Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2445/16.5T8LRA-A.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: SEGURADORA
SUB-ROGAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 07/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / PRESCRIÇÃO.
Doutrina:
-Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, p. 653;
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª Edição, p. 628 ; Das Obrigações em Geral, Volume II, 7.ª Edição, p. 346 ; RLJ 103-30;
-Brandão Proença, CDP 41-39, 42 e 44;
-Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6.ª Edição, p. 273 e 274;
-Garção Soares e Maria José Rangel de Mesquita, Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, p. 239;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 383;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, p. 609;
-Vaz Serra, RLJ 111-67.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 498.º, N.ºS 2 E 3.
REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES DE TRABALHO E DAS DOENÇAS PROFISSIONAIS, APROVADO PELA LEI N.º 100/97, DE 13/9: - ARTIGO 31.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-11-1977, IN BMJ 271-100;
- DE 20-10-1998, IN CJ STJ VI, 3, 71;
- DE 01-06-1999, IN BMJ 488-244;
- DE 13-04-2000, IN BMJ 496-246;
- DE 21-01-2003, IN CJ STJ XI, 1, 39;
- DE 04-10-2004, IN CJ STJ XII, 3, 39;
- DE 28-10-2004;
- DE 17-11-2005;
- DE 04-11-2008;
- DE 22-10-2009;
- DE 09-03-2010;
- DE 25-03-2010, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-11-2010;
- DE 16-11-2010;
- DE 07-04-2011;
- DE 29-11-2011;
- DE 18-10-2012;
- DE 25-10-2012, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-05-2014;
- DE 03-12-2015;
- DE 19-05-2016;
- DE 31-01-2017;
- DE 07-02-2017, PROCESSO N.º 3115/13, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-09-2017;
- DE 18-01-2018;
- DE 19-01-2018.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 27-06-2017, PROCESSO N.º 466/13, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O direito exercido pela seguradora nos termos do nº 4 do art. 31º da Lei 100/97, de 13/9, não constitui um verdadeiro direito de regresso, mas de sub-rogação legal nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, na medida em que tiver pago a indemnização.

II. Nessa situação, o prazo de prescrição deve ser contado a partir do cumprimento, por aplicação analógica do art. 498º, nº 2, do CC.

III. Esse prazo é o de três anos aí estabelecido, sem o alargamento previsto no nº 3 do art. 498º: o direito de sub-rogação mais não é que um direito de reembolso das quantias pagas, com uma natureza diferente da do direito do lesado e com um conteúdo delimitado essencialmente pelo crédito satisfeito.

IV. No caso de fraccionamento do pagamento da indemnização, deve atender-se, por regra, ao último pagamento efectuado, sendo porém de admitir que essa regra possa ser temperada nos casos em que seja possível a "autonomização da indemnização que corresponda a danos normativamente diferenciados".

V. Esta autonomização de núcleos da indemnização, para este efeito de contagem do prazo de prescrição, será admissível apenas em relação a danos autónomos e consolidados, de natureza claramente diferenciada e inteiramente ressarcidos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA, SA veio propor esta acção declarativa, com forma de processo comum, contra BB, SA.

Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 222.477,36, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, para além do que vier ainda a despender com a regularização do sinistro.

Como fundamento, alegou que, no dia 14 de Agosto de 2007, quando eram transportados no veículo automóvel de matrícula -GI, em deslocação no âmbito da actividade prestada a CC, Lda, os trabalhadores desta, DD, EE e FF foram vítimas de acidente de viação, causado pelo condutor do referido veículo, seguro na Ré, tendo a Autora, seguradora do trabalho, pago aos herdeiros dos sinistrados GG e HH e à sinistrada DD as respectivas indemnizações, de que pretende ser reembolsada.

A Ré contestou, defendendo-se, além do mais, com a excepção da prescrição, por haver decorrido o prazo de três anos sobre o pagamento da totalidade das prestações.

No saneador decidiu-se julgar improcedente a excepção da prescrição.

Discordando desta decisão, a ré interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Ainda inconformada, a ré pediu revista excepcional, que foi admitida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

q) Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Meritíssimo Tribunal "a quo" que, negando provimento à apelação deduzida, manteve o decidido na 1ª instância no sentido de julgar improcedente a excepção da prescrição invocada pela aqui Seguradora Recorrente.

r) Salvo o devido respeito, a Seguradora Recorrente não pode concordar com os fundamentos que sustentam o douto acórdão recorrido.

s) O âmbito do presente recurso resume-se, pois, à apreciação da excepção da prescrição oportunamente alegada, pretendendo a Seguradora Recorrente que a mesma proceda, entendendo-se que o alargamento do prazo prescricional de 3 anos para 10 anos nos termos do disposto no art. 498º nº 3 do Cód. Civil não tem aplicação nas situações de exercício de direito de regresso entre responsáveis.

t) E ainda que a contagem do prazo prescricional se inicia a partir do pagamento de cada uma das prestações, e não de um núcleo de prestações de idêntica finalidade ou do ressarcimento total dos danos, ou do último dos pagamentos realizados.

u) Com efeito, nos presente autos veio a Recorrida exercer o direito de regresso previsto no art. 31° nº 4 da LAT (diploma vigente à data do sinistro), na medida em que, na qualidade de seguradora a título de acidentes de trabalho, liquidou as quantias indemnizatórias e demais despesas legalmente previstas aos sinistrados, sendo o acidente em causa, simultaneamente de viação, e causado por culpa do condutor de veiculo cuja responsabilidade civil automóvel se achava, à data do sinistro, validamente transferida para a Seguradora recorrente, mediante contrato de seguro válido e em vigor.

v) À data da notificação judicial avulsa e da citação da recorrida nos presente autos, havia já decorrido o prazo de 3 anos sobre o pagamento de parte das indemnizações e despesas que compõem o pedido formulado nos presentes autos.

w) O direito de regresso emergente do art. 31° nº 4 da LAT tem natureza distinta do direito do lesado, constituindo um direito autónomo, nascido "ex novo" com o cumprimento da obrigação traduzida no pagamento da indemnização infortunístico-laboral.

x) Ao direito de regresso entre responsáveis aplica-se o prazo prescricional de 3 anos previsto no art. 498° nº 2 do cód. Civil.

y) Prazo esse que se começa a contar a partir do pagamento de cada uma das quantias indemnizatórias ao lesado e demais entidades/credores, tais como hospitais e outros prestadores de serviços, cuidados e tratamentos médicos, medicamentosos, fisioterapia, transportes, etc.

z) Para o exercício do direito de regresso, a circunstância do facto ilícito constituir crime não justifica o alargamento do prazo de prescrição do art. 498° nº 2, nos termos previsto no art. 498° nº 3 ambos do Cód. Civil, uma vez que não está em causa, de forma directa e imediata, a responsabilidade civil extracontratual (decorrente de facto voluntário, ilícito, culposo, causal e lesivo), mas sim um outro direito, independente daquele.

aa) Acresce que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, estando em causa o exercício de um direito de regresso entre responsáveis, emergente do pagamento faseado no tempo de vários montantes e a distintos títulos, o prazo de prescrição aplicável começa a correr a partir do pagamento de cada um dos valores peticionados.

bb) Efectivamente, como se entendeu no Acórdão da Relação do Porto de 16/09/2004 (Apelação n.º 0434073), a expressão "a contar do cumprimento", referida no n.º 2 do art. 498° CC, não tem como pressuposto o integral cumprimento da obrigação que dá origem ao direito de regresso, reportando-se tal «cumprimento» àquilo que o titular do direito de regresso for satisfazendo.

cc) Ainda no mesmo sentido, veja-se o entendimento consignado no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12/07/2011, proferido no âmbito do Processo n.o 444/07.7TBFVN.C1 (…)

dd) Fazendo apelo às regras de interpretação, com a expressão "a contar do cumprimento" inserida no artº 498º nº 2 do Cód. Civil- e como muito bem se aponta nos Doutos arestos supra citados - não pretendeu o legislador referir-se ao pagamento da totalidade dos montantes indemnizatórios que compõem a indemnização global liquidada ao lesado, mas sim a cada um dos actos de pagamento realizados ao longo do tempo (até porque estão em causa indemnizações de diferente índole).

ee) O direito de regresso que sustenta o pedido formulado pela recorrida encontra-se, pois, parcialmente prescrito, e no que concerne a todos as despesas e indemnizações suportadas por esta em momento anterior ao período de 3 anos imediatamente antecedentes à notificação judicial avulsa.

ff) Ao consignar diverso entendimento, e sempre com o máximo respeito por diversa opinião, o douto acórdão proferido perpetrou manifesta violação do disposto nos arts. 31º nº 4 da LAT e 498º nº 1, 2 e 3 do Cód. Civil.

gg) Motivo pelo qual deverá ser revogada e substituída por outra que, considerando procedente a invocada excepção da prescrição, absolva a recorrente do pagamento de parte da quantia peticionada pela A./recorrida.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso de revista interposto e substituído o douto acórdão proferido nos termos supra expostos.

A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Discute-se se o direito exercido pela autora se encontra, em parte, prescrito, o que passa por decidir:

- Se é aplicável o alargamento do prazo prescricional de 3 anos para 10 anos, nos termos do art. 498º nº 3 do CC, às situações de exercício de direito de regresso entre responsáveis, previstas no nº 2 do mesmo artigo;

- Momento a partir do qual se inicia a contagem desse prazo prescricional ("pagamento de cada uma das prestações", "de um núcleo de prestações de idêntica finalidade" ou "do último pagamento realizado").

III.

No acórdão recorrido consideraram-se verificados e relevantes estes factos:

O acidente ocorreu em 14 de Agosto de 2007;

A Ré foi notificada judicialmente em Março de 2016;

A Ré foi citada em 8 de Agosto de 2016;

A Autora fez os pagamentos desde 2008 a 2013.

IV.

Está aqui em causa, como se referiu, a prescrição de parte do crédito reclamado pela autora, discutindo-se, em primeiro lugar, qual é o prazo de prescrição aplicável; coloca-se, de seguida, o problema da determinação do dies a quo da contagem desse prazo de prescrição.

1. Na base desta questão está um acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, daí derivando diferentes responsabilidades, dispondo, a este respeito, o art. 31º da Lei 100/97, de 13/9 (em vigor à data do acidente):

1. Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito a reparação não prejudica o direito de acção de regresso contra aqueles, nos termos da lei geral.

2. Se o sinistrado em acidente de viação receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pagou ou despendido.

3. Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.

4. A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente. (…)


Perante este regime, como se reconheceu no acórdão recorrido, tem vindo a afirmar-se que o direito que se pretende exercer, previsto no nº 4, apesar da letra do preceito, não constitui um verdadeiro direito de regresso, mas de sub-rogação legal da entidade patronal ou da seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, na medida em que tiver pago a indemnização[2]. Cumprida a obrigação, "o crédito não se extingue, transmitindo-se por efeito desse cumprimento para o terceiro que o efectua", ocorrendo uma "substituição" na titularidade do direito[3].


A sub-rogação, sendo uma forma de transmissão das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo.

O direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta[4].

Apesar de realidade jurídicas distintas, a sub-rogação e o direito de regresso apresentam grande afinidades, estando, como se sublinha no Ac. do STJ de 01.06.99[5], subordinadas ao elemento comum de prévio pagamento da obrigação e destinando-se ao seu reembolso total ou parcial.
Na verdade, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento; enquanto não o fizer não é sub-rogado e, consequentemente, não pode exercer os direitos de credor.

Conforme doutrina do Assento do STJ de 9.11.77, a sub-rogação não se verifica em relação a prestações futuras; só abrange as prestações vencidas que hajam sido efectivamente pagas[6].
Ora, não poderia razoavelmente aceitar-se que o prazo de prescrição começasse a correr ainda antes de o direito se subjectivar, antes ainda de o respectivo titular o poder exercer (sem que possa excluir-se a hipótese de o direito prescrever antes mesmo de poder ser exercido)[7].

Daí que se entenda que o prazo de prescrição, na situação em apreço, apenas se deve contar a partir do cumprimento, por aplicação analógica do art. 498º nº 2 do CC[8].
Aliás, dispondo o nº 4 do citado art. 31º que o direito só pode ser exercido pela entidade patronal ou seguradora que houver pago a indemnização, o prazo só poderia começar a correr depois de efectuado esse pagamento, por aplicação do princípio geral previsto no art. 306º do CC.


2. Coloca-se no recurso a questão de saber se o prazo de 3 anos, a contar do cumprimento, como se prevê no nº 2 do art. 498º do CC, deve ser alargado nos termos do nº 3 desse artigo: Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

Aparentemente, pela sua inserção sistemática, dir-se-ia que a norma do nº 3 se deveria aplicar às situações previstas nos números anteriores; ou seja, prevendo-se ali a possibilidade de aplicação de um prazo de prescrição mais longo (correspondente ao prazo de prescrição do procedimento criminal), esta norma, colocada depois, estender-se-ia logicamente às situações referidas nos números anteriores, permitindo o alargamento dos prazos aí previstos.

Esta lógica, porém, no que respeita ao nº 2, é tão só formal e aparente, não tendo essa interpretação apoio racional e substancial.

A referida norma visa alargar o prazo da prescrição do direito do lesado, quando o evento também constitua crime e o prazo da prescrição seja superior a três anos, por forma a compatibilizar os prazos de prescrição previstos na lei civil e na lei penal, tendo em conta que, por força do princípio da adesão, o pedido de indemnização é exercido, por regra, no âmbito do processo penal.

Com efeito, estabelecendo o art. 118º do C. Penal prazos de prescrição do procedimento criminal que, consoante os casos, podem ser de 5, 10 e 15 anos, não faria sentido que o mesmo facto, para efeito de responsabilidade civil, estivesse sujeito a prazo de prescrição diferente e mais curto.

Neste sentido, como afirma Antunes Varela[9], "desde que se admite a possibilidade de o facto, para efeitos de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justifica que análoga possibilidade se não ofereça à apreciação da responsabilidade civil".

É patente, todavia, como se diz no Acórdão deste Tribunal de 29.11.2011, que "estas razões não colhem quando se está perante o direito de regresso da seguradora, realidade jurídica inteiramente distinta e autónoma em relação ao direito de indemnização do lesado; por isso mesmo é que no primeiro caso o prazo de prescrição se conta a partir da data do cumprimento da obrigação e no segundo do conhecimento do direito pelo lesado. Porque o direito de regresso nada tem que ver com a fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao cumprir o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado com o lesante não se justifica, em tal eventualidade, o alongamento do prazo de prescrição previsto no nº 3 do artº 498º, antes devendo prevalecer o interesse da lei na rápida definição da situação e na consequente punição da inércia da seguradora num lapso de tempo mais curto, que é o do nº 2 do mesmo preceito".

Como sublinha Brandão Proença, "o «direito de regresso» e o «direito de sub-rogação» mais não são do que, em circunstâncias diferentes, idênticos direitos de reembolso das quantias pagas, ex vi legis, a título provisório e por obrigados (não responsáveis) secundários, direitos esses a «construir» substancialmente de forma semelhante, com uma natureza que não é, nem deve ser a do direito do lesado ressarcido e com um conteúdo delimitado essencialmente pelo crédito satisfeito".

Por isso, acrescenta, "há razões ponderosas para circunscrevermos o espaço aplicativo do nº 3 do art. 498º, razões essas que se prendem com a natureza e o escopo do direito de regresso (próprio ou impróprio) e a própria racionalidade desse nº 3, não tendo sentido considerar, no caso em análise e noutros semelhantes, a seguradora beneficiária (no plano prescricional) do ilícito criminal cometido pelo seu segurado. Só este deve suportar «o efeito sancionatório do alongamento da prescrição», não devendo a seguradora repercutir no seu direito (que não é o de fazer valer uma pretensão indemnizatória fundada, eventualmente, no art. 483º) esse mesmo efeito, tendo em conta que não houve, perante ela, qualquer ilícito criminal. A seguradora não é, em rigor, lesada imediata, só surgindo o seu «dano» com o pagamento ao verdadeiro lesado"[10].

Repare-se que, no caso do Fundo de Garantia Automóvel, o direito de reembolso deste já é qualificado no art. 54º, nº 1, do DL 291/2007, de 21/8, como sub-rogação, dispondo-se também (nº 6 do mesmo artigo) que a este direito é aplicável o nº 2 do art. 498º do CC, excluindo-se assim a aplicação do nº 3 deste preceito legal e a possibilidade de alargamento do prazo de prescrição neste prevista.

Deve, pois, concluir-se que o prazo de prescrição do exercício do direito do sub-rogado é de três anos, a partir do cumprimento, por aplicação analógica do art. 498º, nº 2, do CC, como acima se referiu.

É este, aliás, o sentido uniforme da jurisprudência mais recente do Supremo[11], não se vendo razões para dela divergir.

3. Problema diferente e que tem sido discutido é o do início da contagem do referido prazo de três anos, designadamente em situações, frequentes, em que, para ressarcir os danos resultantes de um mesmo acidente, ocorre uma sucessão de actos de pagamento efectuados pela Seguradora.

A recorrente defende que o legislador não pretendeu referir-se ao pagamento da totalidade dos montantes indemnizatórios que compõem a indemnização global liquidada ao lesado, mas sim a cada um dos actos de pagamento realizados ao longo do tempo.

No acórdão recorrido, pelo contrário, concluiu-se que, mesmo a entender-se aplicável o prazo de três anos, a solução deve ser diferente:

"Com efeito, tem-se entendido que devido ao carácter uno da obrigação de indemnizar e salvo os casos em que ocorra a autonomização das indemnizações, o prazo de prescrição conta-se desde o último pagamento.

Havendo lugar a certa autonomização das indemnizações, por se reportarem a danos diferenciados, ao réu compete, como facto extintivo,  o ónus da alegação dos factos  constitutivos da excepção, devendo invocar a autonomia e cindibilidade de cada pagamento ou grupo de pagamentos, sendo que «cabendo à ré, arguente da prescrição, o ónus de, em relação a cada uma dos créditos autonomizáveis, alegar e provar a ocorrência da prescrição, deve a excepção peremptória improceder se a mesma se limitou a alegar, genericamente, tal facto extintivo relativamente a todos os valores peticionados pela autora, já que se trata de omissão que é impassível de ser judicialmente suprida» (Ac STJ de 7/2/2017 (proc. nº 3115/13), em www dgsi.pt). No mesmo sentido, Ac RC de 27/6/2017 (proc. nº 466/13), em www dgsi.pt).

Neste contexto, como a Ré se limitou a arguir genericamente a prescrição (sem a referida autonomização), também por esta via teria que improceder".

Concorda-se que, nestes casos de fraccionamento do pagamento da indemnização, se deva atender, por regra, ao último pagamento efectuado.

Este critério foi, aliás, já expressamente consagrado no citado art. 54º, nº 6, do DL 291/2007, em relação ao Fundo de Garantia Automóvel, havendo quem defenda que o mesmo deve ser estendido a situações semelhantes[12].

Admite-se, contudo, que, se ocorrer uma objectiva autonomização das indemnizações, relativas a danos claramente diferenciados, se possa temperar a referida regra, tendo em conta alguns inconvenientes que lhe têm sido associados.

Já temos alguma dificuldade em aceitar inteiramente o funcionamento da regra do ónus da prova, nos termos genéricos em que vem enunciada no acórdão recorrido, como adiante se explicitará.

Esta questão do funcionamento da prescrição, no caso de fraccionamento do pagamento da indemnização, foi doutamente apreciada no Acórdão do STJ de 07.04.2011, aí se chegando a um critério que tem merecido significativa adesão da jurisprudência do Supremo[13].

Ponderando cada uma das aludidas soluções, escreveu-se nesse Acórdão:

"Não sendo a letra da lei - ao reportar-se apenas ao «cumprimento», como momento inicial do curso da prescrição – suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efectuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à «obrigação de indemnizar», tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou factura apresentada pela seguradora no âmbito da acção de regresso, conduzindo a um – dificilmente compreensível – desdobramento, pulverização e proliferação das acções de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados.

Pelo contrário, a opção pela tese oposta – conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado - poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da acção de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado, que poderá ver-se obrigado a discutir as causas do acidente, de modo a apurar se o estado de alcoolemia verificado contribuiu ou não para o sinistro, muito tempo para além do prazo-regra dos 3 anos a que alude o nº1 do art. 498º do CC.

Afirmou-se depois, aludindo-se ao Acórdão do STJ de 04.11.2010 – que adoptou a solução do último pagamento, apenas ressalvando o caso em que a indemnização seja arbitrada sob a forma de renda –, que não será este o único caso em que o aludido critério conduz a "um desproporcionado alargamento do prazo de prescrição do direito de regresso".

É o que pode suceder quando a indemnização abranja danos futuros, que se desenvolvam por um longo período de tempo, "não se vendo, neste caso, razão bastante para que a seguradora não deva exercitar a acção de regresso, referentemente à indemnização que satisfez e que cobre integralmente os danos actuais, causados pelo sinistro e perfeitamente consolidados e ressarcidos, de modo a deixar assente nessa acção, exercitada em prazo ainda próximo da data do acidente, toda a sua dinâmica e causalidade".

Por outro lado, acrescenta-se, "a ideia base da unidade da «obrigação de indemnizar» poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:

- a indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;

- a indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.

E tal autonomização ou diferenciação, operada funcionalmente em razão da natureza dos bens lesados, poderá tornar razoável uma consequencial autonomização do início dos prazos de prescrição do direito de regresso: assim, por exemplo, não vemos razão bastante para que, - tendo a seguradora assumido inteiramente perante o lesado o ressarcimento de todos os danos decorrentes da destruição e privação do uso da viatura sinistrada – possa diferir o exercício do direito de regresso quanto a essa parcela autonomizável e integralmente satisfeita da indemnização apenas pela circunstância de, tendo o acidente provocado também lesões físicas determinantes de graves sequelas, ainda não inteiramente avaliadas e consolidadas, estar pendente o apuramento e a liquidação da indemnização pelos danos exclusivamente ligados à violação de bens da personalidade do lesado.

Concluiu-se, então, no aludido Acórdão:

Em suma: se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.

E, nesta perspectiva, incumbirá ao R. que suscita a prescrição o ónus de alegar e demonstrar que o conjunto de recibos ou facturas pagas pela seguradora até ao limite do período temporal de 3 anos que precederam a citação na acção de regresso corresponderam a um núcleo indemnizatório, autónomo e bem diferenciado, relativamente aos restantes valores indemnizatórios peticionados na causa – não lhe bastando, consequentemente, alegar, como fundamento da prescrição que invoca, a data constante desses documentos.

Ora, no caso dos autos, para além de tal alegação não ter sido feita (limitando-se, na contestação, o R. a invocar que uma série de facturas, juntas aos autos pela A., datam – e foram pagas – para além do referido período temporal), é manifesto, pela análise dos documentos, que está em causa apenas o ressarcimento antecipado de danos ligados às lesões físicas sofridas pelo sinistrado – reparação dos períodos de incapacidade temporária, despesas médicas e de tratamentos clínicos, custo das deslocações para o estabelecimento em que tais tratamentos se verificavam – pelo que obviamente tais pagamentos parcelares são insusceptíveis de integrar um núcleo indemnizatório, autónomo e juridicamente diferenciado, relativamente ao qual pudesse iniciar-se e correr, de modo também autónomo, um prazo de prescrição do direito de regresso da seguradora/A.".

Adere-se a este entendimento, reiterando-se que a autonomização de núcleos da indemnização, para este efeito de contagem do prazo de prescrição, será admissível apenas em relação a danos autónomos e consolidados, de natureza claramente diferenciada e inteiramente ressarcidos, como é evidenciado pelos exemplos utilizados nos excertos reproduzidos do Acórdão.

Essa autonomização não pode, como por vezes se vê, cindir danos da mesma natureza, relativos a um mesmo lesado, em função do que parecer razoável ao julgador, sob pena de cairmos numa situação de inaceitável incerteza, absolutamente contrária a uma das razões – a certeza e segurança jurídicas – que está na base da prescrição.

Por outro lado, no que respeita ao problema do ónus da prova, importa atender ao princípio da aquisição processual, consagrado no art. 413º do CPC: o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las.

Preceito que, como é sabido, não vale apenas para as provas, mas também para as alegações das partes[14]. Assim, adquiridos os factos para o processo, eles devem ser objecto da valoração jurídica que for adequada (cfr. art. 5º, nº 3, do CPC), aí se incluindo, parece-nos, para a questão que aqui se discute, a eventual autonomização de indemnizações parcelares.

No caso dos autos, verifica-se que, no tocante à questão da prescrição, foi considerada provada matéria de facto extremamente exígua, que seria suficiente para a decisão, tendo em conta o critério adoptado no acórdão recorrido (alargamento do prazo de prescrição para 10 anos), mas que é claramente insuficiente se se acolher, como acolhemos, o entendimento de que é aplicável o prazo de três anos, a contar do último pagamento, com a ressalva apontada, de poderem ser autonomizadas parcelas da indemnização global[15].

Repare-se que, em rigor, estando apenas provado que a ré foi notificada judicialmente da pretensão da autora em Março de 2016 e que os pagamentos foram efectuados desde 2008 a 2013, não poderia concluir-se pelo decurso do prazo de prescrição, mesmo adoptando o critério singelo do último pagamento, por não estar reconhecido como provado que os pagamentos foram efectuados em data anterior a Março de 2013.

Verifica-se, todavia, que a autora alegou matéria de facto pertinente, tendo identificado, concretizado e documentado cada um dos pagamentos efectuados a cada lesado, alegação que foi, em grande medida, impugnada. Essa matéria de facto e respectiva documentação não foram, por isso, consideradas na decisão da 1ª instância (proferida no saneador) e, consequentemente, no acórdão recorrido.

O processo deverá, pois, prosseguir para discussão e prova da factualidade pertinente alegada e será em função desse julgamento que se poderá ponderar juridicamente e concluir sobre a eventual autonomia de indemnizações parcelares satisfeitas pela autora, ficando a conhecer-se também a data do último pagamento destas.

Impõe-se, por isso, o reenvio do processo para a Relação, para que se proceda à ampliação da decisão de facto, nos termos referidos, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito – art. 682º, nº 3, do CPC.

V.

Em face do exposto, anula-se o acórdão recorrido para ampliação da decisão de facto, nos termos acima referidos, e julgamento posterior da excepção de prescrição.

Custas segundo o critério a definir a final.

                                                   Lisboa, 3 de julho de 2018

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

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[1] Proc. nº 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 248)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Neste sentido, Vaz Serra, RLJ 111-67, Antunes Varela, RLJ 103-30 e Brandão Proença, CDP 41-39; e, entre outros, os Ac. do STJ de 4.10.2004, CJ STJ XII, 3, 39, de 25.03.2010, de 25.10.2012 e de 07.02.2017, estes em www.dgsi.pt.
Será de sublinhar que a norma correspondente (art. 294º, nº 3) do Cód. do Trabalho de 2003 aludia já a sub-rogação, o mesmo ocorrendo com o actual art. 17º, nº 4, da Lei 98/2009, de 4/9.
[3] Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6ª ed., 273 e 274.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 346.
[5] BMJ 488-244; no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 20.10.98, CJ STJ VI, 3, 71.
[6] BMJ 271-100; cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., 609.
[7] Ac. do STJ de 21.1.2003, CJ STJ XI, 1, 39.
[8] Neste sentido, Brandão Proença, Ob. Cit, 44. Cfr., para além dos citados, os Acs. do STJ de 13.4.2000, BMJ 496-246, de 28.10.2004, de 17.11.2005, de 09.03.2010 e de 25.03.2010, em www.dgsi.pt, como os adiante citados
[9] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 628.
[10] Ob. Cit., 42 e 44. Como refere também Ana Prata, a razão de ser da extensão do prazo não procede relativamente à seguradora – Código Civil Anotado, Vol. I, 653.
[11] Cfr., para além dos já citados, os Acórdãos de 04.11.2008, de 22.10.2009, de 04.11.2010, de 16.11.2010, de 18.10.2012, de 07.05.2014, de 03.12.2015, de 19.05.2016, de 31.01.2017 e de 18.01.2018.
[12] Garção Soares e Maria José Rangel de Mesquita, Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, 239; Acórdão do STJ de 21.09.2017.
[13] Cfr. Acórdãos de 19.05.2016, de 07.02.2017 e de 19.01.2018.
[14] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil (1976), 383.
[15] Desde logo, em função de cada lesado, como se entendeu nos Acórdãos do STJ de 04.10.2004, de 04.11.2010, de 07.04.2011 e de 19.05.2016.