Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
047694
Nº Convencional: JSTJ00039122
Relator: AMADO GOMES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TRAFICANTE-CONSUMIDOR
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
ILICITUDE
Nº do Documento: SJ199506140476943
Data do Acordão: 06/14/1995
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 360/94
Data: 07/13/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / CRIM C/SOCIEDADE / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: DL 15/93 DE 1993/01/22 ARTIGO 21 N1 N3 ARTIGO 25 N1A ARTIGO 26 N1 N3.
CP95 ARTIGO 71.
CPP87 ARTIGO 435 ARTIGO 374 N2 ARTIGO 379 A ARTIGO 410 N2.
L 15/94 DE 1994/05/11 ARTIGO 8 N1 D ARTIGO 11.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1991/02/13 IN BMJ N404 PÁG188.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/02/20 IN BMJ N414 PÁG205.
ACÓRDÃO STJ DE 1991/01/13 PROC41694.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/05/03 PROC47720.
Sumário : I - O disposto no art. 26 do DL 15/93, de 22-01, não é aplicável quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda o consumo médio individual durante o período de 5 dias - cfr. n. 3 do citado preceito - sendo que, segundo a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o consumo médio da heroína situa-se entre 1,5 grs e 2 grs, no máximo, pelo que, tendo-se provado que o arguido detinha 19,791 grs daquela droga, quantidade que excede em 100% o referido consumo médio individual durante o período de 5 dias, não se pode aplicar, "in casu", o citado art. 26.
II - Sendo como se disse na anterior alínea, a punição prevista no n. 1 do art. 21 do DL 15/93 só não terá lugar se se provar que a ilicitude se mostrar consideravelmente diminuída, hipóteses em que as condutas dos traficantes de estupefacientes passarão a integrar o crime da previsão do art. 25 n. 1, al. a) do dito Decreto, falando-se então em tráfico de menor gravidade.
III - Para preenchimento do tipo legal previsto na anterior alínea é essencial que a ilicitude se mostre consideravelmente diminuída, a qual há-de resultar da análise de vários factores, nomeadamente, como consta do preceito em causa, dos meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações e outras circunstâncias específicas de cada caso porque a enumeração é apenas exemplificativa.
IV - Sendo como se disse nas anteriores alíneas, embora se tenha provado que o arguido actuava com a finalidade exclusiva de conseguir obter compensações económicas a fim de poder adquirir heroína para seu consumo, a sua punição tem de ser feita pelo art. 21 n. 1 do DL 15/93.
V - A pena a aplicar há-de obedecer aos ditames do art. 71 do CP95, devendo tomar-se em conta que a prevenção geral, muito acentuada no tráfico de estupefacientes, nunca pode justificar que a medida da pena exceda o grau de culpa; que a heroína é das drogas mais nocivas e que o tráfico de estupefacientes é um crime de trato sucessivo o que significa que a ilicitude não se mede apenas em função do estupefaciente detido em certo momento mas pelo total que, em determinado período, se relacionou com qualquer das situações descritas no art. 21 n. 1 do DL 15/93.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Na comarca de Guimarães foi julgado o arguido:
A, solteiro, desempregado, nascido a 13-02-1963.
Vinha acusado pelo Ministério Público da autoria material de um crime p. e p. pelo art. 21 n. 1 do DL 15/93 de 22-01.
Veio a ser condenado, mediante convolação pela autoria material de crime p. e p. pelo art. 25 a) daquele DL, na pena de 2 anos de prisão, na qual foi declarado perdoado 1 ano de prisão, por aplicação do art. 8 n. 1 d), da Lei 15/94, de 11-05.
Esta decisão assenta na seguinte matéria de facto que o Tribunal Colectivo julgou provada:
O arguido, desde a idade de 22 anos que se dedica ao consumo de estupefacientes e há algum tempo que se dedica ao negócio de estupefacientes, sendo procurado, para este efeito, pelos consumidores desse produto.
Assim, no dia 30 de Dezembro de 1992, pelas 22 horas, em Vila Nova de Sande, da comarca de Guimarães, foi procurado por B (id. a fls. 12), tendo-lhe entregue, cerca de meia hora depois, no Largo do café "Redondo", naquela freguesia, três embalagens contendo o peso líquido de 19,791 gr. de um produto que, submetido a análise laboratorial, revelou tratar-se de heroína, em valor de duzentos mil escudos, o qual havia adquirido, por preço não determinado, em casa de um tal C.
No dia 30 de Julho de 1993, na sequência de uma busca efectuada por agentes da P.J. de Braga, na presença do arguido, foram encontrados no interior da sua residência, sita no lugar de Ponte, freguesia de Brito, da mesma comarca, três embalagens plásticas, contendo um pó acastanhado com o peso de 2,53 gr. (total) o qual, submetido a análise laboratorial, revelou tratar-se de heroína;
um moinho eléctrico marca "Taurus", contendo resíduos de um pó de cor creme que igualmente revelou tratar-se de heroína; uma balança digital, marca "Tanita", modelo 1479; 13 (treze) comprimidos "Lexomil"; 10 (dez) comprimidos "Temgésic"; 18 comprimidos "Cloxan" e uma cápsula "Morfex".
A heroína, substância abrangida pela Tabela 1-A, do DL 15/93, de 22-01, destinava-se a ser transaccionado pelo arguido com a finalidade exclusiva de conseguir obter compensações económicas a fim de poder adquirir heroína para seu consumo pessoal.
Para além disso foram ainda encontrados os objectos descritos a fls. 120-123 que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
A balança e o moinho eram utilizados pelo arguido na preparação das doses de heroína para depois serem por ele transaccionadas.
O dinheiro apreendido ao arguido (128000 escudos)era proveniente de transacção de produtos estupefacientes.
O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida.
O arguido tinha boa reputação social enquanto se não iniciou no consumo de estupefacientes, mostra-se arrependido e pretende deixar o consumo de estupefacientes.
O Tribunal Colectivo deu ainda como provado, na fundamentação da decisão, o seguinte facto:
"O arguido confessou os factos praticados, negando apenas que vendeu ao B 19,791 gr. de heroína".
Desta decisão interpôs recurso o Ministério Público por discordar da incriminação feita e da medida da pena aplicada. Formulou extensas conclusões (22) nas quais diz, em síntese, o seguinte:
a) Os factos provados não permitem a sua integração no tipo legal do art. 25 a) do DL 15/93 porque a ilicitude não pode considerar-se diminuída, atendendo a que a quantidade de heroína transaccionada é grande, que pode ser vendida a vários consumidores e o valor da transacção (200 contos) é elevado.
b) O Tribunal não fundamenta com suficiência porque razão dá como provado que "a heroína destinava-se a ser transaccionada pelo arguido com a finalidade exclusiva de conseguir obter compensações económicas a fim de poder adquirir heroína para o seu consumo pessoal".
c) Há contradição insaciável da matéria de facto dada como provada.
d) O Tribunal, na sua fundamentação, refere que o arguido quando se meteu no consumo de "droga" deixou o trabalho e todo o dinheiro que tinha era para comprar "droga".
e) O facto de ele ter na sua posse 19,791 gr. de heroína, de a ter vendido por 200 contos e de não ter emprego, está em contradição com o facto provado de que essa transacção tinha como finalidade exclusiva conseguir compensações económicas para poder comprar heroína para seu consumo pessoal.
f) Pelo contrário, o texto da decisão, por si só e conjugado com as regras da experiência, demonstram que o arguido vivia exclusivamente do tráfico, não tendo emprego, motivo porque não podia dar-se como assente que a finalidade exclusiva era a atrás apontada.
g) Os factos passados integram o crime previsto e punido pelo art. 21 n. 1 e citado DL 15/93, pelo qual o arguido deve ser condenado na pena de 4 anos de prisão.
h) Se assim não for entendido, deve ser agravada a pena aplicada.
A resposta apresentado pelo arguido foi mandada desentranhar, por extemporânea, por despachos de fls. 244 da qual não foi interposto recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
Teve lugar a audiência nos termos do art. 435 do C. P. Penal.
Passa-se a decidir.
O objecto do recurso define-se pelas conclusões da motivação. É jurisprudência pacifica deste Supremo Tribunal, de tal forma divulgada que apenas se citam um acórdão antigo e outro recente (cfr. ac. de 13-01-91 - proc. 41694 e de 03-05-95 - proc. 47720).
Assim, analisando as conclusões da motivação verifica-se que relativamente à matéria de facto não vêm alegados os vícios a que alude o art. 410 do CPP, nas alíneas do seu n. 2. Nenhum pedido foi formulado nesse sentido, nem foi indicado aquele artigo como violado.
Contudo o Digno recorrente tece críticas que tanto podem integrar o vício da contradição insanável da fundamentação como à nulidade da insuficiência de fundamentação (art. 374 n. 2 e 379 a), do mesmo Código).
Relativamente à nulidade, também não foi formulado qualquer pedido nas conclusões, razão porque se considera não alegada. E, como o seu conhecimento depende de arguição, excluída está, portanto, de poderes de arguição deste Tribunal.
Quanto aos vícios do art. 410 n. 2, já o tribunal de recurso deles pode conhecer oficiosamente visto que, a verificarem-se, por forma a não possibilitarem a decisão, este Tribunal não pode ignorá-los. Se impossibilitarem a decisão, haverá que declarar a consequente nulidade e decretar o reenvio do processo.
Cremos, contudo, que embora a matéria de facto apresente algumas imperfeições, não estamos perante um caso de impossibilidade da decisão da causa.
Por exemplo:
1 - Na decisão de facto não se diz que quantidade de heroína consumia o arguido em cada dia, tendo em vista o disposto no art. 26 ns. 1 e 3 do DL 15/93.
2 - Provou-se que o arguido está arrependido, mas provou-se, por outro lado, que confessou os factos negando apenas a venda dos 19,971 gr. de heroína.
Ora, é indubitável que só pode haver arrependimento em relação àquilo que se confessa ter praticado. Não é possível o arrependimento daquilo que não se praticou.
O arguido pode confessar o crime ou só os factos.
No primeiro caso estamos perante a confissão total e relevante.
No segundo, se o arguido só confessa os factos, significa que não confessa o crime.
Em face do que ficou provado só pode entender-se que o arguido.
- só negou a venda atrás referida;
- confessou todos os outros factos passados;
- não confessou qualquer crime;
- só pode estar arrependido de ter praticado os factos que confessou e não de ter praticado algum crime.
A posição do Digno recorrente significa discordância da valoração que o Tribunal Colectivo fez da prova produzida em julgamento. Porém, a convicção do Colectivo não é sindicável por este Supremo Tribunal.
Não existindo qualquer nulidade que cumpra conhecer nem os vícios do art. 410 n. 2, considera-se fixada a matéria de facto que atrás foi exposta.
Passa-se à apreciação da matéria de direito que versa apenas duas questões:
- incriminação;
- medida da pena.
Discorda-se da incriminação feita no acórdão recorrido. Vejamos.
O arguido vem acusado da prática de um crime p. e p. pelo art. 21 n. 1 do DL 15/93, de 22-01.
Mas, - acrescenta o seu art. 26 n. 1 - "quando pela prática de alguns dos factos referidos no art. 21, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal a pena é de ...".
Sucede, porém, que o disposto neste n. 1 não é aplicável "quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para consumo médio individual durante o período de cinco dias", conforme prescreve o n. 3 do mesmo artigo.
E, segundo a jurisprudência deste Tribunal tem entendido, o consumo diário médio de heroína, situa-se entre 1,5 gr. e 2 gr. no máximo (cfr., entre outros os acórdãos publicados nos BMJ ns. 404 pág. 188 e 414 pág. 205).
Logo, os 19,791 gr. excedem em 100% o consumo médio individual durante o período de cinco dias.
Consequentemente, não tem aplicação o disposto no art. 26 n. 1 do DL 15/93 isto é, os factos não integram o crime de Tráfico de heroína para consumo próprio.
Permanece, portanto, a incriminação pelo citado art. 21 n. 1 e a punição prevista neste artigo só não será aplicado nos casos em que a ilicitude se mostre consideravelmente diminuída, hipóteses em que as condutas integram o crime de Tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25 n. 1 - a) do DL 15/93.
O Tribunal Colectivo optou por esta incriminação, da qual se discorda porque viola o disposto no referido preceito legal.
É essencial para o preenchimento deste tipo legal, que a ilicitude se mostre consideravelmente diminuída.
Considerável significa muito grande, muito importante.
Essa diminuição considerável da ilicitude há-de resultar da análise de vários factores nomeadamente, como diz o referido preceito, dos meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações e outras circunstâncias especificas de cada caso porque a enumeração é apenas exemplificativa.
Tendo em conta que a heroína é dos estupefacientes mais tóxicos cujo poder de nocividade vai ao ponto de causar a morte e que a quantidade que vem referida tem a potencialidade de poder ser distribuída por apreciável número de consumidores, não é possível entender que a ilicitude se mostra consideravelmente diminuída. Não se pode esquecer que relativamente à quantidade, temos de atender também aos 2, 53 gramas de heroína que o arguido detinha em 30-07-93 porque sendo o crime de narcotráfico um crime de trato sucessivo, a ilicitude não se mede só em função da quantidade de estupefaciente detido em certo momento mas pelo total que, em determinado período, se relacionou com qualquer das situações descritas no art. 21 n. 1 citado.
De atender é ainda a circunstância de o arguido ter na sua residência a "maquinaria" necessária à sua actividade, composta de um moinho eléctrico e da famosa balança "Tanita" que grande número de traficantes prefere.
Assim, embora haja que aceitar o facto provado de que o arguido actuava pela forma descrita com a finalidade exclusiva de conseguir obter compensações económicas a fim de poder adquirir heroína para seu consumo pessoal, a punição tem de ser feita pelo art. 21 n. 1 do DL 15/93.
A pena a aplicar há-de obedecer ao disposto no art. 71 do Cód. Penal que assenta, essencialmente, na culpa e na prevenção.
A culpa apresenta-se bastante atenuada tendo em conta que o arguido traficava para consumir.
A prevenção geral, muito acentuada neste tipo de crime, nunca pode justificar que a medida da pena exceda a grande culpa.
No aspecto da prevenção especial ou de ressocialização, atenta a personalidade revelada pelo arguido e o seu interesse em abandonar o consumo de estupefacientes, a pena a impor não deve prejudicar a reintegração do arguido.
Conjugando todos estes elementos entende-se por justa e adequada a pena de 4 anos e 6 meses de prisão, na qual se descontará 1 ano de prisão nos termos dos arts. 8 n. 1 - d) e 11 da Lei 15/94, de 11-05.
Embora o Ministério Público recorrente tenha formulado o pedido de condenação na pena de 4 anos de prisão, tal pedido não vincula o tribunal de recurso porque a determinação e a medida da pena é da competência do tribunal.

Decisão:

Em face do exposto acorda-se em dar provimento ao recurso, embora por outros fundamentos, revogando-se o acórdão recorrido quanto à incriminação e medida da pena, condenando-se o arguido pela autoria material de um crime previsto e punível pelo art. 21 n. 1 do DL 15/93, de 22-01, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, na qual se declara perdoado um ano de prisão, nos termos do art. 8 n. 1 d) e sob a condição do art. 11 da Lei 15/94, de 11-05.
Sem tributação. Honorários: o mínimo.
Lisboa, 14 de Junho de 1995.
Amado Gomes,
Vaz dos Santos,