Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2612/07.2TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
TUTELA POST MORTEM
BOM NOME
HONRA
DEPOIMENTO JUDICIAL
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / PERSONALIDADE JUDICIÁRIA / DIREITOS DA PERSONALIDADE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕS / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO / PROCESSO DE DECLARAÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA TESTEMUNHAL / RECURSOS.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Vol. I, 4ª ed., p.466.
- Guilherme Machado de Dray, Direitos de Personalidade – Anotações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Almedina, 2006.
- Kant – “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” – [tradução de Paulo Quintela, 1986, p. 77].
- Maria Paula Andrade, Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome, 1996, p. 97.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, p.38 e segs.; Direito de Personalidade, Almedina, 2006, pp. 76, 77.
- Pires de Lima, Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, 1º Volume, 4ª ed., 1987, p. 105 (anotação 1 ao artigo 71.°).
- Rabindranah Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, 1995, pp. 188-198, 303-304.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 68.º, N.º1, 70.º, N.ºS1 E 2, 71.º, N.º1, 483.º, N.º1, 484.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 456.º, N.º3, 618.º, N.º1, AL. A), 754.º, N.º2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 185.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 26.º, N.º1, 33.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 4.3.2009, IN WWW.DGSI.PT , PROC. 51/06.1TAMIR.C2.
Sumário :
I. O art. 70º, nº1, do Código Civil tutela a personalidade como direito absoluto de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser humano, moral e fisicamente e o tornam titular de direitos invioláveis.

II – O art. 484º do Código Civil, ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana – a honra.

III – “Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular” – art.71º, nº1, do citado Código – o art. 185º do Código Penal tutela a memória de pessoa falecida.

IV) – Não obstante a redacção daquele preceito do Código Civil, não se pode admitir que a lei ficciona a existência de personalidade para além da morte, conferindo uma indemnização, em dinheiro, por ofensa de direito de personalidade à pessoa falecida uma vez que, com a morte, cessa a personalidade – art. 68º, nº1, do Código Civil.

V) – Da conjugação dos arts. 71º, nº1 e 70º, nº2, do Código Civil decorre que pode ser pedida ao lesante, indemnização por danos não patrimoniais por ofensa a pessoa falecida, radicando a legitimidade no cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.

VI) Tendo a Autora, ancorado o pedido de indemnização por ofensa ao bom nome e à honra da sua falecida mãe, no facto da Ré ter violado aquele direito de personalidade, fazendo imputações falsas e desonrosas, sobre ela cabia o ónus da prova da falsidade dos factos e das afirmações que, por si só, não devam ser consideradas objectivamente lesivas da honra e do bom nome da visada.

VII) Sendo as declarações alegadamente violadoras do direito de personalidade de pessoa falecida sido proferias em processo judicial de prestação de contas, na sequência de processo de inventário, num contexto de fortes divergências familiares sobre a administração de bens hereditários pela pessoa entretanto falecida e não tendo o juiz do processo, onde foram proferidas as afirmações, considerado falso o depoimento prestado ao abrigo de um direito, não se pode considerar que a ré depoente estava impedida de fazer alusões a comportamentos não considerados falsos da pessoa falecida.

VIII) – Tendo a Ré exercido um direito ao prestar declarações em juízo, sob juramento, estando por isso obrigada a responder com verdade e não tendo cometido perjúrio, não pode ser responsabilizada por violação do direito de personalidade em apreço.
Decisão Texto Integral:

Proc.2612/07.2TVLSB.L1.S1.

R-411[1]

Revista.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA, intentou em 31.5.2007, nas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, com distribuição à 10ª Vara, acção declarativa de condenação com processo comum na forma ordinária, contra:

 BB

Pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 25.000,00.

Para esse efeito, alegou sumariamente, ter sido a Ré, sua prima, ouvida como testemunha em audiência (27.05.2004) num processo judicial em que era uma das suas proponentes e a mãe da Ré, CC sujeito passivo, na qual proferiu afirmações falsas contra a credibilidade, prestígio e confiança devidos à sua mãe, falecida em 25.04.1998, e tia materna da Ré, DD, pondo ainda em causa o seu próprio bom nome e reputação, o que lhe causou danos não patrimoniais que se devem avaliar no predito montante.

A Ré contestou, em síntese, por impugnação, com o intento de justificar tais afirmações e o contexto em que as fez, sem que relatasse factos falsos, terminando a pedir a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização.

A Autora respondeu, mantendo a sua tese, pronunciando-se ainda sobre os documentos juntos pela Ré e opondo-se à sua condenação como litigante de má fé.

Com audiência preliminar, foi proferido despacho saneador e elaborados os factos assentes e a base instrutória, que não sofreram reclamações (fls. 205 a 222).

Realizada audiência de julgamento, responderam-se aos artigos da base instrutória, que igualmente não sofreram reclamação (fls. 385 a 387).


***

Proferida sentença (fls. 389 a 410) julgou-se a acção improcedente e, em consequência, absolveu-se a Ré do pedido, condenando-se a Autora como litigante de má fé na multa de 2 UCs e em indemnização a fixar, sendo que para este efeito se ordenou a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 dias.

Em sequência disso Autora e Ré pronunciaram-se, respectivamente a fls. 425 a 427 e 414/5, a segunda requerendo a fixação do montante de € 2.500,00.

Conforme despacho de fls. 431/2, a Autora, como litigante de má fé, foi condenada a pagar à Ré a quantia de € 1.000,00.


***

Inconformada, a Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 15.11.2012 – fls. 513 a 540 – julgando improcedente o recurso, manteve na íntegra a sentença e o  despacho de fls. 431/2, no qual a Apelante foi condenada a pagar à Apelada a quantia de € 1.000,00 de indemnização por litigância de má fé.


***

Inconformada, recorreu a Autora AA, que alegando formulou as seguintes conclusões:

I - A Ré declarou no seu depoimento como testemunha que (cfr. Alínea C) dos Factos Assentes) – “E depois, quando a minha tia morreu, essa conta que estava lá em A..., na Caixa Geral de Depósitos, não era muita, eu sei que passado... (corte na gravação) de ela morrer a minha prima levantou o dinheiro, quer dizer, sem dar cavaco à minha mãe…quer dizer, sem lhe dizer nada, quer dizer, ao menos uma questão de consideração, quer dizer, nada, e ficou com o dinheiro, ora não é assim, se a conta era para as despesas da casa…para a Quinta e ela levantou o dinheiro, que eu sei que não era muito, e ainda por cima ficou com ele, quer dizer, eu acho que isto não se faz.”.) donde afirma que a Autora teria procedido ao levantamento do saldo da conta da CGD de A... depois de a Mãe daquela ter falecido, tendo feito sua a quantia em causa.

II - Ficou provado nos autos que a Autora, aqui Recorrente, não fez qualquer movimento na conta após o óbito de sua mãe, donde resulta à saciedade que é falsa a declaração referida em 1.

III - Entendeu o douto Acórdão recorrido que, não obstante as declarações terem sido reputadas como objectivamente ofensivas do crédito e do bom nome da falecida mãe da Recorrente e desta, o facto de a Recorrida estar a cumprir “um dever processual, radicado por sua vez no dever geral de justiça material”, era circunstância que afastava a antijuridicidade ou a ilicitude da conduta.

 Não se pode acolher tal entendimento, sob pena de se vir a entender, no futuro, podem ser proferidas quaisquer declarações, por mais injuriosas ou falsas que sejam, desde que sejam proferidas no decurso do cumprimento de um dever legal.

IV - Na verdade, era pressuposto de facto da procedência da acção que fossem falsas as declarações proferidas pela Recorrida: essa falsidade é patente dos autos.

Era pressuposto de direito da mesma procedência que ficassem demonstrados os danos e o nexo causal entre as declarações e os danos. Tal prova foi feita, pelo que a responsabilidade da Recorrida existe e consequentemente impunha-se a procedência da acção.

V - Não se pode aceitar que a absolvição da Ré, aqui Recorrida, assente num contexto de alegada falta de prestação de contas por parte da anterior cabeça de casal, quando esta acção não é sequer o meio próprio para tal discussão, estando pendente acção especial de prestação de contas na qual se discute precisamente a mesma questão e na qual a decisão sobre a matéria de facto entretanto proferida é de resto oposta a esta.

VI - Não impendia sobre a Recorrente o ónus de demonstrar a falsidade das declarações, e não pode aceitar-se tal solução jurídica por ofender as regras em matéria de ónus da prova em caso de responsabilidade civil. Todavia, tal prova consta dos autos, sendo falsas pelo menos parte das declarações da Ré.

Não existe assim causa justificadora para afastar a ilicitude da conduta da Recorrida.

VII - As declarações foram proferidas durante a prestação de depoimento testemunha, não o foram no meio da rua, num bar ou numa reunião social: o momento era solene e a Recorrente não estava sequer presente. Consequentemente, não podem ser entendidas como meramente “provocadoras, acintosas ou malévolas”, são muito mais do que isso, e são-no objectivamente consideradas, não apenas subjectivamente.

VIII - Consequentemente, o douto Acórdão recorrido violou, por inadequada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 342°, n° 1 e 487°, ambos do Código Civil.

IX - Estão provados os prejuízos sofridos pela Recorrente, estando portanto preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil e existe a obrigação de indemnizar por parte da Ré.

X - Estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, cabia ao aliás douto Acórdão recorrido concluir pela procedência da acção, condenando a Ré no pedido.

Não o tendo feito, o aliás douto Acórdão recorrido, errou por inadequada interpretação e aplicação do direito aos factos, violando o disposto nos arts. 70.°, 71º, 342°, 487°, 483.° e 484.º, todos do Código Civil.

XI - Ainda que se entenda, como o faz o douto Acórdão recorrido, que as declarações proferidas o mais que podiam era ser apodadas era de provocadoras, acintosas ou maliciosas, daqui resulta inexoravelmente que as mesmas foram feitas, e que a Autora se sentiu ofendida e sofreu danos em consequência das mesmas.

XII - O não vencimento de causa depende exclusivamente da prova produzida e da formação da convicção do julgador, sendo certo que em todas as acções há forçosamente uma parte vencida e uma parte vencedora, sem que, da lei em vigor, se possa retirar que a parte vencida litigou de má fé.

XIII - Resulta dos autos que em momento nenhum a Autora, aqui Recorrente, mentiu ou alterou a verdade dos factos: - veio propor a acção por a prima, Ré e aqui Recorrida, ter dito que ela Autora teria levantado dinheiro da conta da herança e que o teria feito seu, depois da morte de sua Mãe.

Ora, analisando-se criteriosamente a prova, designadamente a data dos factos, verificar-se-ia que os 3.000 contos a que o Acórdão se refere foram movimentados antes da morte da Mãe da Recorrente, e consequentemente estão fora dos factos essenciais que constituem a causa de pedir.

A Autora não alterou dolosamente a verdade dos factos quando afirmou que não tinha feito aquilo de que a prima a acusava, isto é, movimentado a conta depois do óbito da cabeça-de-casal.

XIV - Não pode também concluir-se, como o fez o aliás douto Acórdão recorrido, que a Autora teve como fim conseguir um objectivo ilegal: não é ilegal pretender-se a condenação de alguém que com a sua conduta causa danos a outrem, como não é ilegal, ilícito ou censurável peticionar o ressarcimento de danos sofridos em consequência de factos ilícitos.

XV - Face à confissão feita pela Ré de que emitiu as declarações em causa é evidente que a Autora não deduziu pretensão cuja falta de fundamento ignore nem invocou factos que não são verdadeiros, carecendo portanto de fundamento a condenação da Autora como litigante de má-fé, e não podendo ser arbitrada qualquer quantia a favor da Ré.

XVI - 1- Para a condenação como litigante de má fé, exige-se que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente, o que requer grande cautela para evitar condenações injustas, designadamente quando (assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico sociológico» como judiciosamente se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 11.12. 2003. II - Tal é exigência legal que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art2 12 da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má-fé. III- É esta dignidade, proclamada legal, constitucional e supra nacionalmente, impeditiva de que a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes seja considerada como integrando a “mala fides” sempre que a versão oposta à alegada seja provada, antes se exigindo que ela seja imputável subjectivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão)” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-05-2009.

XVII - O Acórdão recorrido está em oposição com outros Acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito — litigância de má fé — pelo que a questão pode e deve ser apreciada por esse Supremo Tribunal de Justiça, juntando-se cópia de dois desses Acórdãos.

XVIII - O douto Acórdão recorrido violou, por inadequada interpretação e aplicação, o disposto nos violando o disposto nos arts. 70.°, 71.°, 342°, 487°, 483.° e 484,°, todos do Código Civil, e os arts. 266° e 266°-A, ambos do Código de Processo Civil.

Termos em que, Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o aliás douto Acórdão recorrido, proferindo-se em sua substituição douto Acórdão que julgue a acção totalmente procedente, por provada, e que absolva a Autora, aqui Recorrente da condenação como litigante de má fé.

A recorrida contra-alegou, batendo-se pela confirmação do julgado.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) - Correu seus termos no 3º Juízo, 1ª Secção, dos Juízos Cíveis de Lisboa, sob o nº144-B/2000, apenso de prestação de contas proposto pela Apelante, EE e FF contra CC, mãe da Apelada, no qual aqueles pediam a condenação desta na apresentação de contas da sua administração dos bens da herança aberta por óbito de GG, conforme teor de documentos de fls. 164 a 167, que aqui se dá por reproduzido.

2) - No âmbito do referido processo, no dia 27.05.2004, realizou-se a audiência de discussão de julgamento, na qual não estiveram presentes nem a Apelante, nem a sua mandatária, tendo a Apelada sido ouvida como testemunha da sua mãe, conforme documento de fls. 12 a 17, que aqui se dá por reproduzido.

3) - A Apelada prestou o depoimento transcrito a fls. 177 a 187, que aqui se dá por reproduzido[2].

4) - No âmbito do referido processo foi proferido despacho de resposta aos quesitos, conforme teor de fls. 19 e 20 que aqui se dá por reproduzido.

5) - O depoimento da Apelada foi prestado num local público, sala de audiências, num processo público e ficou registado fonograficamente.

6) - As afirmações foram proferidas perante um magistrado judicial.

7) - A Apelante é filha de DD.

8) - Esta faleceu no dia ……..1998, conforme documento de fls. 146/7, que aqui se dá por reproduzido.

9) - Por óbito de GG, ocorrido em ……..19…, foram habilitados como únicos herdeiros, suas filhas DD e CC, conforme documento de fls. 71 a 74, que aqui se dá por reproduzido.

10) - A mãe da Apelante desempenhou até à sua morte o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito do seu pai, GG.

11) - A mãe da Apelada outorgou procuração a favor da mãe da Apelante para efeitos da sua representação junto do IFADAP.

12) - No desempenho do cargo de cabeça de casal e no uso dos poderes de representação conferidos pela mãe da Apelada, a mãe da Apelante desenvolveu e apresentou junto do IFADAP, Delegação de Vila Real, quatro projectos para viabilização e desenvolvimento dos prédios rústicos que integram a herança aberta por morte do dito GG e que se situam no concelho de A....

13) - Desses projectos dois destinavam-se à substituição dos pomares envelhecidos por novas árvores de fruto e outros dois ao replantio de áreas ardidas de mata: um na Mata da ..., junto à aldeia e o outro na propriedade conhecida como ....

14) - Os projectos em causa eram subsidiados pelo IFADAP, a fundo perdido, numa percentagem que variava entre os 70 e os 90%.

15) - Os projectos de plantio de árvores de fruto eram pagos pelo proprietário e reembolsados pelo IFADAP e os projectos de florestação eram pagos contra a apresentação de facturas, enviadas ao proprietário pela entidade que procedesse aos trabalhos e por aquele enviados ao IFADAP.

16) - Durante o período em que exerceu as funções de cabeça-de-casal, a mãe da Apelante depositou todas as quantias relacionadas com a herança numa conta bancária da qual era única titular na agência da Caixa Geral de Depósitos de A..., com o número ....

17) - Corre seus termos na 1ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, sob o nº 1078/97, acção especial de prestação de contas intentada, em 18.12.1997, pela citada CC contra a aludida DD, na qual aquela pede a esta a apresentação de contas da administração, nas propriedades sitas em A... e ..., conforme documentos de fls. 75 a 82, que aqui se dão por reproduzidos.

18) - A mãe da Apelante e da Apelada viviam em casas contíguas, na ..., em Lisboa.

19) - No dia 08.07.2004, a Apelante apresentou contra a Apelada, queixa, nos termos constantes do documento de fls. 123 a 131, que aqui se dá por reproduzido.

20) - No âmbito do referido processo foi proferido despacho de arquivamento cuja cópia se encontra junta a fls. 134 e 135 e que aqui se dá por reproduzida.

21) - Até 16.03.1998, a Apelante não teve autorização para movimentar a citada conta bancária.

22) - A Apelada, não querendo ofender a memória da mãe da Apelante, nem abalar a consideração social de que goza a Apelante, previu tal resultado como uma consequência necessária do seu depoimento.

23) - Em consequência das afirmações proferidas pela Apelada, a Apelante sentiu-se enxovalhada, humilhada, ofendida e indignada.

24) - Ferida por afirmações feitas perante terceiros que não a conhecem, designadamente o Sr. Juiz que presidiu à diligência.

25) - Tendo a Apelante sentido afectada a consideração social de que goza.

26) - O que lhe causou e causa desconforto, angústia e infelicidade.

27) - A partir do ano de 1993, a mãe da Apelante deixou de prestar contas à mãe da Apelada, nomeadamente, não apresentando as informações relativas às despesas e receitas concernentes com a actividade agrícola desenvolvida nos prédios rústicos que integram aquela herança.

28) - Na aludida conta eram depositadas nomeadamente as quantias subsidiadas pelo IFADAP no âmbito de projectos de plantio de árvores e de florestação.

29) - A mãe da Apelada não tinha acesso a tal conta bancária.

30) - Em data não concretamente apurada, a Apelante esteve internada num hospital de Londres, devido ao agravamento dos problemas de saúde de que padecia.

31) - Funcionários de uma florista deslocavam-se por vezes à casa da mãe da Apelante a solicitar o pagamento de quantias relativas à compra de flores em ocasiões de festas e jantares que a mesma havia dado.

32) - Até à data do falecimento da mãe da Apelante, a florista não conseguiu obter o pagamento de todas as quantias devidas, permanecendo uma dívida.

33) - Em data não concretamente apurada, a mãe da Apelada foi alertada, via telefone, por uma funcionária da agência da CGD de A..., de que estavam a ser levantadas quantias da mesma conta bancária por pessoas que não a mãe da Apelante.

34) - À data do falecimento da mãe da Apelante, essa conta bancária tinha um saldo de 780.090$10.

35) - A Apelante levantou a quantia de 3.000.000$00 dessa conta em 18.03.1998 e emitiu um cheque, sacado sobre a referida conta, com o nº ..., no montante de 561.000$00, com data de 23.04.1998 e à ordem de HH, para pagamento do IVA que incidiu sobre o valor dos serviços de limpeza, regularização e surriba que este prestou na Quinta ..., cheque pago em 29.04.1998.

36) - A Apelada proferiu as afirmações referidas no nº3 destes factos, apenas na presença do Mtº Juiz, do funcionário judicial, da mãe da Apelada e do então advogado desta, Dr. II.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a Ré/recorrida fez em processo judicial declarações ofensivas da honra e bom nome da Autora e de sua mãe já falecida, e se deve manter-se a condenação da Autora/recorrente como litigante de má fé em multa e indemnização.

Vejamos.

 O litígio resulta do facto da Autora ter considerado que, no processo que correu termos no 3° Juízo, 1ª Secção, dos Juízos Cíveis de Lisboa, sob o n°144-B/2000, apenso de prestação de contas proposto pela ora recorrente/Autora, EE e FF contra CC, mãe da ora Ré/apelada, no qual aqueles pediam a condenação desta na apresentação de contas da sua administração dos bens da herança aberta por óbito de GG, a ré proferiu falsas declarações que ofenderam o bom nome, a honra e consideração devidas à falecida mãe da Autora, tia da Ré, e à Autora.

A Autora baseou-se nas gravações desse depoimento prestado no processo de prestação de contas, intentado pela Autora e outros herdeiros de GG, contra a mãe da Ré.


A ora Ré, depondo como testemunha indicada nesse processo pela Ré sua mãe, fez, além de outras, as seguintes declarações que a Autora transcreveu da gravação a que se procedeu aquando do seu depoimento no processo especial de prestação de contas:

 “ (…) iam bater a casa da minha mãe e lembro-me uma vez que eu estava lá, uma florista, duns… muitos jantares que a minha tia dava e deixou por pagar contas à florista e até recepções de jantares de comida que era encomendada, e eles foram pedir à minha mãe (…)”;
“(…) eu lembro-me que depois houve um segundo empréstimo que a minha tia pediu ao IFADAP, isso aí sei, e eu, isso fiquei muito incomodada e muito chateada e disse à mãe que não devia ter assinado porque não se fez… a minha tia não fez rigorosamente…pediu m empréstimo ao IFADAP para isto e para aquilo…que era para fazerem turismo de habitação, acho que umas melhorias, e ela só gastou aquilo em…proveito dela própria, eu sei que na altura estava muito doente, foi as viagens, os tratamentos lá fora, quer dizer, mas não é ao IFADAP que se tem que pedir este empréstimo para essas coisas”.
“ (…) quando a minha tia morreu, essa conta que estava ali em A..., na Caixa Geral de Depósitos, não era muita, eu sei que passado… (corte na gravação) de ela morrer a minha prima levantou o dinheiro, quer dizer, sem dar cavaco à minha mãe…quer dizer. Sem lhe dizer nada, quer dizer, ao menos uma questão de consideração, quer dizer, nada, e ficou com o dinheiro, ora não é assim, se a conta era para as despesas da casa…para a Quinta e ela levantou o dinheiro, que eu sei que não era muito, e ainda por cima ficou com ele, quer dizer, eu acho que isto não se faz”.

A mãe da Autora faleceu, no dia 25.4.1998, e as declarações transcritas foram proferidas no dia 27.5.2004, em processo judicial, em depoimento prestado pela Ré como testemunha. Como os factos evidenciam existe um prolongado litígio familiar entre os pleiteantes e suas famílias como, desde logo, revela o facto provado em 17).

Por causa das referidas declarações a Autora sentiu-se enxovalhada, humilhada, ofendida e indignada.

Na sentença apelada escreveu-se – pág. 406 – “Tais afirmações são, em princípio, ofensivas do crédito e do bom-nome da falecida mãe da Autora e da Autora.

A mera violação do direito ao bom nome de alguém, na medida em que este direito se impõe a todas as pessoas, contém já em si a antijuridicidade do comportamento do agente, necessariamente ilícito.

Não será assim se tal violação estiver coberta por alguma causa justificativa do facto, capaz de afastar a sua aparente ilicitude…No caso dos autos, embora a Ré pudesse recusar-se legitimamente a depor ao abrigo do disposto no art. 618°, n° 1, al. a) do Código de Processo Civil ao ser chamada e ao querer depor, prestou o seu depoimento no cumprimento de um dever legal, realizando um interesse legítimo e que radica no dever geral de realização de justiça material, ao qual acrescia o cumprimento da obrigação legal de o fazer com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho.

Assim, as afirmações proferidas, em princípio, não podem fazer incorrer a Ré em responsabilidade, a não ser que tenha prestado um depoimento falso, já que nesse caso fica afastada a causa de exclusão da ilicitude, pois, faltando à verdade, não é cumprido o dever legal, e com o intuito de ofender as visadas”.

            Depois, a sentença questionou e ponderou se o depoimento era falso e fora feito com consciência de falsidade, afirmando que, se assim se considerasse, a Ré incorrera em responsabilidade civil por violação de direito de personalidade da mãe da Autora e também desta.

            Desde já se adianta que a sentença considerou que a Ré não prestou depoimento falso e que as afirmações proferidas o foram no cumprimento de um dever, tendo inclusivamente a Autora sido condenada como litigante de má fé.

            Mas vejamos, antes e resumidamente, o quadro normativo convocável.    

   O art. 26º, nº1, da Constituição da República consigna:

“A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

E o art. 33º – Direito à identidade, ao bom-nome e à intimidade.

 

  “1. A todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom-nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”.

A Constituição da República acolhe a tutela da personalidade que pode ser encontrada no princípio fundamental da Dignidade da pessoa humana (art. 1º).

 Dignidade é tudo aquilo que não tem preço, segundo a conhecida formulação de Kant – “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” – [tradução de Paulo Quintela, 1986, p. 77].

Nessa obra procura-se distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, daquilo que é dotado de dignidade – do que é inestimável, do que é indisponível, do que não pode ser objecto de troca.

 Afirma-se lapidarmente:

“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela tem dignidade.”.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, em comentário ao art. 33º, escrevem, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed., pág.466:

“O direito ao bom nome e reputação (nº1) consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação – cfr. Código Penal, arts. 164° e 165°”.

    Na lei ordinária a personalidade moral, o bom-nome e consideração social das pessoas, são valores tutelados (artigos 70º e 484º do Código Civil).

Assim o art. 70º Código Civil estatui:

“1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”

Este normativo tutela a personalidade, como direito absoluto de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.

   O art. 484º do citado Código estatui – “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.”

Este normativo, ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana – a honra.

“A honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância...Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político" – Rabindranah Capelo de Sousa, “O Direito Geral da Personalidade”, 1995, págs. 303-304.

Maria Paula Andrade, in “Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome”, 1996, pág. 97, afirma ser a honra um –  “…Bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso”.

   Pedro Pais de Vasconcelos – “Teoria Geral do Direito Civil” – 2005, pág.38 e segs.:

“ […] O direito à vida, ou à honra, ou à integridade física, ou à privacidade, ou à imagem, por exemplo, não constituem direitos subjectivos autónomos, mas antes poderes jurídicos que integram o direito de personalidade do seu titular, poderes estes que são exercidos quando a dignidade do seu titular for posta em causa através de ameaças ou ofensas àqueles específicos bens de personalidade.

  A tipificação dos chamados direitos especiais de personalidade é um reflexo da tipificação de específicos bens de personalidade que integram a dignidade humana e das lesões que historicamente se foram tornando típicas.

  A dignidade humana pode ser ameaçada ou ofendida em diversos bens que a integram — vida, integridade física, honra, privacidade, imagem, nome, etc. — para a defesa de cada um dos quais o direito de personalidade contém específicos meios ou bens, que beneficiam de específicos poderes jurídicos” – (destaque e sublinhados nossos).

   O mesmo tratadista, in “Direito de Personalidade” – Almedina 2006 – pág. 76 – ensina:

 “O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade.

 A honra é um preciosíssimo bem da personalidade.

 A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoas…A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjectivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objectivo, pela perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa.

 A lesão da honra pode não ser total – só em casos excepcionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A honra, neste caso, é lesada, mas não perdida…Todas as pessoas têm direito à honra pelo simples facto de existirem, isto é, de serem pessoas. É um direito inerente à qualidade e à dignidade humana. Mas as pessoas podem perder a honra ou sofrer o seu detrimento em virtude de vicissitudes que tenham como consequência a perda ou diminuição do respeito e consideração que a pessoa tenha por si própria ou de que goze na sociedade.

As causas de perda ou do detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, acções da autoria da própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam consideradas reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível da própria pessoa, quer ao nível da sociedade.” (destaque nosso)

            O art. 71º do Código Civil protege a honra de pessoas já falecidas, estatuindo:

 “1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.

 2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n° 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.

 3. Se a ilicitude da ofensa resultar da falta de consentimento só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer as providências a que o número anterior se refere”.

               

                Cessando a personalidade com a morte, nos termos do art. 68º do Código Civil, poder-se-á aventar que o normativo atribui um direito de personalidade a alguém que não pode ser titular desse direito.

            In “O Direito Geral de Personalidade”, Rabindranath Capelo de Sousa, págs. 188 a 198 (excertos com supressão das notas de rodapé), ensina:

            “Com a morte de uma pessoa física cessa, pelo menos neste mundo, a sua actividade característica e extingue-se, nos termos do nºl do art. 68.° do Código Civil, a sua personalidade jurídica, ou seja, a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas.

Porém, isso não impede, desde logo, que haja bens da personalidade física e moral do defunto que continuam a influir no curso social e que, por isso mesmo, perduram no mundo das relações jurídicas e como tais particularmente o caso do seu cadáver, das partes destacadas do seu corpo (34°), da sua vontade objectivada (…), da sua identidade (…) e imagem (…), da sua honra, do bom nome e da sua vida privada (…), das suas obras e das demais objectivações criadas pelo defunto e nas quais ele tenha, de um modo muito pessoal, imprimido a sua marca.

E, mais até do que uma mera tutela de bens jurídicos, a nossa lei estabelece uma permanência genérica dos direitos de personalidade do defunto após a sua morte, ao preceituar no art. 71.°, nºl, do Código Civil que “Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular. […]. O Código Civil, por considerar que esses direitos post mortem continuam a corresponder a interesses próprios afirmados ou potenciados em vida do defunto e como tais juridicamente relevantes, como que os hipostasia, separadamente e apesar da extinção jurídica do seu titular, declarando a continuação desses mesmos direitos, não dependentes de uma vida actual, embora recoloque noutros termos a questão da sua titularidade, como veremos infra…Deste modo, e para além de certos direitos especiais de personalidade de pessoas falecidas expressamente regulados, o nosso legislador quis proteger individualmente as pessoas já falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respectiva personalidade física ou moral que existia em vida e que permaneça após a morte, assim se podendo também falar de uma tutela geral da personalidade do defunto.”

            Não obstante a redacção do preceito, não se pode admitir que a lei ficciona a existência de personalidade para além da morte, conferindo a titularidade de um direito que foi violado após a cessação da personalidade – por exemplo uma indemnização em dinheiro – da titularidade da pessoa falecida.

            A questão tem sido objecto de controvérsia radicando em torno de saber quem é o titular do direito em caso de violação da honra e bom-nome do defunto.

            Guilherme Machado de Dray, in “Direitos de Personalidade – Anotações ao Código Civil e ao Código do Trabalho” – Almedina 2006 – afirma:

 “A personalidade cessa com a morte, nos termos do artigo 68º. Com a cessação da personalidade jurídica extinguem-se, por sua vez, as correlativas situações jurídicas (activas e passivas) relacionadas com os bens de personalidade, nomeadamente os direitos de personalidade.

Pode suceder, todavia, que alguns bens de personalidade, tais como o direito à honra e ao bom-nome, ou à confidencialidade de cartas missivas, sejam objecto de ofensa por parte de terceiros já após a morte do visado.

A desonra tanto pode atingir a pessoa viva, como o de cujus; no mesmo sentido, a divulgação não autorizada de cartas confidenciais tanto pode ser praticada durante a vida, como após a morte do visado.

A memória do falecido deve ser respeitada, não obstante a morte e a correlativa extinção dos direitos de personalidade de que aquele foi titular.

O preceito visa, precisamente, garantir uma tutela post mortem, isto é, promover a defesa da memória do falecido, através da atribuição de determinados direitos de defesa àqueles que lhe sucedem na ordem jurídica.

A fórmula adoptada pelo legislador no nº1 do preceito — os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular — permite que se pondere acerca do eventual prolongamento dos direitos de personalidade para além da morte [cfr. Pires de Lima, Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 1º Volume, 4ª ed., 1987, p. 105 (anotação 1 ao artigo 71.°)].

Julga-se, todavia, que não é esse o sentido a retirar do preceito, pela simples razão de que a extinção da personalidade, resultante da morte (artigo 68.°) não permite que dela se continuem a extrair direitos ou obrigações.

Trata-se de uma evidência jurídica. A personalidade jurídica do falecido não se mantém, não obstante a fórmula algo dúbia da redacção do art. 68º. 

O que está em causa, verdadeiramente, é a protecção dos familiares do falecido, afectados por actos que ofendam a memória do defunto.” (destaque nosso)

Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 7ª edição, 2012, pág. 77 – sobre o tema, opina:

“A personalidade jurídica cessa com a morte. O regime do artigo 71º do Código Civil não deve ser invocado como indício de prolongamento da personalidade e da sua tutela para além da morte. Trata-se de um equívoco originado por uma defeituosa redacção da lei. Como ficou já atrás demonstrado, o preceito do artigo 71º do Código Civil não tutela direitos de personalidade do defunto, mas antes e apenas os direitos dos seus familiares e herdeiros ao respeito pelo defunto. As pessoas vivas têm direito – e também o dever – ao respeito pelos seus mortos. Trata-se, não obstante a redacção da lei, de direitos de personalidade inscritos na esfera jurídica de pessoas vivas”.

Da conjugação dos arts. 71º, nº1 e 70º, nº2, do Código Civil pode ser pedida ao lesante, indemnização por danos não patrimoniais por ofensa a pessoa já falecida, radicando a legitimidade no cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. Todavia, se bem interpretamos o pedido, a Autora reclama o pagamento de uma quantia sem discriminar qual o montante que peticiona para si, e o que seria devido para reparar a honra de sua falecida mãe.

De notar que o art. 185º do Código Penal tutela a memória de pessoa falecida – “Quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”[3]

            Volvendo à questão nodal do recurso, tendo em conta os factos provados e a sua valoração, importa saber se a Ré violou do direito ao bom-nome e a honra da falecida mãe da Autora e desta.

            Importa enfatizar que as declarações foram proferidas num processo judicial de prestação de contas em que era Ré a mãe da aqui Ré, que depôs como testemunha numa sala de audiências no cumprimento de um dever.

Esse depoimento surge num contexto de um litígio familiar – a Autora é prima da Ré – que se vem arrastando pelos Tribunais e que tem a ver com a administração de património hereditário, em que as litigantes são co-interessadas com outros familiares.

            Tendo a Autora ancorado o pedido no facto da Ré ter violado o direitos de personalidade fazendo imputações falsas e desonrosas, sobre ela cabia o ónus da prova da falsidade dos factos que considerou ter a Ré afirmado em contrário da verdade por si conhecida, já que não estão em causa, no contexto do litígio, afirmações que por si só devam ser consideradas objectivamente lesivas da honra dos visados.

Provou-se:

           

A Autora é filha de DD, falecida em ……..19…. A mãe da Autora desempenhou até à sua morte o cargo de cabeça de casal herança aberta por óbito do seu pai, GG.

A mãe da Ré outorgou procuração a favor da mãe da Autora para efeitos da sua representação junto do IFADAP.

 No desempenho do cargo de cabeça de casal e no uso dos poderes de representação conferidos pela mãe da Ré, a mãe da Autora desenvolveu e apresentou junto  do IFADAP, Delegação de Vila Real, quatro projectos para viabilização e desenvolvimento dos prédios rústicos que integram a herança aberta por morte de GG, que se situam no concelho de A....

                 Durante o período em que exerceu as funções de cabeça-de-casal, a mãe da Autora depositou todas as quantias relacionadas com a herança numa conta bancária da qual era única titular na agência da Caixa Geral de Depósitos de A..., com o número ....

                Corre seus termos na 1ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, sob o n°1078/97, acção especial de prestação de contas intentada, em 18.12.1997, por CC contra a DD, na qual aquela pede a esta a apresentação de contas da administração, nas propriedades sitas em A... e ....

 Até 16.03.1998, a Autora não teve autorização para movimentar a citada conta bancária.

 A partir do ano de 1993, a mãe da Autora deixou de prestar contas à mãe da Ré, nomeadamente, não apresentando as informações relativas às despesas e receitas concernentes com a actividade agrícola desenvolvida nos prédios rústicos que integram aquela herança.

Na aludida conta eram depositadas nomeadamente as quantias subsidiadas pelo IFADAP no âmbito de projectos de plantio de árvores e de florestação.

A mãe da Ré não tinha acesso a tal conta bancária.

 Em data não concretamente apurada, a Autora esteve internada num hospital de Londres, devido ao agravamento dos problemas de saúde de que padecia. 

Funcionários de uma florista deslocavam-se por vezes à casa da mãe da Autora a solicitar o pagamento de quantias relativas à compra de flores em ocasiões de festas e jantares que a mesma havia dado. Até à data do falecimento da mãe da Autora, a florista não conseguiu obter o pagamento de todas as quantias devidas, permanecendo uma dívida.           A mãe da Autora e da Ré viviam em casas contíguas, na ..., em Lisboa.

Em data não concretamente apurada, a mãe da Ré foi alertada, via telefone, por uma funcionária da agência da CGD de A..., de que estavam a ser levantadas quantias da mesma conta bancária por pessoas que não a mãe da Autora.

À data do falecimento da mãe da Autora, essa conta bancária tinha um saldo de 780.090$10.

A Autora levantou a quantia de 3.000.000$00 dessa conta em 18.03.1998 e emitiu um cheque, sacado sobre a referida conta, com o nº ..., no montante de 561.000$00, com data de 23.04.1998 e à ordem de HH, para pagamento do IVA que incidiu sobre o valor dos serviços de limpeza, regularização e surriba que este prestou na Quinta ..., cheque pago em 29.04.1998.

 A Ré proferiu as afirmações citadas em nota de rodapé apenas na presença do M.mo Juiz, do funcionário judicial, da mãe da Apelada e do então advogado desta, Dr. II.”

Com base nestes factos a sentença apelada considerou que não se podia concluir pela falsidade do depoimento da Ré “porque em cumprimento de um dever, não são ilícitas, o que basta para afastar a reclamada indemnização” e julgou a acção improcedente, condenando a Autora como litigante de má fé, considerando que –“… ao contrário do alegado pela Autora, apurou-se que esta, a partir de 17.03.1998, tinha autorização para movimentar a conta bancária em causa e que, dessa conta, levantou a quantia de 3.000.000$00 em 18.03.1998. para além de ter emitido um cheque, sacado sobre a mesma conta, com o n° ..., no montante de 561 000$00, com data de 23.04.1998 e à ordem de HH, para pagamento do IVA que incidiu sobre o valor dos serviços de limpeza, regularização e surriba que este prestou na Quinta ..., cheque pago em 29.04.1998.Considerando estes factos e porque a Autor tinha necessariamente de os conhecer, é, pois, forçoso concluir que ela, neste particular, com dolo, alterou a verdade dos factos e fez objectivo ilegal, subsumindo-se a sua conduta na previsão do n° 2, als. b) e d) do art. 456° do Código de Processo Civil.

No depoimento que a Ré prestou em Tribunal estava ela sob juramento, estando obrigada a responder com verdade.

Esse dever legal poderia contender – até porque estava em causa a prestação de contas exigida à sua mãe, ré nesse processo movido pela Autora sua tia – com declarações que a Autora poderia considerar ofensivas da sua honra e bom nome e de sua mãe, sendo que nestes casos a sensibilidade é particularmente evidente. Tal enquadramento poderia levar a que a Ré, enquanto depoente se coibisse de relatar factos relevantes para a defesa da verdade. Aqui, cremos, o conflito senão de interesses, pelo menos de direitos.

O interesse da Autora em ver provada a sua versão dos factos e a “defender” a actuação da sua mãe enquanto cabeça de casal e o direito a ver prestadas contas e, por outro lado, o direito à honra e ao bom nome que poderiam ser postas em causa até em caso de revelações verdadeiras.

Neste circunstancialismo seria então de considerar que a Ré só poderia ser condenada ante prova incontroversa da falsidade das declarações que prestou como testemunha e pelo seu potencial de lesão dos direitos de personalidade da Autora e de sua falecida mãe.

Algumas das afirmações são, salvo do devido respeito, inócuas, como as relativas à falta de cobrança pela florista. Já não assim o facto provado da omissão de prestação de contas pela mãe da Autora; a falta de acesso pela mãe da Ré à conta bancária apenas em nome da mãe da Autora, enquanto cabeça de casal, atenta a confiança depositada por esta ao conceder-lhe poderes para a representar junto do IFADAP.

Neste contexto, não se evidencia que a Ré tivesse agido com intenção de ofender os direitos que a Autora considera violados, por não ter agido com culpa – art. 483º, nº1, do Código Civil – ou que tivesse feito imputações objectivamente lesivas de direitos absolutos de personalidade.

   A Relação, no seu Acórdão, considerou – fls. 536 – que a Ré só poderia ser condenada “se o depoimento versasse matéria falsa e disso houvesse vontade e consciência, obviamente para ofender a falecida mãe da Apelante e esta, a falecida na sua memória, quanto à honra, consideração e bom nome e todos os demais atributos pessoais que consoante o caso lhes possam estar associados”.

Concordamos com este entendimento, sobretudo, tendo em conta que a Ré prestou declarações num processo judicial perante um Juiz e não se provou que tivesse prestado depoimento falso.

Quanto à condenação da Autora como litigante de má fé.

Pretende a Autora recorrer da condenação como litigante de má fé, que a Relação confirmou.

Juntou dois Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, [um deles relatado pelo ora relator], e, sem qualquer alegação relevante, afirma que o Acórdão recorrido está em contradição com os deste Tribunal.

A condenação por litigância de má fé só admite recurso em grau – art. 456º, nº3, do Código de Processo Civil.

Esse grau foi cumprido com a confirmação da condenação no Tribunal da Relação.

Não tendo a recorrente alegado, relevantemente, qualquer contradição de Acórdãos, limitando-se a juntar dois Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, que considera estarem em oposição com o Acórdão recorrido, não tem este Tribunal que se debruçar sobre a alegada contradição de julgados.

 Ademais, não está sequer verificado o requisito previsto no art. 754º, nº2, do Código de Processo Civil, pelo que não há que apreciar a condenação sentenciada e confirmada pela Relação.

Decisão.

Nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Maio de 2013

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale

____________________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Salazar Casanova.
Conselheiro Fernandes do Vale.
[2] No Acórdão recorrido, a fls. 535, e ante a não concreta indicação factual das imputações atribuídas à Ré e consideradas pela Autora ofensivas da sua honra e de sua mãe, escreveu-se – “Sem querermos ser fastidiosos lembraremos que a Apelante deu relevância para a causa de pedir da lide as seguintes passagens do depoimento da Apelada na audiência do citado processo de prestação de contas n° 144-B/2000;
“(…) iam bater a casa da minha mãe e lembro-me uma vez que eu estava lá, uma florista, duns… muitos jantares que a minha tia dava e deixou por pagar contas à florista e até recepções de jantares de comida que era encomendada, e eles foram pedir à minha mãe (…)”;
“(…) eu lembro-me que depois houve um segundo empréstimo que a minha tia pediu ao IFADAP, isso aí sei, e eu, isso fiquei muito incomodada e muito chateada e disse à mãe que não devia ter assinado porque não se fez… a minha tia não fez rigorosamente…pediu m empréstimo ao IFADAP para isto e para aquilo…que era para fazerem turismo de habitação, acho que umas melhorias, e ela só gastou aquilo em…proveito dela própria, eu sei que na altura estava muito doente, foi as viagens, os tratamentos lá fora, quer dizer, mas não é ao IFADAP que se tem que pedir este empréstimo para essas coisas”.
“ (…) quando a minha tia morreu, essa conta que estava ali em A..., na Caixa Geral de Depósitos, não era muita, eu sei que passado… (corte na gravação) de ela morrer a minha prima levantou o dinheiro, quer dizer, sem dar cavaco à minha mãe…quer dizer. Sem lhe dizer nada, quer dizer, ao menos uma questão de consideração, quer dizer, nada, e ficou com o dinheiro, ora não é assim, se a conta era para as despesas da casa…para a Quinta e ela levantou o dinheiro, que eu sei que não era muito, e ainda por cima ficou com ele, quer dizer, eu acho que isto não se faz”.
[3] Como se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra, de 4.3.2009, in www.dgsi.pt – Proc. 51/06.1TAMIR.C2, – “ […] O que está em causa no tipo de crime de ofensa à memória de pessoa falecida é o respeito comunitário devido aos mortos – cfr. Figueiredo Dias, Acta n.º 26 da Comissão Revisora do C.P., citado por Oliveira Mendes, O Direito à Honra e Sua Tutela Penal, p. 100
O crime de ofensa à memória de pessoa falecida constitui um novo substrato valorativo independente da honra do defunto ou daqueles que lhe sobrevivem, apesar de ligada àquela e nela ainda radicada. Está para além da honra e consideração devidas a toda e qualquer pessoa, criando “uma nova realidade axiologicamente relevante que se liga ao defunto mas que vale por si, muito embora necessariamente conexionda com a personalidade daquele que, ora, já só pode ser memória” – cfr. Faria Costa, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, em anotação ao art. 185º.
O bem jurídico honra é um direito que encarna na pessoa e só esta – enquanto pessoa viva – pode ser detentora desse particular valor de raiz imaterial.
Já a memória da pessoa falecida é aquele património moral ligado à existência da pessoa que permanece depois da sua morte. Nas palavras daquele Insigne Professor (cfr. ob. cit. p. 658) memória “é aquele pedaço de nós espiritualmente vinculante ligado á nossa existência e que é capaz de ser, depois da morte, ainda pertinente na definição do presente”. Ou “A memória que alguém construiu através de obras ou feitos, um património espiritual que os presentes consideram susceptível de os influenciar”.
Daqui resulta que a memória de pessoa falecida, tutelada pelo tipo de crime, radica na memória que permanece através da sua obra ou dos seus feitos, indissociavelmente ligados ao seu titular; e, embora formada no passado, tem que se repercutir com relevo no presente.
Por outro lado a tutela penal surge limitada logo ao nível do tipo objectivo de ilícito às ofensas “graves”.
Perante idêntica expressão o legislador espanhol acabou por excluí-la do texto legal, face ao reconhecimento, pela jurisprudência, da impossibilidade de encontrar na lei princípios de distinção úteis, vendo-se obrigada a recorrer ao “bom critério do legislador” – cfr. Oliveira Mendes, cit., p. 104.
Ofensa Grave é aquela que atinge o património espiritual passado da pessoa falecida na sua parte nuclear ou essencial da sua memória. Naquele pedaço que, em caso de ser atingido, estilhaçaria a própria ideia de memória que tem a potencialidade de se repercutir no presente – cfr. Faria Costa, ob. cit., p. 660.