Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99/13.0TBCRZ-G.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
SUCUMBÊNCIA
Data do Acordão: 05/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Nos termos do disposto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, no que tange à economia da problemática aqui suscitada, os acórdãos do tribunal da Relação proferidos em sede de processo de insolvência e acções conexas, caso do PER e/ou PEAP, não admitem recurso, excepto se a parte demonstrar que o acórdão a impugnar está em oposição com outro proferido por algum dos tribunais da Relação ou pelo STJ, no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito decidida de forma diversa e não houver jurisprudência fixada pelo Supremo, sendo que neste caso se entende ser admissível o recurso como Revista normal.
I - A eventual ocorrência de oposição jurisprudencial exigida pelo art. 14.º, n.º 1 do CIRE, não dispensa, de todo em todo, a verificação dos requisitos gerais impugnatórios, nomeadamente o valor da acção e a sucumbência, por força do preceituado no art. 17.º, n.º 1, daquele mesmo diploma.
III - Não obstante o recorrente tenha indicado o valor do incidente em € 30.000,01, por isso, em princípio, dentro dos critérios da alçada, consignados no art. 629.º, n.º 1 do CPC, não podemos esquecer a sucumbência, sendo esta contabilizada por forma a verificar se atinge ou não metade da alçada do tribunal de que se recorre, mesmo com referência aos critérios decorrentes do art. 300.º do CPC, o que afasta a possibilidade de impugnação recursiva atento o decaimento, no caso sujeito, de € 1995,00.
IV - Carece de qualquer sentido a imputação feita pelo recorrente à inconstitucionalidade «do art. 15.º do CIRE e do art. 629.º, n.º 1, do CPC, quando interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 70/2021, 131/2020 e 328/2012 e decisões sumárias n.ºs 376/2014 e 213/2018)», porque o critério adoptado na decisão, se ateve, apenas e tão só, ao valor indicado pelo recorrente – € 30.000,01 – o qual nada tem a ver com o seu activo enquanto devedor.
Decisão Texto Integral:


PROC 99/13.0TBCRZ-G.G1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No incidente de exoneração do passivo restante do insolvente AA, foi determinada a cedência ao fiduciário de todos os rendimentos a auferir pelos devedores nos 5 anos subsequentes ao encerramento do processo, exceptuando o valor equivalente a um salário mínimo nacional.

Posteriormente, em 5 de Março de 2020, o insolvente veio requerer a dedução aos rendimentos a ceder ao fiduciário de mais um ordenado mínimo nacional, 14 vezes ao ano, para fazer face aos encargos com os 240km diários que tem de percorrer para desempenhar funções no ………. em ..........

A final foi produzida decisão a atender parcialmente a pretensão do insolvente, decidindo “alterar o rendimento indisponível do devedor insolvente para o valor correspondente a uma vez e meia o salário mínimo mensal garantido que a cada momento vigorar, a produzir efeitos a partir do requerimento do devedor”.

Inconformado recorreu o devedor de Apelação, pedindo que lhe fosse fixado como rendimento indisponível anual o valor que resulte da multiplicação do salário mínimo que se encontre em vigor a cada ano do período da cessão, multiplicada por catorze vezes ao ano, por forma a contemplar os subsídios de férias e de natal, auferidos pelo devedor no exercício da sua profissão por conta de outrem, o que veio a ser negado, confirmando-se a decisão de primeiro grau.

Irresignado, recorre agora de Revista, pretendendo a reversão da situação, invocando para o efeito o disposto no artigo 14º, nº 1 do CIRE, por existir oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 22 de Maio de 2019, cuja cópia não juntou, devendo tê-lo feito, tendo indicado o site onde poderia ser objecto de consulta.

Não houve contra alegações.

Porque a Relatora entendeu que poderia vir a não ser conhecido o objecto do recurso, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem nos termos do artigo 655º, nº 1 do CPCivil aplicável por força do disposto no artigo 679º do mesmo diploma e 17º, nº 1 do CIRE, sendo o Recorrente, também, para no mesmo prazo juntar aos autos cópia certificada do apontado Acórdão em oposição.

O Recorrente, veio juntar cópia certificada do Acórdão em oposição e pronunciou-se sobre a bondade da sua posição nos seguintes termos:

- Quanto aos requisitos gerais do recurso de revista, apresentado nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), entende o insolvente/recorrente que o critério da alçada não coloca em causa a admissibilidade do presente recurso.

- Com efeito, o objeto do presente recurso diz respeito à forma como deve ser determinado/calculado o valor do rendimento indisponível anual de um insolvente, isto é, se, para esse efeito, o valor de rendimento indisponível mensal deve ser multiplicado por doze ou se, pelo contrário – como se defende no presente recurso – deverá o mesmo ser multiplicado por catorze, contemplando assim os subsídios de férias e de Natal.

- Assim sendo, não importa para a divergência jurisprudencial em causa no presente recurso se o montante de rendimento indisponível mensal fixado ao insolvente é, por exemplo, de 665,00 € (seiscentos e sessenta e cinco euros) ou de 1.995,00€(mil novecentos e noventa e cinco euros), porquanto o que importa saber é se esse montante, para efeitos de cada ano do período da cessão, deve ser multiplicado por catorze ou apenas por doze, conforme se considere ou não o subsídio de férias e o subsídio de Natal como verdadeiras parcelas de retribuição, essenciais para o trabalhador prover ao seu sustento.

- De facto, no caso dos autos, o montante de rendimento indisponível mensal fixado ao insolvente é atualmente de um salário mínimo e meio.

- Contudo, nada obsta a que no futuro tal valor seja revisto, pelo que não é possível, a esta data, determinar o montante no qual a decisão de que se recorre desfavorece o insolvente/recorrente, não se conseguindo assim determinar o valor da sucumbência a que se refere o n.º 1 do artigo 629.º do CPC.

- Sendo que, nos termos do disposto no mesmo artigo, quando há fundadas dúvidas quanto ao valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa.

- Ora, sendo o presente recurso relativo ao rendimento indisponível do insolvente, determinado para efeitos da exoneração do passivo restante, deve ser tido em conta o valor da causa aplicável aos recursos respeitantes a este instituto.

- Como tal, deverá ser fixado como valor do presente recurso o montante de 30.000,01 € (trinta mil euros e um cêntimo), por aplicação do artigo 303.º, n.º 1, do CPC, e por inconstitucionalidade do artigo 15.º do CIRE e do artigo 629.º, n.º 1, do CPC, quando interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 70/2021, 131/2020 e 328/2012 e Decisões Sumárias n.ºs 376/2014 e 213/2018).

- Desta forma, os requisitos gerais de admissibilidade do presente recurso, previstos no artigo 629.º, n.º 1, do CPC, encontram-se preenchidos, devendo o mesmo ser admitido por se encontrarem igualmente verificados os demais requisitos previstos no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE.

Vejamos.

No despacho singular, a Relatora deixou consignadas as seguintes ideias que aqui se extractam:

«Nos termos do disposto no artigo 14º, nº 1 do CIRE, no que tange à economia da problemática aqui suscitada, os Acórdãos do Tribunal da Relação proferidos em sede de processo de insolvência e acções conexas, caso do PER e/ou PEAP, não admitem recurso, excepto se a parte demonstrar que o Acórdão a impugnar está em oposição com outro proferido por algum dos Tribunais da Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito decidida de forma diversa e não houver jurisprudência fixada pelo Supremo, sendo que neste caso se entende ser admissível o recurso como Revista normal.

Ora, a oposição de acórdãos pressupõe que a decisão e fundamentos do acórdão recorrido se encontrem em contradição com outro relativamente às correspondentes identidades.

Em sentido técnico, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.

A oposição ocorrerá, pois, quando um caso concreto (constituído por um similar núcleo factual) é decidido, com base na mesma disposição legal em sentidos diametralmente opostos, num noutro Acórdão, exigindo-se sempre, em ambos os casos, a identidade do núcleo essencial da situação fáctica, bem como das normas jurídicas objecto de interpretação e/ou aplicação, cfr inter alia o Ac STJ de 25 de Março de 2010 (Relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt e as decisões singulares da aqui Relatora, de 7 de Julho de 2014 e de 16 de Outubro de 2018, proferidas nos Proc 94/12.6TBFAL-Y.E1.S1 e1319/12.3TBVNO-E1.S2, in SASTJ.

Assim, a questão fundamental de direito cuja identidade pode legitimar a contradição “não se define pela hipótese/estatuição, desenhada, abstractamente, da norma jurídica em sua maior ou menor extensão ou compreensão, a que seja possível subsumir uma pluralidade de eventos reais a regular”, mas antes pela questão “nuclear necessariamente recortada na norma pelos factos da vida que revelaram nas decisões”.

De outra banda, a Lei, nestas circunstâncias precisas, impõe que seja junta uma cópia certificada com nota de trânsito em julgado do Acórdão fundamento, uma vez que, se a decisão cuja oposição se invoca não estiver transitada, não se poderá falar efectivamente de uma verdadeira oposição, o que se não retira da mera indicação do Aresto onde a decisão foi produzida.

Se não.

A eventual ocorrência de oposição jurisprudencial exigida pelo artigo 14º, nº1 do CIRE, não dispensa, de todo em todo, a verificação dos requisitos gerais impugnatórios, nomeadamente o valor da acção e a sucumbência, por força do preceituado no artigo 17º, nº 1 daquele mesmo diploma.

Ora, como deflui da motivação recursória, o montante cuja entrega foi negada ao aqui Recorrente, correspondente a duas vezes o salário mínimo e meio, correspondentes aos 13º e 14º meses, cuja quantia perfaz no corrente ano 1995,00 €, a qual não atinge o valor referido no artigo 629º, nº 1 do CPCivil, - metade da alçada do Tribunal de que se recorre - para efeitos de impugnabilidade, o que impedirá o conhecimento do objecto do recurso, mesmo considerando eventuais aumentos futuros e o preceituado no artigo 300º, nº 2 do CPCivil.».

Como bem acentua o Recorrente, a problemática daqui é a de saber como deve ser determinado/calculado o valor do rendimento indisponível anual de um insolvente, isto é, se, para esse efeito, o valor de rendimento indisponível mensal deve ser multiplicado por doze ou se, pelo contrário – como se defende no presente recurso – deverá o mesmo ser multiplicado por catorze, contemplando assim os subsídios de férias e de Natal.

Vistas as coisas por este prisma, sendo o correcto, temos como resultado as seguintes asserções:

i)quanto ao valor, não obstante o Recorrente o tenha indicado em 30.000,01 €, por isso, em princípio, dentro dos critérios da alçada consignados no artigo 629º, nº 1 do CPCivil, não podemos esquecer a sucumbência, devendo a mesma ser contabilizada por forma a verificar se atinge ou não metade da alçada do Tribunal de que se recorre, mesmo com referência aos critérios decorrentes do artigo 300º do CPCivil, o que afasta, como já se deixou enunciado, a possibilidade de impugnação recursiva, tendo-se entendido que tal decaimento seria de 1995,00 €;

ii)ainda com referência ao valor deste preciso incidente, fixado em 30.000,01 €, carece de qualquer sentido a invocação feita pelo Recorrente à inconstitucionalidade «do artigo 15.º do CIRE e do artigo 629.º, n.º 1, do CPC, quando interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 70/2021, 131/2020 e 328/2012 e Decisões Sumárias n.ºs 376/2014 e 213/2018)», porque o critério que a Relatora adoptou no despacho preliminar, mantido agora em decisão colegial, se ateve, apenas e tão só, aqueloutro valor indicado pelo Recorrente, o qual nada tem a ver com o seu activo enquanto devedor;

Destarte, uma vez que o decaimento do Recorrente foi de 1995,00 €, de harmonia com o preceituado nos artigos 629º, nº 1, e 652º, nº 1, alínea b), aplicável por força do preceituado no artigo 679º, todos do CPCivil, não se conhece do objecto do recurso.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 26 de Maio de 2021

Ana Paula Boularot (Relatora)

(Tem o voto de conformidade dos Exºs Adjuntos Conselheiros Fernando Pinto de Almeida e José Rainho, nos termos do artigo 15º-A aditado ao DL 10-A/2020, de 13 de Março, pelo DL 20/2020, de 1de Maio) 

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).