Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
351/16.2JAPRT.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ALICIAMENTO DE MENOR
PORNOGRAFIA DE MENORES
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA DOCUMENTAL / MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA / EXAMES / BUSCAS – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES AS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
-Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p. 825;
-Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª reimp., p. 291;
-Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, parte geral e especial, 2014, Almedina, p. 732;
-Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição, UCE, p. 680 e ss., 705;
-Pereira Madeira, Código de Processo Penal, Comentado, de H. Gaspar et al., 2016, 2.ª Edição, Almedina, p. 1361;
-Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1972 (reedição), p. 375;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, I, 4.ª Edição, p. 501.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 170.º, 171.º, N.ºS 1, 2 E 3, ALÍNEAS A) E B), 176.º, N.º 5, 176.º-A, N.ºS 1 E 2, 409.º, N.º 1 E 424.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º E 496.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-04-2017, ACÓRDÃO N.º 5/2017, ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, IN DR, I, DE 23-06-2017.
Sumário :
I  -   O STJ, enquanto tribunal de recurso, pode divergir da qualificação jurídica operada pela instância, desde que respeite o princípio da reformatio in pejus (art. 409.º, n.º 1, do CPP) e proceda à diligência imposta pelo art. 424.º, n.º 3, do CPP. In casu, estas condições não ocorrem, na medida em que a alteração da qualificação jurídica operada pelo colectivo da 1.ª instância, relativamente a alguns dos crimes objecto de condenação, se vai traduzir na respectiva absolvição, daí resultando, necessariamente, uma redução da pena única, sendo que, não há que dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do art. 424.º do CPP já que, de absolvição se tratando, em causa não está o direito de defesa ou de contraditório do arguido que importe acautelar.

II - O facto de o arguido ter dado “um abraço e um beijo na boca”, na menor, não se afigura com relevo, muito menos dela ressalta ter havido qualquer imposição, para dar conteúdo ao elemento típico do crime de importunação sexual de “constrangimento a contacto de natureza sexual”, conforme disposto no art. 170.º, para onde o art. 171.º, n.º 3, al. a), do CPP remete.

III -   As conversas com as expressões “foda” e “espetar até ao fundo”, nas circunstâncias do caso, carecem de autonomia e idoneidade para prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, ou, dito de outro modo, tal conversa não tem virtualidade para tentar satisfazer com a menor, ou através dela, interesses ou impulso de relevo, pelo que não se encontra também preenchido o crime de abuso sexual, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 3, al. b), do CPP.

IV -   O crime de aliciamento de menor, do art. 176.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPP é um crime subsidiário (subsidiariedade material ou implícita) da punição dos crimes de abuso sexual de criança seja na forma consumada, seja na forma tentada e, daí, que, no contexto da consumação dos crimes de abuso sexual do art. 171.º, n.ºs 1 e/ou 2, a incriminação perdeu autonomia.

V - A pornografia supõe uma representação grosseira da sexualidade, que faz das pessoas mero objecto despersonalizado para fins predominantemente sexuais, ou um desempenho de actividades sexuais explícitas, reais e simuladas, ou ainda a representação dos órgãos sexuais para fins predominantemente sexuais. A obtenção de fotografias ou imagens filmadas, em que se traduziu a troca de imagens do corpo desnudado da menor (e do arguido) através da aplicação facebook ou da videochamada em smartphone, porque se trata de mera exposição corporal, de cunho não pornográfico, atentatório do livre desenvolvimento da vida sexual da menor, não consubstancia a prática do crime de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176.º, n.º 5, do CPP.

VI - Na fixação do montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais importa atentar que o n.º 3 do art. 496.º do CC (ex vi art. 129.º do CP) remete a sua determinação para juízos de equidade, a partir do grau de culpa do responsável, da sua situação económica, bem como do lesado, das demais circunstâncias do caso e dos padrões geralmente adoptados na jurisprudência (art. 494.º, do CC).

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, ... nascido a ... de 1977, com os demais sinais dos autos, por acórdão do tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Viseu de 6 de Junho de 2017 foi, quanto à parte crime, condenado na pena única de 6 anos de prisão resultante de cúmulo jurídico efectuado a partir das seguintes penas parcelares:

a) – 2 anos de prisão, pela prática de cada um de dois crimes de abuso sexual de criança, do art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal (como os demais que, sem outra indicação, se referirão);

b) – 4 anos de prisão, pela prática de cada um de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, do art.º 171.º, n.ºs 1 e 2;

c) – 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de criança (importunação sexual de menor de 14 anos), do art.º 171.º, n.º 3, alín. a);

d) – 4 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de criança, do art.º 171.º, n.º 3, alín. b);

e) –  6 meses de prisão, pela prática de um crime de aliciamento de menor para fins sexuais, do art.º 176.º-A, n.ºs 1 e 2;

f) – 4 meses de prisão, pela prática de um crime de pornografia de menor, do art.º 176.º, n.º 5.

Quanto à parte cível foi condenado, a título de danos não patrimoniais, no pagamento à assistente BB da quantia de 20.000,00 € acrescida de juros de mora à taxa anual de 4% desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento.

Inconformado, o arguido recorreu directamente para este Supremo Tribunal de Justiça, em cuja motivação apresentou as seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem como objecto, e restringe-se, à medida concreta da pena aplicada em cúmulo jurídico e à medida das várias penas parcelares da qual aquela resultou, à suspensão da execução da pena, por considerar-se que, face ao caso concreto, deverá haver lugar à redução da pena aplicada em cúmulo jurídico e à medida das várias penas parcelares da qual aquela resultou e consequente aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão em prol da aplicação da pena de prisão efectiva aplicada ainda que sujeita a deveres ou regras de conduta. Tem ainda como objecto a condenação do arguido no pagamento à assistente BB na indemnização de € 20.000 (vinte mil euros), a qual, face ao caso concreto, se reputa como excessiva.

2. Ora, a pena única aplicada ao arguido em cúmulo jurídico mostra-se excessiva assim como as penas parcelares da qual aquela resultou, tendo em conta os parâmetros legais que deverão ser considerados aquando da aplicação concreta da sanção, nomeadamente os ínsitos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do CP.

3. É, pois, injusta, inadequada e excessiva a pena única que lhe foi fixada de 6 anos de prisão, a qual resultou das também injustas, inadequadas e excessivas penas parcelares no que respeita aos vários crimes em apreço.

4. E, reduzidas as penas parcelares e consequentemente a pena única aplicada para uma pena nunca superior a 5 anos, considera-se que a pena de prisão aplicada ao ora recorrente nunca deveria ser efectiva, mas sim suspensa na sua execução.

5. O ora recorrente é ainda relativamente jovem (40 anos), com 2 filhos e no seu Certificado de Registo Criminal não consta nenhuma condenação, o arguido encontra-se socialmente e profissionalmente integrado, encontrando-se a trabalhar desde há longa data, o que permite concluir pela possibilidade ainda efectiva e séria de reinserção e reintegração do ora recorrente. Conforme consta igualmente no douto acórdão recorrido e do relatório social, o ora recorrente está social e familiarmente integrado.

6. A condenação do arguido em prisão efectiva potenciará estímulos delinquentes que consabidamente se adquirem em meios prisionais, inviabilizando ainda mais a sua reinserção social e profissional.

7. Assim, reduzidas as penas parcelares e logo a pena única do arguido para uma pena nunca superior a 5 anos, considera-se que é possível fazer um juízo de prognose positivo quanto à reinserção social, podendo mesmo concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão já realizaram de forma adequada as finalidades da punição, pelo que as razões de prevenção especial se mostram atenuadas. No caso concreto e conforme supra aduzido, pode formular-se um juízo de prognose favorável quanto à reinserção do arguido, em liberdade.

8. Assim, nos termos dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do CP, devem as penas parcelares aplicadas ao arguido ser reduzidas e consequentemente a pena única aplicada ao arguido ser também ela reduzida para uma pena nunca superior a 5 anos e, nos termos artigo 50.º do CP, e sob pena de violação deste normativo legal, conclui-se que consequentemente deverão V.ª (s) Ex.ª (s) determinar a suspensão da execução da pena aplicada, por período igual à mesma.

9. Sendo certa a verificação dos vários requisitos legais previstos no artigo 483.º, n.º 1 do CC, é no entanto exagerado o montante de 20.000,00 euros em que o arguido foi condenado a pagar à Assistente, tendo em conta não só os mesmos pressupostos bem como as circunstâncias apuradas em sede de julgamento, devendo o montante indemnizatório ser reduzido.

10. Foram violadas, entre outras, as disposições legais supra referidas e ínsitas nos artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º e 483.º, n.º 1 do C.C., as quais, se tivessem sido correctamente aplicadas, levariam à redução quer das várias penas parcelares aplicadas e consequentemente à redução da pena única dali resultante aplicada ao arguido e a suspensão da sua execução, bem como à redução do montante indemnizatório que o arguido foi condenado a pagar à Assistente.

NESTES TERMOS, NOS DEMAIS DO DIREITO, E COMO VOSSAS EXCELÊNCIAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR PROVADO, E EM CONSEQUÊNCIA DEVE:

REFORMAR-SE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE PROCEDA À REDUÇÃO DAS PENAS PARCELARES APLICADAS BEM COMO DA CONSEQUENTE PENA ÚNICA APLICADA AO ORA RECORRENTE PARA UMA PENA NUNCA SUPERIOR A 5 ANOS, E, NOS TERMOS DO ARTIGO 50.º DO CP, SUSPENDA A SUA EXECUÇÃO POR IGUAL PERÍODO DE TEMPO AINDA QUE COM IMPOSIÇÃO DE REGRAS DE CONDUTA, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ARTIGO 52.º, N.º 2 DO CP, BEM COMO PROCEDA À REDUÇÃO DO MONTANTE INDEMNIZATÓRIO QUE O ARGUIDO FOI CONDENADO A PAGAR À ASSISTENTE”.

A assistente BB respondeu ao recurso no sentido da confirmação do decidido quer quanto à parte crime, quer quanto à parte cível.

Também o M.º P.º junto do tribunal recorrido respondeu no sentido da manutenção integral do acórdão recorrido.

Neste Supremo Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer igualmente no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPP não houve lugar a resposta do arguido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência, sendo que, sem prejuízo da reapreciação oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos, são duas as questões que vêm suscitadas:

a) – A medida concreta das penas parcelares e da pena única e eventual suspensão da execução desta;

b) – A redução do montante da condenação do pedido de indemnização civil.


*

II. Fundamentação

1. A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:

“1. BB nasceu no dia ... de 2002 e é filha de ... e de ...;

2. O arguido AA nasceu no dia ... de 1977 e é irmão do companheiro da irmã da menor AA;

3. Em data que não foi possível apurar em concreto, mas situada a partir do Verão de 2015, a menor AA e o arguido passaram a estar conectados através da rede social “facebook”;

4. No dia 27 de Dezembro de 2015, através daquela rede social, o arguido enviou à menor AA uma mensagem em que dizia que gostava muito dela e que a achava muito bonita;

5. Nas mensagens que o arguido enviou à menor AA dizia ainda: “quero-te agarrar”; “és perfeita”; “quero-te beijar”, e combinou um encontro a sós com a menor;

6. No dia 28 de Dezembro de 2015, pelas 20 horas e 30 minutos, o arguido encontrou-se com a menor AA junto das instalações do “Novo Banco”, em ..., onde, no interior do seu veículo da marca “Fiat”, com a matrícula ...-PF, lhe deu um abraço e um beijo na boca;

7. Em data que não foi possível apurar em concreto, mas situada no dia seguinte ou dois dias depois do descrito no ponto anterior, durante a tarde, na residência da irmã da menor AA, sita em ..., o arguido deu beijos na boca da menor AA, tendo trocado apalpões nas zonas genitais, por baixo das roupas;

8. No dia 30 de Dezembro de 2015, a determinada hora que não foi possível precisar, mas no período da tarde, o arguido, no interior do citado veículo automóvel, que parou junto da Capela Nossa Senhora das ..., beijou a menor AA na boca, apalpou-lhe os seios, as nádegas e a vagina;

9. No dia 31 de Dezembro de 2015, cerca das 2 horas, o arguido, numa zona de mato, em ...., no interior do seu veículo, nos bancos dianteiros, beijou e apalpou a menor AA;

10. De seguida, com os bancos rebatidos, sem o uso de preservativo, o arguido introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor AA, aí o friccionado em movimentos de vaivém até a menor o mandar parar por sentir dores;

11. No dia 2 de Janeiro de 2016, cerca das 23 horas, o arguido e a menor AA dirigiram-se até uma residência pertencente à irmã daquele, sita em ..., tendo estacionado o supra aludido veículo junto à garagem.

12. No interior do veículo, o arguido, sem o uso de preservativo, introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor AA, aí o friccionando em movimentos de vaivém;

13. No dia seguinte, 3 de Janeiro de 2016, o arguido regressou a Lisboa, continuando a manter contacto com a menor AA pelo “facebook”, através de videochamadas, tendo aquele chegado a enviar-lhe fotografias suas nu, de corpo inteiro, e pedido para ela fazer o mesmo, o que esta veio a fazer;

14. Em data que não foi possível precisar, mas que se situa no mês de Janeiro de 2016, a menor AA, através da citada aplicação informática, a pedido do arguido, enviou-lhe diversas fotografias suas, algumas das quais aparecendo sem roupa, que aquele guardou no seu telemóvel;

15. Além do mais, também a pedido do arguido, através de videochamada, a menor mostrou-lhe o seu corpo sem roupa;

16. Nas conversas que mantinham, o arguido, dirigindo-se à menor AA, utilizava ainda expressões como: “foda” e “espetar até ao fundo”;

17. Eram ainda usadas expressões como: “amor”, “amorzinho” e “mor”;

18. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, tinha perfeita noção da idade da vítima, sendo irmão do companheiro da irmã da menor, circunstâncias de que se aproveitou para melhor lograr os seus intentos;

19. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, praticou os factos aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a menor, bem como da confiança em que o votavam, pelo facto de ser irmão do genro da mãe da menor, confiança essa que possibilitava que o arguido estivesse sozinho com a mesma;

20. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, tinha consciência de que, à data dos factos, a AA tinha apenas 13 anos de idade e, apesar disso, não se coibiu de praticar os actos supra descritos, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência e de vergonha da menor, bem como a integridade física e psicológica daquela;

21. Ao agir como acima descrito, o arguido, em cada uma das suas descritas condutas, procedeu de forma deliberada, livre e consciente, praticando actos sexuais com menor de 14 anos, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, o que conseguiu.

22. Sabia o arguido, em cada uma das suas descritas condutas, que os factos que praticou, com e sobre a menor AA, eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta e que tinham reflexos na esfera sexual da personalidade da mesma;

23. Sabia, ainda, o arguido que as palavras relacionadas com a prática sexual como “foda” e “espetar [até] ao fundo” que lhe dirigia, as fotografias que de si exibia nu, e a circunstância de ter solicitado à menor que lhe enviasse fotografias de si própria desnuda, eram adequadas à sua excitação ou corrupção sexual e, por isso, também susceptíveis de prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual;

24. O arguido, antes do dia 28 de Dezembro de 2015, também de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo a idade da menor AA, sabia que usava a rede social “facebook”, na qual era amigo da menor, para através desta rede social sugerir à menor um encontro com esta a sós, a fim de a beijar e agarrar, como havia dito que pretendia fazer nas mensagens que lhe havia antes enviado, sendo que logrou efectivar esse encontro;

25. O arguido agiu ainda, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de obter e deter imagens onde figurasse a menor AA nua, sabendo que esta tinha apenas 13 anos de idade;

26. O arguido sabia que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei;

27. A menor AA frequentava a escola;

28. Antes dos factos acima descritos, a menor AA não havia mantido qualquer contacto ou experiência de cariz sexual e após o sucedido apresenta uma solução de continuidade completa cicatrizada no seu hímen, às 6 horas, e outra incompleta, às 5 horas, de acordo com a orientação dos ponteiros do relógio;

29. A menor AA sentiu dores nos contactos sexuais que consigo manteve o arguido;

30. A menor AA evita falar do sucedido com o arguido, e sentiu-se triste, envergonhada, vexada e humilhada por tal relacionamento se ter tornado do conhecimento de outras pessoas, designadamente os seus familiares;

31. Em consequência do referido no ponto anterior, a menor AA e a sua família mudaram entretanto a sua residência para a localidade de Penedono;

32. O arguido é natural de ..., embora a família se tenha fixado em ...;

33. Aquando dos seus 9 anos de idade, a mãe do arguido faleceu, num acidente de viação numa ambulância no transporte para o Hospital, em trabalho de parto;

34. Em face do sucedido, o arguido passou a viver com o pai e 4 irmãos, dos quais uma é mais velha;

35. Em termos escolares, o arguido registou retenção aquando da morte da mãe, por elevado absentismo, prosseguindo depois os estudos até à conclusão do 9º ano de escolaridade;

36. O arguido iniciou actividade laboral no sector da ..., a fim de coadjuvar o pai;

37. Há cerca de 18 anos, o arguido mudou-se para a zona de Lisboa e começou a trabalhar como motorista por conta de várias empresas;

38. O arguido trabalha por conta da empresa “...” há cerca de 18 meses, auferindo o rendimento mensal de cerca de € 750;

39. O arguido teve uma companheira durante vários anos, tendo dois filhos, de 17 e 12 anos de idade, que vivem com a mãe em Lisboa;

40. O arguido mantém relação com os filhos e suporta prestação de alimentos, no valor mensal de € 150;

41. Na altura da prática dos factos acima descritos, o arguido vivia sozinho e encontrava-se separado, atravessando um período de instabilidade emocional;

42. Actualmente, o arguido continua a viver sozinho, num apartamento arrendado, suportando a renda mensal de € 280;

43. O arguido não apresenta qualquer condenação criminal prévia;

44. O arguido admitiu, em audiência de julgamento, a prática dos factos de que vinha acusado, de forma espontânea, integral e sem reservas, denotando arrependimento”.


*

2. Preliminarmente, dir-se-á que estamos face a um recurso directo de um acórdão de tribunal colectivo que visa exclusivamente o reexame de matéria de direito de uma condenação na pena única de 6 anos de prisão, para cuja apreciação, extensiva às penas parcelares, é competente este Supremo Tribunal de Justiça, conforme o disposto no art.º 432.º, n.ºs 1, alín. c), e 2, do CPP e jurisprudência entretanto fixada (AFJ n.º 5/2017 de 27.04.2017 (DR, I, de 23.06.2017).

O recorrente delimitou o âmbito do recurso, de acordo com a faculdade conferida pelo art.º 403.º, n.º 1, alín. f), do CPP, quanto à parte crime, à determinação da medida das penas parcelares e da pena única, de molde a que, na sequência da sua redução e fixação desta em pena de prisão não superior a 5 anos, possa beneficiar da pena de substituição de suspensão da respectiva execução, ainda que condicionada ao cumprimento de deveres ou observância de regras de conduta, bem como, quanto à parte cível, ao quantum indemnizatório, que se lhe afigura excessivo.

Fundamentou a redução das penas na idade, ainda jovem de 40 anos, ser pai de dois filhos ainda adolescentes, não ter antecedentes penais e estar integrado social, profissional e familiarmente.

Antes de mais, importa atentar que este Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de recurso, pode divergir da qualificação jurídica operada pela instância.

No dizer de Pereira Madeira[1], “seria absurdo que sendo o direito de conhecimento oficioso do tribunal, mormente do tribunal de recurso, este não tivesse inteira liberdade para qualificar os factos da maneira que entende ser a correcta. Pode e deve fazê-lo, com observância prévia de duas condições: respeitar o princípio da proibição da reformatio in pejus (art.º 409.º, n.º 1; e proceder à diligência imposta pelo n.º 3 ora em anotação [ao art.º 424.º] ”.

Estas condições, aqui, não ocorrem, na medida em que a alteração da qualificação da qualificação operada pelo colectivo da 1.ª instância, relativamente a alguns dos crimes objecto de condenação, se vai traduzir na respectiva absolvição, daí resultando, necessariamente, uma redução da pena única e, depois, não há que dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do art.º 424.º do CPP já que, de absolvição se tratando (e não de mudança para qualquer outra qualificação ou forma de crime), em causa não está o direito de defesa ou de contraditório do arguido que importe acautelar.

Assim, desde logo quanto ao crime de abuso sexual de criança, na modalidade de importunação sexual, do art.º 171.º, n.º 3, alín. a), a matéria de facto provada em que se estribou (ponto 6), de “um abraço e um beijo na boca”, na menor, não se afigura com relevo, muito menos dela ressalta ter havido qualquer imposição, para dar conteúdo ao elemento típico do crime de “constrangimento a contacto de natureza sexual”, conforme disposto no art.º 170.º, para onde aquele preceito remete.

Dito de outro modo, tal atitude não representa “um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima[2], por isso não havendo abuso que contenda com o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor, em termos de sexualidade.

Também quanto ao crime de abuso sexual do art.º 171.º, n.º 3, alín. b) (actuação sobre a menor por meio de conversa pornográfica), em que se traduziram as conversas com as expressões referidas no ponto 16 dos factos provados (“foda” e “espetar até ao fundo”), nas circunstâncias do caso, as mesmas carecem de autonomia e idoneidade para prejudicar o já referido livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, ou, dito de outro modo, tal conversa não tem virtualidade para tentar satisfazer com a menor, ou através dela, interesses ou impulsos de relevo[3].

Quanto ao crime de aliciamento de menor, do art.º 176.º-A, n.ºs 1 e 2, a que se fez subsumir a factualidade dos pontos 4 e 5 (dos factos provados), como salienta Paulo Pinto de Albuquerque[4], trata-se de um crime subsidiário (subsidiariedade material ou implícita) da punição dos crimes de abuso sexual de criança seja na forma consumada, seja na forma tentada e, daí, que, no contexto da consumação dos crimes de abuso sexual do art.º 171.º, n.ºs 1 e/ou 2, a incriminação tivesse perdido autonomia.

Finalmente, quanto ao crime de pornografia de menores, do art.º 176.º, n.º 5, com incidência nos pontos 13, 14, e 15 da matéria de facto provada, também a obtenção de fotografias ou imagens filmadas, em que se traduziu a troca de imagens do corpo desnudado da menor (e do arguido) através da aplicação “facebook” ou da videochamada em “smartphone”, porque se trata de mera exposição corporal, de cunho não pornográfico, atentatório do livre desenvolvimento da vida sexual da menor, arredado está o ilícito em causa.

É sabido, aliás, que a pornografia supõe uma representação grosseira da sexualidade, que faz das pessoas mero objecto despersonalizado para fins predominantemente sexuais[5], ou um desempenho de actividades sexuais explícitas, reais e simuladas, ou ainda a representação dos órgãos sexuais para fins predominantemente sexuais[6], o que, no caso, está arredado com as fotografias e imagens trocadas na forma em que o foram.

Face ao exposto, impõe-se a absolvição do arguido pelos crimes de importunação sexual de criança, actuação por meio de conversas, aliciamento e pornografia de menor, por que foi condenado sob os n.ºs 5 a 8 da alín. B) do dispositivo do acórdão recorrido.

Quanto ao mais, em causa está a consumação de 2 crimes de abuso sexual de criança puníveis pelo art.º 171.º, n.º 1, em abstracto com penas entre 1 e 8 anos de prisão, tendo sido fixada a pena de 2 anos de prisão, por cada um deles e 2 crimes de abuso sexual de criança, agravados, do art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, em abstracto puníveis com penas de 3 a 10 anos de prisão, tendo sido fixada a pena de 4 anos por cada um deles.

Os ilícitos perpetrados pertencem ao catálogo dos crimes contra a autodeterminação sexual, cujo bem jurídico visam proteger.

Trata-se de crimes de perigo abstracto, quanto ao grau de lesão desse bem jurídico, perigo esse resultante da presunção legal do prejuízo para o livre desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual, apesar de o acto sexual ser consensual, embora qualquer acordo ou consentimento careça, aqui, de relevância atenta a natureza indisponível do bem jurídico em causa.

São, por outro lado, crimes de mera actividade quanto à forma da sua consumação, que coincidirá com a completa realização da conduta proibida[7].

Sobre as circunstâncias atenuantes de carácter geral invocadas no recurso, como podendo concorrer para a diminuição das penas parcelares, sobre elas explicitamente se pronunciou o acórdão recorrido quando considerou que “ (…) ponderar-se-á em favor do arguido o facto de esta ser a sua primeira condenação pela prática de infracções criminais, tendo uma idade já relativamente avançada, a sua modesta condição social e económica, a sua reduzida instrução, a colaboração que prestou à realização da justiça, admitindo a sua conduta de forma espontânea, integral e sem reservas e o arrependimento que denotou em audiência”.

Já quanto à circunstância de ter dois filhos, importa sublinhar ter sido dado como provado viverem os mesmos com a mãe, contribuindo o recorrente, para seu sustento, com a quantia mensal de 150,00 €.

Comparando as molduras abstractas dos vários tipos legais de crime e as penas impostas ver-se-á que estas estão mais próximas dos limites mínimos que do seu ponto médio.

Acresce que os crimes de abuso sexual de crianças reclamam fortes exigências de prevenção geral, cuja prática não deixa de causar em toda a comunidade um sentimento de forte repulsa, pelo que a medida da pena não pode deixar de corresponder, aqui reforçadamente, às necessidades de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência das normas violadas com vista ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pela prática dos ilícitos criminais cometidos.

Também as exigências de prevenção especial se fazem sentir no caso, não obstante o arguido recorrente ser primário, face às circunstâncias da sua conduta e à necessidade de dissuasão da reincidência. 

Porque determinadas em função da culpa e das exigências de prevenção (art.ºs 40.º e 71.º), a medida das penas parcelares quanto aos crimes de abuso sexual não merece censura.

Quanto à medida da pena única, a ser determinada na moldura abstracta do concurso de 4 a 12 anos e de prisão (art.º 72.º, n.º 2), a partir da globalidade dos factos, em conjunto com a personalidade do arguido (art.º 77.º, n.º 1), a gravidade do ilícito global deve ser avaliada a partir da homogeneidade do bem jurídico violado (autodeterminação sexual de criança), da proximidade temporal em que a conduta se desenvolveu (28 de Dezembro de 2015 a 2 de Janeiro de 2016) e da interligação dos factos, de onde é possível concluir que a sua prática se deveu mais a uma pluriocasionalidade que a tendência ou propensão criminosa do arguido, conforme assim também ajuizou o acórdão recorrido[8].

Nesse contesto, afigura-se adequada e proporcional à culpa e à prevenção fixar a pena única em 5 anos e 3 meses de prisão.

E porque superior a 5 anos de prisão, desde logo por falta do pressuposto formal do n.º 1 do art.º 50.º, não pode haver lugar à aplicação da pena de substituição de suspensão de execução da pena.

Assim, há que dar parcial provimento ao recurso, no que respeita à parte crime.


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3. Quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais, importa atentar que o n.º 3 do art.º 496.º do Código Civil (ex vi, art.º 129.º do CP) remete a sua determinação para juízos de equidade, a partir do grau de culpa do responsável, da sua situação económica, bem como do lesado, das demais circunstâncias do caso e dos padrões geralmente adoptados na jurisprudência (art.º 494.º do CC).

Sustentam Pires de Lima e Antunes Varela[9] que o montante da indemnização “deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.

O objectivo da reparação dos danos não patrimoniais não visa tornar indemne o lesado. O que se pretende, nas palavras de Pessoa Jorge[10], “é proporcionar [ao lesado] uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris”.

Entre as “demais circunstâncias do caso” para que remetem aqueles preceitos legais, está a gravidade da lesão e a sua repercussão no desenvolvimento futuro da personalidade da criança no que tange à sua esfera sexual.

Provou-se que a menor não havia antes mantido qualquer contacto ou experiência de cariz sexual, sentiu dores nos contactos sexuais que consigo manteve o arguido, passou a evitar falar do sucedido, sentiu-se triste, envergonhada, vexada e humilhada por tal relacionamento se ter tornado conhecido de outras pessoas, designadamente seus familiares e que, em consequência, a menor e sua família tiveram que mudar de residência para outra localidade.

Ora, a quantia fixada de 20.000,00 € está dentro dos padrões fixados pela jurisprudência e face à gravidade do dano está longe de pecar por excesso, tendo em conta todo esse sofrimento da ofendida, então com 13 anos de idade, causado pelo arguido, então com 38 anos de idade e pai de dois filhos, de 17 e 12 anos de idade.

Importa assim manter o quantum fixado, com o que soçobra, na íntegra, esta vertente do recurso.


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III. Decisão

Face a todo o exposto, acordam os juízes conselheiros que compõem esta 5.ª secção em dar parcial provimento ao recurso quanto à parte crime, em consequência deliberando:

a) – Manter a condenação do arguido AA pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena imposta de 2 (dois) anos de prisão por cada um deles e de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, na pena aplicada de 4 (quatro) anos de prisão, por cada um deles e, em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, condená-lo na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

b) – Absolvê-lo dos demais crimes por que vinha condenado;

c) – Manter, no mais, a decisão recorrida, mormente a condenação do arguido no pagamento do montante indemnizatório fixado, de 20.000,00 €, a título de danos não patrimoniais, à demandante civil BB;

Custas pelo recorrente quanto ao pedido cível, não havendo lugar a taxa de justiça quanto à parte crime (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).


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Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Fevereiro de 2018

Francisco Caetano (Relator)

Carlos Almeida

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[1]Código de Processo Penal, Comentado”, de H. Gaspar et al., 2016, 2.ª ed., Almedina, p. 1361.
[2] Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, “Comentário Conimbricense do C. Penal”, I, 2.ª ed., C.ª Editora, p. 825, citando Figueiredo Dias.
[3] Figueiredo Dias, “Comentário…”, I, pp. 838-840.
[4] “Comentário do Código Penal”, 3.ª ed., UCE, p. 705.
[5] Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal, parte geral e especial”, 2014, Almedina, p. 732.
[6] Maria João Antunes, “Comentário…”, I, p. 882, a remeter para Protocolo à Convenção sobre os Direitos da Criança.
[7] Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 3.ª ed., UCE, pp. 680 e ss.
[8] Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”, 4.ª reimp., p. 291.
[9]Código Civil, Anotado”, I, 4.ª ed., p. 501.
[10]Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal”, 1972 (reedição), p. 375.