Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5604/19.5T9LSB-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: ESCUSA
IMPARCIALIDADE
JUIZ CONSELHEIRO
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL.
Sumário :
I - Nos termos do art. 43.º, n.º 4, do CPP, o juiz pode pedir ao tribunal imediatamente superior (cf. art. 45.º, n.º 1, al. a), do CPP) que o escuse de intervir “quando ocorrer o risco de [a sua intervenção] ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art. 43.º, n.º 1, ex vi n.º 4). Constituem também motivos de escusa os referidos no art. 40.º, do CPP, bem como, para além deles, a intervenção em fases anteriores do mesmo processo, ou a participação em outro processo.
II - A partir do pedido apresentado pela Requerente, verificamos que houve um relacionamento estreito entre a Requerente e a Senhora Juíza Conselheira denunciada enquanto Inspetora-geral da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS). Na verdade, a Requerente e a denunciada exerceram ambas funções neste STJ, na 5ª secção, tendo participado em conjunto nas diversas sessões que se realizaram entre setembro de 2021 e março de 2023, naquela secção; para além de ainda se afigurar que esta colaboração venha a existir no processo ainda não decidido pela requerente e que lhe foi distribuído aquando da sua integração na 5.ª Secção do STJ. Acresce referir que a denunciada foi, em diversos acórdãos em que a Requerente foi relatora, Juíza Conselheira Adjunta. O que necessariamente tem como consequência uma troca intensa de impressões quanto às decisões e, portanto, uma regularidade de contactos seja pessoalmente, seja por via telefónica, videoconferência ou correio eletrónico.
III - E não se pode ignorar que, estando ambas na mesma secção com realização semanal de sessões onde se estabelece um convívio apertado entre todos os intervenientes e onde se trocam ideias sobre as diversas questões que urge decidir, fica criado o ambiente para um relacionamento estreito entre os diversos intervenientes. E após o final destas sessões, os seus membros, regra geral, vão almoçar juntos, assim se continuando o convívio entre todos de modo mais informal.
IV - Assim sendo, a intervenção da Requerente nos autos principais, levaria facilmente a comunidade a suspeitar da decisão que viesse a ser tomada. Deste modo, para defendê-la de uma suspeita e evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida, é de aceitar o seu pedido de escusa.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 5604/19.5T9LSB-B.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. A Senhora Juíza Conselheira AA, em exercício de funções no Supremo Tribunal de Justiça (na ... Secção desde 30.09.2021 até 26.02.2023, e na ... secção desde 27.02.2023 até ao presente), veio, nos termos dos arts. 43.º, e 45.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal (doravante CPP), apresentar pedido de escusa para intervir nos autos de instrução n.º 5604/19.5T9LSB que correm termos neste Supremo Tribunal, nos seguintes termos:

«- à requerente foram distribuídos, em 27.04.2023, os autos n.º 5604/19.5T9LSB, no qual findo o inquérito, em 23.01.2023, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento contra a denunciada Sr.ª juíza conselheira, ex-... da ..., Dr.ª BB, a qual nem fora ouvida como arguida.

- Os denunciantes que, entretanto, se constituíram assistentes, a saber, a Ordem ... e a respetiva Bastonária CC, requereram a abertura de instrução, pretendendo que aquela denunciada, a Sr.ª juíza conselheira BB, ex-... da ..., seja pronunciada pelos crimes que foram objeto de despacho de arquivamento, que haviam sido denunciados em 15.07.2019.

- Sucede que a Srª. Drª. BB iniciou funções como Conselheira no Supremo Tribunal de Justiça em 22.03.2022, sendo colocada na ... secção criminal, altura em que a aqui requerente ali se encontrava a exercer funções, começando ambas a participar em conjunto nos trabalhos que fossem comuns no mesmo dia das sessões, em geral uma vez por semana, à quinta-feira, mantendo desde então uma sã convivência e um relacionamento amistoso (tratando-se pelo nome e por tu, almoçando juntas, com os demais elementos da secção, tendo uma relação cordial);

- nos julgamentos na ... secção trabalharam em conjunto, desde por volta de pelo menos Maio (altura em que a Srª. Drª. BB chegou a substituir o Sr. Dr. DD, por doença deste, que era o primeiro adjunto da requerente da presente escusa);

- posteriormente, desde Setembro de 2022, nos julgamentos na ... secção a Srª. Drª. BB foi sempre adjunta nos acórdãos da aqui requerente, por aplicação das leis do processo e tendo em atenção a ordem de precedência a que alude o art. 56.º, n.º 2, LOSJ;

- é facto do conhecimento geral que entre os membros da composição que em cada seção julga os processos que lhe são distribuídos há, por esse motivo, um contacto permanente, para troca de impressões e debate de questões jurídicas suscitadas nos processos, quer presencialmente, quer pelos mais variados meios, email, telefone e videoconferência, como sucedeu entre a requerente e a Senhora Conselheira BB;

- ora distribuído o presente processo à requerente, a visada ainda vai ser a sua 1.ª adjunta (uma vez que a requerente, apesar de ter transitado para a ... secção criminal, ainda não “liquidou/terminou” todos os processos que lhe foram distribuídos na ... secção, o que terá ainda de fazer), podendo acontecer que no mesmo dia em que, por exemplo, venha a despachar nos presentes autos, ambas subscrevam processo com decisão conjunta sendo a ora requerente como relatora e a aqui denunciada/arguida (art. 57.º, n.º 1, parte final, do CPP) como adjunta.

- Neste contexto, admite a requerente (tal como já sucedeu com o seu antecessor a quem foi deferido idêntico pedido de escusa – cf. apenso A) “que para a comunidade uma sua decisão, desde que favorável à visada no RAI, por mais fundada e fundamentada que seja, corre um sério risco de ser considerada com desconfiança e parcial porque proferida” por quem trabalhou e trabalha ao seu lado, isto é, por quem relatou os acórdãos que a visada subscreveu e ainda virá a subscrever como adjunta.

- Até podemos acrescentar, tal como o nosso colega que anteriormente pediu escusa, que foi deferida: “A título de exemplo, numa consideração em abstrato e despegada do caso concreto, um eventual despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, porque das insuficiências do inquérito apenas se reclama hierarquicamente, e/ou porque o RAI não contém uma verdadeira acusação, poderia ser entendido, não como a decisão correta, mas como a decisão natural” quando quem decide o caso é uma das juízas que trabalhou conjuntamente com a visada e ainda vai trabalhar ao seu lado, tendo relatado e indo relatar acórdãos que a visada subscreveu e ainda virá a subscrever como adjunta.

- Apesar do desconforto desta situação, tal materialidade não afeta a capacidade da requerente apreciar e decidir, de forma imparcial e isenta, nos presentes autos, mas a verdade é que no plano das representações da comunidade (e atenta igualmente a repercussão pública deste processo), o que se expôs constitui um motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a proferir e, nessa medida, iria criar desconfiança no sistema de Justiça, considerado como um todo, o que também põe em causa o próprio Estado de direito.

- E, é compreensível que a intervenção de quem decide em qualquer processo e, portanto, também, nestes que são mais mediatizados, seja alvo de um escrutínio muito particular pela comunidade, mormente quanto às condições de objetividade e imparcialidade, precisamente para que haja confiança na administração da Justiça.

- Importa, pois, acautelar a confiança na Administração da Justiça.

Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 43.º, n.º 1, n.º 4 e 45.º, n.º 1, al. b), do CPP, venho por este meio requerer a V. Exª que se digne escusar-me de intervir no presente processo em que é visada a Senhora Juíza Conselheira BB.»

2. Tendo em conta o teor do requerimento apresentado, foram juntos aos autos cópias das peças referidas, bem como o apenso A (de um pedido de escusa anterior deferido por acórdão de 29.03.2023, proc. n.º 5604/19.5T9LSB-A.S1).

3. Não se afigura necessária a realização de quaisquer diligências para produção de prova com vista à prolação da decisão – cf. art. 45.º, n.º 4 in fine, do CPP.

4. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

1.1. Consultado o apenso A referido, verifica-se que em idêntico pedido apresentado o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de março passado, deferiu a pretensão com os seguintes fundamentos:

«A salvaguarda das garantias de defesa em processo criminal constitucionalmente consagradas visa assegurar a independência e isenção dos Tribunais.

Daí que o comando constitucional, ínsito no nº9 do artigo 32º da Lei Fundamental, proíba que a decisão de uma causa possa ser subtraída ao Tribunal cuja competência haja sido previa e legalmente fixada.

A plena materialização de tal princípio implica necessariamente que a lei ordinária preveja e regule as situações em que tal fixação de competência possa pôr em crise a imparcialidade e isenção judicial e comprometer a confiança na administração da Justiça

Assim, a lei processual penal criou e regulou o instituto dos impedimentos, escusas e recusas da Magistratura Judicial e outros/as intervenientes processuais.

Os impedimentos encontram-se taxativamente elencados nos artigos 39º e 40º do CPP através da enumeração de situações concretas, relativas às pessoas dos/as julgadores/as ou da sua participação em processos, cuja simples ocorrência põe em crise “ipso facto”, a sua imparcialidade e/ou independência.

A lei confere-lhes, assim, uma natureza objetiva pelo que impõe que a iniciativa da sua apreciação deva ser suscitada pela/o Magistrada/o impedida/o, prevendo, não obstante, a possibilidade de tal também poder ser requerido pelo Ministério Público, Arguido/a, Assistente ou Partes Civis – artigo 41º nº1 e 2 do CPP.

Já a disciplina relativa às suspeições, constante do artigo 43º do CPP - escusas e recusas -, assenta numa cláusula geral de apreciação casuística sobre se em concreto determinados factos constituem ou não motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de quem decide.

E, nesta conformidade tais incidentes podem ser suscitados quer pelo/a próprio/a, é o caso de uma escusa, quer pelo Ministério Público, Arguido/a, Assistentes ou Partes Civis, recebendo então a designação de recusa.

Nestes Autos o requerente indica existirem relações profissionais estreitas entre si e a Juíza Conselheira visada nos presentes Autos de Instrução, que as áleas da distribuição processual ditaram que lhe fosse conferido.

E explicita o requerente que tais estreitas relações profissionais assentam no facto de a Juíza em causa exercer funções na mesma Secção Criminal que o requerente e de, por aplicação das leis do processo e a ordem de precedência a que alude o artigo 56º nº2 da LOSJ, este ter sido durante vários meses seu 2º Adjunto, bem como de atualmente, aquela ser sua 2ª Adjunta.

Alegando, também, o requerente ser “facto notório que entre os membros da composição que em cada seção julga os processos que lhe são distribuídos há, por esse motivo, um contacto permanente, para troca de impressões e debate de questões jurídicas suscitadas nos processos, quer presencialmente, quer pelos mais variados meios, email, telefone e videoconferência.”

Para concluir que “para a comunidade uma sua decisão, desde que favorável à visada no RAI, por mais fundada e fundamentada que seja corre um sério risco de ser considerada com desconfiança e parcial porque proferida por quem trabalha ao seu lado, isto é, relata os acórdãos que a visada subscreve como segunda adjunta.”

Facto este que, entende, “constitui, pelo menos no plano das representações da comunidade, motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão, se favorável à visada, e nessa mesma medida, desconfiança no sistema da justiça, globalmente considerado.”

A Jurisprudência deste Alto Tribunal é unânime em considerar que o critério de apreciação da seriedade e gravidade da razão pela qual possa existir uma desconfiança sobre a ausência de imparcialidade ou de isenção por parte de quem decide deva ser apreciada em função das concretas circunstâncias de cada caso.

Por todos veja-se o Acórdão de 15.07.2015 (1) relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, no qual se indica claramente que: “Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão de resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.”

“In casu”, a valoração objetiva dos factos em apreço – o exercício de funções na mesma Secção Criminal deste Tribunal e a composição do Coletivo a que estão adstritos o requerente e a visada nos Autos – determina necessariamente que exista uma séria possibilidade de uma forte suspeição sobre a isenção e imparcialidade da decisão a proferir pelo requerente.

Nesta conformidade, outra conclusão se não impõe que não seja a de considerar como justificada e legítima a escusa apresentada.»

2. Nos termos do art. 43.º, n.º 4, do CPP, o juiz pode pedir ao tribunal imediatamente superior (cf. art. 45.º, n.º 1, al. a), do CPP) que o escuse de intervir “quando ocorrer o risco de [a sua intervenção] ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art. 43.º, n.º 1, ex vi n.º 4). Constituem também motivos de escusa os referidos no art. 40.º, do CPP, bem como, para além deles, a intervenção em fases anteriores do mesmo processo, ou a participação em outro processo.

A independência dos juízes constitui “a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto, da função judicial”[1] só assim se realizando o princípio da separação dos poderes. “Sendo por conseguinte os tribunais no seu conjunto — e cada um dos juízes de per si — órgãos de soberania (...) e pertencendo a eles a função judicial (...), tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais — reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam — é condição irrenunciável de toda verdadeira jurisprudência”[2]. Se, por um lado, a característica da independência dos juízes assegura que estejam livres de pressões exteriores, por outro lado, “isto não basta para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. (...) [E] o que aqui interessa — convém acentuar — não é tanto o facto de a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados”[3]. Na verdade, a lei, ao estabelecer as situações em que o juiz pode pedir a escusa, está a realizar a tarefa de velar “por que, em qualquer tribunal (...) reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não — uma vez mais o acentuamos — enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu”[4].

O juiz pode pedir escusa de intervir no processo quando se verifiquem diversas condições, nos termos do n.º 1 e 2 do art. 43.º, do CPP, ex vi n.º 4 do mesmo dispositivo:
- sempre que exista risco de a sua intervenção ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (n.º 1 do art. 43.º) e/ouaquela suspeita existe. Na verdade, segundo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a imparcialidade.º).
- de David Sarmento Oli
- a intervenção do juiz em outro processo ou em outras fases do processo distintas das referidas no art. 40.º, do CPP (n.º 2, do art. 43.º).

Tal como é apresentada a condição do n.º 1 do art. 43.º, do CPP, pode-se integrar nela uma variedade de situações que, analisadas caso a caso, permitam considerar que aquela suspeita existe. E existindo uma suspeita, a confiança comunitária nos juízes, e com isso no sistema judicial e no Estado de Direito, fica abalada.

Acresce que “a necessidade de confiança comunitária nos juízes [faz-se] sentir como muito maior força em processo penal do que em processo civil”[5], pese embora a densidade do regime previsto no Código de Processo Civil, relativamente ao regime previsto no Código de Processo Penal.  

É claro que o fundamento da escusa deve ser objetivamente analisado, não bastando um mero convencimento subjetivo, devendo basear-se em “uma razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro).” (acórdão do STJ, de 13.02.2013, proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, relator: Santos Cabral[6]). Todavia, este instrumento processual — o pedido de escusa — permite o afastamento do juiz “quando, objectivamente, existir uma razão que, minimamente, possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade” (idem).

Na verdade, “[é] evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto.

[Pois] do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litígio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade fruto de um conhecimento extraprocessual. A imparcialidade afasta‑se quando as razões ditadas pela razão objectiva são substituídas pelas empatias contidas na emoção resultante da proximidade.” (acórdão citado).

A partir do pedido apresentado pela Requerente, verificamos que houve um relacionamento estreito entre a Requerente e a Senhora Juíza Conselheira BB denunciada enquanto ... da ... (...). Na verdade, a Requerente e a denunciada exerceram ambas funções neste Supremo Tribunal de Justiça, na ... secção, tendo participado em conjunto nas diversas sessões que se realizaram entre setembro de 2021 e março de 2023, naquela secção; para além de ainda se afigurar que esta colaboração venha a existir no processo ainda não decidido pela requerente e que lhe foi distribuído aquando da sua integração na ... Secção do Supremo Tribunal de Justiça. Acresce referir que a denunciada foi, em diversos acórdãos em que a Requerente foi relatora, Juíza Conselheira Adjunta. O que necessariamente tem como consequência uma troca intensa de impressões quanto às decisões e, portanto, uma regularidade de contactos seja pessoalmente, seja por via telefónica, videoconferência ou  correio eletrónico.  

E não se pode ignorar que, estando ambas na mesma secção com realização semanal de sessões onde se estabelece um convívio apertado entre todos os intervenientes e onde se trocam ideias sobre as diversas questões que urge decidir, fica criado o ambiente para um relacionamento estreito entre os diversos intervenientes. E após o final destas sessões, os seus membros, regra geral, vão almoçar juntos, assim se continuando o convívio entre todos de modo mais informal.

Assim sendo, a intervenção da Requerente nos autos principais, levaria facilmente a comunidade a suspeitar da decisão que viesse a ser tomada.

Ainda que não se duvide que a Senhora Conselheira Requerente decidiria de forma imparcial, não podemos deixar de concluir que, objetivamente e aos olhos da comunidade, aos do cidadão comum e externo ao mundo judiciário, poderiam suscitar-se dúvidas sobre a imparcialidade do julgador. O homem médio suspeitará de qualquer decisão que a Senhora Conselheira venha a adotar nos autos, quando souber que da proximidade com a denunciada, evidenciada pelo tratamento informal existente entre ambas.

Ora, a Justiça não se compadece com dúvidas sobre a imparcialidade de uma decisão. Impõe-se que quem venha a decidir esteja livre de qualquer suspeição, assim se assegurando a necessária tranquilidade enquanto condição indispensável a um sadio sistema judicial.

Tal como já foi afirmado neste Tribunal “objectivamente tal coincidência é susceptível de ocasionar perplexidades e dúvidas, para o cidadão medianamente informado que, no mínimo, se questionará sobre a circunstância de a lei processual não conter meios susceptíveis de originar tal situação de melindre” (acórdão citado supra).

Além do mais, não está em causa uma avaliação como parcial da possível conduta da Senhora Conselheira Requerente; tanto mais que o simples facto de ter suscitado este incidente é por si só revelador de uma conduta escrupulosa e isenta, a permitir concluir que manteria a sua imparcialidade na decisão do caso. Porém, como dissemos, o que está em causa não é saber se a Senhora Juíza Conselheira iria ou não manter a sua imparcialidade, mas sim o de defendê‑la de uma suspeita, evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida, e através da aceitação do seu pedido de escusa reforçarmos a confiança da comunidade nas decisões judiciais.

III

Conclusão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Nos termos do art. 43.º, do CPP, entende-se que existem fundamentos para conceder a escusa da intervenção da Senhora Juíza Conselheira AA o que se determina.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de maio de 2023

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Agostinho Torres

António Latas

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[1] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 303.
[2] Idem, p. 303-4.
[3] Ibidem, p. 315.
[4] Ibidem, p. 320.
[5] Ibidem, p. 317.
[6] O acórdão pode ser consultado aqui: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e14355fb2048773480257b34004cd244?OpenDocument