Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
32106/15.8T8LSB.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MILITAR
LEGITIMIDADE PASSIVA
ESTADO
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
OFENSA DO CASO JULGADO
DUPLA CONFORME
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
Apenso:
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
Doutrina:
- Rui Pinto, Exceção e autoridade do caso julgado, Algumas notas provisórias, Revista Julgar online, novembro 2018, p. 9;
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997 (Lex), p. 575.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 629.º, N.º 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 1907/14.3TBCSC.L1.S1;
- DE 15-02-2017, PROCESSO N.º 2623/11.3TBSTB.E1.S1.;
- DE 11-09-2014,PROCESSO N.º 1106/08.3TJVNF.P1.S1.
Sumário :

I - Tendo o recorrente invocado a ofensa do caso julgado, a revista é admissível, nos termos do art. 629.º, n.º l, al. a), do CPC, apesar de as decisões das instâncias formarem dupla conforme.

II - Tendo o réu sido absolvido (juntamente com o Estado Português) pelo tribunal administrativo, por se ter concluído que o facto danoso (disparo involuntário de uma pistola que matou outro militar) não foi praticado no exercício das suas funções militares, mas apenas por ocasião delas, e não tendo o tribunal administrativo conhecido da sua responsabilidade pessoal, não se formou caso julgado que obste à apreciação da responsabilidade civil do réu na instância cível.

III - Enquanto que, na ação administrativa a causa de pedir assentou na configuração de um facto como sendo praticado no exercício das funções militares do réu, na ação cível a causa de pedir pressupôs a prática daquele facto fora do exercício dessas funções (na sequência da conclusão do tribunal administrativo).

IV - As diferentes circunstâncias funcionais em que é configurada a ocorrência do facto danoso – no exercício de funções militares do réu; ou fora desse exercício – permite concluir que as duas ações não têm a mesma causa de pedir, não se verificando a exceção do caso julgado. Não se trata de uma simples alteração da qualificação jurídica do mesmo facto, mas sim de uma intrínseca configuração circunstancial que altera o seu relevo normativo.

V - Tendo o tribunal administrativo concluído, por decisão definitiva, que o Estado Português não era responsável pela morte do filho dos autores, porque tal tinha ocorrido fora das funções militares do réu, não pode o réu invocar a sua ilegitimidade para a ação cível, alegando que esta ação devia ser proposta contra o Estado Português, porque nesta matéria vale a autoridade do caso julgado administrativo.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Em 2015, AA e mulher BB propuseram ação[1] conta CC, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhes a quantia de €103.000,00, acrescida dos juros de mora a contar da citação até integral pagamento, a título de indemnização por danos morais e patrimoniais sofridos com a morte do seu filho DD.

Alegaram, para tanto, que o filho dos autores prestava serviços militares, em regime de voluntariado, na ..., estando colocado, desde ..., na Base ... n. … do ....

No dia 08.11.2001, o filho dos autores encontrava-se escalado como Condutor de Reserva ao … da Base .... Nesse dia, cerca das 13 horas e em pleno exercício das suas funções, junto à entrada da Sala de Controlo das instalações, foi atingido por um disparo de uma pistola Walter P-38, distribuída e manuseada pelo réu, 1ª … EE. Prestados os primeiros socorros, veio o seu filho a falecer, no Hospital de Santa Maria, para onde foi transportado, no dia seguinte, 09.11.2001.

O réu, durante a sua preparação militar tinha aprendido a manejar e usar a arma que utilizou nesse dia.

Nesse dia não foram efetuados quaisquer exercícios de simulação de combate ou outras atividades que requeressem a introdução de um carregador municiado na arma, nem se verificava estado de guerra ou rebelião que justificasse que o réu andasse com uma munição na câmara da arma.

Ao utilizar a arma, o réu teve consciência de que poderia ocasionar a morte da pessoa que se encontrava colocada à sua frente. O réu é responsável pelo que aconteceu ao seu filho. DD era o auxílio de seus pais (autores), tinha 19 anos de idade, era uma pessoa cheia de força e de alegria de viver.

2. O réu deduziu incidente de intervenção provocada do Estado Português, com fundamento em que o acidente foi classificado como acidente ao serviço do Estado Português.

Os autores responderam (a fls. 117 dos autos) opondo-se a esse incidente, dizendo que, enquanto na anterior ação administrativa a causa de pedir era um acidente ocorrido no momento em que autor e vítima estavam no exercício das suas funções de militares da ..., o que justificou a demanda do Estado Português, nos presentes autos a causa de pedir é a prática, pelo réu, como cidadão, de um homicídio doloso, ainda que com dolo eventual.

Aquele pedido veio a ser indeferido (por despacho de fls.119 dos autos), tendo-se entendido que a relação material controvertida em que se fundamenta o pedido de intervenção foi objeto de decisão de mérito, na jurisdição administrativa, com trânsito em julgado, pelo que não poderia, de novo, ser discutida. 

3. Na contestação, o réu invocou as exceções de caso julgado e de ilegitimidade, e impugnou o alegado pelos autores, concluindo pela absolvição da instância e, caso assim não se entendesse, pela absolvição do pedido.

Quanto à exceção de caso julgado alegou que os autores propuseram ação de indemnização por danos morais e patrimoniais sofridos com a morte do seu filho contra o réu e o Estado Português, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, formulando o mesmo pedido (€ 103.000,00), tendo os réus sido absolvidos.

No que à ilegitimidade concerne alegou que a morte do filho dos autores resultou de um acidente em serviço, tendo o disparo da arma ocorrido no exercício das suas funções, pelo que não poderia ser demandado, por força do DL 48051 de 1967.

4. No despacho saneador (fls. 133 dos autos) a exceção do caso julgado foi considerada improcedente, por se ter entendido que na tese que sustentou a ação administrativa “o disparo que vitimou o filho dos autores foi causado pelo réu quando este se encontrava no exercício das suas funções de agente do Estado (militar da ...) e por causa desse exercício. Nessa dimensão ou leitura dos eventos naturalísticos, a causa de pedir era qualificável como um acidente de serviço e daí a demanda do Estado e do agente deste (…). Na presente ação os factos são, no essencial, os mesmos, mas com o acréscimo adquirido naquele outro processo de que, segundo a alegação dos autores, não existiam razões de serviço que justificassem que o réu estivesse, no momento do disparo a manusear a arma de fogo (…)”.

5. Por decisão de 13.07.2017 (a fls.285-295 dos autos), a ação foi julgada parcialmente procedente, tendo o réu sido condenado a pagar aos autores as seguintes indemnizações:

- €40.000,00 a cada um dos progenitores, pelo dano da morte do filho e danos patrimoniais próprios;

-  €10.000,00 em comum a ambos, pelos danos não patrimoniais sofridos pelo filho;

            Ambas as quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal dos juros civis, desde a data da sentença até integral pagamento.

Foi ainda o réu condenado a pagar:

- €13.000,00 em comum a ambos os autores, por danos patrimoniais futuros, desde a data da citação do réu para a ação (18.12.2015) até integral pagamento.

6. Inconformado com a decisão, o réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

7. O TRL, por acórdão de 25.01.2018, julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.

8. Inconformado com a decisão do TRL, o recorrente interpôs recurso de revista excecional (a fls. 358 e seguintes) invocando a existência de contradição entre o acórdão recorrido e uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo (reportada numa notícia de jornal), sobre a morte de um militar por outro militar, estando ambos em serviço, na qual o Estado Português teria sido condenado.

Nas suas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:

«a) O Réu já foi julgado pelos mesmos factos no processo 2481/04.BELSB em que foi absolvido e daí o caso julgado.

b) O Réu excecionou a ilegitimidade para esta acção, uma vez que o D.L.48051 de 21 de Novembro de 1967 - eximem-no da responsabilidade no plano das relações externas.

c) Por despacho de 3.12.02, exarado por Sua Excelência o Chefe do Estado Maior da ..., considerou que a morte do 1º … DD, ocorreu “em serviço”.

d) A douta sentença considera a actuação do Réu, ora recorrente, ilícita, e daí que tivesse de aplicar o art. 6º do D.L. 48051, chamando o Estado à acção.

e) De acordo com o Serviço de Justiça Disciplinar Militar, o disparo acidental pelo … de Serviço (o Réu) produziu um acidente que pode ser atribuído ao risco genérico que envolve o uso de armas.

f) O disparo involuntário produzido pela própria arma não é um comportamento ilícito, e daí que não estejam preenchidos os requisitos da responsabilidade civil (art. 483º n.1 do CC) o facto voluntário a ilicitude e a culpa ou nexo de imputação.

g) A responsabilidade civil extracontratual do Estado rege-se pelo disposto no D.L. 48051/67 de 21.11, e dispõe o art. 2º n. 1 que: (aplicável atenta a data dos factos) “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício".

Termos em que V. Ex.s. concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, assim se fazendo justiça

Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

9. A Formação a que alude o art. 672º, n.3 do CPC, por acórdão de 14.06.2018 (a fls. 389 dos autos), decidiu não tomar posição sobre a eventual revista excecional, dado que, nas conclusões das suas alegações, o recorrente invocou a ofensa do caso julgado, o que, nos termos do art.629º, n.2, alínea a) e 671º, n.3, 1ª parte, sempre permitiria o recurso.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão da admissibilidade do recurso:

O acórdão recorrido confirmou a decisão da primeira instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, pelo que se verificaria uma situação de dupla conforme. Todavia, dado que o recorrente invoca a eventual ofensa de caso julgado, sempre o recurso terá de ser admitido face ao disposto nos artigos 629º, n.2, alínea a) e 671º, n.3, 1ª parte do CPC.

 

2. O objeto do recurso:

            Sendo o presente recurso admissível por ter sido invocada a eventual ofensa do caso julgado, é à apreciação dessa questão que o seu objeto se confina (não podendo estender-se ao conhecimento de outras questões que já foram duplamente apreciadas e em sentido coincidente).

Neste sentido, indicam-se as seguintes decisões:
- Ac. do STJ de 27.04.2017 (Relator Álvaro Rodrigues): “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é admissível recurso de revista se for invocada a ofensa do caso julgado; porém, na falta dos referidos requisitos, o STJ só pode sindicar a decisão recorrida quanto a essa concreta questão e não também quanto a outras que, eventualmente, tenham sido levantadas pelo recorrente (arts. 629.º, n.º 2, al. a), in fine, e 671.º, n.º 2, al. a), do CPC)[2].
- Ac. do STJ de 15.02.2017 (Relator Nunes Ribeiro): “Tendo o recurso de revista sido recebido ao abrigo da al. a), parte final, do n.º 2 do art. 629.º do CPC, o seu objecto está restringido à apreciação da questão que justificou a sua admissão, ou seja, a ofensa do caso julgado, não podendo, por isso, ser apreciadas ou conhecidas quaisquer outras questões[3].

 

2. A factualidade provada:

São os seguintes os factos que a 1ª instância considerou provados:

«1 - DD foi incorporado na ..., como recrutado, no dia 24 de Maio de 1999 (art.1º dos temas da prova).

2 - Em 24 de Setembro de 1999, o mesmo continuou o serviço militar, mas no regime de voluntariado e a partir de 24 de Setembro de 2000 passou ao regime de contratado da ... Portuguesa com a especialidade de “Polícia ...” (art. 2º dos temas da prova).

3 - O réu apresentou-se ao serviço militar em … de … de 19… no Centro de Formação na …, tendo sido promovido ao posto de … em … de … de 19… (art. 3º dos temas da prova).

4 - Durante a sua preparação militar o réu aprendeu a manusear e a utilizar a pistola Walter P-38, sabendo as suas normas de utilização, nomeadamente, as seguintes:

- se o carregador estiver sem munições e introduzido na arma, a corrediça quando puxada à rectaguarda não consegue avançar, deixando a janela de ejecção aberta e com a base do elevador de munições do carregado apresentado;

- existe um comutador ou fecho de segurança vulgarmente conhecido por patilha de segurança, que dispõe de duas posições assinaladas pelas letras F e S, abreviaturas de “fogo” e de “segurança” permitindo “gatilhada” ou seja o avanço do cão na base do percutor;

- se puxar a corrediça à rectaguarda com o comutador de segurança com a letra “…” à vista ou seja, na posição de fogo, o cão fica armado e a munição é introduzida na câmara de combustão, bastando premir o gatilho para que a munição seja percutida na sua base, dando inicio à saída do projéctil e respectiva detonação;

- se o comutador, fecho e patilha de segurança estiverem sobre a letra “…” ou seja, se a letra “…” estiver à vista, a arma mesmo que disponha de uma munição introduzida na câmara, a base do cartucho não será ferida pelo percutor, portanto, não haverá disparo (art. 4º dos temas da prova).

5 - No dia 8 de Novembro 2001, o réu encontrava-se em regime de contratado na ... Portuguesa (art. 5º dos temas da prova).

6 - No mesmo dia, pelas 13.00 horas DD e o réu encontravam-se ambos de serviço na Base ... nº …, no ..., estando o primeiro a exercer funções como condutor de reserva ao Centro Coordenador de Defesa (...) dessa Base ....

7 - Ainda nesse dia o réu havia sido nomeado … de Serviço ao referido Centro Coordenador de Defesa e ao entrar de serviço requisitou a pistola Walter P-38 com o número …, três carregadores, sendo um vazio e dois municiados com seis munições de 9 mm (art. 6º dos temas da prova).

8 - O mesmo sabia que o serviço de … de Serviço ao ... era feito armado com a referida pistola e municiado em local designado por “sala de controlo”, no piso térreo, lateral esquerda da área frontal do edifício do Comando (art. 7º dos temas da prova).

9 - Ao receber o armamento referido no nº 7, o réu, de acordo com as instruções que recebera, deveria ter procedido do seguinte modo:

a) recepcionar a arma com a corrediça à rectaguarda, sem carregador e fecho de segurança com a letra “…” à vista;

b) direccionar a arma para um lugar seguro (bidon de areia);

c) verificar se a arma estava sem munições na câmara;

d) levar a corrediça à frente, acompanhando o movimento com a mão;

e) colocar o fecho de segurança na posição de fogo, efectuando a descompressão das molas (letra “…” à vista);

f) colocar o fecho de segurança na posição segurança (letra “…” à vista).

g) introduzir o carregador vazio (art. 8º dos temas da prova).

10 - A referida pistola Walter P-38 encontrava-se em boas condições de funcionamento e utilização, sem deficiências que afectassem o sistema de segurança, carregamento ou disparo (art. 9º dos temas da prova).

11 - Desde que iniciou o serviço naquele dia o réu teve sempre na sua posse a referida pistola e os três carregadores, não tendo permitido a sua utilização a terceiros (art. 11º dos temas da prova).

12 - No referido dia 8 de Novembro de 2001 não havia estado de guerra ou rebelião que justificasse a necessidade de o réu andar com a munição na câmara da arma (art. 12º dos temas da prova).

13 - No mesmo dia não foram feitos exercícios reais de simulação de combate ou outras actividades que requeressem a introdução de um carregador com munições reais nas armas distribuídas ao pessoal de serviço ao ... na Base ... nº …, no ... (art. 13º dos temas da prova).

14 - No momento anterior ao disparo referido no nº 15 DD e o réu estavam a conversar no corredor de acesso à Sala de Controlo do … da Base ... (art. 14º dos temas da prova).

15 - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no n.6, após o réu ter tirado do coldre a pistola Walter P-38 que lhe havia sido distribuída e ter puxado a respectiva corrediça, essa arma efectuou um disparo que foi atingir DD.

16 - O réu tirou a pistola do coldre e puxou a corrediça da mesma a fim de simular um incidente que teria ocorrido no dia anterior com um sargento e uma arma de fogo (art. 29º dos temas da prova).

17 - O réu tinha o carregador da pistola referida no nº 7 municiado e introduzido na arma (art. 15º dos temas da prova).

18 - O mesmo apontou a mesma pistola na direcção da parede que se encontrava na sua frente e com o comutador de segurança na posição de fogo puxou a corrediça, dando-se então o disparo (art. 17º dos temas da prova).

19 - Antes de atingir DD o projéctil disparado pela pistola fez ricochete na parede (art. 30º dos temas da prova).

20 - Depois de lhe terem sido prestados os primeiros socorros na unidade militar, DD foi evacuado para o Hospital de Santa Maria em Lisboa (art. 18º dos temas da prova).

21 - DD era filho dos autores e faleceu às ... horas do dia … de … de …, com 19 anos de idade, no estado civil de solteiro, não tendo deixado testamento.

22 - O mesmo faleceu em consequência de lesões traumáticas crâneo-meningo-encefálicas produzidas pelo projéctil disparado pela arma referida no nº 15 (art. 19º dos temas da prova).

23 - Essas lesões foram causadas pelo mesmo projéctil actuando da esquerda para a direita, ligeiramente de diante para trás e de cima para baixo (art. 20º dos temas da prova).

24 - No Hospital de Santa Maria, em Lisboa, DD foi sujeito a intervenção cirúrgica para limpezas das feridas, hemostase e remoção de massa encefálica herniada (art. 26º dos temas da prova).

25 - Após o disparo e no decurso da agonia que precedeu a sua morte, o mesmo teve muitas dores e sofreu grande ansiedade (art. 27º dos temas da prova).

26 - DD não deixou descendentes (art. 21º dos temas da prova).

27 - Era cheio de força e alegria de viver (art. 22º dos temas da prova).

28 - DD era adorado pelos seus pais e por todas as pessoas do seu círculo social e tinha namorada com quem perspectivava casar, o que constituía motivo de orgulho dos seus pais e dos restantes familiares (art. 28º dos temas da prova).

29 - Vivia com os seus pais para cuja economia doméstica contribuía com cerca de Euros 200, dos Euros 530,77 de salário líquido que auferia da ... (art. 23º dos temas da prova).

30 - O autor marido encontra-se desempregado, recebendo a autora mulher, do Centro Nacional de Pensões, uma pensão de Euros 219,07 (art. 24º dos temas da prova).

31 - A morte de DD causou aos autores uma dor e angústia profundas que ainda hoje os atormentam por não conceberem a morte do seu filho nas condições em que a mesma teve lugar (art. 25º dos temas de prova).»

A segunda instância não alterou a matéria de facto dada como provada.

3. O direito aplicável:

A questão central em análise é a de saber se existe ou não ofensa do caso julgado e, consequentemente, saber se a decisão recorrida devia ter revogado a decisão da primeira instância que não reconheceu a exceção do caso julgado, invocada pelo réu, e o condenou a indemnizar os autores.

3.1. O acórdão recorrido, desatendendo a apelação do réu, considerou não existir caso julgado porque a presente ação e a ação que correu pelos tribunais administrativos, na qual o réu foi absolvido, não tinham idêntica causa de pedir.

Justificou esse entendimento nos termos que se transcrevem:

«In casu, confrontamo-nos com a acção intentada pelos autores contra o Estado Português e o réu, com fundamento (causa de pedir) na responsabilidade extra-contratual do Estado e do réu, por um acidente, que ocorreu no exercício das funções do réu e por causa desse exercício, do qual resultou a morte de AA (acidente em serviço), acção essa que correu termos nos tribunais administrativos, em que já foi prolatada decisão, que absolveu os réus do pedido, decisão essa já transitada, e a presente acção, em que os autores demandaram o réu, com fundamento (causa de pedir) na responsabilidade civil aquiliana do réu (art. 483 CC), sustentam que a morte do seu filho resultou da conduta ilícita por parte do réu que, ao manusear arma, que lhe fora atribuída por razões de serviço militar na ..., actuando com a consciência de que com a sua acção poderia provocar a morte de outrem, disparou um tiro que atingiu mortalmente o seu filho AA.

Constata-se que, em ambas as acções, discute-se a responsabilidade do réu (na 1ª acção, a responsabilidade era assacada ao réu e ao Estado Português), o sinistro (morte) é o mesmo, bem como o local da ocorrência, não obstante, certo é que a causa de pedir é diversa.

Assim, atento estes factos e o supra exarado, afastada está a excepção de caso julgado uma vez que inexiste a tríplice identidade – sujeito, pedido e causa de pedir.»

3.2. Analisemos os requisitos legais do caso julgado com relevo na situação concreta.

Como o próprio legislador expressou, de modo literal, o caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.580º, n.2 do CPC).

Esta figura jurídica pressupõe a repetição de uma causa e pressupõe que tal repetição se verifique depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (art.580º, n.1 do CPC).

Tal repetição (ou duplicação processual) existirá quando a segunda ação é idêntica à primeira no que respeita aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art.581º, n.1 do CPC). No art.581º, números 2, 3 e 4, revelam-se os critérios de reconhecimento da similitude destes elementos:

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica;

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico;

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, o qual, nas ações constitutivas, é o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido. 

 

3.3. As instâncias deram como assente que existia identidade de sujeitos e de pedido entre os presentes autos e a ação que correu pelos tribunais administrativos.  O único daqueles três requisitos (de verificação cumulativa) que entenderam não estar verificado foi o da causa de pedir (como se espelha na parte do acórdão supra transcrita).

Vejamos se a decisão recorrida fez a correta aplicação do direito.

3.4. Os autores dos presentes autos tinham proposto ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada[4] (à qual correspondeu o proc. n. 2481/04.BELSB), contra o Estado Português e contra o réu (Pedro Ricardo), na qual peticionaram o pagamento de uma indemnização de €103.000,00 (cento e três mil Euros), tendo como causa de pedir o acidente ocorrido em 08.11.2001, na Base ... n… do ..., do qual resultou a morte do AA, configurando esse acidente como ocorrido no exercício das funções do réu (encontrando-se cópia da respetiva p.i. a fls. 51 e seguintes dos autos).

O TAF de Almada, por sentença de 31.01.2008, julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido, por ter entendido que aquele acidente não ocorreu no exercício das funções do réu. O Tribunal Central Administrativo Sul, por acórdão de 26.03.2015, confirmou aquela sentença a qual se tornou definitiva.

3.5. Em 2015, os autores propuseram a presente ação contra o réu[5], na qual formularam pedido idêntico ao que tinham formulado na ação administrativa supra referida (no valor de 103.000,00 Euros).

A idêntica pretensão deduzida nas duas ações também procede do mesmo facto naturalístico, ou seja, o acidente ocorrido no dia 08.11.2001, na Base ... n…. do ..., que causou a morte ao filho dos autores (no dia seguinte), ou seja, do disparo de uma pistola manejada pelo réu[6].

O que os autores invocam nos presentes autos para sustentar a sua pretensão é, numa perspetiva naturalística, a mesma factualidade que invocaram na ação administrativa, mas com a atribuição de uma diferente contextualização funcional.

3.6. Vejamos se existe apenas a atribuição de uma diferente qualificação aos mesmos factos (o que não afasta a identidade da causa de pedir) ou se esses factos passam a revestir diferente natureza jurídica.

 Como tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência, uma diferente qualificação jurídica dos mesmos factos não constitui uma diferente causa de pedir.

Como afirma Teixeira de Sousa: “o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado[7].

No mesmo sentido, afirma Rui Pinto: “Há identidade de causas de pedir mesmo que a qualificação jurídica seja diversa, tanto se a primeira decisão foi de procedência, como se foi de improcedência[8]

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido também no sentido de que a apresentação de uma nova qualificação jurídica dos mesmos factos não pode ser considerada como uma nova causa de pedir, para efeitos de afastamento da exceção dilatória do caso julgado. Neste sentido, cita-se a título exemplificativo, o acórdão do STJ, de 11.09.2014 (relatora Fernanda Isabel Pereira) [9].

Na primeira ação, os autores caraterizaram o comportamento do réu como um facto praticado no exercício das suas funções militares. Por isso a ação foi proposta também contra o Estado Português.

A decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.03.2015, confirmou que o comportamento do réu não foi praticado no exercício das suas funções, mas sim por ocasião dessas funções,  e invocou como base legal os artigos 22º da CRP e 2º, n.1 do DL 48051 (de 21.11.1967), vigente à data dos factos (entretanto revogado pelo art.5º do DL 67/2007), nos quais se prevê a responsabilidade civil do Estado pelos atos ilícitos e culposos praticados pelos seus agentes “no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

Afirmou-se, naquela decisão, que se excluem do âmbito da responsabilidade administrativa os atos lesivos que tenham sido praticados, por titulares de órgãos e agentes, fora do exercício de funções ou no exercício de funções, mas não por causa desse exercício, que, por isso, se devem qualificar como atos pessoais dos seus autores materiais, envolvendo apenas a responsabilidade pessoal do agente, sujeita ao regime de direito privado, a exercer nos tribunais comuns.

Assim, tendo concluído que o disparo efetuado pela arma manejada pelo réu ocorreu apenas por ocasião das suas funções e não por causa do exercício dessas funções, concluiu pela absolvição do réu, enquanto militar, bem como pela absolvição do Estado Português.

A decisão final dos tribunais administrativos, ao absolver o réu do pedido, confinou-se, assim, à questão de saber se o comportamento do réu ocorreu no exercício das suas funções ou fora desse exercício. Não conheceu, portanto, da eventual responsabilidade pessoal do réu.

Deste modo, diferentemente do que aconteceria se a primeira ação tivesse corrido nos tribunais cíveis, não se pode concluir que o juiz do tribunal administrativo tivesse tido a possibilidade legal de ponderar a aplicação de figuras jurídicas alternativas, ou seja, de considerar a aplicação do regime da responsabilidade civil (previsto no art. 483º e seguintes do CC), porque a responsabilização do réu, neste quadro jurídico, é da competência dos tribunais cíveis (como se afirmou no acórdão do tribunal administrativo).

Conclui-se, assim, que o modo como os autores configuram a sua causa de pedir nos presentes autos não teria sido potencialmente idêntica na ação anterior, atenta a diferente competência material dos tribunais e, consequentemente, a diferente natureza jurídica dos atos de que podem conhecer.

Embora o facto causador do dano seja naturalisticamente o mesmo, as circunstâncias funcionais da sua ocorrência, invocadas pelos autores, não são idênticas nas duas ações. 

Não se trata de uma simples alteração da qualificação jurídica do mesmo facto, mas sim de uma intrínseca configuração circunstancial que altera o seu relevo normativo, devendo, por isso, entender-se que não existiu identidade de causa de pedir nas duas ações.

3.7.  Tendo o réu sido absolvido pelo tribunal administrativo porque não praticou o ato no exercício das suas funções, e não podendo o tribunal administrativo conhecer da responsabilidade “pessoal” do réu (dada a respetiva competência material), caso se entendesse que existia caso julgado que obstava ao conhecimento da responsabilidade do réu pelos tribunais cíveis, então este tipo de casos nunca seria julgado pelos tribunais, ficando os lesados privados da tutela efetiva do direito. 

3.8. Nas conclusões das suas alegações, o réu invoca ainda a sua ilegitimidade para a presente ação, pugnando pela responsabilização do Estado Português. Ora, tendo o tribunal administrativo concluído, por decisão definitiva, que o Estado Português não era responsável pela morte do filho dos autores, porque tal tinha ocorrido fora das funções militares do réu, não pode o réu invocar a sua ilegitimidade para a ação cível, alegando que esta ação devia ser proposta contra o Estado Português, porque nesta matéria vale a autoridade do caso julgado administrativo.

O réu invoca a existência de um despacho do Chefe de Estado Maior da ..., de 03.12.2002 (que consta da informação do Ministério da Defesa Nacional, a fls.65-67 dos autos), que considerou que a morte do filho dos autores ocorreu “em serviço”. Todavia, como consta daquela informação, essa qualificação do acidente relevou apenas para efeitos do disposto no art.2º, n.1, al. a) do DL n.466/99, ou seja, para a atribuição aos autores da “pensão de preço de sangue” pelo falecimento do seu filho.

De tal informação não se pode, nos presentes autos, extrair qualquer outra relevância jurídica, dado que o tribunal administrativo concluiu, em termos definitivos, que o acidente não ocorreu no exercício das funções do réu, havendo, portanto, que respeitar o efeito do caso julgado quanto a essa matéria.

3.9. Conclui-se, assim, que o acórdão em revista, ao confirmar a decisão da primeira instância, não merece censura pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto, porquanto não se verificava a exceção do caso julgado, invocada pelo recorrente, que obstasse ao conhecimento do mérito da causa, ou seja, à apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil e consequente condenação do réu/recorrente.

III. DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente (sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar).

Lisboa 14 de maio de 2019

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Os autores começaram por dar entrada da ação no tribunal de Comarca de Lisboa – Instância Central, o qual foi declarado territorialmente incompetente, por despacho de 15.05.2016 (a fls.100 dos autos), sendo os autos remetidos ao tribunal de Almada.
[2] Proc. n. 1907/14.3TBCSC.L1.S1.
[3] Proc. n. 2623/11.3TBSTB.E1.S1.
[4] A ação começou por ser proposta, em 19.10.2004, no TAF de Lisboa, mas dada a incompetência territorial deste tribunal, foram os autos remetidos ao TAF de Almada.
[5] Na ação administrativa haviam demandado também o Estado Português.
[6] Resulta dos documentos que se encontram juntos aos autos que esse disparo não foi intencional (mas sim acidental), não tendo existido responsabilização criminal.
[7] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997 (Lex), pág.575
[8] Exceção e autoridade do caso julgado – Algumas notas provisórias, in Revista Julgar online, novembro 2018, pág.9.
[9] Proferido no processo n. 1106/08.3TJVNF.P1.S1.: «I - Através da excepção do caso julgado procura obviar-se a que os tribunais, perante uma decisão que se tornou definitiva, sejam colocados em posição de repetir uma decisão anterior ou de proferir uma decisão contraditória, pondo em causa a confiança e a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais. 

II - Caso tenham sido proferidos julgados contraditórios sobre a mesma pretensão, por não ter actuado o caso julgado, será dada prevalência à decisão primeiramente transitada em julgado. 

III - Causa de pedir não é o facto abstracto configurado na lei, mas sim o facto concreto e particular que o autor apresenta em juízo para fundar a sua pretensão de tutela jurídica. 
IV - Não evita a verificação da excepção, do caso julgado, uma inovação que apenas se circunscreva ao plano da qualificação jurídico-normativa do elenco dos factos concretos.