Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
043643
Nº Convencional: JSTJ00020867
Relator: TEIXEIRA DO CARMO
Descritores: FURTO
FURTO DE USO DE VEÍCULO
CO-AUTORIA
Nº do Documento: SJ199309150436433
Data do Acordão: 09/15/1993
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N429 ANO1993 PAG488
Tribunal Recurso: T CR PORTO 2J
Processo no Tribunal Recurso: 211/92
Data: 10/19/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 296 ARTIGO 297 ARTIGO 304 N1.
DL 44939 DE 1963/03/27 ARTIGO 2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1973/10/30 IN BMJ N230 PAG59.
ACÓRDÃO RC DE 1979/02/07 IN CJ ANO1979 T1 PAG3.
ACÓRDÃO RE DE 1981/04/07 IN CJ ANO1981 T2 PAG263.
ACÓRDÃO STJ DE 1976/07/14 IN BMJ N259 PAG135.
ACÓRDÃO RP DE 1987/11/11 IN CJ ANO1987 T5 PAG231.
ACÓRDÃO STJ PROC40205 DE 1989/10/18.
ACÓRDÃO STJ PROC40378 DE 1990/01/16.
ACÓRDÃO STJ DE 1984/07/18 IN BMJ N339 PAG276.
Sumário : I - O "furtum rei" é, por natureza, um crime de execução instantânea, cuja consumação se opera com a subtracção, sendo pois seu elemento constitutivo a intenção de apropriação da coisa alheia contra vontade do dono, operada pela subtracção.
II - No crime de "furtum usus", embora exista subtracção da coisa, o agente apodera-se dela, contra a vontade ou sem o consentimento do dono ou do seu legítimo possuidor, mas não o faz com animus apropriativo, no sentido de integrar definitivamente a coisa subtraída no seu património ou no de terceiro; apenas pretende servir-se dela por algum tempo, sendo sua vontade restituí-la ou criar as condições para que a coisa regresse ao património ou esfera patrimonial do despojado.
III - Há co-autoria material quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas à luz das regras da experiência comum.
IV - É co-autor do crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304 n. 1 do Código Penal, o arguido que, após outro arguido se ter apoderado de um veículo, foi por este convidado a dar umas voltas nele porque tomou conhecimento dessa situação anti-jurídica, e a ela aderiu plenamente, tomando assim parte na sua execução.
Decisão Texto Integral: Acordão dos juízes deste Supremo Tribunal de Justiça, na 1 subsecção crimial:
No 2 Juízo Criminal da Comarca do Porto, em processo comum - Processo n. 211/92, da 1 secção - e perante o Tribunal Colectivo, foram submetidos a julgamento os arguidos.
1- A, solteiro, estafeta, nascido em 29 de Julho de 1972, e,
2- B, solteiro, estudante, nascido em 4 de Maio de 1971, ambos com os sinais dos autos instantes,porquanto, vinham acusados pelo Ministério Público, o primeiro, da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 296 e 297, n. 1, alínea a), e de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 177, ns. 1 e 2, disposição estas todas do Código Penal,em concurso real de infracção entre si e com o crime previsto e punido pelo artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Julho, na redacção dada do art. 46 do Código da Estrada, e, o segundo, da prática de um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304, n. 1, do Código Penal, infracções pessoas estas fundamentadoras do despacho de pronúncia de folhas 126.
A folhas 98, a E.D.P. - Electricidade de Portugal, S.A, deduziu pedido Cível contra o arguido A, no montante de 42598 escudos, acrescida tal quantia de juros de mora desde a notificação e até integral pagamento, à taxa legal, este, fundamentado nos factos dos autos e alegada conduta do arguido, causadora de danos materiais à demandante naquele montante.
A folhas 131, o ofendido C formulou, de igual modo, pedido de indemnização civil contra os aqui arguidos, o qual porém não foi admitido, como consta do despacho de folhas 134 e verso, com fundamento na sua intempestividade;
Procedeu-se ao julgamento com observância do ritualismo legal, tendo, no final, sido proferido o acórdão de folhas 174 a 178 verso, donde se extrai que, na procedência da acusação, foram, o A, condenado pela prática de um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304, n. 1, do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão, de um crime de introdução em local vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 177, n. 2, do Código Penal, em 2 meses de prisão, e, pela infracção referente à condução de veículo automóvel sem carta, prevista e punida pelo artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90, em seis (6) meses de prisão, ou seja, em cúmulo, na pena unitária de vinte (20) meses de prisão, e, o B condenado na pena de 7 meses de prisão, pela comissão do crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304, n. 1, do Código Penal, sendo que, quanto a este último arguido, nos termos do artigo 48 do Código Penal, o tribunal decretou a suspensão da execução da respectiva pena pelo período de um (1) ano.
Relativamente ao pedido Cível formulado pela E.D.P. contra o arguido A, foi este mesmo arguido condenado no pagamento àquela demandante da totalidade do pedido.
Mais foram os arguidos condenados no pagamento das custas do processo, com 3000 escudos de procuradoria, e, bem, assim a pagarem as despesas reclamadas a folhas 166.
Inconformado com tal decisão, do mesmo interpôs recurso em acta, subsequentemente à leitura do acórdão, o arguido B, através do seu advogado, o qual foi admitido.
A respectiva motivação consta de folhas 192 a 193 verso, sendo que nela, e em sede conclusiva, aduz o recorrente:
- O tribunal "a quo", ao interpretar o artigo 304, n. 1, do Código Penal, considerou que a mera utilização de um veículo contra a vontade de quem de direito é bastante só por si de integrar o conceito de crime de furto de uso de veículo, abstraindo assim e sendo indiferente o elemento material e psicológico da posse;
- O tribunal "a quo" fez incorrecta interpretação do referido preceito;
- A lei penal, no seu artigo 304, n. 1, apenas pretende atingir a situação de posse (corpus e animus) decorrente de subtracção fraudulenta (furto, usucapião);
- Os factos imputados ao arguido B na acusação não traduzem nem integram o conceito de posse, porque o seu comportamento não consubstancia a prática do crime de que vem acusado, impondo-se, pois, a sua absolvição, o que o recorrente imputa, como consequência do provimento do recurso.
No seu turno, o Ministério Público, inconformado também com a decisão em causa, veio igualmente interpôr recurso, que igualmente motivou, aduzindo em resumo e em conclusão:
- O crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304, n. 1, do Código Penal, pressupõe que alguém retire ilegitimamente o veículo da esfera da disponibilidade de quem, de direito, o detem ou possui,
- Por falta desse elemento - subtracção - não pode a conduta de B ser qualificada como crime, tendo por isso sido violado o disposto no artigo 304, n. 1, do Código Penal;
- termos em que o arguido deverá ser absolvido da prática de tal delito.
Igualmente o recurso interposto pelo Ministério Público foi admitido. Não obtiveram resposta os recursos interpostos.
Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Juustiça, tendo tido visto dos mesmos o Excelentíssimo Procurador Geral Adjunto.
Correram os vistos legais e, por fim, teve lugar a audiência oral, na qual foi observado o legal ritualismo.
O que tudo visto, cumpre decidir.
No acórdão recorrido, vêm dados como provados os seguintes factos.
- Aos 8 de Fevereiro de 1992, cerca das 5 horas, o arguido A saltou a vedação de acesso à garagem da residência de C, sita no Porto e após, com recurso à força física, ter aberto a porta da referida garagem, introduziu-se no interior do veículo auto-caravana, marca Iveco, modelo Turbo Daily, 35/10, cor creme, matrícula RH, que fora estacionado no local, pelo seu proprietário, o C;
- Aproveitando-se do facto da viatura ter as chaves na ignição, colocou-a em andamento, afastando-se do local, não sem antes embater contra as partes de alumínio da garagem,
- Dirigiu-se a casa do B, seu amigo, onde o veio a encontrar cerca das 8 horas, convidando-o a circular consigo dentro da viatura, dando "umas voltas";
- Ao que o mesmo acedeu, sabendo bem que o A não era possuidor de qualquer auto-caravana, tão pouco familiar dele ou sequer, pessoa conhecida ou amiga;
- No entanto, nada perguntou ao seu amigo sobre a proveniência da viatura, sendo que, pelo menos, logo que entrou na mesma o próprio A lhe referiu o que se passava;
- Na sequência do que se dirigiram de norte, para sul e, posteriormente, quando circulavam já na estrada que passa perto do lugar de Moínhos - Sanfins, Santa Maria da Feira, sendo então cerca das 8,30 horas, o arguido A perdeu o controlo da viatura, que se despistou e foi embater num posto da E.D.P. e muros, ali sitos;
- No momento, seguia a velocidade inadequada por excessiva, relativamente ao estado da via, e natureza da viatura;
- De tal embate resultaram, directa e necessariamente, danos; a) No poste da E.D.P., no valor de 42598 escudos (substituição e mão de obra); b) No muro existente no local do acidente, no valor declarado de 370 contos, c) na auto-caravana, no valor global de aproximadamente
1980000 escudos, d) Na garagem do C, no valor de 46800 escudos;
- A tal veículo foi atribuído o valor de 7000000 escudos;
- Não era o arguido A possuidor de carta de condução;
- Ambos os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, no perfeito conhecimento da punibilidade das respectivas condutas;
- O B era aluno do 3 ano de Jornalismo;
- Utilizaram o veículo, que o A subtraiu, na manifesta intenção de transitar com o mesmo e retirar prazer de tal acto, e sabendo bem ambos os arguidos que o dono legitimo do mesmo não consentia em tal detenção e uso;
- Ainda o A, quando se introduziu na garagem do ofendido C, não ignorava que o fazia contra a vontade e sem autorização do proprietário respectivo, e de proibição legalmente expressa de o fazer;
- O arguido A é oriundo de uma família de origem sócio-económica média baixa, e fez um percurso adolescente com alguns desvios, passando pela tóxico-dependência de drogas leves e álcool, contando com uma condenação em pena de prisão, suspensa à taxa destes factos,
- Tem o ciclo preparatório, ao tempo trabalhava como estafeta, no que auferia cerca de 60000 escudos mensais, e com os quais contribuía com 10000 escudos mensais para o agregado;
- Confessou os factos e demonstrou arrependimento;
- Conta com o apoio da família;
- O B trata-se de estudante da Escola Superior de Jornalismo (3º ano);
- Vive com a mãe, divorciada há cerca de onze anos, professora do Ensino Secundário, e uma irmã mais nova, estudante;
- O pai, Engenheiro, com quem mantinha relações algo agitada pelos sentimentos de culpa que aquele atribuía pela separação, faleceu há cerca de 2 anos;
- A condição social média a que pertence o arguido, digo o agregado do B não tem correspondência na situação económica de família que consta apenas com o vencimento da mãe, o qual é cerca de 200000 escudos mensais; de resto, o apartamento em que vivem é do tipo I, a justificar as tais carências económicas referidas;
- A adolescência do arguido B, marcada pela separação dos pais, e contradições sempre narradas estiveram na origem de uma relação distante, cada vez com menos diálogo entre este e primeiro os pais, e depois a mãe;
- É considerado no seu meio como introvertido, bem comportado e portador de uma personalidade conforme aos valores sociais determinantes;
- Ultimamente trabalhava no jornal "O Primeiro de Janeiro";
- Não tem antecedentes, nem lhe são conhecidos crimes indiciados posteriormente, tendo confessado os factos, ainda que com alguma relutância na admissão da sua quota parte de responsabilidade nos mesmos;
- O B, jovem supostamente inteligente e arguto (de grau médio, quanto mais não fosse ao nível do intelecto), sempre face às circunstâncias de facto provadas, representou a realização dos mesmos, como consequência necessária da sua conduta.
Muito de propósito colocámos entre a matéria de facto dada como provada ou alinhada como tal em último lugar a que, como tal, aí aparece, pois, salvo o devido respeito, para além de pouco ou nada trazer de novo à factualidade "Ambos os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, no perfeito conhecimento da punibilidade das respectivas condutas", estamos em crer que essa matéria ultrapassa a simples facticidade, situando-se, sim, no domínio do conclusivo, do axiológico.
Os recursos interpostos reconduzem-se ou circunscrevem-se à punibilidade ou não da conduta do arguido B, com respeito pois ao único ilícito penal que se lhe assaca ou imputa na decisão recorrida, consubstanciado no crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304, n. 1, do Código Penal.
Ambos os aqui recorrentes, arguido B e o próprio Ministério Público, repelem ou retiram à conduta do mesmo B a natureza jurídico criminal, isto é, a potencialidade de efectivamente preencher o ilícito penal imputado objectiva e subjectivamente e que conduziu à sua condenação em pena que, entretanto ficou suspensa na sua execução, como se referiu atrás.
Estatuiu-se no n. 1 do artigo 304 do Código Penal:
"Quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta contra a vontade de quem de direito será punido com prisão até 2 anos ou multa até 50 dias, salvo se a pena mais grave for cominada para o facto em outra disposição legal".
Estabelece-se aqui a incriminação do uso de veículos contra a vontade de quem tem o poder de deles dispôr.
O Decreto-Lei n. 44939, de 27 de Março de 1963, cuja vigência cessou, como sabemos, pôr termo a uma discussão, até essa data travada, sobre a punição do furto de uso. Incriminou este furto, conferindo-lhe dignidade jurídico-criminal, e ainda, de modo especial, o furto de viaturas. Em tal Diploma, no seu artigo 2, prescrevia-se: "O furto do uso de qualquer objecto é punido com as penas correspondentes ao furto da própria coisa, mas atenuadas".
De notar, refere Maia Gonçalves no seu Código Penal anotado - 1984, 2 edição, a pag. 420, que só subsiste agora o furto do uso de veículos, deixando, portanto de ser incriminado, em geral, o furto de quaisquer objectos.
Os artigos 296 e 297, do vigente Código Penal, só incriminam, como é bem de ver, o "furtum rei", ou seja, a subtracção com ânimo definitivo de coisa alheia, deixando à margem o "furtum usus".
Em o Código Penal de 1982, de Leal Henriques e Lima Santos (1987), a respeito do furto de uso e em anotação ao artigo 304, escreveu-se que ele ocorre quando: a) "Alguém arbitrariamente retira" - elemento que se aproxima do elemento subtracção, b) "coisa alheia móvel infringível - é necessário que a coisa alheia móvel tenha natureza infringível (v.g. uma bicicleta, um automóvel).Mas não é qualquer coisa móvel que pode ser objecto deste tipo de furto, mas tão somente os veículos motorizados, automóveis, aeronaves, barcos ou bicicletas. O furto de uso de outras coisas não ultrapassa a órbita do ilícito civil"; c) "para dela se servir momentaneamente - o fim de uso momentâneo ou passageiro integra o dolo específico - O agente visa usar a coisa sem dela se apropriar definitivamente e deve servir-se dela de imediato. Não pode subtrair hoje para usar passados dias; então será "furtum rei"; d) "restituindo-se na íntegra - a restituição da coisa caracteriza este crime. Na verdade, se o agente quis tão somente usar a coisa tirada, a restituição é um imperativo, e deve ser breve, incluindo todos os seus acessórios. Se, v.g., durante a utilização de um automóvel foi consumida a gasolina que não foi reposta ocorre em relação a esta um crime de "furtum rei".
Azevedo Maia, tentando estabelecer uma distinção entre ambas as situações, e invocando a Jurisprudência - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Outubro de 1973, in Boletim do Ministério da Justiça 230-59, da Relação de Coimbra, de 7 de Fevereiro de 1979, in Colectânea da Jurisprudência de 1979, tomo 1, página 39, e da Relação de Évora de 7 de Abril de 1981, in Colectânea da Jurisprudência de 1981, tomo 2, página
263 - adianta que "Quer o crime de furtum rei, quer o de furtum usus consumam-se com a entrada do objecto apossado na esfera patrimonial do agente ou de terceiro, ficando na disponibilidade destes"!
Algo diferentes são porém tais crimes, muito embora neles a propensão criminosa seja a mesma - há uma vontade de apropriação! Mas, a apropriação no "furtum rei" é o em definitivo duma coisa, sendo certo que no furto de uso, a propensão do agente consubstancia-se numa vontade de apropriação da coisa por algum tempo e beneficiar do seu uso (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 1976, in Boletim do Ministério da Justiça 259-135).
Como se sustenta na Doutrina e na Jurisprudência, no crime de furto da coisa há como que um atentado contra a propriedade perfeita e, no de furto de uso, o atentado como que atinge a propriedade imperfeita.
A Relação do Porto, em seu acórdão de 11 de Novembro de 1987, in Colectãnea da Jurisprudência 1987, tomo V, página 231 pronunciou-se no sentido de que "É elemento essencial do furto de uso a subtracção de determinadas coisas alheias (automóveis ou outros veículos, aeronaves, barcos ou bicicletas) para delas o agente se servir momentânea ou passageiramente, deixando-as, a seguir, prontas a reingressar na esfera patrimonial do lesado".
No mesmo sentido ainda, pronunciou-se a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 17 de Fevereiro de 1988, citando Nelson Hungria. "Ocorre o chamado furto de uso, quando alguém, arbitrariamente, retira coisa alheia infringível (v.g. um cavalo, um automóvel, um terno de roupa, um livro) para dela servir-se momentaneamente ou passageiramente, repondo-a a seguir, íntegra, na esfera de actividade patrimonial do dono".
Do que vimos de dizer ou expôr, temos que o "furtum rei" é, por sua natureza, um crime de execução instantânea, cuja consumação se opera com a subtracção.
É este seu elemento constitutivo, isto é, a intenção de apropriação de coisa alheia contra a vontade do dono, operada pela subtracção.
No crime de "furtum usus", embora exista subtracção da coisa - o agente lança mão dela, apodera-se dela, contra a vontade ou sem consentimento do dono ou do seu legitimo possuidor -, não o faz, contudo, com animus apropriativo, no sentido de integrar definitivamente a coisa subtraída no seu património ou no de terceiro.
Apenas pretende servir-se dela por algum tempo, sendo sua vontade restitui-la ou criar as condições para que a coisa regresse ao património ou esfera patrimonial do despojado. Enquanto que, no "furtum rei" a situação anti-jurídica que se criou é definitiva, exprimindo a vontade do agente, no "furtum usus" a situação anti-jurídica nascida da subtracção é momentânea, de relativa duração no tempo, sendo vontade do agente pôr-lhe fim. Tal, que se traduz numa realidade estrutural diferente, leva-nos à conclusão de que o crime de "furtum usus" não é, diferentemente do crime de "furtum rei", um crime de execução instantânea, cuja consumação se opera com a apropriação ilegítima da coisa pelo agente, mas sim um crime de execução permanente, cuja consumação não se esgota na subtracção, antes perdura enquanto subsistir a situação transitória, mas anti-jurídica, criada, cessando quando o agente abrir mão da coisa, deixando-a a seguir, pronta a reingressar na esfera patrimonial do lesado. Debruçados sobre o caso concreto dos autos, o B, como ficou assente, foi procurado em sua casa pelo A, de quem era amigo, que o convidou a circular consigo dentro da viatura, dando "umas voltas", ao que o mesmo B acedeu, sabendo bem que o A não era possuidor de qualquer auto-caravana,tão pouco familiar dele ou sequer pessoa conhecida ou amiga. No entanto, como ficou provado, nada perguntou o B ao A sobre a proveniência da viatura, sendo que, pelo menos, logo que entrou na mesma o próprio A lhe referiu o que se passava...
Em suma, o A convidou o B para dar "umas voltas" num veículo automóvel (auto-caravana), que substraira algumas horas antes para o efeito, o que o B aceitou (conhecedor do que se havia passado com a mesma viatura, pelo menos, logo que entrou nela), sendo que "utilizaram o veículo, que o A subtraiu, na manifesta intenção de transitar com o mesmo e retirar prazer de tal acto, e sabendo bem ambos os arguidos que o dono legítimo do mesmo não consentia em tal detenção ou uso", acrescendo que "ambos os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, no perfeito conhecimento da punibilidade das respectivas condutas".
Como se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, em 18 de Outubro de 1989, Processo n. 40205.
1- São autores do crime aqueles que tomam parte directa na execução, não precisando cada um dos agentes cometer integralmente o facto punível, de executar todos os factos correspondentes ao preceito incriminador;
2- É co-autor material de uma infracção aquele que, mediante acordo prévio com outros agentes, pratica acto de execução destinado a executá-la. Não é necessário, para tanto, que tome parte na execução de todos esses actos, bastando que seja incriminada a actuação total de todos os agentes...."
Este mesmo Supremo Tribunal de justiça, em seu acórdão de 16 de Janeiro de 1990, in Processo 40378, a respeito da co-autoria, pronunciou-se, decidindo pois, no sentido de que "há co-autoria material quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum....".
Feitas, pois, estas considerações, importa ainda atentar no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de julho de 1984, in Boletim do Ministério da Justiça n. 339, página 276, no qual, tratando-se de temática da comparticipação criminosa sob forma de co-autoria, aí se decidiu que"...são essenciais dois requisitos, uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado e uma execução igualmente conjunta;
2- Porém, para que se verifique o primeiro requisito, de natureza subjectiva, é necessário que se prove que os dois ou mais comparticipantes quiseram a execução do mesmo crime, que fosse conseguido ou atingido um determinado resultado, qualquer que seja o meio (e com expressa anuência a certo ou certos meios) para tanto ser conseguido. Já relativamente à execução propriamente dita, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar para obtenção do resultado desejado e pretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado".
Bem andou, face às razões expostas, o tribunal "a quo" em subsumir a conduta do arguido B à Co-autoria do crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 304, n. 1, do Código Penal, não nos merecendo censura, pois, quer o enquadramento jurídico-penal feito, quer a pena concretamente imposta e, finalmente, o ter-se decretado a suspensão da execução da mesma pena pelo período de 1 (um) ano. Tudo se ajusta ao quadro factual emergente da discussão. A circunstância de ter sido o arguido A quem, sozinho, de inicio se apoderou da viatura, não retira a responsabilidade criminal do B que, convidado, posto perante uma situação anti-jurídica que estava em curso e de que tomou conhecimento, à mesma aderiu plenamente, tomando parte na sua execução, fazendo-se passear na viatura subtraída para o efeito, situação que só veio a terminar com o embate.
Face a tudo quanto vem de ser exposto,acordam os juizes deste Supremo Tribunal de Justiça, na 1 subsecção criminal, em negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido B e pelo Ministério Público, confirmando-se na integra a decisão recorrida.
Vai o arguido recorrente condenado em 3 UCS de taxa de justiça, fixando-se a procuradoria em 10000 escudos.
Lisboa, 15 de Setembro de 1993.
Teixeira do Carmo,
Amado Gomes,
Silva Reis,
Sá Nogueira.