Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
622/08.1TBPFR-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
DIREITO DE RETENÇÃO
TERCEIRO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / ANTECIPAÇÃO DO CUMPRIMENTO, SINAL / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO / ACÇÃO DE CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO AMPLIADO DA REVISTA / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Doutrina:
-Ana Taveira da Fonseca, Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, em especial na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, teses, Almedina, 2015, p. 362 e 363;
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 7.ª Edição, p. 577 e 578;
-Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, N.ºs 1 e 2, p. 590 e 591;
-João de Castro Mendes, Direito Processual Civil Revisto e Actualizado, II Volume, Edição AAFDL, p. 778 a 784;
-João de Matos Antunes Varela, J. Miguel Beleza, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra, p. 724 a 729;
-José Alberto dos Reis, Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, BFD, XVII, p. 208 a 216 e 245 a 261;
-José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, p. 84 ; Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença, R.O.A, Ano 66, Volume II;
-Júlio Gomes, Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…), Cadernos de Direito Privado, n.º 11, p. 12;
-Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3.ª Edição, 2.ª Reimpressão, Almedina, p. 475;
-Salvador da Costa, O Concurso de Credores¸ 5.ª Edição, Almedina, p. 183, 184 e 213;
-Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 309 a 316;
-Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª Edição, Almedina, p. 974;
-Miguel Teixeira de Sousa, A Exequibilidade da Pretensão, Edições Cosmo, p. 33;
-Pedro Romano Martinez, Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª Edição, p. 230;
-Pedro Romano Martinez, Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª Edição, Almedina, p. 226 e 227;
-Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, Coimbra, p. 855 e 879.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 442.º, 755.º, N.º 1, ALÍNEA F), 759.º, N.OS 1 E 2 E 824.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1, 662.º, N.º 4, 674.º, N.OS 1, 2 E 3, 682.º, N.OS 1, 2 E 3, 788.º, N.OS 1 E 2 E 792.º, N.OS 1 E 4.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, APROVADA PELA LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGO 46.º.
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TREIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-07-2001, PROCESSO N.º 317/04.5TBVIS-C.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-10-2001, PROCESSO N.º 2601/01, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-05-2002, PROCESSO N.º 899/02, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-07-2003, PROCESSO N.º 1808/03, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-12-2004, PROCESSO N.º 3313/04, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-09-2006, PROCESSO N.º 2468/06, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-10-2008, PROCESSO N.º 4667/07, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-10-2009, PROCESSO N.º 1317/06.6TBOVR-C.S1;
- DE 20-05-2010, PROCESSO N.º 13465/06.8YYPRT-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-10-2010, PROCESSO N.º 9333/07.4TBVNG-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-10-2011, PROCESSO N.º 2313/07.1TBSTR-B.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-02-2012, PROCESSO N.º 8572/09.8TBVNG-A.P1.S1;
- DE 02-10-2014, PROCESSO N.º 464/03.0TBSLV-B.E1.S1;
- DE 18-02-2015, PROCESSO N.º 2451/08.3TBCLD.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-10-2015, PROCESSO N.º 5729/09.5YYPRT-C.P1.S1.
Sumário :
I - Constitui regra que o caso julgado material apenas vincula quem foi parte na causa em que aquele se formou, ou quem veio a assumir essa posição jurídica no decurso da lide, ou seja, explicitando melhor, quem foi ouvido e convencido na acção.

II - É, todavia, comum reconhecer-se a força reflexa ou expansiva do caso julgado, de modo a assegurar a coerência do sistema perante a existência de relações jurídicas interdependentes, conexas, subordinadas e prejudiciais, podendo afectar também terceiros, sendo então de fazer a destrinça entre terceiros juridicamente interessados e terceiros juridicamente indiferentes.

III - A sentença proferida em acção em que a credora hipotecária não interveio e que reconheceu o crédito reclamado e a garantia resultante do direito de retenção, limitou, de forma significativa, a consistência da posição jurídica daquela, que viu o verdadeiro potencial do direito real de garantia de que é titular ser seriamente atingido.

IV - A credora hipotecária é um terceiro juridicamente interessado, por ser titular de uma relação jurídica de garantia que se prefigura como incompatível com aquela que foi estabelecida na aludida sentença e, por tal motivo, aquela decisão não faz caso julgado, quanto a ela.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório

I – Na reclamação de créditos apensa à execução que AA, S.A. moveu a Sociedade Imobiliária BB, Lda., CC, DD e EE, no âmbito da qual foi penhorado, entre outros, o imóvel descrito na CRP de P... sob os n.º 7…3, onerado com hipoteca anteriormente registada, foi proferida sentença, datada de 28.01.2010, a reconhecer os créditos reclamados, entre eles figurando no que toca ao aludido imóvel, o crédito da Caixa FF, S.A. no montante global de €977 275,00, graduando-o em 1º lugar, seguido do crédito exequendo.

Já depois de transitada em julgado a sentença, mas antes da transmissão desse imóvel, GG e mulher, HH, deduziram reclamação, em 15.01.2015, pedindo o reconhecimento do crédito de €140 000,00 que têm sobre os executados EE, CC e DD, e a graduação do mesmo em primeiro lugar, atendendo ao direito de retenção que lhes foi reconhecido, por sentença judicial.

Para o efeito, alegaram que por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca do … Este foram os executados condenados a pagarem-lhes solidariamente a quantia de €140 000,00, acrescida de juros legais desde a data de citação até efectivo pagamento, reconhecendo-lhes ainda o direito de retenção sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2…3 da freguesia de P…, anteriormente inscrito na matriz 7…1, da extinta freguesia de …, descrito na conservatória de P… sob o n.º 7…6/200…8, da freguesia de ….

A credora Caixa FF deduziu oposição, dizendo que se lhe não impõe a sentença invocada pelos reclamantes, por não ter intervindo nesse processo, sendo que a mesma, reconhecendo-lhes o direito de retenção esvaziou o direito dela, pelo que lhe não pode ser oposta. Mais invocou a simulação do negócio em que se estribaram os reclamantes.

Os reclamantes responderam, defendendo a oponibilidade a terceiros da sentença que lhes reconheceu o direito de retenção.

Lavrou-se saneador, seguido da identificação do objecto do litigio e enunciação dos temas da prova e, realizada a audiência final, foi proferida sentença que, reconhecendo os direitos de crédito e retenção subsequentemente reclamados bem como a prevalência desta garantia sobre a hipoteca, refez a anterior sentença, no que toca ao aludido imóvel, estabelecendo, quanto ao mesmo, a seguinte graduação de créditos:

1) O crédito reclamado por GG e HH;

2) O crédito reclamado pela Caixa FF;

3) O crédito exequendo.

Apelou a Caixa FF, com êxito, tendo a Relação do Porto decidido julgar improcedente a reclamação de créditos subsequentemente deduzida, revogar a refeita sentença e manter a anterior graduação de créditos.

Agora inconformados, interpuseram os reclamantes recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões que se transcrevem:

1. Dos Requisitos Legais, previstos nos no artigo 788º do CPC para que o credor possa apresentar o articulado de Reclamação de Créditos, no âmbito do processo executivo: determinam os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 788º do CPC: "1- Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos. 2- A reclamação tem por base um título exequível e é deduzida no prazo de 15 dias a contar da citação do reclamante. 3- Os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados".

2. Este dipositivo normativo consigna que só o credor com garantia real sobre os bens penhorados e se apresente munido de título executivo tem o ónus de reclamar o seu crédito na execução, a fim de concorrer à distribuição do produto da venda. Ou seja, para reclamar crédito no âmbito da acção executiva, necessário se torna dispor de título exequível, exigindo-se, portanto, que o credor se apresente munido de título executivo (artigo 703º, n.º 1) - Cfr. neste sentido Ac. Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo 078655, no Acórdão de 13.02.1990.

3. O credor, no âmbito da reclamação de créditos, tem de exibir e fundamentar o seu crédito no título executivo pré-existente, que, no caso em apreço, se trata de uma sentença condenatória - artigo 703º, n.º 1, al a) do CPC.

4. De harmonia com o entendimento do STJ, perfilhado no Ac. da 1ª secção, relator MOREIRA CAMILO, de 30.11.2010 e, no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 4.06.2012, processo 3052/10.1TBSTR-C é, também, necessário, para que o direito de retenção seja reconhecido em sede de verificação e graduação de créditos que se junte título que reconheça esse mesmo direito.

5. No caso em apreço os credores/reclamantes, ora Recorrentes, exibiram e fundaram o reconhecimento do seu direito real de garantia numa sentença condenatória que reconheceu o incumprimento do promitente vendedor, e tradição da coisa para que o promitente-comprador, determinante na consagração do direito de retenção, tal como está consagrado no artigo 755º, n.º 1, alínea f) do Código Civil.

6. O título executivo junto com a reclamação de créditos é condição necessária, pois, não só, não há reclamação de créditos sem título, como a sua existência dispensa qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere.

7. Desconsiderou o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão Recorrido que o título executivo, além da eficácia própria do documento que o consubstancia, o título executivo constituiu base da presunção da existência (e titularidade) do crédito não apenas da existência do facto que a constituiu.

8. Como refere a sentença de primeira instância (muito bem) " Ademais, o credor tem de reclamar o seu crédito no processo, mas a lei não o obriga a repetir a alegação da causa de pedir e dos pedidos anteriormente formulados na ação declarativa (que deu origem ao título executivo invocado e carreado para os autos); tal reclamação basta-se com a invocação e junção aos autos do título que lhe reconheceu tal crédito."

9. Assim, atento ao exposto, o Ac. da Relação do Porto incorre em erro de raciocínio e de interpretação e aplicação do artigo 788º do CPC, pois o que sustenta o crédito alegado na reclamação de créditos e o direito de retenção invocado é o título executivo, é uma sentença, e é este título que o reclamante tem de exibir para fundamentar o seu crédito e a sua garantia. No momento de apresentação do articulado de reclamação de créditos (neste primeiro momento) o credor apenas tem de estar munido de título executivo que fundamente o seu crédito o seu direito real de garantia. São estes os requisitos que a lei prevê.

10. Sobre o impugnante, ora Recorrida, impendia a elisão da presunção de existência do crédito e do direito real de garantia estabelecida a partir do título executivo.

11. A Recorrida veio aos autos invocar uma excepção peremptória - a simulação do negócio celebrado - com aptidão para impedir o exercício do direito invocado e o funcionamento da sua garantia.

12. O ónus da prova de tais requisitos, porque constitutivos do respectivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação, no caso em apreço à Recorrida, Caixa FF, SA: factos que não foram dados como provados - cfr. A a D) dos factos dados como não provados da sentença proferida pela primeira instância e que não foram impugnados na Apelação pela ora Recorrida.

13. Com feito, julgou a primeira instância, BEM, que falece a tese da credora impugnante de que o contrato-promessa celebrado entre os credores reclamantes e os executados foi simulado, impondo-se o reconhecimento da sua existência, validade e eficácia.

14. Contudo e não obstante, os Recorrentes provaram todos os temas de provas que foram fixados no despacho saneador, para prova do seu crédito e direito real de garantia, não tendo sido objecto de recurso de apelação.

15. Foram carreadas para os autos, pelo ora Recorrentes, outras provas, além da sentença junta com o articulado de Reclamação de créditos:

■ PROVA TESTEMUNHAL ARROLADA PELOS RECORRENTES: II, residente na Rua … ns …, 4580- ….-P…; JJ, residente na Av. …., …,4560-… …-P…; KK, residente na Rua ..., 4560-…P…;

■ PROVA DOCUMENTAL: Contrato-Promessa; Cheque comprovativo de pagamento do sinal aos promitentes vendedores; Fotos das Benfeitorias realizadas no imóvel do qual se invocava o direito de retenção e que foi por sentença reconhecido {fotografias fls 277 e 278); carta de interpelação admonitória dirigida aos promitentes vendedores, onde consta a cominação, no caso de falta de comparência e comprovativos do seu envio e receção; certificado emitido pela solicitadora no dia da escritura, o qual atesta a falta dos promitentes vendedores e a cominação dessa falta: a perda do interesse na realização do negócio.

■ POR COLABORAÇÃO os ora credores reclamantes/ora Recorrentes carrearam ainda para os autos a prova solicitada pela ora Recorrida/Caixa FF, designadamente documentos que comprovam o pagamento e recebimento do montante a título de sinal - documentos juntos a fls. 186, 232 e 308 (cheque, extrato da caderneta bancária e informação bancária quanto ao destino da quantia paga por aquele cheque).

16. O depoimento destas três testemunhas e da demais prova carreada para os autos pelos Recorrentes em prova do seu crédito e direito de retenção - cuja consistência e fidedignidade não foram colocadas em causa pela Recorrida no seu Recurso de apelação, tal como o tribunal de primeira instância considerou.

17. Pese embora perfilharmos o entendimento da primeira instância e do Tribunal da Relação de …, no Acórdão de 14.06.2012, processo 3052/10.1TBSTR-C, que entendeu que "Não cabe aos credores reclamantes tornarem a repetir a ação tantas vezes as que tiver o seu crédito a ser impugnado, bastando-lhes juntar o título de que se encontram munidos, dando por reproduzida toda a factualidade que já foi discutida e dada como provada e não provada".

18. Facto é que os Recorrentes provaram, novamente, o seu crédito e o seu direito real de garantia na audiência de discussão e julgamento, carreando todas possíveis e necessárias, para esse efeito, cumpriram, por conseguinte, o ónus da prova que lhe competia, nos termos do artigo 342º, n.º 1 do CCivil.

19. Com feito, sobre o impugnante, ora Recorrida, impendia a elisão da presunção de existência do crédito e do direito real de garantia estabelecida a partir do título executivo.

20. Competia à Recorrida provar a simulação do negócio, o que não fez.

21. Competia à Recorrida provar que o título exibido pelos Recorrentes não era válido e que a garantia nele reconhecido não existia, o que não fez.

22. A Recorrida é que fracassou redondamente na impugnação do crédito e da garantia alegada pelos Recorrentes.

23. O Tribunal da Relação do Porto não considerou todos os factos levados à apreciação do tribunal da primeira instância, nem as provas carreadas para os autos pelos ora Recorrentes, nem a apreciação valorativa, dessa mesma prova, realizada pelo tribunal de primeira instância.

24. Mas, se o Tribunal da Relação do Porto, tivesse algumas dúvidas relativamente à matéria de facto produzida, atentas as alegações, contra-alegações e a complexidade da causa, podia e devia ter usado as faculdades previstas no artigo 662º, n.º 2 al. b), c) e d) e 3 do CPC e, ao não fazê-lo, violou esses mesmos imperativos legais.

25. Assim, atento ao exposto, o Ac. da Relação do Porto incorre em erro de raciocínio e de interpretação e aplicação do direito, alterando a decisão proferida pela primeira instância, designadamente os dispositivos normativos constantes do artigo 788º e 703º n.º 1 al. a), ambos do CPC, artigo 755º, n.º 2 n, al. f) e 759º do Código Civil e artigo 342º do Código Civil.

26. Do Caso Julgado - Saber se a sentença proferida na acção declarativa é ou não oponível à ora Recorrida, Caixa FF, SA: defendemos a posição que brilhantemente, a nosso ver, se encontra explanada e juridicamente fundamentada no Ac. proferido pela 2ª secção do Tribunal da Relação do Porto, de 13.01.2015, no âmbito do processo 5729/09.YYPRT-C.P1., cujo relator é o Exmo. Senhor Juiz Desembargador …, de que o credor hipotecário é terceiro juridicamente indiferente, sendo-lhe oponível a sentença proferida no Processo n.º 47/14.0T8PNF pelo Tribunal da Comarca Porto-Este, Instância Central Cível-J…, que serviu de título executivo à sua reclamação de créditos.

27. O reconhecimento do direito de retenção sobre o crédito dos ora credores, não afecta juridicamente o direito da Caixa FF, S.A., ora Recorrida uma vez que este continua o mesmo, com o mesmo conteúdo e a mesma garantia hipotecária.

28. E sempre se diga que a circunstância do direito da Caixa FF, ora Recorrida poder ser afectado na ordem da graduação de créditos, passando a situar-se abaixo do crédito pertencente aos ora Recorrentes não representa para aquela um prejuízo de natureza jurídica, mas tão só potencial prejuízo meramente táctico, de ordem apenas económica.

29. Atento ao exposto, é claro que sentença que reconhece a existência de direito de retenção sobre coisa hipotecada não causa prejuízo jurídico ao credor hipotecário, uma vez que não afecta a existência, a validade ou a consistência jurídica do seu direito.

30. Porém, não nos podemos olvidar do facto de a doutrina exigir, como supra se explicou e citou é que tal afetação seja apenas jurídica, não prática. Ou seja, a sentença cuja oponibilidade se discute não se dirige ao credor hipotecário, que é terceiro, por de alguma forma se colocar em crise o seu direito. Dirige-se a ele porque a sua situação prática, perante o direito de retenção, pode ser alterada. Isto é, o crédito da Recorrida acompanhado da sua garantia permanece intocável, nem a sentença que declara e reconhece o direito de retenção põe em causa o direito do credor hipotecário. - Cfr neste mesmo sentido Acórdão do Tribunal da Relação de … datado de 14.06.2012 proferido no âmbito do processo 3052/10.1TBSTR-C, relator: Meritíssimo Juiz Desembargador …. Também o Tribunal da Relação de … no âmbito do processo 734/10.1TBPRG.A.G1, no acórdão de 19 de Maio de 2016, também neste nosso sentido, Cfr. Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 16.3.1999, BMJ n°485, e Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.1999.

31. Assim, atento ao exposto, impõe-se a oponibilidade à credora hipotecária, ora Recorrente da Sentença proferida nos autos cujos termos correram Tribunal da Comarca Porto-Este, Instância Central Cível- J…, sob o Processo n.º 47/14.0T8PNF, há muito transitada em julgado e que reconheceu o crédito e o direito de retenção dos ora Recorrentes.

32. Por tudo o exposto, continuamos convencidos que a orientação supra exposta, relativamente à interpretação das normas da oponibilidade do caso julgado (artigos 498º e 671º do CPC) e da doutrina que subjaz à conceção e à qualificação dos terceiros juridicamente indiferentes é a mais correta, pois a tese contrária, perfilhada pelo Tribunal da Relação, no Ac recorrido, confunde afetação prática/económica com afetação jurídica, sendo certo que só esta última poderia relevar para qualificação do credor hipotecário como terceiro juridicamente interessado e para o afastar da eficácia do caso julgado decorrente do trânsito da sentença que reconheceu aos promitentes-compradores, ora Recorrentes o direito de retenção sobre o imóvel prometido.

33. A sentença proferida pela 1ª instância, que a nosso ver realiza a melhor interpretação do direito e da doutrina no que respeita à matéria ora recorrida, ao contrário do Acórdão Recorrido proferido pela Relação do Porto, "Sendo nossa perceção de que a tendência maioritária da jurisprudência (do STJ) vai no sentido de considerar o credor hipotecário como terceiro juridicamente interessado (...) sufragamos o entendimento vertido no primeiro acórdão citado (da Relação de …) [e em todos os que são referenciados e transcritos ao longo da nossa exposição] no sentido de caber ao credor impugnante destruir os fundamentos do credito do promitente-comprador e a garantia que o acompanha", (....) sendo que "esta conceção não belisca os direitos do credores impugnantes, que têm à sua disposição a faculdade de atacarem o direito e a garantia invocados, mas fazendo-o em termos concretos, ou sejam alegando e provando os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito em causa - artigo 576º, n.º 1, do CPC," o que no caso em apreço, diga-se, em abono da verdade não o fez com sucesso.

A Caixa FF ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso do recurso e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação de facto

As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. “AA, S.A.” instaurou, em 17 de Abril de 2008, acção executiva contra “Sociedade Imobiliária BB, Lda.”, CC, DD e EE, com vista à cobrança coerciva da quantia de €574.856,85 (quinhentos e setenta e quatro mil oitocentos e cinquenta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos).

2. Nessa execução, foi penhorado, entre outros, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de P… com o n.º 7…6/200…8 e actualmente inscrito na matriz sob o artigo 2…3.

3. O imóvel tem o direito de propriedade inscrito a favor da Executada CC.

4. Sobre o imóvel está ainda registada, desde 04 de Julho de 2007, hipoteca a favor da “Caixa FF, S.A.”, para garantia do montante máximo de € 977.275,00 (novecentos e setenta e sete mil duzentos e setenta e cinco euros).

5. Esse imóvel foi penhorado na execução em 03 de Julho de 2009.

6. No âmbito do processo n.º 47/14.0T8PNF, que correu termos pela Secção Cível da Instância Central de P…, foi proferida sentença, transitada em julgado em 28 de Janeiro de 2015, que reconheceu a existência, a favor de GG e HH, do direito a haver dos Réus CC, DD e EE a quantia de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros), acrescida de juros legais desde a citação até efectivo pagamento, crédito esse garantido por direito de retenção sobre o prédio identificado em 2).

7. Aí, deu-se como provado que:

i. Os Autores, em 27 de Abril de 2007, outorgaram com os Réus CC, EE e DD, contrato-promessa de compra e venda.

ii. Por esse contrato, os promitentes vendedores, ora Réus prometeram vender aos ora Autores, que por sua vez prometeram adquirir o “terreno para construção, com área de três mil cento e cinquenta e seis metros quadrados, sito no Lugar de …, freguesia de …, concelho de P…, a confrontar a Norte com o caminho público, a sul, nascente e poente com CC, inscrito na matriz sob o artigo 7…1, da freguesia de …, descrito na Conservatória de P… sob o nº 7…6/200…8, da freguesia de …”, livre de quaisquer ónus ou encargos.

iii. As partes convencionaram o preço de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros).

iv. Aquando da outorga do contrato-promessa os ora Autores liquidaram, a título de sinal, aos Réus CC, EE e DD, o montante de €70.000,00 (setenta mil euros), por cheque nº 14…2, da Caixa FF, de harmonia com o que convencionaram no contrato-promessa.

v. Convencionaram, ainda as partes, que competiria aos promitentes-vendedores a marcação da escritura pública, ficando estes incumbidos de avisar os promitentes - adquirentes, com uma antecedência mínima de 15 dias, da hora, dia e local da celebração da escritura.

vi. Com a outorga do contrato promessa, os Réus CC, EE e DD entregaram desde logo o referido prédio aos ora Autores, encontrando-se estes últimos, desde então a ocupá-lo.

vii. Assim, desde a outorga do contrato-promessa, que os Autores se encontram, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar o dito prédio, ocupando-o, nele fazendo benfeitorias, pagando os impostos e dele retirando todos os seus frutos e rendimentos, à vista de todas as pessoas e sem oposição de quem quer que sejam de forma ininterrupta e consecutiva, na convicção de que o prédio lhes pertencia.

viii. Desde a outorga do contrato-promessa compra e venda, nunca notificaram os ora Autores para a realização do contrato-prometido, apesar das várias interpelações nesse sentido, parte dos Autores.

ix. Os ora Autores, em 30 de maio do corrente ano, informaram, por escrito, os promitentes-vendedores/ora Réus do dia, hora e local a realizar a escritura do contrato-prometido.

x. No dia marcado para a escritura, 17 de Junho de 2014, os Réus/promitentes vendedores não compareceram.

xi. Nesse mesmo dia, os ora Autores tiveram conhecimento que sobre o prédio incide hipoteca voluntária a favor da Caixa FF, SA, registada pela AP …4, de 4 de Julho de 2007 e, uma penhora pela AP 2…3, de 3 de Julho de 2009.

xii. Em 7 de Julho de 2014, deduziram os Autores, embargos de terceiro, que deu origem ao processo 622/08.1TBPFR –B, que corre termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira.

xiii. Os Autores são os legítimos possuidores do prédio supra descrito.

xiv. Os Autores usam e fruem do prédio supra descrito, tendo já realizado benfeitorias, enquanto possuidores do mesmo, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma contínua, actuando sempre em conformidade e com a convicção de serem os legítimos e únicos possuidores e proprietários do referido prédio.


III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil[1]), passam pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas (inventariadas por ordem de precedência lógica):

· Ónus da prova de factos constitutivos do crédito reclamado (conclusões 1.ª a 13.ª e 25.ª);

· Insuficiência do elenco factual (conclusões 14.ª a 24.ª) e oponibilidade da sentença proferida no processo n.º 47/14.0T8PNF da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Porto Este (e já transitada em julgado[2]) à recorrida (conclusões 26.ª a 33.ª).

1 – Apreciando a primeira dessas questões, importa reter que, conforme deflui dos n.os 1 e 2 do artigo 788.º do Código de Processo Civil, a dedução de reclamação de créditos em processo executivo assenta num requisito de ordem material – a titularidade de um crédito dotado de garantia real sobre bens penhorados, o que se coaduna perfeitamente com a finalidade da convocação dos credores na fisionomia actual da lei adjectiva civil - a expurgação de ónus e encargos que onerem os bens que haverão de ser vendidos, adjudicados ou entregues (n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil). É ainda necessário, porém, que o crédito reclamando seja titulado, i.e. que esteja contido num título exequível e se, à data da dedução da reclamação, o credor não estiver ainda munido de um título exequível, restar-lhe-á lançar mão dos mecanismos a que aludem os n.os 1 e 4 do artigo 792.º do Código de Processo Civil para assim obter a titulação do seu crédito.

No caso, os recorrentes invocaram, na reclamação de créditos que deduziram, a existência de sentença judicial transitada em julgado (juntando a respectiva certidão) em que os executados foram condenados a pagarem-lhes a quantia de €140 000,00 e que ainda lhes reconheceu o direito de retenção sobre o prédio objecto do contrato promessa de compra e venda que aí se teve como definitivamente incumprido. Estão, pois, munidos de uma sentença condenatória, a qual constitui um título executivo, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, e, como não foram inicialmente citados e o bem sobre que recai a garantia resultante do direito de retenção ainda não foi transmitido, podem reclamar o seu crédito (artigo 788º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Não obstante a reclamação de créditos ser um enxerto declarativo do processo executivo não deixa de constituir uma verdadeira acção declarativa dotada de autonomia em relação a este, pelo que na decorrência do que se dispõe no n.º 1 do artigo 5.º, na alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º e no n.º 1 do artigo 788.º, todos do Código de Processo Civil, impende sobre o credor reclamante o ónus de alegar os factos que evidenciem que é titular de um direito de crédito e que goza de uma garantia real[3]. Por outro lado, impendendo sobre o reclamante esse ónus de alegação percebe-se e compreende-se que consequentemente impenda sobre aqueles contra quem é reclamado o crédito o ónus de lhe contraporem factos extintivos, modificativos ou impeditivos desse direito, sob pena de, por falta de impugnação, ser aquele tido como reconhecido (n.º 4 do artigo 789.º e n.º 4 do artigo 791.º, ambos do Código de Processo Civil).

Revertendo estas considerações para o caso em apreço, podemos afirmar que, de acordo com a teoria da substanciação, a causa de pedir da presente reclamação de créditos se resumia aos factos concretos dos quais provêm o direito de crédito (mormente, o contrato promessa de compra e venda e o respectivo incumprimento definitivo) e o direito de retenção invocados pelos recorrentes.

Sucede que, no articulado inicial da reclamação de créditos, os recorrentes limitaram-se a aludir ao teor da referida sentença e aos factos que ali foram tidos como demonstrados e a sustentar a tempestividade da reclamação, mas perante a alegação da Caixa FF de que tal sentença não constituía caso julgado, quanto a ela, os recorrentes complementaram a alegação nos artigos 5.º a 27.º da resposta que apresentaram, tendo alegado, em resumo, o teor do contrato promessa de compra e venda, a tradição material do imóvel que dele é objecto, o exercício da posse sobre o mesmo, a falta de celebração do contrato prometido, a falta de comparência dos promitentes vendedores a uma escritura pública agendada pelos impetrantes e a aquisição do conhecimento de que, sobre esse imóvel, incidia uma hipoteca voluntária e uma penhora registadas a favor da recorrida.

Ainda que se deva entender que, em regra, a remissão para o conteúdo de documento não se ajusta aos cânones a que deve obedecer a articulação dos elementos factuais que integram a causa de pedir, aceita-se que, no contexto atrás apontado, em que o documento é uma sentença e em que a deficiente alegação factual foi subsequentemente complementada que o ónus de alegação dos recorrentes foi observado e que sobre eles recai também o ónus de demonstração desses factos, por constitutivos dos invocados direitos de crédito e de garantia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Neste âmbito, porém, interessa relembrar que ao título executivo é reconhecida, ademais, uma função probatória e, constituindo o título executivo que serve de base à reclamação de créditos uma sentença condenatória transitada em julgado, deve reconhecer-se-lhe uma força probatória especial, não cabendo discutir a conformidade dos factos que nela foram tidos como provados com a realidade, mas apenas e quando muito a sua genuinidade[4]. Por isso, pode-se concluir que assiste razão aos recorrentes ao sustentarem que impendia sobre a recorrida o ónus de colocar em crise a particular força probatória que dimana da sentença com que instruíram a sua reclamação de créditos.

Anote-se, contudo, que o reconhecimento do acerto dessa alegação dos recorrentes não determina a imediata procedência do recurso, havendo antes que apreciar a questão que acima se elencou em último lugar.

2 – E, enfrentando-a, há que sublinhar, desde logo, que se trata de questão complexa, dado consistir em dilucidar se o caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 47/14.0T8PNF da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Porto Este é oponível à recorrida. Esta, como é preclaro, não foi parte nesses autos, resultando dos factos provados que tem inscrita a seu favor uma hipoteca incidente sobre o imóvel relativamente ao qual os recorrentes têm o direito de retenção reconhecido naquela decisão judicial.

Como resulta da conjugação do disposto no n.º 2 do artigo 581.º com a previsão do n.º 1 do artigo 619.º, ambos do Código de Processo Civil, o caso julgado material apenas vincula quem foi parte na causa em que aquele se formou, ou quem veio a assumir essa posição jurídica no decurso da lide, ou seja, explicitando melhor, quem foi ouvido e convencido na acção.

Com efeito, não é concebível que quem, involuntariamente, não teve a oportunidade de influenciar o desfecho da causa pudesse ficar abrangido pela decisão tomada nessa lide, até porque não é de menosprezar os riscos de ocorrência de conluio entre os litigantes. Pode-se, assim, assentir em reconhecer o princípio da irrelevância do caso em relação a terceiros, ou por outras palavras, que o caso julgado não os pode prejudicar nem beneficiar[5].

É, todavia, comum reconhecer-se a força reflexa ou expansiva do caso julgado, de modo a assegurar a coerência do sistema perante a existência de relações jurídicas interdependentes, conexas, subordinadas e prejudiciais, tanto mais que, não subsistindo estas em comportamentos estanques, é natural que a solução dada a um conflito influencie reflexamente a solução que deva ser dada a um outro conflito.

A eficácia reflexa que o caso julgado comporta é susceptível, porém, de causar um sacrifício para os interesses de terceiros, o que conduziu, como se sabe, à necessidade de definição dos termos em que tal imposição se pode ter como tolerável, sendo usual, para este efeito, categorizar os terceiros a quem se pretende estender a eficácia do caso julgado em função do prejuízo que daí para eles derivará[6].

Na primeira categoria, inserem-se os terceiros juridicamente indiferentes. Nela enquadram-se aqueles a quem o caso julgado é insusceptível de causar um prejuízo de índole estritamente jurídica (porque não afecta a integralidade ou a validade dos seus direitos), estando, portanto, adstritos a respeitá-lo. Se o prejuízo causado revestir diferente natureza – mormente, económica, o que se passará, vg., com os credores do devedor relativamente a acções que afectem a solvabilidade deste –, restará ao terceiro a interposição de recurso de revisão com fundamento na existência de simulação processual não detectada pelo juiz da causa (alínea g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil).

Na segunda categoria, inscrevem-se os terceiros juridicamente interessados, a quem a expansividade do caso julgado ocasiona um prejuízo jurídico, posição em que se encontra precisamente a recorrida em relação à decisão tomada na sentença proferida no processo n.º 47/14.0T8PNF da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Porto Este.

Na verdade, tanto o direito de retenção como a hipoteca são causas legítimas de preferência no pagamento no âmbito do concurso de credores (n.º 2 do artigo 604.º do Código Civil). Todavia e independentemente da anterioridade do registo da hipoteca, o direito de retenção goza de preferência no pagamento em relação ao credor hipotecário (n.ºs 1 e 2 do artigo 759.º do Código Civil) e, nessa medida, o decidido na aludida acção em que a recorrida não interveio, limitou, de forma significativa, a consistência da posição jurídica desta, que viu o verdadeiro potencial do direito real de garantia de que é titular ser seriamente atingido, afectação que, saliente-se, não se cinge ao domínio estritamente económico.

Deste modo, não se pode considerar que aquela, enquanto credora hipotecária, é um terceiro juridicamente indiferente, mas antes um terceiro juridicamente interessado que é titular de uma relação jurídica de garantia que se prefigura como incompatível com aquela que foi estabelecida na aludida sentença e, por tal motivo, aquela decisão não faz caso julgado, quanto a ela[7].

Tanto assim é que a acção declarativa a que se refere o n.º 5 do artigo 729.º do Código de Processo Civil deve ser intentada, em regime de litisconsórcio legal, contra os credores titulares de garantia real, o que evidencia que estes não são, na óptica da lei, qualificáveis como terceiros juridicamente indiferentes.

Aliás, as instâncias convergiram neste ponto, e a lide desenrolou-se, como expressamente é dito no saneamento feito na 1ª instância (cfr. folhas 211) que «os autos devem prosseguir com produção de prova…(….)…para apreciar se deve ser reconhecido o crédito reclamado…(…)…pelos alegados promitentes compradores sobre os executados (alegados promitentes vendedores), no montante de €140.000,00, correspondente a indemnização pelo sinal em dobro, e se esse crédito beneficia de direito de retenção». Mais, a seguir a essa definição do objecto do litigio, foram enunciados como temas da prova os seguintes:

“1 - celebração de contrato-promessa entre credores reclamantes (alegados promitentes compradores) e os executados (alegados promitentes vendedores), respeitante ao prédio descrito na CRP de P… sob o n.º 7…6;

2 - estipulação de sinal no contrato e pagamento daquele sinal pelos promitentes compradores aos promitentes vendedores;

3 - traditio do imóvel para os promitentes compradores e factos integradores da posse do imóvel por parte dos promitentes compradores/credores reclamantes;

4 - incumprimento do contrato-promessa por parte dos promitentes vendedores/executados;…(…).

Além disso, a pedido da Caixa FF, ora recorrida, foram determinadas, como se alcança de folhas 212 e 213, diligências instrutórias diversas, em que, para além da admissão dos depoimentos de parte dos promitentes compradores e vendedores, avultam especialmente a notificação dos primeiros para juntarem documentos comprovativos do pagamento do sinal, nomeadamente o extrato da conta em que o cheque junto fora descontado, bem como documentos comprovativos da sua capacidade económico-financeira para proceder ao pagamento de €70.000,00, no ano de 2007, incluindo cópia do IRS desse ano, e ainda a notificação dos executados (alegados promitentes vendedores) para juntarem documentos comprovativos do recebimento dessa importância, a titulo de sinal, designadamente cheque, transferência bancária, ou extrato demonstrativo de que tal valor foi creditado a favor deles.

Sucede que, no termo da audiência final, a sentença proferida não é suficientemente esclarecedora sobre se, na realidade, considerou provados os factos atinentes à celebração do contrato promessa, entrega do sinal, traditio do prédio e incumprimento da promessa, pois, como se vê de folhas 313 a 316, enquanto que, relativamente aos 6 primeiros pontos é dito que se provaram os factos, no tocante aos pontos seguintes é referido, em itálico e em alusão à referida sentença, que «aí deu-se como provado», a que se seguem os itens i. a xiv. do ponto 7.

Ora, o que havia (e há) que dilucidar é se esses factos dados por assentes na sentença anteriormente proferida e que, por não constituir caso julgado, em relação à recorrida, não lhe eram oponíveis, estavam ou não provados, no âmbito da reclamação de créditos, onde a mesma interveio e teve oportunidade de os contraditar. E dizendo-se que naquela sentença foram dados com provados, ainda mais em escrita diferente dos anteriores, suscita dúvidas e ambiguidade que urge dissipar. É certo que a motivação de facto empreendida pela 1ª instância e a indicação dos factos não provados indiciam que terá dado aquela factualidade como provada, mas na explanação de direito deixa novamente dúvidas, quando, a folhas 319 e 320, afirma que «a reclamação se basta com a invocação e junção aos autos do título que lhe reconheceu tal crédito», sendo certo que o acórdão da Relação, por não ter sido impugnada a decisão da matéria de facto, limitou-se a reproduzir em moldes idênticos, com excepção do itálico, esse elenco factual, não dissipando naturalmente essa dúvida.

Sem a dissipação dessa dúvida, com expressa clarificação dos factos aqui tidos por provados, função que incumbe exclusivamente às instâncias, o Supremo Tribunal de Justiça está impedido de aplicar, de imediato, o adequado regime jurídico (artigo 682º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), pelo que, perante essa inviabilidade, cremos que se impõe fazer uso dos poderes conferidos pelo n.º 3 do artigo 682º, do Cód. Proc. Civil e ordenar o reenvio do processo à 1ª instância em ordem a superar a apontada deficiência factual que, frise-se, não pode ser suprida pelo Supremo, cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os eventuais erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas realizadas pela Relação ou pela 1.ª instância (cfr. artigos 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

De qualquer modo, adianta-se, desde já, em termos de definição do regime jurídico aplicável, que a sorte da lide reclamatória impetrada pelos recorrentes dependerá da comprovação ou não, no âmbito deste processo, de toda essa factualidade atinente à invocada celebração de contrato-promessa entre credores reclamantes (alegados promitentes compradores) e os executados (alegados promitentes vendedores), pagamento do sinal, traditio do imóvel e incumprimento do contrato-promessa por parte dos promitentes vendedores.

É óbvio que se tal factualidade for considerada totalmente provada, o crédito dos recorrentes terá de ser reconhecido e, gozando o mesmo da garantia resultante do direito de retenção previsto no artigo 755º, n.º 1, alínea f), do Cód. Civil[8], com referência ao artigo 442º, deve ser graduado, nos termos do artigo 759º, n.ºs 1 e 2, ambos do Cód. Civil, antes do crédito hipotecário de que goza a recorrida. No fundo, há que manter a graduação refeita a folhas 323.

Contudo, se tal factualidade não vier a ser considerada provada, não há lugar a essa alteração graduadora e deverá manter-se a graduação de créditos anteriormente fixada na sentença de 28.01.2010 que constitui folhas 118 a 121.

Deste modo, procede o recurso, ainda que por razões não inteiramente coincidentes com as indicadas pelos recorrentes.


IV - Decisão

Nos termos expostos, concede-se a revista, anula-se o acórdão recorrido e determina-se o reenvio do processo à 1ª instância para, se possível, com intervenção da mesma Exma. Juíza e nos moldes sobreditos, ser clarificada a decisão da matéria de facto relevante, aplicando, de seguida, o regime jurídico antes definido.

Custas pela parte vencida a final.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).


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Lisboa, 12 de Abril de 2018

António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Cuja certidão consta de fls. 239 e ss.
[3] Cfr, neste sentido, Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3.ª Edição, 2.ª Reimpressão, Almedina, pág. 475, Salvador da Costa, in O Concurso de Credores¸ 5.ª Edição, Almedina, pág. 213, Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo, Coimbra, pág. 855, e acórdão do STJ de 12/07/2011 (proc. n.º 317/04.5TBVIS-C.C1.S1), acessível em http://www.dgsi.pt.
[4] Cfr, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in A Exequibilidade da Pretensão, Edições Cosmo, pág. 33, e José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, pág. 84.
[5] Nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere solet na expressão latina ou, no dizer das Ordenações, A sentença não aproveita nem empece mais que às pessoas entre quem é dada.
[6] Cfr, a este propósito, José Alberto dos Reis, in Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, BFD, XVII, págs. 208 a 216 e 245 a 261, Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, págs. 309 a 316, João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil Revisto e Actualizado, II vol., Ed. AAFDL, págs. 778 a 784, e João de Matos Antunes Varela (J. Miguel Beleza/Sampaio Nora), in Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra, págs. 724 a 729;
[7] Cfr, neste sentido, Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, 5ª edição, pág. 230, Ana Taveira da Fonseca, in Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, em especial na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, teses, Almedina, 2015, págs. 362 e 363, Rui Pinto, obra citada, pág. 879, Salvador da Costa, obra citada, págs. 183 e 184, José Lebre de Freitas, in Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença, R.O.A., ano 66, vol. II, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 27/10/2015 (proc. n.º 5729/09.5YYPRT-C.P1.S1), de 02/10/2014 (proc. n.º 464/03.0TBSLV-B.E1.S1), de 16/02/2012 (proc. n.º 8572/09.8TBVNG-A.P1.S1), de 22/10/2009 (proc. n.º 1317/06.6TBOVR-C.S1, 23/10/2008 (proc. n.º 4667/07), 30/10/2001 (Revista n.º 2601/01), de 18/02/2015 (proc. n.º 2451/08.3TBCLD.L1.S1), de 07/10/2010 (proc. n.º 9333/07.4TBVNG-A.P1.S1), de 20/10/2011 (proc. n.º 2313/07.1TBSTR-B.E1.S1), de 20/05/2010 (proc. n.º 13465/06.8YYPRT-A.P1.S1), de 14/09/2006 (proc. n.º 2468/06), de 16/12/2004 (proc. n.º 3313/04), de 08/07/2003 (proc. n.º 1808/03), de 23/05/2002 (Agravo n.º 899/02), os oito últimos acessíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
[8] Cfr, neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 974, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, págs. 577 e 578, Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, págs. 590 e 591, Júlio Gomes, Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…), Cadernos de Direito Privado, n.º 11, pág. 12, Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, págs 226 e 227