Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2601/19.4T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
LAPSO MANIFESTO
CASO JULGADO FORMAL
OFENSA DO CASO JULGADO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
INADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Um despacho de mero expediente (artigo 630.º, n.º 1, do CPC), dirigido à organização e à marcha do processo, sem conteúdo decisório, é insuscetível de recurso e de constituir caso julgado formal.

II- Não viola jurisprudência uniformizada estabelecida no AUJ n.º 3/98, a decisão que decretou a prescrição da obrigação do pagamento das rendas, se não se baseou na falta de virtualidade interruptiva da notificação judicial avulsa, em geral, mas na interpretação do concreto conteúdo das declarações nela contidas, tendo-se entendido que estas declarações não eram de molde a significarem uma manifestação da intenção de exercer o direito de crédito relativo às rendas em atraso.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1. Por apenso à ação executiva, para pagamento de quantia certa, para cobrança das importâncias das rendas que ficaram em dívida pela Executada, Associação Empresarial de Castro Daire e Beiras (num total de € 14 605,33), e que alegadamente legitimaram a resolução do contrato do arrendamento das frações “I” e “J” do R/C do prédio urbano identificado no requerimento inicial executivo, levada a efeito pela ora Exequente, Irmandade Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire, veio a referida Executada deduzir Oposição, mediante embargos de executado.

A Executada, na petição de embargos, defendendo-se por impugnação e por exceção, invocou:

- A inexistência/insuficiência do título executivo para a totalidade da quantia reclamada, já que a notificação judicial avulsa não abarcou “…as rendas vincendas desde a data de notificação – 1 de setembro de 2016- Cfr. Doc. 2 da Execução- até à data em que a executada entregou o locado, designadamente, agosto a dezembro de 2016 (€1.252,00); janeiro a dezembro de 2017 (€3.021,00) e janeiro a julho de 2018 (€1.752,80) no valor acrescido de €6.025,80.”;

- A prescrição, alegando que, quando foi “…citada para os presentes autos exequendos- 4 de julho de 2019- já haviam decorridos mais de cinco anos das datas de vencimento (data em que começa a correr o prazo de prescrição) das rendas de junho a dezembro de 2012 (€ 2.100,00) e abril a julho de 2014 (€900,00),” pelo que tais rendas estão prescritas, não tendo a notificação judicial avulsa a virtualidade de interromper a prescrição, já que a mesma não transmitiu a intenção de exercer qualquer direito relativamente à rendas;

Requereu que à execução fosse atribuído o efeito suspensivo, nos termos do n.º 1 do artigo 733.º do CPC.

Terminou defendendo que deveria ser condenada apenas no valor de €5.579,53, e não na quantia exequenda de €14.605,33, e requerendo a atribuição da referida suspensão.


2. Os embargos foram recebidos mediante o seguinte despacho de 24/9/2019:

«Recebo os presentes embargos.

Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 732.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil, notifique a exequente para, querendo, contestar os presentes embargos de executado no prazo de 20 dias.

A execução prosseguirá os seus regulares trâmites uma vez que os embargantes não requereram a sua suspensão e/ou prestaram caução, nem a mesma assenta em qualquer outra justificação legal.

Dê conhecimento ao Exm.(a) Sr.(a) Agente de Execução. ….., ds».


3. Contestando, a Embargada:

- Quanto à alegada “inexistência/insuficiência do título Executivo”, sustentou, fazendo apelo à jurisprudência que cita, que o título executivo em causa, um título complexo, constituído pelo Contrato de Arrendamento e pela Notificação Judicial Avulsa, juntos aos Autos, a habilitava a exigir na execução o montante de todas as rendas que peticionou;

- Quanto à invocada prescrição, citando doutrina e jurisprudência, sustentou que os moldes da notificação judicial avulsa que promoveu eram idóneos à interrupção da prescrição, nos termos do nº 1 do citado 323.º do CC;

- Quanto à suspensão da execução que fora requerida, mas não decretada no despacho que recebeu os embargos, sustentou que o requerimento da executada, que não prestara caução, não havia sido fundamentado.


Terminou assim:

«[…] deve, especificamente,

a) Improceder a exceção da alegada Inexistência/Insuficiência do título executivo, por não verdadeira, não provada e por não fundamentada;

b) Improceder a exceção da alegada prescrição, por não verdadeira, não provada e por não fundamentada;

c) Improceder a exceção do alegado efeito suspensivo, por inexistência de pressupostos e por falta de fundamento;

d) Improcederem as alegações da Embargante sob o título de Impugnação, por não verdadeiras e que se rejeitam de todo, sem cabimento e sem fundamento e, e) Conhecer da Confissão da dívida da Executada e a mesma ser dada como provada. […]».


4. Mediante requerimento de 1/10/2019, veio a Embargante reiterar o pedido de suspensão da execução, com base na insuficiência do título executivo relativamente à quantia de €6.025,80, salientando que havia pedido tal suspensão na petição de embargos.

 

5. Na sequência desse requerimento foi proferido, em 12/11/2019, o seguinte despacho:

«Pedido de suspensão da execução:

Compulsados os elementos documentais juntos aos autos e ponderando a bondade dos argumentos esgrimidos pela embargante na sua oposição à execução, julgamos que, efectivamente se justifica a suspensão, parcial, da execução, sem a prestação de caução, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 733.º do CPC 1.

Ora, tendo em conta que na liquidação que a embargante realiza se confessa, desde já, devedora da quantia de €5.579,53, decide-se deferir a requerida suspensão da execução relativamente à parte excedente da dívida exequenda.

Notifique e comunique ao Exmo(a) Sr.(a) Agente de Execução que a execução poderá prosseguir apenas para cobrança de €5.579,53, juros e custas, suspendendo-se na parte restante.


*

Para realização da audiência prévia prevista no artigo 591.º do Código de Processo Civil, com os fins previstos nas alíneas a) a g) do n.º1 desse mesmo preceito, designa-se o próximo dia 12 de Dezembro pelas 11.00 horas.

Notifique com advertência para o disposto no n.º3 do referido artigo e no n.º2 do artigo 594.º do Código de Processo Civil.


*

Dê conhecimento ao Exm.(a) Sr.(a) Agente de Execução […]»;


6. Mediante requerimento de 21/11/2019, veio a Exequente/Embargada apresentar reclamação do despacho 12-11-2019 que havia deferido a suspensão da execução na parte da quantia exequenda excedente aos €5.579,53, sustentando, em síntese, que não estavam reunidos os pressupostos para tal, que o despacho não estava fundamentado, nem observara o contraditório, havendo uma contradição insanável entre o mesmo e o despacho de 24-09-2019, que recebera os embargos e em que se decidira pela não suspensão da execução.

Terminou peticionando a declaração de nulidade parcial do despacho proferido a 12-11-2019, no que respeita, à suspensão da execução, por contradição e pelo não exercício do contraditório “…e por tal vício ter impacto direto na instrução, discussão e julgamento do processo e ainda, em particular, na penhora, na venda e eventual pagamento.”;

 

7. No âmbito da audiência prévia de 12-12-2019, decidiu-se, em sede de saneador ditado para a respetiva ata:

- Indeferir a reclamação apresentada pela Exequente/Embargante;

- Julgar procedente “…a invocada inexequibilidade do título relativamente à quantia de € 6.025,80, valor esse que integra as rendas dos meses de Agosto de 2016 a Julho de 2018.”;

- Declarar prescritas as rendas vencidas relativas aos meses de junho a dezembro de 2012 – no valor de 2.100,00 € e de abril e maio de 2014 – no valor de €605,58 (2 meses x 302,79€);

- Julgar, assim, os embargos, parcialmente procedentes e, consequentemente, declarar-se extinta a execução quanto à quantia de € 6.025,80 (rendas dos meses de agosto de 2016 a julho de 2018) e à quantia de €2.705,58 (rendas dos meses de junho a dezembro de 2012 e de abril e maio de 2014), prosseguindo os seus termos quanto aos restantes montantes peticionados.

 

8. Inconformada, a Exequente/Embargada, em 26/1/2020 recorreu do saneador, tendo o Tribunal da Relação considerado improcedente o recurso de apelação:

«Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de …... ordenar que, após trânsito em julgado deste Acórdão, se desentranhe e restitua    à respectiva apresentante, o documento junto pela Recorrente com a alegação de recurso, e julgar a Apelação improcedente, mantendo, assim, a decisão recorrida».


9. Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Castro Daire, Exequente e Embargada, inconformada com o Acórdão do Tribunal da Relação, vem, nos termos dos artigos 629.º, n.º 2, a) e alínea c), do Código de Processo Civil, apresentar recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões.

«- O Código de Processo Civil prevê a admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência no caso de ofensa a caso julgado – CPC, art.º 629.º, n.º 2, alínea a); por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de ….. de 24-09-2019, Pr.º 26101/19.4T8VIS-A, – Doc. 2 – e perante a apresentação de embargos à execução, foi proferido despacho, referindo-se que “A execução prosseguirá os seus regulares trâmites uma vez que os embargantes não requereram a sua suspensão e/ou prestaram caução, nem a mesma assenta em qualquer outra justificação legal”.

Porém, a embargante vem, mais tarde, a requerer a reavaliação do decidido relativamente à suspensão ou não da execução, tendo o Tribunal, por despacho de 12-11-2019, decidido que “Compulsados os elementos documentais junto aos autos e ponderando a bondade dos argumentos esgrimidos pela embargante na sua oposição á execução, julgamos que, efetivamente se justifica a suspensão, parcial, da execução, sem prestação de caução, nos termos previstos na alínea c) do nº 1 do artigo 733º, do CPC. Ora, tendo em conta que na liquidação que a embargante realiza se confessa, desde já, devedora da quantia de € 5.579,53, decide-se deferir a requerida suspensão da execução, relativamente à parte excedente da dívida exequenda.”

Ora, salvo melhor opinião, o teor do despacho proferido a 24-09-2019 e, quando proferido o segundo despacho a 12.11.2019, sobre a mesma questão, já constituíra, então, caso julgado – CPC, art.º 620.º, n.º 1.

Acresce, conforme previsto no CPC, art.º 625.º, n.º 1, no caso de duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar; acrescenta ainda o mesmo artigo do CPC, agora no seu n.º 2 que sendo a contradição entre duas decisões, dentro do mesmo processo e versem sobre a mesma questão concreta da relação processual, aquele princípio referido sob o n.º 1 é igualmente aplicável.

Pelo que e com o devido respeito, no processo, a validade dos despachos acima referidos, mantém-se, exclusivamente, a relativa ao despacho proferido em 24.09.2019.

- O Código de Processo Civil prevê a admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência no caso de decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e da mesma questão fundamental de direito – CPC, art.º 629.º, n.º 2, alínea c); por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de ….., Pr.º 26101/19.4T8VIS-A, – Doc. 3 – no despacho saneador sentença proferido em 12.12.2019, analisando a eventual prescrição relativa a rendas não pagas pelo devedor à aqui Recorrente, tendo sustentado esta que a eventual prescrição não se verificara, dado que, aquela prescrição fora interrompida, por efeitos de apresentação de Notificação Judicial Avulsa dirigida à devedora em 01.09.2016, veio o Tribunal neste despacho em análise, referir que “Analisado o teor da notificação judicial avulsa dela não se retira que fosse intenção da ora embargada [aqui Recorrente] exercer o seu direito de crédito sobre a arrendatária e, como tal, essa notificação não tem a virtualidade de interromper o prazo prescricional em curso”; e conclui que “Neste conspecto, verificamos que, tendo a execução dado entrada em juízo a 28 de Maio de 2019 (tendo em mente o disposto no artigo 323º, nº 2 do CC), as rendas vencidas relativas aos meses de Junho a Dezembro de 2012 – no valor de 2.100,00€ e de Abril e Maio de 2014 – no valor de € 605,58 se encontravam prescritas, o que cumpre declarar.”

Sendo certo, que o tribunal no já referido despacho refere o Acórdão do STJ n.º 3/98, e que o mesmo uniformizou jurisprudência relativa à notificação judicial avulsa como meio adequado de interrupção da prescrição de direito nos termos do n.º1 do art.º 323.º do CC; contudo, com o devido respeito e salvo melhor opinião, o tribunal no seu despacho não foi consequente com aquela jurisprudência, não retirou as inerentes consequências daquele acórdão; limitou-se a referir e comentar as principais posições existentes do seu ponto de vista, ignorando que o acórdão uniformizador refere que “A notificação judicial avulsa pela qual se manifesta a intenção do exercício de um direito é meio adequado à interrupção da prescrição desse direito, nos termos do n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil” (Doc.4).

Ora, conforme dispõe o Código Civil, art.º 323.º, no seu n.º 1, primeira parte, “A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, …”; Assim, a notificação judicial avulsa (Doc. 5) é clara no que respeita ao facto da aqui Recorrente ter dado conta à devedora que iria exercer o seu direito, desde logo, o direito de restituição da posse do locado de sua propriedade que a devedora usufruía sem cumprir, conforme acordado por contrato, com as respetivas obrigações contratuais que assumira; tal restituição de posse da sua propriedade a credora só a obteria, nos termos contratuais estabelecidos e demais de direito, solicitando judicialmente o despejo do locado; Acresce que o despejo judicial do locatário só é possível, em princípio, pela falta de pagamento das respetivas rendas à proprietária do locado e credora; Falta de pagamento que, claramente, a já referida notificação judicial avulsa sublinha; Mais, a segunda parte do n.º 1 do art.º 323.º do CC refere também que “,…seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”; Acresce ainda, mesmo que se verifique “A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.” (CC, art.º 323.º, n.º 3); Sendo certo, que a embargante reconheceu, no processo, a existência da notificação judicial avulsa, de que estamos a dar conta.

Entendemos assim, sempre salvo melhor opinião, que o tribunal além de decidir contra o direito, não tomou em consideração na sua decisão a adequada jurisprudência uniformizadora do STJ.

Nestes termos e concluindo, deve o presente prosseguir e:

a. Anular o despacho do tribunal em que suspende parcialmente a execução de 12.11.2019, conforme dispõe o CPC art.ºs 620.º, n.º 1 e 625.º n.º 1 e 2;

b. Anular a declaração de prescrição das rendas vencidas relativas aos meses de junho a dezembro de 2012, no valor de 2.100,00€ e de abril e maio de 2014, no valor de 605,58€».

 

9. Apesar de o valor da ação ser inferior ao valor da alçada da Relação, a lei processual permite que excecionalmente seja admitido o recurso de revista, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, por ofensa ao caso julgado, e ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. c), do CPC, por violação de jurisprudência uniformizada. 


Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

1. O despacho, datado de 24-09-2019, que a embargada (exequente) alega prevalecer sobre a decisão recorrida, ao abrigo dos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, ambos do CPC, por ter força de caso julgado formal, tem o seguinte teor:

«Recebo os presentes embargos


*


Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 732.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil, notifique a exequente para, querendo, contestar os presentes embargos de executado no prazo de 20 dias.

*


A execução prosseguirá os seus regulares trâmites uma vez que os embargantes não requereram a sua suspensão e/ou prestaram caução, nem a mesma assenta em qualquer outra justificação legal.»


A este despacho, proferido pela juíza que admitiu os embargos, seguiu-se um requerimento da embargante a dar conta de um lapso cometido no despacho de 24-09-2019, esclarecendo que na oposição à execução requereu a suspensão da execução:

 «ASSOCIAÇÃO EMPRESARIAL DE CASTRO DAIRE E BEIRAS, Executada melhor identificada nos autos, notificada do Douto Despacho com a Refª: 84904823, vem dizer que a Embargante requereu a suspensão da execução com base na insuficiência do título executivo relativamente à quantia de €6.025,80, conforme oposição para a qual se remete integralmente e sem reservas.

Assim, vem a Executada/Embargante reiterar o pedido de suspensão da execução até prolação da decisão final.

Dê conhecimento ao Exm.(a) Sr.(a) Agente de Execução».


A exequente (embargada) contestou os embargos em que foi requerida a suspensão da execução, assumindo que esta suspensão tinha sido requerida e manifestando a sua discordância.


Na sequência desse requerimento foi proferido, em 12/11/2019, o seguinte despacho (v. relatório), que se pronunciou sobre o pedido de suspensão da execução, decretando a suspensão parcial da execução, sem a prestação de caução, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 733.º do CPC. A exequente reclamou contra este despacho, tendo o despacho saneador indeferido a reclamação.

 

2. A sentença do Juízo de Execução de ….., que veio a indeferir a reclamação da exequente contra o despacho de 12-11-2019, confirmando a suspensão parcial da execução, com base na inexequibilidade do título relativamente à quantia de € 6.025,80, rejeitou que o despacho de 24-09-2019 tivesse força de caso julgado formal, com base nos seguintes argumentos:

«Aquando do recebimento dos embargos, o tribunal proferiu, por mero lapso material, o seguinte despacho tabelar A execução prosseguirá os seus regulares trâmites uma vez que os embargantes não requereram a sua suspensão e/ou prestaram caução, nem a mesma assenta em qualquer outra justificação legal.

O lapso a que nos reportamos é revelado pelo próprio contexto da declaração uma vez que nesse despacho afirmamos que os embargantes não requereram a sua suspensão quando, na verdade, esse pedido tinha sido expresso na respectiva petição em embargos e o tribunal só o poderia decidir depois de ouvir a parte contrária, tal como lhe impõe o artigo 733.º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Tanto assim é que a embargada, ora reclamante, exercendo o respectivo contraditório, quanto ao pedido de suspensão da execução, verteu nos artigos 23 a 30 da sua contestação aos embargos, a respectiva resposta, defendendo a não suspensão da execução.

Ora, findos os articulados, o tribunal pronunciou-se quanto ao pedido de suspensão, como lhe impõe a citada norma legal.

Segundo o artigo 733.º, n.º 1, alínea c) do CPC o recebimento dos embargos suspende o prosseguimento da execução se: tiver sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem a prestação de caução.

O embargado, ora reclamado, reiteramos, já se tinha pronunciado quanto ao pedido de suspensão pelo que nada obstava a que fosse decidida a pretensão da executada, nos termos em que o foi, penitenciando-se o tribunal por não ter feito referência, no despacho posto em crise, ao lapso cometido aquando do recebimento dos embargos, uma vez que deveria ter dado sem efeito o mencionado despacho tabelar.

Quanto aos fundamentos em que o tribunal se estribou para deferir o pedido de suspensão parcial da execução, os mesmos devem ser atacados pela via do recurso.

Termos em que, julgando válido o aludido despacho, se indefere a reclamação apresentada.

Sem custas, atenta a simplicidade do incidente. Notifique».


3. O acórdão recorrido, para considerar improcedente o recurso de apelação e assim confirmar o despacho saneador, que indeferiu a reclamação contra a suspensão parcial da execução, aduziu o seguinte fundamento: 

«Resta-nos, assim, apreciar a questão da suspensão da execução, e, porque é esse o despacho recorrido, saber se o saneador de 12-11-2019, é de anular, ou de revogar quanto à decisão aí proferida relativamente à reclamação da Embargada.

Vejamos.

Na parte em questão, no saneador indeferiu-se a reclamação da Embargada que pretendia a declaração de nulidade parcial do despacho proferido a 12-11-2019, “rectius” no que respeita, ao deferimento da suspensão da execução na parte da quantia exequenda excedente aos €5.579,53, dizendo-a em contradição com o despacho de 24/9/2019, que recebera os embargos e em que se declarara não se suspender a execução.

Independentemente da razão que a Apelante possa ter quanto aos fundamentos que aduz contra o deferimento da suspensão da execução na parte da quantia exequenda considerada para o efeito, o certo é que estava vedado à Mma. Juíza anular o despacho em que assim decidira.

Na verdade, sobre tal despacho constituiu-se caso julgado formal, que obstava à respectiva anulação ou revogação, impondo o desatendimento da reclamação, sendo que, como se sabe, tal excepção é do conhecimento oficioso.

Vejamos.

Ainda que desconforme com o direito aplicável, a decisão transitada em julgado, em princípio, impera em absoluto, dizendo-se, por isso, que faz do “branco, preto” e “do quadrado, redondo” - passe esta expressão, digamos, em tradução livre, do adágio latino “facit de albo nigrum, de quadrato rotundum”, utilizado para vincar a força da decisão transitada em julgado.

O despacho de 24/9/2019, em que se decidiu não suspender a execução, não foi objecto de recurso, nem dele, na verdade, era possível Apelar.

Na verdade, como se entendeu na Decisão Singular de 23/02/2016, proferida nos autos de apelação nº 7091/15.8T8PRT-B.P1, da Relação do Porto “O despacho que recusa a suspensão da execução é irrecorrível autonomamente…”.11

Estabelecendo os efeitos do caso julgado formal, o art.º 620.º do NCPC estatui que os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se, por sua natureza, não admitirem recurso (remissão para o artº 630º).

Sendo usual apontar como fundamentos do caso julgado material, razões de segurança jurídica e de certeza do direito, bem como o prestígio da justiça, já quanto ao caso julgado formal, em virtude do seu objecto se restringir à relação processual, sem efeitos para além dos respectivos autos, não se vê que se funde naqueles motivos, mas antes na necessidade de disciplina ou ordem no desenvolvimento do processo.

Mas o escopo de evitar uma contradição prática de decisões, a prolação de decisões concretamente incompatíveis, vale tanto para o caso julgado material12 como para o caso julgado formal, sendo que, nesta última hipótese, tendo as duas decisões contraditórias transitado, valerá a que passou em julgado em primeiro lugar, por aplicação do estatuído no art.º 625, n.º 2, do NCPC.

Ora, uma vez que nele se suspendeu a execução (ainda que em parte), o despacho de 12-11-2019, era impugnável, e a forma de o fazer, não era dele reclamando, mas antes interpor Apelação autónoma, nos termos do artº 853º, nº 2, b), do NCPC - cfr. Lebre de Freitas, “in” “A Ação Executiva - À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª edição, pág. 423, e Rui Pinto, “Notas ao Código de Processo Civil – 1ª Edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 662 -, sendo que, a decisão de suspensão da execução, pela similitude que tem com a da suspensão da instância (neste caso, da instância executiva), a não seguir regra própria, sempre deveria observar o regime da apelação autónoma, previsto no artº 644º, nº 2, c), aplicável às decisões proferidas em embargos de executado, “ex vi” do nº 1 do referido artº 853º.

Na verdade, tratando-se de reagir, não a uma nulidade processual, mas antes a uma putativa ilegalidade de um despacho passível de recurso, a opção pela reclamação não obstou a que decorresse o prazo do recurso do despacho de 12-11-2019 (notificado por carta enviada em 13/11/2019), estando assim transitado em julgado, há muito, tal despacho.13

Significa isto que, como acima se disse, tendo-se constituído caso julgado formal sobre a decisão de suspensão tomada nesse despacho de 12-11-2019, isso obsta à anulação, ou à revogação desse despacho e, assim, à alteração do decidido no saneador recorrido a propósito da reclamação que recaiu sobre esse despacho».


4. Existe violação do caso julgado formal, previsto no artigo 620º do Código de Processo Civil, quando o tribunal, no mesmo processo, com as mesmas partes e reportando-se aos mesmos factos, verificados e atendidos já na primeira decisão, volta a decidir a mesma questão, nesse mesmo contexto processual, de forma diversa.

No caso vertente, a recorrente invoca como caso julgado formal o despacho de 24-09-2019, que conforme atrás demonstrado, resultou de um lapso admitido pelo tribunal que o proferiu, e que não apresenta qualquer conteúdo decisório e vinculativo, tendo antes por objeto declarar que os embargos são recebidos e notificar a embargada para contestar, contendo também a afirmação segundo a qual a execução prossegue uma vez que não foi pedida a suspensão da mesma. Ora, é nesta última parte que a recorrente se baseia para dizer que o acórdão recorrido, que confirmou a decisão do tribunal de 1.ª instância que suspendeu parcialmente a execução, violou o caso julgado formal.

Mas não tem razão.

Da leitura do despacho e da tramitação subsequente resulta que este excerto do mesmo não é uma decisão sobre a relação processual, tratando-se de um lapso corrigido pelo tribunal e assim percecionado pela própria recorrente que contestou os embargos em que a executada pediu a suspensão parcial da execução.

 O despacho cuja eficácia de caso julgado se invoca, na verdade, surge apenas como um despacho de mero expediente, sem conteúdo decisório nem alcance vinculativo, destinando-se meramente a organizar a marcha do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes. Nos termos da lei, os despachos de mero expediente não admitem recurso (artigo 630.º, n.º 1, do CPC).  Se uma decisão se considera transitada em julgado, logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628.º do CPC), daqui resulta que, tratando-se de decisão irrecorrível, também não é suscetível de trânsito em julgado, nem pode adquirir valor de caso julgado.

Neste sentido, se pronuncia o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-03-2017, proferido na revista n.º 1119/14.6T8MAI - A.P1.S1 - 2.ª Secção, em cujo sumário se exarou o seguinte:

«III - A admissibilidade do recurso fundada na violação do caso julgado pressupõe que a decisão impugnada contrarie anterior decisão transitada em julgado, violando-a directamente.

IV - A decisão transita em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou

reclamação, pelo que, os despachos de mero expediente (tendentes a assegurar o andamento

regular do processo) ou de agilização processual, proferidos no termos do art. 6.º, n.º 1, do

CPC, sendo irrecorríveis, são insusceptíveis de trânsito e, logo, de adquirir valor de caso

julgado (arts. 619.º, n.º 1, 620.º, 628.º, 630.º, n.ºs 1 e 2, do CPC)».


5. Assim, considerando que o despacho invocado pelos recorrentes é de mero expediente e não tem qualquer componente decisória, e, por isso, não admite recurso, nem é suscetível de transitar em julgado, cumpre concluir que não tem valor de caso julgado formal.

Nesta conformidade, não incorre o acórdão recorrido na invocada ofensa de caso julgado.


6. Quanto à questão da violação de jurisprudência uniformizada, invoca a recorrente que a sentença, ao considerar prescrita a dívida relativa às rendas de junho a dezembro de 2012, bem como a dívida das rendas de abril e maio de 2014, violou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/98, relativo à notificação judicial avulsa como meio adequado de interrupção da prescrição de direito nos termos do n.º1 do artigo 323.º do Código Civil.        


Vejamos.

O artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil dispõe o seguinte:

«A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente».

Por seu turno, o n.º 4 do mesmo preceito afirma que:

«É equiparado à citação ou notificação para efeitos deste artigo qualquer meio judicial pelo qual se conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido».

O teor do citado AUJ n.º 3/98 é o seguinte:

«A notificação judicial avulsa pela qual se manifesta a intenção do exercício de um direito é meio adequado à interrupção da prescrição desse direito, nos termos do n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil»

Entendeu a decisão impugnada que “Analisado o teor da notificação judicial avulsa dela não se retira que fosse intenção da ora embargada exercer o seu direito de crédito sobre a arrendatária e, como tal, essa notificação não tem a virtualidade de interromper o prazo prescricional em curso”, extraindo-se do teor da notificação judicial, segundo o tribunal de 1.ª instância, que a única consequência jurídica para o não pagamento das rendas é a resolução do contrato de arrendamento, «(…)alegando no artigo 7.º dessa notificação, que é essa resolução que pretende efectivar e termina a pedir unicamente a resolução do contrato de arrendamento».

Assim sendo, não se deteta qualquer violação de jurisprudência uniformizada, na medida em que a decisão proferida acerca da questão da não interrupção do prazo de prescrição não se baseou na falta de virtualidade interruptiva da notificação judicial avulsa, em geral, mas na interpretação do concreto conteúdo das declarações contidas na notificação judicial avulsa destes autos, tendo-se entendido que estas declarações não eram de molde a significarem uma manifestação da intenção de exercer o direito de crédito relativo às rendas em atraso. Ora, este requisito da intenção, direta ou indireta, de exercer o direito é sempre exigível, qualquer que seja o ato praticado. Em consequência, a decisão proferida não foi contra jurisprudência uniformizada.


7. Em consequência, não se verificam os requisitos da abertura do recurso extraordinário, previstos na alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, pelo que não se conhece do objeto do recurso.


Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Um despacho de mero expediente (artigo 630.º, n.º 1, do CPC), dirigido à organização e à marcha do processo, sem conteúdo decisório, é insuscetível de recurso e de constituir caso julgado formal.

II- Não viola jurisprudência uniformizada estabelecida no AUJ n.º 3/98, a decisão que decretou a prescrição da obrigação do pagamento das rendas, se não se baseou na falta de virtualidade interruptiva da notificação judicial avulsa, em geral, mas na interpretação do concreto conteúdo das declarações nela contidas, tendo-se entendido que estas declarações não eram de molde a significarem uma manifestação da intenção de exercer o direito de crédito relativo às rendas em atraso.


III – Decisão

Pelo exposto, decide-se não conhecer do objeto do recurso.

Custas pela recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 22 de junho de 2021


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Alexandre Reis (1.º Adjunto)

Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto). 

(Maria Clara Sottomayor – Relatora)