Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1687/22.9T8BRR-C.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
TEMPESTIVIDADE
DILAÇÃO DO PRAZO
MULTA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PROCESSO URGENTE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE .
Sumário :

A reclamação de créditos, prevista no n.2 do art.17º-D do CIRE, que o credor apresentou no 21º dia do prazo (tendo pago a inerente multa) deve considerar-se tempestiva, porque a dilação prevista no n.5 do art.139º do CPC é aplicável ao Processo Especial de Revitalização, regulado nos artigos 17º-A a 17º-J do CIRE (por remissão do art.17º do CIRE).

Decisão Texto Integral:

Processo nº. 1687/22.9T8BRR-C.L1.S1


Recorrente: SEW – EURODRIVE PORTUGAL, Ldª


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. A requerente “R&C, SGPS, Ldª”, apresentou em 07.07.2022, processo especial de revitalização [PER], no qual foi nomeado, em 21.07.2022, o Administrador Judicial Provisório.


2. A credora “SEW – EURODRIVE PORTUGAL, Ldª”, reclamou um crédito comum, no montante de € 643.640,41, que enviou ao Administrador Judicial Provisório, por correio eletrónico, em 12.08.2022.


3. O prazo para a apresentação da lista provisória, previsto no art.17º-D, n.2 do CIRE terminou em 11.08.2022.


4. Em 13.08.2022 o Administrador Judicial Provisório juntou aos autos a lista provisória de créditos a que alude o artigo 17.º-D, n. 3 do CIRE, a qual foi publicitada.


A reclamante SEW, em 16.08.2022, impugnou a lista provisória apresentada, pelo facto de o seu crédito não constar de tal lista.


Requereu que fosse declarada tempestiva a reclamação de créditos apresentada, ou que fosse atendida a impugnação e considerado reclamado o crédito.


Juntou comprovativo do pagamento da multa a que alude o art. 139º n. 5 do CPC.


5. A primeira instância proferiu despacho, no qual concluiu nos seguintes termos:


«(…) o crédito em questão não foi relacionado pela requerente, nem se evidencia que conste na respectiva contabilidade, e também não se pode considerar que chegou em momento próprio ao conhecimento do administrador judicial provisório (e que só poderia ser até ao termo do prazo, 20 dias, pois em seguida corre o prazo curtíssimo de cinco dias para elaboração da lista).


Ademais, se a impugnação poderá servir, naturalmente, para discutir a tempestividade da reclamação de créditos anteriormente efectuada, não pode servir – porque não é essa a sua finalidade – para pedir a verificação e reconhecimento de um crédito que não foi reclamado em tempo oportuno e que também não consta da lista de credores, sob pena de os credores recorrerem à impugnação para procederem à reclamação fora dos trâmites legais. (…)


Em face de tudo o que fica dito, conclui-se que a impugnante não reclamou tempestivamente o crédito junto do administrador judicial provisório, não podendo socorrer-se para esse efeito do art. 139º n.º 5 do CPC, nem sendo de admitir a reclamação do crédito por via da impugnação da lista provisória de credores.


Pelos fundamentos expostos, a impugnação é improcedente, o que assim se declara».


6. Inconformada, a reclamante interpôs recurso de apelação.


Todavia, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 15.12.2022, decidiu: «julgar improcedente a apelação, mantendo-se o despacho proferido


7. A credora “SEW – EURODRIVE PORTUGAL, Ldª”, inconformada com o referido acórdão do TRL, interpôs o presente recurso de revista. Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:


«A - O Acórdão recorrido está em contradição com outros já transitados em julgado, proferidos por outras Relações e pelo Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesa legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito, designadamente com:


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no proferido em 22.06.2021, P.3985/20.7T8VNF.G1.S1, em www.dgsi.pt;


- Acórdão da Relação de Évora proferido no âmbito do processo 1019/15.2T8STR-A.E1, de 05.11.2015, consultável em www.dgsi.pt.


B - Assim, o acórdão recorrido está em oposição com os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em 22-06.2021, P.3985/20.7T8VNF.G1.S1, disponível em


www.dgsi, “acórdão fundamento”; cf. Doc. n.1; e pelo acórdão da Relação de Évora, proferido no âmbito do processo 1019/15.2T8STR-A.E1, de 05-11-2015 (acórdão fundamento), cf. Doc. n.2, sem que exista jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça conforme ao primeiro (cfr. art. 14.º, n.º 1 do CIRE e art. 686.º e 687.º do CPC ex vi art. 14.º, n.º 1 do CIRE).


C - Ademais, do próprio Acórdão recorrido, “resulta que a questão em apreço tem sido alvo de discordância, quer na doutrina quer na Jurisprudência.”


D - Todavia inclinamo-nos para a Jurisprudência citada nos dois acórdãos juntos, ao


invés do que foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, (recorrido) que se encontra em oposição, com aqueles, desde logo porque,


E – Salvo melhor opinião, por força do disposto no artigo 17.º do CIRE, os processos regulados naquele diploma, regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE.


F – E, em lado algum, o CIRE afasta a aplicação do artigo 139.º n.º 5 do C.P.C., a TODOS OS PROCESSOS, ali previstos.


G - A demonstrar que a tese sufragada no Acórdão recorrido da Relação de Lisboa, sob recurso, não pode colher qualquer fruto abona a constatação de que percorrendo todo o diploma do CIRE, se consegue vislumbrar qualquer alusão à inaplicabilidade do artigo 139.º do C.P.C., a qualquer dos processos de PER, Insolvência, etc.


H -Não tendo o legislador, arredado expressamente o artigo 139.º do C.P.C., de qualquer um dos processos previstos no PER, então o mesmo de ser a eles aplicável.


I - Se se entender não ser de aplicar o 139.º n.º 5 do C.P.C., ao PER, então também não poderia ter aplicabilidade ao processo de Insolvência, ambos previstos no CIRE, como aliás é uma constatação que se retira da simples leitura do Capitulo II, Processo Especial de Revitalização do CIRE.


J - Aliás, a vingar a tese colhida pela R.L, no douto acórdão, jamais poderá qualquer credor lançar mão do regime do justo impedimento, ou serem de aplicar as regras de notificação entre mandatários, pois também não se encontram previstas no CIRE.


L - Não olvidamos que o prazo de 20 dias, é uno para todos os credores, sem qualquer dilação, no entanto tal desiderato não afasta a aplicação 139.º n.º 5 do C.P.C.. – vide Ac. do da Relação de Évora – Acórdão Fundamento - supra citado e junto como documento n.2.


M - Entendeu a Relação de Lisboa, que o “PER apesar de um processo especial tem natureza hibrida”, todavia conforme resulta do Acórdão-fundamento do Supremo Tribunal de Justiça, aqui citado, o PER é um processo sujeito a escrutínio judicial, ainda que com peso extrajudicial.


N - Assim, o regime da multa do C.P.C., tem aplicação a todos os processos previstos no CIRE.


O - Pelo que, tendo a apelante reclamado o seu crédito no 1.º dia útil após o terminus do prazo de 20 dias, e pago a respetiva multa, deveria a reclamação de créditos ter sido considerada tempestivamente apresentada.


P - Ao não ter sido decidido assim, o despacho recorrido violou os artigos 17.º, 17.º-A, 17.º -D, do CIRE, e 139.º do C.P.C..


Q - Termos em que, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que considere a reclamação de créditos da Recorrente tempestivamente apresentada, e que seja reconhecido o seu crédito, com as demais consequências legais.


Termos em que deve merecer provimento o recurso e consequentemente ser:


Revogado o Acórdão recorrido, e ser substituído por outro, que admita a reclamação de créditos da apelante tempestivamente apresentada, nos termos supra alegados, com as demais consequências legais.»


8. A recorrida apresentou contra-alegações, defendendo, em síntese, a manutenção do acórdão recorrido.


Cabe apreciar.


*


II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS


1. Admissibilidade e objeto da revista:


1.1. A questão prévia da admissibilidade da revista


A recorrente invoca o art. 672º, n.1, alínea c) do CPC, bem como o art.14º do CIRE para sustentar a admissibilidade da revista.


Dada a natureza específica do art.14º do CIRE é esta norma que se aplica ao caso concreto, não tendo aplicação direta as regras gerais previstas no art.671º e 672º.


Como a jurisprudência do STJ tem entendido, o art.14.º do CIRE consagra um regime específico de recurso de revista que se afasta tanto das regras gerais da revista normal (art. 671.º), como das regras da revista excecional (art. 672.º), embora não prescinda da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade previstos no art. 629.º, n.º 1, do CPC. E como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente afirmado, o art.14º do CIRE também se aplica ao PER.


O acórdão recorrido não se pronuncia sobre uma decisão de mérito ou que ponha termo ao processo, mas sim sobre uma decisão de natureza essencialmente interlocutória, respeitante ao cumprimento de prazos na tramitação do PER. Todavia, a recorrente invoca a oposição entre o acórdão recorrido e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão fundamental de direito, pelo que a admissibilidade da revista é sustentável pelo critério operativo estabelecido no art.671º, n.2, alínea b) do CPC, enquanto elemento concretizador do âmbito de aplicação do art.14º do CIRE.


Constatando-se que a ação tem valor superior à alçada do tribunal da Relação, e que o acórdão recorrido se encontra, efetivamente, em oposição, sobre a mesma questão jurídica, com o acórdão do STJ, de 22.06.2021 (relator Luís Espírito Santo), no processo n.3985/20.7T8VNF.G1.S1, que o recorrente indicou como acórdão fundamento, admite-se a revista.


1.2. O objeto do presente recurso é o de saber se o n.5 do art.139º do CIRE pode ser aplicado na contagem dos prazos do PER, concretamente quanto ao prazo de 20 dias previsto no art.17º-D, n.2 do CIRE para o credor reclamar créditos.


2. Factualidade assente.


A factualidade relevante é a que consta do relatório do presente acórdão, para a qual se remete.


3. O direito aplicável:


3.1. O acórdão recorrido sumariou o seu entendimento nos seguintes termos:


«O PER apesar de se tratar de um processo judicial, tem uma natureza híbrida, essencialmente negocial e extrajudicial, imperando nele o primado da vontade dos credores, restando para o tribunal um papel residual, ou seja, o PER visa atingir uma maior celeridade processual através da menor intervenção do juiz, já que, a sua tramitação apenas corre parcialmente no tribunal, decorrendo a maior parte dos seus actos entre os devedores e os credores, com a supervisão do AJP.


A Lei quis precisamente adoptar um único prazo, igual para todos os credores, tendo sempre presente a celeridade do processo e esta especificidade do PER, não se coaduna com a possibilidade de aplicação ao caso do art. 139º, nº. 5 do CPC.»


A recorrente discorda deste entendimento, e sustenta que tendo apresentado a sua reclamação de créditos no primeiro dia útil posterior ao prazo de 20 dias fixado pelo art.17º-D, n.2 do CIRE, a prática desse ato devia considerar-se compreendida no prazo de dilação previsto no n.5 do art.139º do CPC, tanto mais que pagou a correspondente multa.


Como supra relatado, a recorrente apresentou a sua reclamação de créditos em 12.08.2022. O prazo de 20 dias, previsto no art.17º-D, n.2 do CIRE, para reclamar créditos terminou em 11.08.2022, ou seja, um dia antes de a credora recorrente apresentar aquela reclamação. Todavia, como consta de documento junto aos autos, a recorrente pagou a multa a que se refere o art.139º, n.5, alínea a) do CPC.


A primeira instância entendeu que aquela reclamação de créditos era intempestiva porque o prazo de 20 dias não consentia qualquer dilação. E a segunda instância confirmou esse entendimento.


3.2. Vejamos o quadro legal pertinente.


Dispõe o art.17º-D do CIRE (Tramitação subsequente):


«1- Logo que seja notificada do despacho a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, a empresa comunica, de imediato e por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º e a proposta de plano se encontram patentes na secretaria do tribunal, para consulta.


2 - Qualquer credor dispõe de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos.


3 - A lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.
4 - Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.
5 - Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o administrador judicial provisório nomeado e a empresa, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius. (…)»


Nos termos do art.139º, n.5 do CPC:


«Independentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:


a)Se o ato for praticado no 1º dia, a multa é fixada em 10% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ao ato, com o limite máximo de 1/2UC; (…)»


E dispõe o art.17º, n.1 do CIRE


«Os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código


3.3. Como se dá conta no acórdão do STJ que a recorrente indica como fundamento [o acórdão de 22.06.2021 (relator Luís Espirito Santo), proferido no processo n.3985/20.7T8VNF.G1.S1], a jurisprudência das Relações tem apresentado divergências quanto à questão de saber se a dilação legal automática, mediante pagamento de multa, prevista no art.139º, n.5 do CPC pode ou não ter aplicação ao PER.


A especificidade da sequência e da concatenação dos atos processuais, constante do regime do PER, levou uma parte da jurisprudência a entender que, apesar da remissão do art.17º do CIRE para o CPC, essa orgânica procedimental não deveria ser perturbada pela introdução do fator dilatório (de 1 a 3 dias) decorrente da aplicação das regras do art.139º. n.5 do CPC.


Outra parte da jurisprudência entendeu que (entre outros argumentos), se as regras previstas no art.139º, n.5 do CPC são genericamente aplicáveis aos atos a praticar no processo de insolvência (que tem natureza urgente, ex vi do art.9º do CIRE), tal como são aplicáveis à generalidade dos processos de natureza urgente, não existiriam razões suficientemente ponderosas para afastar a sua aplicação ao PER.


O art.17º-D do CIRE, cuja aplicação está em causa nos presentes autos, estabelece uma sequência lógica ou “encadeado” de atos destinados ao cumprimento de vários objetivos intercalares, que (tal como outras disposições deste regime) se alinham em vista do cumprimento do objetivo principal que é a aprovação do plano.


Nessa sequência procedimental identificam-se atos que são dirigidos ao administrador judicial provisório, bem como atos praticados diretamente perante o tribunal. Deste modo, tem sido entendido por alguma jurisprudência que tal natureza mista da estrutura do PER (integrada por atos judiciais e extrajudiciais) afastaria a aplicação do n.5 do art.139º do CPC, porque esta norma pressuporia sempre a prática de atos diretamente perante o tribunal.


Sendo certo que não se encontra no regime do PER qualquer norma específica que sustente, de forma clara, a exclusão do n.5 do art.139º do CPC para atos praticados perante o tribunal, e que este regime é supletivamente aplicável por força da remissão contida no art.17º do CIRE, poderia pensar-se numa distinção aplicativa, admitindo a dilação prevista no n.5 do art.139º do CPC apenas para os atos das partes dirigidos ao juiz (como no art.17º-D, n.3), e excluindo os atos dirigidos ao administrador judicial provisório. Todavia, o ganho de celeridade que decorreria desta hipótese mista não constituiria argumento decisivo para se sustentar, de modo sólido, tal divisão.


Acresce que, em rigor, a reclamação de créditos prevista no art.17º-D, n.2, apesar de dirigida ao administrador judicial provisório, não constituirá, em absoluto, um ato de natureza exclusivamente extrajudicial, já que a sua regularidade é suscetível de controlo judicial nos termos do n.3 do art.17º-D.


Quanto ao argumento, que se colhe no acórdão recorrido, respeitante à dificuldade prática para pagar as multas previstas no n.5 do art.139º do CPC, quando o ato é praticado perante o administrador judicial provisório, a factualidade dos presentes autos demonstra que esse não é verdadeiramente um obstáculo, pois o recorrente pagou a multa respeitante à prática do ato no 1º dia útil após o termo do prazo, como comprovou pelo documento que juntou aos autos.


3.4. A questão a decidir foi já apreciada, de modo uniforme e reiterado pelo STJ, e concretamente pela 6ª Secção, à qual pertence a competência especializada em matéria de Insolvência e processos conexos, como se ilustra pelas seguintes decisões:


- Acórdão do STJ, de 22.06.2021 (relator Luís Espírito Santo)1, no processo n.3985/20.7T8VNF.G1.S1:


«I- O artigo 139º, nº 5, do Código de Processo Civil, que confere às partes um prazo de condescendência ou tolerância, habilitando-as a praticar o acto processual nos três dias seguintes ao termo do respectivo prazo, mediante o pagamento da multa correspondente, é aplicável nos processos especiais de revitalização previstos nos artigos 17ºA e 17ºJ do CIRE.
II- Este prazo de condescendência reveste abrangência geral que beneficia as partes em todos os processos, indiscriminadamente, não fazendo sentido retirá-lo, de forma selectiva e cirúrgica, neste tipo de acções, sem que o legislador – podendo fazê-lo – o tenha feito.


III- Ainda que se aceite que o Processo Especial de Revitalização consista num procedimento com vincado peso extrajudicial, dominado pela autonomia de vontade dos interessados, o certo é que não deixa, em momento algum, de revestir igualmente a natureza de processo judicial, com enfâse na concessão da primazia devida à tutela jurisdicional dos direitos de acção e de defesa dos intervenientes, garantidos pelo sistema unitariamente considerado, que não deverá ser comprimida, desvalorizada ou menorizada, a pretexto de difusos e indefinidos desígnios de celeridade e uniformidade de prazos que, sendo em si meramente instrumentais ou operativos, não constituem valores essenciais e determinantes para definição das prerrogativas a conceder às partes.


IV- Retirar tal faculdade dos processos de revitalização, sem que a lei lhe dê o imprescindível respaldo, constituiria, para este tipo de acções judiciais, uma interpretação infundada que redundaria num inexplicável retrocesso na concessão de garantias às partes, enquanto contributo para a administração da justiça que assente, de forma prevalecente ou tendencial, na prossecução do princípio da verdade material e não no resultado do funcionamento de automatismos de índole estritamente formal


- Acórdão do STJ, de 12.01.2022 (relatora Maria Olinda Garcia)2, proferido no processo n. 5106/20.7T8VNG-B.P1.S1:


«A dilação prevista no n.5 do art.139º do CPC é aplicável ao Processo Especial de Revitalização, regulado nos artigos 17º-A a 17º-J do CIRE, (por remissão do art.17º do CIRE), concretamente ao prazo de 5 dias previsto no art.17º-F, n.2, in fine, para a devedora apresentar alterações ao plano de recuperação conducente à revitalização


Embora os casos sobre os quais se pronunciaram esses acórdãos não respeitassem diretamente à hipótese do prazo previsto no art.17º-D, n.2 do CIRE para a reclamação de créditos no PER, a jurisprudência que neles se formou revela uma admissibilidade da aplicação do n.5 do art.139º do CPC, com um âmbito mais abrangente do que o desses casos concretos, admitindo a aplicação dessa norma à generalidade dos prazos do PER (tal como tem sido entendido para a generalidade dos prazos do CIRE).


Deste modo, tendo presente que a razão pela qual o art.14º do CIRE admite o recurso de revista é, precisamente, a de orientar a jurisprudência em matérias insolvênciais, é esta a jurisprudência que seguimos no presente acórdão, subscrevendo e importando para o caso concreto os fundamentos decisórios explanados na supra referida jurisprudência do STJ.


Assim, há que concluir que a recorrente tem razão ao pedir que seja considerada como tempestiva a reclamação de créditos que apresentou no 1º dia útil após o termo do prazo previsto no art.17º-D, n.2 do CIRE.


3.5. Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação da lei ao caso concreto, pois determinando o art.17º do CIRE que as normas do CPC são supletivamente aplicáveis, quando não sejam especificamente contrariadas, e não existindo nas normas próprias do PER qualquer disposição que sustente a exclusão do art.139º, n.5 do CPC, esta norma tinha que ter sido aplicada no caso concreto.


Tendo a recorrente reclamado o seu crédito no primeiro dia útil após o termo do prazo de 20 dias, e comprovado nos autos o pagamento de multa correspondente a esse atraso, tem de se concluir que essa reclamação de créditos foi tempestivamente apresentada.


*


DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, o que tem por consequência a anulação do processado subsequente ao ato impugnado, cuja subsistência seja incompatível com a presente decisão, devendo os autos retomar a pertinente tramitação.


Custas: Sem custas uma vez que a procedência da revista não é imputável a facto praticado por qualquer das partes.


Lisboa, 15.03.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Ricardo Costa


António Barateiro Martins





Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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1. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/171f90cff16d6945802586fd0032ea02?OpenDocument↩︎

2. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1cd1d3a5c52a1ec2802587e60052f4b7?OpenDocument↩︎