ordinário do Acórdão, embora este se mostre proferido em violação de decisão anterior da mesma Relação, já transitada em julgado, que ordenou que o Tribunal proferisse a final uma decisão de mérito sendo o objeto do processo delimitado pelos factos constantes da acusação ou da pronúncia, considerando ser assim dado cumprimento ao disposto no artigo 359.º do CPP e,

6 – Admitindo que também está impedida, por via de recurso extraordinário de requerer junto do Supremo Tribunal de Justiça que seja fixada jurisprudência para que seja, a final, fixado como deverá ser interpretado e aplicado o disposto no artigo 359.º do CPP, isto é, se nas condições concretas do caso em apreço os novos factos, já considerados alteração substancial dos factos, podem ou não ser considerados na decisão a proferir ou se devem ser ignorados (como ordenava a 1.ª decisão), então o cidadão não tem qualquer meio de reagir contra a última decisão, embora esteja em completa contradição com decisão anterior transitada me julgado, havendo uma absoluta demissão dos Tribunais das suas funções de aplicação da lei e de realização da justiça;

7 – A ser assim, não importa o que esteja legalmente determinado, nem o que tenha sido judicialmente decidido, com trânsito em julgado, pois os Tribunais são livres de decidir como bem entenderem, podendo inexplicavelmente fazê-lo em contradição com que anteriormente ordenaram, de forma tão grosseira que até os factos anteriormente considerados como constitutivos de uma alteração substancial dos factos, podem numa outra decisão no mesmo processo, sem qualquer justificação, passar a ser apenas “factos algo diferentes dos que constavam da pronúncia”, como acontece em concreto no Acórdão de que se recorre;

8 – Com o devido respeito, que é muito, pelo Doutamente mencionado no Parecer, bem como na Jurisprudência nele indicada, sempre se dirá que, contrariamente ao que seria suposto, não se alcança o que possa justificar que o artigo 437.º do CPP, quando se refere a “acórdãos”, esteja a restringir a hipótese de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência à contradição de acórdãos, enquanto decisões colegiais;

9 – Não se afigurando que uma interpretação meramente literal da lei faça qualquer sentido no nosso sistema judiciário, porque o valor, validade e efeitos jurídicos das decisões singulares e sumarias que são proferidas pelos Tribunais Superiores, são os mesmíssimos que resultam dos Acórdãos, apenas mudando o nome que se atribui à decisão conforme o número de julgadores que as proferem, pelo que se afigura que o legislador penal, no artigo 437.º do CPP, ao mencionar “acórdãos” pretendeu abranger e fazer referência a todas as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores que decidam questões de direito e não, como parece resultar do parecer, fazer distinção entre as decisões singulares e as coletivas que sejam proferidas pelos Tribunais Superiores.»

6.2. Notificada a assistente, do parecer referido, veio apresentar resposta aderindo aos fundamentos apresentados naquele. Salienta ainda que o “acórdão” recorrido, sendo uma decisão sumária que apenas reenviou ao autos para a 1.ª instância por forma a ser reaberta a audiência, e prolatada sentença com decisão de mérito, “significa que, a Segunda Instância naquela decisão processual não tomou decisão definitiva sobre as questões de direito suscitadas no recurso, interposto, relegando, o seu conhecimento para momento ulterior”; considera ainda que o acórdão, transitado em 12.07.2020, “na sequência da Primeira Instância ter aditado novos factos à matéria de facto dada, conheceu, definitivamente, do mérito dos presentes autos”.

7. No exame preliminar a que se refere o art. 440.º, n.º 1, do CPP, considerou‑se que o recurso fora tempestivamente interposto por quem tinha legitimidade, embora se tenha entendido não estarem preenchidos os requisitos exigidos para que o recurso possa prosseguir para fixação de jurisprudência.

8. Colhidos os “vistos” e vindo o processo a conferência, nos termos do art. 440.º, n.º 4 do CPP, cabe agora decidir.

II Fundamentação

1. Nos termos do art. 437.º do CPP, são pressupostos da interposição do recurso para fixação de jurisprudência que:

i) os dois acórdãos em conflito do Supremo Tribunal de Justiça ou da Relação sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, “quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida” (n.º 3 do preceito citado);

ii) os dois acórdãos em conflito do Supremo Tribunal de Justiça ou da Relação se refiram à mesma questão de direito;

iii) haja entre os dois acórdãos em conflito “soluções opostas” (n.º 1 do art. 437.º do CP).

Para que a interposição de recurso seja aceite é ainda necessário que:

iv) o recorrente identifique “o acórdão [fundamento] com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição”, bem como, no caso de aquele estar publicado, o lugar da publicação (art. 438.º, n.º 1 do CPP);

v) haja trânsito em julgado dos dois acórdãos em conflito (art. 437.º, n.º 1 e 4 do CPP) e

vi) a interposição do recurso seja realizada no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão [recorrido] proferido em último lugar (arts. 438.º, n.º 1 do CPP). 

vii) haja justificação da oposição de julgados que origina o conflito de jurisprudência (art. 438.º, n.º 2 in fine do CPP).

A estes pressupostos, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem acrescentado outros dois:

viii) identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito (dado que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas) e

ix) necessidade de a questão decidida em termos contraditórios ser objeto de decisão expressa (ou seja, as soluções em oposição têm que ser expressamente proferidas em cada uma das decisões).

2. No presente caso, o acórdão recorrido foi proferido a 10.07.2019 [e nesta foi decidido revogar a decisão anterior que havia condenado a arguida pela prática de um crime de falsificação de documentos, nos termos do art. 256.º, n.º 1, als. b), c) e d) e n.º 3, do Código Penal (CP), na pena de prisão de 4 anos e 9 meses, e determinou-se a aplicação de uma pena de prisão de 3 anos e 6 meses pela prática de um crime continuado de falsificação de documentos, nos termos dos arts. 256.º, n.º 1, als. b), c) e d) e n.º 3, e 30.º, n.º 2, todos do CP]. Posteriormente, foi arguida a nulidade deste acórdão, tendo sido julgada improcedente por acórdão do Tribunal da Relação ….., de 04.12.2019. Foi, então, interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão sumária n.º 191/….., de 10.03.2020, não conheceu do respetivo objeto. Segundo a certidão, a decisão sumária foi notificada ao Ministério Público, por termo nos autos a 11.03.2020, e aos restantes sujeitos processuais por via postal expedida a 11.03.2020.

Sabendo que houve uma suspensão dos prazos entre 09.03.2020 e 03.06.2020 (por força do disposto no art. 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, nos arts. 5.º e 6.º, da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04 e arts. 8.º e 10.º, da Lei n.º 16/2020, de 29.05), o recurso interposto a 13.07.2020 foi interposto em tempo, conforme o disposto no art. 438.º, n.º 1 do CPP.

Considera-se, pois, tempestivo o recurso interposto.

3. Entende a recorrente existir oposição de julgados entre o acórdão recorrido e a decisão sumária (decisão fundamento), porquanto naquela decisão sumária se determinou que fosse prolatada nova decisão quanto aos factos pelos quais a arguida tinha sido pronunciada, devendo proferir-se uma decisão de mérito sobre o objeto do processo assim delimitado, ao passo que no acórdão recorrido se acabou por considerar que, pese embora tenham sido integrados factos que não constavam da pronúncia, tal não constitui uma alteração substancial dos factos porque estes novos factos não foram relevantes para a decisão.

Apenas através desta simples enunciação das decisões em confronto se percebe que as decisões, apesar de terem por base o disposto no art. 359.º, do CPP, e o regime subjacente às situações de alteração substancial dos factos, não constituem duas decisões que tenham por objeto uma mesma questão de direito.

 Na verdade, enquanto na decisão sumária (decisão fundamento) o objeto da decisão era o de saber se, havendo novos factos (relativamente aos pronunciados), se podia ou não abrir novo inquérito sobre todos os factos (os novos e os pronunciados), ou se deviam os autos prosseguir apenas pelos factos pronunciados, no acórdão recorrido, tendo em conta que na matéria de facto provada passaram a constar os novos factos e os anteriormente pronunciados, decidiu-se sobre a irrelevância daqueles novos factos para a decisão e a não violação o disposto no art. 359.º, do CPP. 

Ou seja, enquanto a decisão sumária (decisão fundamento) teve por base o disposto no art. 359.º, n.º 2, do CPP, onde se determina que havendo novos factos que constituam uma alteração substancial só poderá entender-se que existe uma denúncia pelos novos factos se estes forem autonomizáveis; e o Tribunal considerou que não sendo os factos autonomizáveis não havia lugar a nova denúncia e os autos teriam que prosseguir pelos factos pronunciados; no acórdão recorrido o entendimento de que não havia violação do disposto no art. 359.º refere‑se ao disposto no n.º 1, onde se determina que “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito da condenação”, (sublinhado nosso) e nesta linha afirmou que aqueles novos factos foram irrelevantes para a condenação (sem que caiba agora apreciar a interpretação seguida).

Mas, deve desde já salientar-se que nos termos do art. 437.º, do CPP, é admissível um recurso para fixação de jurisprudência “quando um tribunal da relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação (...) e desde que não seja admissível recurso ordinário” (n.º 1); e “como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado” (n.º 4, sublinhado nosso). Tendo em conta o disposto no art. 97.º, n.º 1, al. a), do CPP — “os actos decisórios dos juízes tomas a forma (...)  de sentença, quando conhecerem a final do objeto do processo” — e o disposto no n.º 2 do mesmo dispositivo —“Os actos decisórios previstos no número anterior tomam a forma de acórdãos quando forem proferidos por um tribunal colegial” — não podemos considerar que o legislador, na redação do disposto no art. 437.º, do CPP, quando se referiu a acórdãos se esqueceu do que tinha previamente esclarecido no art. 97.º. Admitindo, por absurdo, que naquela decisão sumária (porque se delimitou o objeto do processo ­ — como expressamente é referido no dispositivo: “concede-se provimento ao recurso, e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que de ser substituído por outro que determine a realização do julgamento pelos factos descritos na pronúncia, proferindo-se, a final, decisão de mérito sobre o objeto do processo assim delimitado”) estávamos perante uma sentença (embora se trate de uma decisão que não conheceu a final do objeto do processo, desde logo porque neste ainda nem sequer se tinha conhecido a final do objeto do processo), não podemos, no entanto, considerar que se tratou de uma acórdão, dado que não foi uma decisão colegial, mas uma decisão singular. Assim sendo, querendo a arguida recorrer do acórdão aqui recorrido, pretendendo fixar jurisprudência quanto a saber se a integração de factos novos não constantes da pronúncia na matéria de facto provada, ainda que sejam irrelevantes para a decisão de mérito a tomar, constitui ou não uma violação do disposto no art. 359.º, n.º 1, do CPPP, apenas o poderia fazer apresentando como decisão fundamento uma decisão colegial, ou seja, um acórdão.

Não cumprindo os pressupostos, o recurso deve ser rejeitado.

4. Porém, mesmo confrontando as decisões em discussão, não podemos considerar que exista oposição de julgados dado que não decidem a mesma questão de direito.

Vejamos.

Na decisão fundamento a questão a decidir foi delimitada nos seguintes termos:

«a questão a decidir é a de saber se, comunicada a alteração substancial dos factos descritos na pronúncia e não havendo acordo para a continuação do julgamento pelos factos novos, considerados não autonomizáveis, o tribunal a quo podia decidir no sentido de ordenar a remessa integral dos autos ao Ministério Público, em vez de proferir acórdão destinado a apreciar o mérito do processo, com o objecto definido pela pronúncia e desconsiderando aqueles factos novos.»

E porque já em decisão anterior a esta decisão sumária o Tribunal da Relação ….., em acórdão de 06.07.2016, tinha considerado que estávamos perante um caso de alteração substancial dos factos — assim se tornando evidente que esta decisão sumária já não decidiu se havia ou não alteração substancial dos factos, pois esta questão já tinha sido decidida em momento anterior, e aqui sim poderia existir (ou não) uma eventual oposição com o acórdão agora recorrido, todavia não foi este acórdão (de 06.07.2016) o apresentado como acórdão fundamento —, na decisão sumária apresentada como decisão fundamento apenas se deliberou sobre a instauração ou não de novo processo relativamente a estes novos factos autonomizáveis e o prosseguimento (ou não) do processo pelos factos pronunciados.

E assim foi considerado que:

«ao proferir o despacho a ordenar a remessa integral dos autos ao Ministério Público, perante a ausência da concordância exigida pelo citado artigo 359.º, n.º 3 do CPP e entendendo que os factos novos não são autonomizáveis, em vez de proferir acórdão que, respeitando os poderes de cognição delimitados pelo objecto do processo definido em sede acusatória e confirmado subsequentemente pela pronúncia tomada na fase de instrução, decidisse do mérito da causa, desconsiderando aqueles novos factos, o tribunal a quo violou os comandos do citado artigo 359.°, com referência aos artigos 372.° e 374,', todos do CPP, em função do que se impõe revogar a sobredita decisão e ordenar que a mesma seja substituída por outra que cumpra as apontadas exigências legais.(...)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

A lei nova ordena, pois, o prosseguimento dos autos com os factos anteriores, ignorando os factos novos se eles não forem autonomizáveis dos da acusação ou da pronúncia.

Assim, (...) dúvidas não restam que perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. resultante de factos novos que não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo, opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos o tribunal não pode abster-se de conhecer de mérito quanto àquele objecto e determinar a comunicação ao Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos, devendo antes prosseguir o julgamento e proferir acórdão que julgue os factos descritos na acusação ou na pronúncia e desconsidere os factos novos não autonomizáveis que, pelas razões já apontadas. não serão objecto de comunicação ao Ministério Público.»

Ou seja, o Tribunal considerou que devia ser prolatada decisão de mérito ignorando os novos factos, em consonância com o que o Tribunal veio a afirmar no acórdão recorrido onde entendeu que a irrelevância para a decisão dos novos factos, ainda que “comporte novos factos algo diferentes dos que constavam da pronúncia não constitui por só por si uma alteração substancial dos factos”.

Na verdade, perante a questão colocada no recurso, em que “a arguida volta a invocar o incumprimento do artigo 359.º bem como do anteriormente determinado por esta Relação”, o Tribunal considerou que:

«Ora, se atentarmos na evolução dos presentes autos verificamos que a alteração factual que determinou que a 1a instância tivesse considerado que a arguida cometera "em autoria material e concurso efectivo de 322 crimes de falsificação de documento, p. e p nas disposições conjugadas dos artes 256° n° 1 ais. b), c), e d) e n° 3 do Cod. Penal, na pena de nove meses de prisão por cada um deles" e em "cúmulo jurídico (...) na pena única de sete anos de prisão" não foi neste acórdão tida em consideração, pois que a arguida foi agora condenada "como autora de um crime de falsificação de documento, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs 256° n° 1 ais. b), c), e d) e n° 3 do Cod Penal", ou seja, foi devidamente cumprida a anterior decisão desta Relação, a qual tem o seguinte teor:

"Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, em audiência reaberta para o efeito, determine que o julgamento pelos factos descritos na pronúncia prossiga, proferindo-se decisão de mérito sobre o objecto do processo assim delimitado, tudo em conformidade com as exigências legais supra indicadas".

A circunstância de o novo acórdão comportar factos algo diferentes dos que constavam da pronúncia não constitui só por si uma alteração substancial dos factos que nela constavam pois que apenas isso provocariam se fossem relevantes para a decisão.

O que não aconteceu, pois que a condenação passou de "322 crimes de falsificação de documento, p. e p. nas disposições conjugadas dos art.s 256° n° 1 als. b), c), e d) e n° 3 do Cod. Penal" para "um crime de falsificação de documento, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs 256° n° 1 ais. b), c), e d) e n° 3 do Cod. Penal".

Nesta conformidade, improcede o recurso nesta parte.» (não se transcreveu a nota de rodapé).

Perante isto, verifica-se que o objeto das decisões em confronto é distinto.

Num caso, a questão era a de saber se perante uma alteração substancial dos factos (analisada e decidida em outra decisão agora não trazida a este recurso extraordinário) se remetem (ou não) integralmente os autos ao Ministério Público para início de outro processo, no outro caso a questão era a de saber se a transcrição de factos novos, não constantes da pronúncia, e não relevantes para a decisão, integra uma situação de alteração substancial dos factos em violação do disposto no art. 359.º, n.º 1, do CPP.

Ora, tendo em conta tudo o exposto, necessariamente temos que concluir não existir oposição de julgados, pelo que deve o recurso ser rejeitado.

III Conclusão

Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela arguida AA.

Custas pelo recorrente, com 3 UC da taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de fevereiro de 2021      


Os Juízes Conselheiros,



Helena Moniz - Relatora

António Clemente Lima