Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
875/19.0PKLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA DE PRISÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 131.º e 132.º, do CP, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa agravada, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração, não taxativa, dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.

II - O acórdão recorrido, em concordância com o decidido em 1.ª instância, julgou qualificado o crime de homicídio com base na circunstância prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, isto é, por o facto ter sido praticado contra a pessoa com quem o arguido mantinha uma relação análoga à dos cônjuges, pelo que carece de fundamento a alegação de que a qualificação do crime de homicídio se baseou na valoração de “um vago elevado grau de ilicitude do facto” com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio, não podendo, por conseguinte, proceder a arguição da violação do princípio da proibição da dupla valoração.

III - É na determinação da presença e na consideração, por via da culpa e da prevenção, dos fatores relativos ao facto e ao agente indicados no artigo 71.º, do CP, de enumeração não exaustiva, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, neste caso a vida humana, concretizada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar-se se a pena aplicada, dentro dos limites máximo e mínimo da pena abstratamente aplicável, respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação.

IV - Dada a particular relevância conferida às necessidades de prevenção geral justificadas pela frequência de crimes de homicídio em contexto de violência doméstica, a valorar em função das consequências não culposas do facto [al. a), do n.º 2 do art. 71.º, do CP], estas se devem limitar-se pelo grau de culpa revelado pelas circunstâncias a atender por esta via (art. 40.º, n.º 2, do CP).

V - Por esta via se devendo ponderar também os fatores de medida da gravidade do tipo de ilícito subjetivo e objetivo, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, e os fatores que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto e falta de preparação para manter uma conduta lícita).

VI - O grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, que determinaram a morte da vítima por asfixia, tal como resultam dos factos provados, militam severamente contra o arguido. O arguido agiu com dolo direto, com persistência e determinação na intenção de matar, revelando insensibilidade e profundo desprezo pela vida da vítima. O grau de violação dos deveres que particularmente se lhe impunham, de respeito pela sua companheira, mãe do seu filho, com quem vivia numa relação análoga à dos cônjuges (esta relevante autonomamente, para a qualificação do crime de homicídio), quer na execução do facto, quer nas repetidas condutas anteriores, pela sua frequência e intensidade, é extremamente elevado.

VII - O comportamento do arguido anterior ao crime, nas suas relações com a vítima, pelas repetidas agressões durante cerca de três anos, não obstante o facto de não registar condenações criminais, denota falta de preparação para manter uma conduta lícita, relevando, em particular, a circunstância de, nesse período, ter beneficiado de uma medida de suspensão provisória de um processo por crime de violência doméstica, que não contribuiu para que modificasse o seu comportamento relativamente à vítima.

VIII - As condições pessoais e socioeconómicas do arguido revelam um contexto de carência e precariedade, com dificuldades de relacionamento intrafamiliar, pouco favoráveis a um processo de integração social com respeito pelos valores do direito, e um percurso de vida com pouco interesse na formação pessoal, no sentido de pautar a sua vida em conformidade com esses valores fundamentais da vida em sociedade. Estes elementos, associados ao contexto e ao modo como foi cometido o crime, são reveladores de elevadas necessidades de prevenção especial.

IX - A ausência de antecedentes criminais, que constitui indicador do comportamento anterior, não se sobrepõe nem neutraliza a relevância negativa do comportamento criminoso do arguido ao longo de cerca de três anos, nas suas relações com a vítima, e o facto de manter boas relações com outras pessoas e de atualmente trabalhar como faxina no estabelecimento prisional são de valor reduzido na consideração da globalidade dos factos, o mesmo sucedendo quanto à confissão e quanto ao invocado arrependimento, que, como se refere no acórdão recorrido, não se traduziu em ato juridicamente relevante.

X - Sendo muito elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção, não se surpreendem elementos que, na definição do substrato de facto, permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, de 20 anos de prisão, a justificar uma intervenção corretiva, não se verificando, por conseguinte, motivo que permita identificar violação, que o recorrente alega, do princípio de adequação e proporcionalidade que constitucionalmente se impõe na determinação das penas (art. 18.º, n.º 2, da CRP).

XI - A vinculação da jurisdição ao princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado (“todos os cidadãos são iguais perante a lei”, diz o n.º 1 do art. 13.º da CRP), que implica o tratamento igual ou semelhante de situações iguais ou semelhantes, exige, numa das suas várias dimensões, a aplicação de igual direito a casos idênticos e a utilização de um critério de igualdade na utilização dos poderes de determinação das penas.

XII - Este princípio, que, não sendo isolado, deve conjugar-se com outros princípios constitucionais, implica, na determinação da pena, a observância do critério de proporcionalidade (art. 18.º da CRP) na restrição do direito à liberdade, em função da consideração das circunstâncias previstas no art. 71.º do CP.

XIII - As situações descritas nos acórdãos citados pelo recorrente, nas suas particulares circunstâncias relativas aos factos e aos seus agentes, são diferentes da situação destes autos, sendo as penas fixadas em função do critério da proporcionalidade legalmente imposto, pelo que, na consideração das diferenças e na observância deste critério, se conclui pela não violação do princípio da igualdade, improcedendo também a alegação do recorrente nesta parte.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. Por acórdão de em 22 de outubro de 2020, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ..... (Juiz ....), foi o arguido AA, com completa identificação nos autos, condenado:

a) Na pena de 4 (quatro) anos de prisão pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Código Penal;

b) Na pena de 20 (vinte) anos de prisão pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal;

c) Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 22 (vinte e dois) anos de prisão;

d) A pagar a quantia de € 130.000,00 (centro e trinta mil euros) a favor da vítima/ofendida BB, nos termos do artigo 82.º - A, n.º 1 do CPP, de que será beneficiário o seu herdeiro e filho, o menor CC.

2.  Discordando da decisão, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação ….., o qual, por acórdão de 17.03.2021, negou provimento ao recurso, mantendo inalterado o decidido em 1.ª instância.

3. Não se conformando com a confirmação da decisão da 1.ª instância, vem agora interpor recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça “no que concerne à medida da pena a aplicar quanto ao crime de homicídio qualificado, de 20 (vinte) anos de prisão”, apresentando motivação em que conclui nos seguintes termos (transcrição):

«I. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ….., que manteve, na integralidade a decisão de 1.ª Instância, condenando o Arguido na pena, em cúmulo jurídico, de 22 (vinte e dois) anos de prisão, sendo a pena parcelar de 20 (vinte) anos, referente à prática do crime de homicídio qualificado e com a qual o Arguido se não conforma;

II. Mal andou o Tribunal a quo – reproduzindo a argumentação da 1.ª Instância – no processo de determinação da medida da pena, e não apenas por ter laborado numa moldura penal abstrata, mas essencialmente porque não racionalizou, fundamentando, o iter percorrido para a determinação concreta da pena, valorando um vago “elevado grau de ilicitude do facto” com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio, sem levar a cabo nenhum juízo relativo à medição de um grau;

III. Este é o caso paradigmático da violação do princípio da proibição da dupla valoração, ínsito no art. 71.º, n.º 2, do Código Penal, nos termos do qual não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto;

IV. O Tribunal a quo ignorou, de uma assentada só, quer as finalidades preventivas que subjazem à aplicação de qualquer pena, quer o princípio da culpa enquanto representante do máximo de pena admissível, quer todo o processo de valoração das circunstâncias concretas que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente,

V. O que leva à conclusão de que a pena aplicada ao Recorrente é desadequada e desproporcional, assim violando o Acórdão recorrido o art. 40.º, e 71.º, n.º 2, do Código Penal, que consagrou os princípios ínsitos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, devendo o Tribunal ad quem proceder a uma correta determinação da pena, numa medida próxima do seu limite mínimo.

VI. O Tribunal a quo violou, ainda, o princípio da igualdade nas decisões judiciais, ínsito no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, de uma perspetiva interprocessual, o que se conclui através de uma análise, tão exaustiva quanto desejável, do Acórdão em crise com outros dos nossos Tribunais Superiores em casos de idêntica natureza, tratando de modo manifestamente desigual o Recorrente relativamente a casos materialmente idênticos pertencentes ao acervo decisório do nosso sistema penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser concedido total provimento ao presente recurso, e, em consequência ser determinada uma pena concreta que cumpra os requisitos dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, por referência aos artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, perto do limiar mínimo da moldura penal prevista para o crime de homicídio qualificado, ao invés do Acórdão recorrido cuja determinação da pena concretamente aplicada ao Recorrente violou as disposições supramencionadas.»

4. Em resposta, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no tribunal da Relação “pugna pela improcedência do recurso”, dizendo (transcrição):

«São inúmeras as situações de violência psicológica e física cometidas pelo recorrente contra a ofendida BB, que se iniciaram, imagine-se, no ano de 2003.

Sobre a sua conduta o arguido fez uma confissão parcial, limitando-se a reconhecer os factos descritos pelo seu filho CC em sede de declarações para memória futura, cujo teor eram, naturalmente, previamente conhecidas por si.

Nada mais acrescentou, no tocante ao tema da prova, que o pudesse incriminar.

É o grau de culpa do arguido o indicador do limite intransponível da medida da pena, e bem assim da correspondência de tal medida com as exigências da prevenção,

Ora, in casu, é elevadíssima a necessidade de prevenção geral, atento a frequência do tipo de crime em causa (homicídio) ocorrido em contexto de violência doméstica, traduzidas em agressões físicas e psicológicas, que perduravam há largos anos.

Contra o arguido milita ainda a prática do crime de homicídio com dolo directo, e um grau de ilicitude elevada, atento a quantidade e gravidade das ofensas corporais físicas e psicológicas perpetradas, sem que houvesse causa próxima ou remota para a sua actuação que justificasse, excluísse a culpa ou a diminuísse por qualquer forma.

Bem como a manifesta ausência de arrependimento e de responsabilização pela conduta.

Face ao que foi dito e atento as consequências do ilícito, que assume especial e acentuada gravidade, atento a natureza insubstituível do bem jurídico atingido, a vida, que é o valor absoluto e fundamental no plano da comunidade, afigura-se-nos que não há reparo a fazer à medida da pena aplicada.

É certo que, como diz o recorrente, a culpa, ou o grau de culpa, têm o seu campo de incidência na escolha da medida da pena.

Na verdade, no que toca ao papel da culpa, ele é pressuposto e o limite da medida da pena, porque uma punição sem culpa significaria uma ofensa à dignidade da pessoa, sendo a dignidade da pessoa humana o valor primeiro do Estado de Direito consagrado na nossa Constituição - cfr. art.ºs 1.º, 9.º, a. b), 25.º, n.º 1, ou 26.º da CRP.

Contudo, face ao que consta no processo relativamente aos factos dados por provados, e pelos motivos supra explanados, afigura-se-nos, repito, que não se descortina que os procedimentos adoptados para se fixar a medida da pena pelo homicídio, se mostrem incorrectos ou que se tenham eleito factores que não deviam ter em conta para quantificar tal pena parcelar.

Assim, uma vez que se nos afigura realizada a apreciação da necessidade de prevenção reclamada, então a natureza e «quantum» concreto da pena escolhida se deve manter intocada.»

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição na parte relevante):

«(…) 4 - Subscrevemos inteiramente as considerações expressas pelo Magistrado do Mº Pº no Tribunal da Relação ….. na resposta ao recurso que apresentou e entendemos, igualmente, que não assiste razão ao recorrente nas críticas que dirige à decisão recorrida.

5 - O recorrente continua a discordar da medida da pena em que foi condenado pela prática do crime de homicídio, entendendo que deveria ter sido fixada próxima do mínimo legal previsto pela moldura penal.

Também neste segmento acompanhamos a argumentação expendida pelo Magistrado do M.º P.º no Tribunal recorrido através da qual demonstra a falta de fundamento da pretensão do recorrente.

Ao contrário do que alega, na decisão recorrida, tal como na decisão da 1.ª instância, o Tribunal fez uma análise objectiva e minuciosa de todos os elementos que nos termos do disposto no art. 71, do Código Penal, devem ser tidos em conta na determinação da medida da pena, consignando os fundamentos subjacentes às ilações que retirou, quer quanto ao grau da culpa e da ilicitude, às exigências de prevenção e às condições pessoais do agente.

O Tribunal recorrido, perante a factualidade provada, realçou que: “o arguido revelou uma personalidade egocêntrica e também manipuladora, atribuindo responsabilidade à conduta da vítima pela sua reação”; “o arguido apenas confessou parcialmente o mencionado pelo filho em sede de declarações para memória futura (às quais teve acesso), sem admitir ter-lhe provocado a morte, num discurso evasivo e calculista”.

E analisando os fundamentos invocados na decisão da 1.ª instância em contraponto com os argumentos invocados pelo recorrente, o Tribunal recorrido concluiu que:

- “a escolha e fixação da medida concreta da pena parcelar do crime de homicídio qualificado (pena de 20 anos de prisão), não nos merece qualquer censura, afigurando-se ser uma decisão justa e equilibrada, tendo em atenção a respectiva moldura legal abstracta e as fortes necessidades de prevenção geral que o caso suscita, como bem foi salientado pelo Tribunal a quo, assim como a idade do arguido e a sua personalidade desvaliosa que se encontra descrita no Acórdão (com traços de imaturidade, impulsividade, baixa tolerância à frustração, irresponsabilidade ...)”;

- “serem bastante significativas e prementes as necessidades de prevenção geral, sendo assim importante através de penas crime aplicadas pelos Tribunais aos agentes prevaricadores, passar uma mensagem de censura que permita uma educação e sensibilização da população em geral”;

- “em face da factualidade provada - nomeadamente quanto ao circunstancialismo em que o crime foi cometido - bem como quanto à situação pessoal do arguido e o facto de ser delinquente primário e o seu percurso de vida e enquadramento familiar e social (matéria que aqui se dá por reproduzida) - e ainda da fundamentação do Acórdão, não se verifica terem sido violados quaisquer dos preceitos legais aplicáveis na matéria, quanto à escolha e determinação da pena concreta parcelar aqui sindicada”.

6 - Em linha com o consignado na decisão recorrida, consideramos que a decisão relativa à fixação da pena concreta pelo crime de homicídio, contém uma correcta ponderação e valoração das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau de culpa manifestado, da ilicitude e das exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem.

A decisão recorrida não violou o princípio da proibição da dupla valoração, pois, os elementos que considerou para concluir pelo elevado grau da ilicitude acrescem aos que determinam a qualificação do crime de homicídio, como resulta da análise efectuada.

Também não tem qualquer sentido a alegação de que a decisão recorrida violou o princípio da igualdade porque fixou a pena em medida superior ao que ocorreu em outros casos, designadamente os que indica. As situações fácticas são diversas, como diferentes são as circunstâncias envolventes do crime e as condições pessoais do agente.

O quantum fixado respeita os parâmetros decorrentes dos critérios estabelecidos nos artigos 40, 70 e 71, do Código Penal, mostrando-se a pena aplicada ao arguido adequada e proporcional à gravidade dos factos e à perigosidade do agente, não havendo qualquer fundamento para que a mesma seja reduzida.

Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido.»

6. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido não apresentou resposta a este parecer.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Dos factos

8. O tribunal da Relação manteve inalterados os seguintes factos dados como provados no acórdão da 1.ª instância, que, assim, se mostram estabilizados:

«No processo principal n.º 875/19.0PKLSB

1) A ofendida BB e o arguido viveram maritalmente durante cerca de 18 anos, a partir do ano de 2009 com residência na Rua ......,  .., ...., …..;

2) Da relação marital nasceu, na data de ...04.2004, o único filho do casal, o CC;

3) Ao longo dos anos de 2016 a 2019, por várias vezes, o arguido discutia com a ofendida e dirigindo-se à mesma dizia “és uma vaca, brochista, só queres é pretos, tens relações sexuais com os pretos nas escadas do prédio”, enquanto lhe desferia pancadas com as mãos abertas pelo corpo, sobretudo nos braços e tronco, chapadas na face e pontapés nas pernas daquela;

4)  As discussões passaram a ser mais frequentes a partir do ano de 2018;

5) Na data de 10.07.2017 o arguido foi acusado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1 b) e c) e n.º 2 do Código Penal, no âmbito do processo 14/17.......

6) Na data de 14.09.2017 por despacho judicial foi declarada a suspensão provisória do aludido processo pelo período de 18 meses;

7) No período compreendido entre 13.05.2019 e 06.06.2019 a ofendida esteve internada no Hospital Psiquiátrico …., tendo tido alta no dia 06.06.2019;

8) No período compreendido entre 06.06.2019 e 12.06.2019 todos os dias, no interior da residência do casal, o arguido discutia com a ofendida, e dirigindo-se-lhe dizia “puía, vaca, brochista, só queres é pretos”, enquanto lhe desferia pancadas com as mãos abertas por todo o corpo, incluindo na cabeça e rosto;

9) No dia 12.06.2019, cerca das 14.00 H, mais uma vez o arguido começou a discutir com a ofendida;

10) No mesmo dia, cerca das 23.00 H, o arguido começou a desferir pancadas com as mãos abertas no corpo da ofendida;

11) A dada altura o arguido desferiu uma pancada na face da ofendida, atingindo-a no nariz e boca;

12) A ofendida ficou caída de bruços, ficando imóvel;

13) O filho do casal ficou alguns minutos junto da ofendida, enquanto a mesma permanecia caída no chão;

14) O arguido dirigiu-se ao quarto do casal e o filho de ambos, decorridos alguns minutos e pensando que a mãe estava a dormir, também recolheu ao seu quarto, onde adormeceu;

 15) No dia 13.06.2019 durante a manhã, e desde hora não concretamente apurada, o arguido e a ofendida encontravam-se na sala quando, mais uma vez o arguido discutia com a ofendida, dizendo-lhe mais uma vez “vaca, brochista, queres é pretos", enquanto lhe desferia pancadas com as mãos abertas, sobretudo no rosto;

16) A dada altura a ofendida começou a sangrar abundantemente pelo nariz e boca;

17) Nesse momento aproximou-se o filho do casal, que momentos antes havia acordado com os gritos, e ajudou a mãe a limpar o sangue que lhe escorria pelo nariz e boca, tendo gasto a totalidade de um rolo de papel higiénico, sem que, no entanto, o sangue tivesse parado de escorrer;

18) Nesse momento o arguido dirigindo-se ao filho disse-lhe para ir às compras ao supermercado, entregando-lhe uma lista de artigos que devia comprar;

19) No interior da residência permaneceu a ofendida e o arguido;

20) Após a saída do filho do casal o arguido continuou a desferir pancadas com as mãos no rosto, cabeça e restantes partes do corpo de BB;

21) A dada altura o arguido agarrou com as mãos o pescoço da ofendida apertando-o, só libertando a ofendida quando esta deixou de resistir e caiu prostrada no chão;

22) Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu, em geral:

- Edema e congestão da cabeça e do pescoço;

- Conjuntivas congestionadas;

- Cadáver sujo com abundante quantidade de sangue; escorrência de sangue pelas narinas e boca;

23) Na cabeça:

- Hematomas na região parieto-occipital esquerda e na região occipital;

- Hematoma roxo, ocupando toda a região peri-orbitária esquerda;

- Área escoriada localizada lateralmente à metade esquerda do lábio inferior, de maior eixo oblíquo ínfero-medialmente com 1,5x0,4 cm;

- Três escoriações na face interna do lábio superior, medianas e infra centimétricas;

- Soluções de continuidade superficiais na face interna da metade direita do lábio inferior, sem infiltração sanguínea;

24) Pescoço:

- Duas áreas de ponteado equimótico roxo na face lateral direita do pescoço, oblíquas para anterior e medial, a superior com 3x1 cm e a inferior com 1x1 cm;

- Posteriormente às lesões acima descritas, observa-se uma área de ponteado equimótico roxo, de maior eixo horizontal, com 3,5x0,5 cm de maiores eixos e, inferiormente a esta, uma placa apergaminhada oblíqua infero-posteriormente com 1x0,7 cm;

25) Tórax:

- Equimoses heterogéneas e confluentes, na região subclavicular direita, dispersas numa área de maior eixo horizontal com 10x5 cm;

- Equimose roxa na região subclavicular esquerda, arredondada com 2 cm de diâmetro;

- Duas áreas de ponteado equimótico roxo no quadrante superior e media da mama esquerda, horizontais, com 8x1 cm cada;

- Duas equimoses roxas na região dorsal alta, lineares, medianas, paralelas entre si, obliquas para baixo e para a esquerda, com 8x0,5 cm, cada;

- Equimoses roxas na região escapular direita, obliquas para inferior e medial, numa área com 13x11 cm;

- Equimoses roxas na região escapular esquerda, oblíquas para inferior e medial, numa área com 11x11 cm;

- Duas equimoses roxas na região dorsal, à direita da linha média, lineares e horizontais, paralelas entre si, a superior com 5x0,8 cm e a inferior com 6x0,8 cm;

- Três equimoses roxas na região dorso lombar à direita da linha média, paralelas entre si, oblíquas para inferior e medial, numa área com 14x5 cm;

- Quatro equimoses roxas na região dorsal à esquerda da linha média, paralelas entre si, horizontais, numa área com 10x8 cm;

26) Membro superior direito:

- Equimoses heterogéneas e confluentes, nos dois terços superiores da face lateral do braço, dispersas numa área com 17x15 cm;

- Equimose roxa nos dois terços superiores da face medial do braço, oblíqua infero-anteriormente com 13x6 cm;

- Múltiplas equimoses heterogéneas, por toda a face medial do braço e antebraço, ovaladas, a maior com 4,5 cm de diâmetro;

- Duas escoriações na face anterior do punho, lineares, oblíquas para inferior e posterior, a mais superior com 3 cm e a mais inferior com 10 cm;

- Duas escoriações na face anterior do punho, lineares e horizontais, paralelas entre si, com 4,5 cm de comprimento;

- Equimose roxa na face dorsal da mão, sobre o 2° e 3° raios, horizontal com 3,5x2,5 cm;

- Múltiplas escoriações dispersas pela face dorsal da mão, com dimensões inferiores a 0,5 cm;

27) Membro superior esquerdo:

- Equimose roxa no terço superior da face medial do braço, oblíqua infero- anteriormente com 14x7 cm de maiores dimensões;

- Equimoses heterogéneas e confluentes, no terço médio da face anterior do braço, dispersas numa área de maior eixo vertical, com 8x4 cm;

- Múltiplas equimoses heterogéneas, por toda a face medial do braço e no antebraço, ovaladas, com dimensões inferiores a 3 cm;

- Equimose roxa na face posterior do punho, vertical com 3x2 cm;

- Equimose roxa na face dorsal da mão, sobre o 1° e 2° raios, de maior eixo vertical com 8x6,5 cm;

- Múltiplas escoriações dispersas pela face dorsal da mão, com dimensões inferiores a 0,5 cm;

28) Membro inferior direito:

- Escoriação no quadrante ínfero-lateral da nádega, arciforme de concavidade superior, linear com 5 cm de comprimento retificado;

- Equimoses heterogéneas e confluentes, na face lateral da anca, dispersas numa área com 7x7 cm;

- Três equimoses heterogéneas e confluentes, no terço superior da face anterior da coxa, dispersas numa área de maior eixo obliquo para inferior e medial, com 8x5 cm;

- Equimoses heterogéneas e confluentes, na face anterior do joelho, dispersas numa área de maior eixo horizontal, com 12x6 cm;

- Equimose verde no terço inferior da face anterior da perna, de limites mal definidos, com cerca de 5x4 cm;

- Equimose heterogénea no dorso do pé, de maior eixo vertical, com 7x4,5 cm;

29) Membro inferior esquerdo:

- Equimose roxa no quadrante supero-medial da nádega, de maior eixo horizontal com 5,5x3 cm;

- Equimose roxa no quadrante ínfero-lateral da nádega, obliqua ínfero- medialmente com 3x1,5 cm;

- Duas equimoses heterogéneas, na face lateral da naca, a superior de maior eixo obliquo para anterior e inferior com 3x1,5 cm, a inferior de maior eixo oblíquo para inferior e posterior com 4x1 cm;

- Equimose roxa no bordo superior do joelho, ovalada de maior eixo horizontal com 3,5x1 cm;

- Equimose roxa com escoriação associada, na região maleolar externa, oblíqua infero-anteriormente com 2,5 x 2 cm;

30) Cabeça, designadamente nas partes moles:

- Múltiplas áreas de infiltração sanguínea na face interna do couro cabeludo e nos músculos temporais, bilateralmente, mais extensas a nível das regiões parietal e temporal esquerdas;

 31) Ossos da cabeça:

- Áreas de infiltração sanguínea a nível do teto da órbita e do ouvido médio à esquerda;

32) Meninges:

- Hematoma subdural em lâmina a nível do hemisfério esquerdo e dos andares médio e posterior esquerdos da base. Congestão das leptomeninges. Hemorragia subaracnoideia na região temporal esquerda;

33) Cavidade oral e língua:

- Cavidade oral com escassa quantidade de sangue, sem corpos estranhos;

34) Pescoço (tecido celular subcutâneo):

- Áreas de infiltração sanguínea subjacentes às lesões descritas a nível do exame do hábito externo. Área de infiltração sanguínea a nível da incisura jugular;

35) Músculos:

- Múltiplas áreas de infiltração sanguínea bilateralmente, designadamente a nível do pavimento da boca bilateralmente, do ângulo da mandibula à direita, da extremidade proximal do esternocleidomastóideo direito e da porção submandibular do plastima esquerdo;

36) Osso Hioide e estruturas cartilagíneas:

- Infiltração sanguínea do corno superior direito da cartilagem tiroide e do grande corno direito do osso hioide;

37) Resumo

a) O cadáver apresentava múltiplas lesões traumáticas recentes, dispersas por toda a superfície corporal, que denotam ter sido produzidas por ação de natureza contundente;

 b) As lesões apresentam-se em diferentes estados de evolução, tal sendo sugestivo de episódios traumáticos recorrentes;

c) Ao nível do hábito interno destacam-se: lesões traumáticas crânio- encefálicas (múltiplas áreas de infiltração sanguínea dos tecidos moles, hematoma subdural, hemorragia subaracnoideia e foco de contusão cerebral) e lesões traumáticas cervicais com múltiplas áreas de infiltração sanguínea bilaterais a nível do tecido celular subcutâneo, dos músculos, da faringe, do osso hióide e das estruturas cartilagíneas;

d) As lesões observadas na região cervical são sugestivas de asfixia por compressão extrínseca do pescoço;

e) Tais lesões determinaram direta e necessariamente a morte da ofendida no interior da residência do casal;

No processo apenso nº 14/17.......

38)  No dia 24 de Dezembro de 2016, pelas 20.00 H, no interior da residência referida, na presença do menor CC, o arguido desferiu socos e pontapés no corpo de BB;

39) Ao mesmo tempo, o arguido afirmava que aquela andava metida com pretos e que tinha, com aqueles, relações sexuais nas escadas do prédio;

40) Em consequência destes factos, BB apresentava hematomas pelo corpo;

41) Na noite do dia 7 de Abril de 2017, o arguido desferiu chapadas no corpo e face, pontapés nas pernas e na cabeça da ofendida BB;

42) Em simultâneo afirmava "vaca, brochista, andas com os pretos”;

43)  Desesperada, BB pegou numa faca e disse que se ia matar;

 44) O arguido retirou a faca das mãos de BB, torcendo-lhe o braço;

45) A PSP foi chamada ao local, tendo BB abandonado a residência;

46) Em consequência da atuação do arguido, BB apresentava:

a) na face: escoriação da região jugal da hemiface direita, com 3 cm de comprimento, oblíqua de cima para baixo, de trás para a frente e da direita para a esquerda;

b) no membro superior direito: equimoses em número de 6, esverdeadas, como dedadas, da face anterior do terço médio e distal do braço direito; equimose esverdeada, como dedada, da face anterior do terço médio do antebraço direito; quimose esverdeada, como dedada, da face posterior do terço distal do antebraço esquerdo; equimose esverdeada, do bordo interno da mão direita;

c) no membro superior esquerdo: conglomerado de seis equimoses esverdeadas, como dedadas, da face anterior do terço médio do braço esquerdo; conglomerado de quatro equimoses esverdeadas, como dedadas, da face posterior do terço distal do braço esquerdo. Feridas abrasivas em n° de 2, com 1,5 cm e 2,5 cm de comprimento, da face posterior do terço proximal do antebraço esquerdo; equimose esverdeada, como dedada, da face posterior do terço médio do antebraço esquerdo; equimose, como dedada, esverdeada, com escoriação sobreposta da face posterior do punho esquerdo; conglomerado de 4 equimoses esverdeadas, como dedadas, da face antero interna do terço médio do antebraço esquerdo; ferida abrasiva, horizontal, com um centímetro de comprimento, da face anterior da mão esquerda;

d) no membro inferior direito: equimose esverdeada, como dedada, da face antero interna do terço distal da coxa direita; edema moderado do joelho direito com queixas de dor;

e) no membro inferior esquerdo: hematoma azulado e esverdeado, como palma de mão de criança, da região do flanco esquerdo; equimose em n° de 2, como dedadas, esverdeadas, da face antero interna do terço distal da coxa esquerda;

47) Tais lesões demandaram-lhe um período de oito dias de doença, três dos quais com incapacidade para o trabalho;

48) Ainda no mês de Abril, CC e BB foram acolhidos em casa abrigo, todavia, regressaram à residência acima referida em meados de Maio de 2017;

49) Desde essa data que, no interior da residência acima referida, por vezes na presença do menor CC, diariamente, o arguido afirma a BB “puía, vaca, tens amantes, andas com pretos

50) Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre o mês de Maio e o mês de Junho de 2017, no interior da referida residência, o arguido agarrou BB pelos braços e atirou-a contra a parede e contra o colchão;

51) No dia 29 de Junho de 2017, durante a noite, no interior da residência acima referida, o arguido levantou o colchão onde BB dormia, fazendo-a cair no chão;

52) Após, desferiu-lhe um soco no lábio e arranhou-a nos braços;

53) Em simultâneo afirmava “puía, vaca, tens amantes, andas com pretos’";

54) Nessa noite, o arguido apenas deixou BB dormir uma hora;

55) Em   consequência da atuação do arguido, BB sangrou do lábio;

56) BB tinha medo do arguido e temia pela sua vida;

57) O arguido agiu, sabendo que com a sua conduta e com as expressões que dirigia a BB lhe provocava medo e inquietude, atuando querendo isso mesmo;

58) O arguido agiu, ainda, livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as expressões que dirigia a BB a ofendiam na sua honra;

59) Visava o arguido criar permanente medo, perturbação e um clima de terror nocivo à estabilidade emocional de BB;

60) O arguido agiu com o propósito alcançado de atingir a dignidade pessoal, a autoestima e a saúde física e psíquica da ofendida, com quem vivia maritalmente, fazendo-o ao longo dos anos, durante dias e horas seguidas, sabendo que a devia tratar com respeito, dignidade e consideração, enquanto pessoa, sua companheira e mãe do seu filho;

61) O arguido agiu ainda com a intenção de molestar o corpo e a saúde da ofendida, fazendo-o ao longo de anos, dias e horas seguidas, sabendo que com as pancadas que desferia atingia órgãos vitais do corpo da ofendida e que dessa forma lhe podia tirar a vida, o que admitiu como possível conformando-se com tal resultado;

62) Ao apertar o pescoço da ofendida BB durante alguns minutos, o arguido quis que ela deixasse de respirar, bem como tirar-lhe a vida, o que conseguiu;

63) Mais sabia o arguido que com a sua conduta molestava física e psicologicamente o seu filho, o qual diariamente assistia às agressões físicas e psicológicas do arguido, seu pai, à ofendida, sua mãe, sabendo o arguido que o filho era uma criança, nascido em 2004, e que com as suas condutas o prejudicava no seu bem-estar físico e psicológico e comprometia o seu desenvolvimento enquanto pessoa, o que quis e conseguiu;

64) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei

Mais se provou que:

a.2. No que concerne à determinação da sanção:

65) O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais registados;

66) Confessou parcialmente a sua apurada conduta;

67) AA desenvolveu-se no seio de uma família de baixo estrato socio económico e numerosa, sendo dos filhos mais velhos de uma fratria de 7 irmãos, fruto do relacionamento entre os pais;

68) Considera ter tido uma infância "pobre mas feliz", onde ressalva sobretudo o convívio e a proximidade aos irmãos;

69) Da dinâmica familiar, o distanciamento do progenitor relativamente ao acompanhamento dos filhos é acentuado relativamente aos afectos ou à maior proximidade da figura materna, cujo falecimento ocorrido durante a sua adolescência é considerado como um marco relevante na sua história de vida;

70) A nível escolar teve uma progressiva desmotivação, o que levou ao seu abandono da escola durante a frequência do 2º ciclo;

71) Começou a trabalhar com cerca de 15/16 anos na construção civil, ajudando economicamente a família, uma vez que o pai se constituía como a única fonte de rendimentos do agregado, trabalhando igualmente na construção civil;

72) Alguns meses após o falecimento da mãe, o pai iniciou novo relacionamento afetivo e a nova companheira passou a fazer parte do agregado;

73) Deste novo relacionamento do pai nasceram mais 4 filhos;

74) Relativamente a este novo contexto familiar o arguido evidencia incompreensão e revolta pela atitude do pai, rejeição da nova companheira deste e dificuldade em se sentir aceite e valorizado na família, e particularmente pelo pai, a quem atribuiu urna atitude discriminatória relativamente aos restantes irmãos;

75) O agregado, entretanto foi realojado no Bairro .......... onde, o facto de não dispor da chave de casa para regressar quando saía à noite com os amigos, o levou progressivamente a ficar junto de um irmão ou a procurar alternativas habitacionais até conseguir que lhe atribuíssem uma casa camarária, onde ficou a viver entre 1999 e 2009;

76) Nessa época trabalhava de forma regular na construção civil ou em empresa de limpezas, auferindo o ordenado mínimo;

77) Nesse período, em 2004, iniciou relacionamento com a companheira, vítima neste processo, nascendo 1 filho dessa relação, atualmente com .. anos;

78) Desde a crise económica em Portugal, a partir de 2011, deixou de ter emprego regular e passou a subsistir de subsídios (RSI), tal como a companheira;

79) A partir de 2011 esses apoios sociais sofreram uma redução, o que levou a que o agregado familiar passasse a viver com algumas dificuldades económicas;

80) À data dos acontecimentos que motivaram a sua atual reclusão, AA residia com a companheira e o filho na habitação social que lhe foi atribuída num bairro social em ……;

81) Mantinha-se em situação de desemprego e dependente de subsídios para assegurar a subsistência básica;

82) Auferiam cerca de 300 euros mensais de RSI e pagavam de arrendamento da habitação 6 euros por mês;

83) AA era acompanhado a nível psiquiátrico e fazia habitualmente medicação de calmantes que segundo ele, o deixava "mais relaxado e dócil", referindo-se a uma eventual depressão como o motivo principal para esse apoio psiquiátrico;

84) O arguido AA sempre manteve relações cordatas com a vizinhança e os amigos com quem estava habitualmente, não existindo queixas locais sobre a sua conduta no Bairro .........., onde andava habitualmente e visitava o pai;

85) No Estabelecimento Prisional foi colocado a trabalhar como faxina, desde Fevereiro do corrente ano, como forma terapêutica, o que o ajudou a ficar mais estável, tendo sido reduzida a intervenção psicológica para um regime mensal;

86) Tem recebido visitas pontuais do filho e de alguns irmãos;

87) O arguido exibi uma personalidade com traços imaturos - e nesse sentido pouco adaptativos -, com impulsividade, baixa tolerância à frustração, tristeza com sentimentos de revolta e de ser injustiçado, padrão pervasivo de irresponsabilidade e dificuldade em honrar os seus compromissos, inclusivamente, laborais, externalização da culpa e locus de controlo externos (atribuição da responsabilidade pelas suas ações e omissões, falhas e insucesso, a terceiros) e egocentrismo com incapacidade em mentalizar sobre o estado mental do outro.».

Do âmbito do recurso

10. O recurso tem por objeto um acórdão da Relação proferido em recurso de um acórdão do tribunal coletivo que aplica uma pena de prisão superior a 8 anos, admissível nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), a contrario. do CPP, cujo âmbito, que circunscreve os poderes de cognição deste Tribunal, se delimita pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Nos termos do disposto nos artigos 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nos citados n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Como se tem reafirmado em jurisprudência constante, a limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede, porém, este tribunal de, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, os quais devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, no conhecimento do mérito do recurso. Trata-se de vícios da decisão, de vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir dele, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, não de erros de julgamento da matéria de facto, nomeadamente de apreciação das provas, cujo conhecimento, da competência do tribunal da Relação (artigos 427.º e 428.º do CPP), se encontra subtraído a este Tribunal [assim, por todos, o acórdão de 02.10.2019, Proc. n.º 3622/17.7JAPRT-P1.S1, citando o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Raul Borges), e abundante jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt].

Visto o acórdão recorrido, dele não se manifesta qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou, ainda, de erro notório na apreciação da prova, a que se refere este preceito, susceptíveis de prejudicar a decisão de direito, de que, por este motivo, este tribunal deva conhecer. Também não ocorrem nulidades que devam ser conhecidas.

11. Das conclusões da motivação, extrai-se, em síntese, que o recorrente, limitando o recurso à medida da pena aplicada ao crime de homicídio, pretende ver esta pena reduzida para “perto do limiar mínimo da moldura penal prevista para o crime de homicídio qualificado” (conclusão V), argumentando:

(1) que, “mal andou o tribunal a quo no processo de determinação da medida da pena, e não apenas por ter laborado numa moldura penal abstrata, mas essencialmente porque não racionalizou, fundamentando, o iter percorrido para a determinação concreta da pena, valorando um vago ‘elevado grau de ilicitude do facto’ com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio, sem levar a cabo nenhum juízo relativo à medição de um grau” (conclusão II), em violação do princípio da proibição da dupla valoração, por consideração, na determinação da medida da pena, circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto (conclusão III),

(3) que “o tribunal a quo ignorou, de uma assentada só, quer as finalidades preventivas que subjazem à aplicação de qualquer pena, quer o princípio da culpa enquanto representante do máximo de pena admissível, quer todo o processo de valoração das circunstâncias concretas que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente” (conclusão IV),

(4) que a pena “é desadequada e desproporcional, assim violando o Acórdão recorrido o art. 40.º, e 71.º, n.º 2, do Código Penal, que consagrou os princípios ínsitos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa” (conclusão V);

(5) que “o Tribunal a quo violou, ainda, o princípio da igualdade nas decisões judiciais, ínsito no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, de uma perspetiva interprocessual, o que se conclui através de uma análise, tão exaustiva quanto desejável, do Acórdão em crise com outros dos nossos Tribunais Superiores em casos de idêntica natureza, tratando de modo manifestamente desigual o Recorrente relativamente a casos materialmente idênticos pertencentes ao acervo decisório do nosso sistema penal” (conclusão VI).

Perante o alegado, há, pois, que verificar as circunstâncias tidas em conta para a qualificação jurídica dos factos – notando-se que não vem questionada a qualificação do homicídio por circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade (artigo 132.º do CP) –, ou seja, para o tipo de crime que estabelece a moldura abstrata da pena, o que corresponde ao primeiro momento da operação da determinação da pena (“dentro dos limites definidos na lei”, diz o n.º 1 do artigo 71.º do CP), a qual, na sua concretização, deve atender às circunstâncias (fatores) relevantes (artigo 71.º do CP), para a realização das finalidades da sua aplicação (artigo 40.º do CP).

Circunstâncias relevantes para qualificação do homicídio

12. Quanto à qualificação jurídica dos factos, de que resulta a determinação da moldura abstrata da pena, diz o acórdão recorrido:

«Do enquadramento jurídico dos factos

O arguido AA foi julgado e condenado pela prática em autoria material, de um crime de violência doméstica p.p no art.º 152.º/1 b) e n.º 2 do CP e de um crime de homicídio qualificado p.p no art.º 131º e art.º 132.º/1/2 al. b) do CP, ambos cometidos na forma consumada e em concurso real e efectivo.

O arguido insurgiu-se contra este enquadramento, sustentando que o Tribunal a quo errou quando integrou juridicamente a sua conduta nos termos acabados de expor, porquanto no seu entender a sua conduta integra apenas o tipo objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica agravado pelo resultado morte da vítima (o qual apenas lhe pode ser imputado a título negligente e nunca doloso, de acordo com o art.º 15.º a) do CP) p.p no art.º 152.º/1/b) e n.º 3 b) do CP.

Ou assim não se entendendo, defende que a sua conduta apenas integra o tipo de crime de homicídio simples p.p no art.º 131.º do CP, por não se haver demonstrado qualquer circunstância que permita qualificar a sua a actuação como “especialmente censurável” para permitir o agravamento previsto no art.º 132.º/1 e 2 b) do CP.

Vejamos, pois, o que ficou decidido pelo Tribunal a quo em matéria de enquadramento jurídico dos factos, que aqui se transcreve (...):

“(...) o arguido está acusado de dois crimes (de violência doméstica), o que só aconteceu porque os factos foram investigados em dois processos distintos, culminando em duas acusações diferentes, embora, parcialmente, os factos se sobrepunham, ainda que haja individualidade em cada uma delas.

Considerando o manancial fáctico provado (factos 1.º a 17.º, 22.º a 29.º, 33.º, 35.º, 37.º, als. a e b), 38.º a 60.º, 63.º e 64.º) temos por certo ter o arguido praticado o crime de que está acusado na pessoa da ofendida BB (com que vivia maritalmente há 18 anos), em virtude de estarem verificados todos os requisitos, a nível objectivo e volitivo, de que depende a sua verificação.

Na verdade, no que concerne aos elementos objectivos o arguido, sem que houvesse qualquer razão relevante para tanto, durante muito tempo (2016 a 2019) e de forma reiterada, continuada e homogénea vem perpetrando contra a identificada ofendida as mais diversas agressões físicas e/ou verbais com considerável gravidade e que, no fundo, se traduzem, inequivocamente, em maus tratos físicos e psicológicos

No que diz respeito ao elemento subjectivo, agindo o arguido como agiu, também não nos oferece a menor dúvida ter atuado com o fim de realização do facto criminoso, na modalidade de dolo directo – art.º 14.º, n.º 1 do CP.

Acresce que, considerando a factualidade provada, não restam dúvidas que se verifica a agravação a que alude o n.º 2 do preceito referido, na medida em que as agressões físicas e/ou verbais, ocorreram sempre no domicílio comum do arguido e da ofendida e, algumas delas, foram praticadas na presença do seu filho menor, o CC.

Consequentemente, ao comportar-se da forma descrita, o arguido AA constitui-se autor material e na forma consumada, a título doloso (dolo directo), de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b) e 2 do CP..

(...)

Por fim, está ainda o arguido AA acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), ambos do CP.

Dispõe o art.º 131.º do CP que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”.

Por sua vez, preceitua a segunda norma:

“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…); b) Praticar o facto contra (...), pessoa de outro (...) sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (...);”

O crime em análise configura o tipo fundamental nos crimes contra a vida.

São elementos constitutivos deste tipo-de-ilícito: matar outra pessoa; nexo de imputação objectiva do resultado à conduta; um elemento subjectivo, o dolo genérico - consubstanciado no elemento intelectual (o agente tem de ter conhecimento de todas as circunstâncias e elementos indispensáveis para que a sua consciência ético-jurídica coloque e resolva correctamente o problema da ilicitude) e no elemento volitivo - dolo de facto (consistente na orientação da vontade do agente para a realização de um facto que a lei tipifica como crime, i.e., apesar de o agente ter consciência da ilicitude da sua conduta, ele tem de actuar com intenção de realizar o facto tipicamente ilícito ou simplesmente aceitando o resultado como consequência necessária da sua conduta ou conformando-se com a eventualidade desse resultado - art. 14° do C.P.).

Considerando a factualidade provada (18.º a 21.º, 23.º, 24.º, 30.º a 34.º, 36.º, 37.º, als. c) a e), 61.º, 62.º e 64.º) parece claro e inequívoco ter o arguido AA praticado, em autoria material e na forma consumada, um crime de homicídio simples, na pessoa da sua companheira, a vítima BB.

De facto, após o filho de ambos se ter ausentado do interior da habitação, o arguido continuou a desferir pancadas com as mãos no rosto, cabeça e restantes partes do corpo, e agarrou com as mãos o pescoço da ofendida, apertando-o, só libertando quando esta deixou de resistir e caiu prostrada, daí resultando lesões físicas, na cabeça e no pescoço (asfixia) que tiveram por consequência direta a morte da vítima BB.

No que diz respeito ao elemento subjetivo (61.º e 62.º), independentemente de ter configurado que com as pancadas que desferia atingia órgãos vitais do corpo da ofendida e dessa forma tirar-lhe a vida (o que admitiu como possível conformando-se com o resultado) é de concluir, noutra parte, pelo dolo directo, na medida em que resultou igualmente provado que o arguido ao apertar o pescoço da ofendida BB durante alguns minutos, quis que ela deixasse de respirar, bem como tirar-lhe a vida, o que conseguiu (art. 14.º, n.º 1 do C.P.).”

Quid Juris?

Não assiste razão ao recorrente e nenhuma das suas pretensões tem fundamento, como passaremos a explicar de seguida.

1 - Crime de violência doméstica agravado pelo resultado morte da vítima ou crime de violência doméstica em concurso real e efectivo com um crime de homicídio doloso como decidiu o Tribunal a quo?

Importa, pois, analisar aqui, a decisão do Tribunal recorrido de imputação ao arguido AA, a título doloso, para além dos maus tratos infligidos à companheira, também a imputação do resultado morte da BB, condenando-o assim em concurso real e efectivo pela prática de um crime de violência doméstica p. p no art.º 152.º/1 b) e n.º 2 do C.P e de um crime de homicídio qualificado p. p no art.º 131.º e art.º 132.º/1/2 al. b) do C.P, ambos cometidos na forma consumada e em concurso real e efectivo.

Aderimos inteiramente à fundamentação de direito constante do Acórdão nesta parte, que subscrevemos inteiramente, para enquadrar juridicamente a conduta do arguido, nada havendo a censurar à mesma, abstendo-nos assim de grandes e ulteriores considerações por redundantes, constatando que a análise e considerações aí efectuadas são inteiramente esclarecedoras e correctas.

Com efeito, atenta a matéria de facto provada em 20), 21), 22) a 37) em especial o descrito nos factos 30), 31) e 34) e 37) c) d) e e), e ainda o provado em 61) e 62), mal se compreende como pode o arguido AA vir em sede de recurso, pretender enquadrar juridicamente a sua conduta unicamente no art.º 152.º/1/b) e 3 b) do CP e defender que o resultado morte da BB lhe deve ser imputado não a título de dolo mas a título de negligência (como uma circunstância agravante do crime de violência doméstica).

Entendemos que o circunstancialismo de facto descrito no Acórdão recorrido e que ficou assente, a dinâmica que levou à morte da BB, torna absolutamente infundada esta sua pretensão, por se ter apurado em julgamento na 1ª instância, que a sua actuação correspondeu exactamente à conduta típica do agente homicida que agride um terceiro, com clara intenção de lhe retirar a vida.

Com efeito, no caso em apreço a “acção de apertar o pescoço da vítima, até ela deixar de respirar, assim a asfixiando” não deixa qualquer dúvida sobre a vontade do arguido de querer, por essa forma, por termo à vida da companheira, bem sabendo que esse seria necessáriamente o resultado da sua actuação e querendo efectivamente concretizar o mesmo.

Isto é, ficou claramente expresso que o arguido actuou querendo e prevendo que da sua actuação resultaria directa e necessáriamente a morte da BB, sua companheira e mãe do seu filho, pelo que a morte é um resultado que lhe é imputável a título de dolo directo, previsto no art.º 14.º/1 do CP. o qual preceitua: “Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”.

Essa causalidade directa e necessária da morte da BB imputável à actuação voluntária e consciente do arguido, resulta seguramente da prova pericial efectuada e não é abalada pelo facto de o arguido ter alegado que após a ocorrência da morte da companheira, a procurou reanimar e chamou as autoridades e os cuidados médicos.

A alegação desses factos pelo arguido, não consta da matéria de facto provada, mas desde já se sublinha, tal como acima ficou dito, que ainda que essa alegação correspondesse à realidade, tal não seria idóneo só por si, a afastar o dolo do tipo do crime de homicídio e a culpa do agente.

Poderia quando muito traduzir uma atitude de arrependimento posterior aos factos ilícitos e típicos - e ficando ainda por apurar, se esse arrependimento assentaria numa verdadeira reflexão e atitude crítica sobre o mal cometido ou apenas no receio/consciência das sanções penais a que necessariamente iria ficar sujeito, com a descoberta do cadáver.

Entende-se assim, que o arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, visando tirar a vida à BB quando a agrediu no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos no Acórdão, nomeadamente na cabeça e apertando-lhe o pescoço com as mãos, impedindo-a de respirar, o que conseguiu, sabendo dos laços familiares que tinham (era sua companheira há 18 anos e mãe do seu filho), e que a mesma se encontrava indefesa, perante a superioridade de força física do arguido.

E mesmo assim, actuou da forma supra descrita, causando-lhe por essa forma as lesões traumáticas crânio-encefálicas e tramáticas cervicais, descritas no ponto 37. c), d) e e) da matéria de facto provada, que determinaram a morte da companheira, agindo pois com um dolo directo.

Assim, e pelo supra exposto, dúvidas não havendo quanto à imputação do resultado morte da BB à vontade do arguido, que agiu com dolo directo, mostram-se preenchidos pela conduta do arguido todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime base de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do CP.

2- Crime de homicídio simples p. p no art.º 131.º do CP ou crime de homicídio qualificado nos termos do art.º 132.º/1 e 2 b) do CP

Na circunstância qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do art.º 132.º do CP, preceitua-se ser particularmente censurável o homicídio quando o agente: “Praticar o facto contra o cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau”.

Veio o arguido sustentar não se terem demonstrado circunstâncias de facto, que permitam qualificar a sua conduta como sendo “especialmente censurável”.

O Tribunal a quo entendeu que no caso em apreço, havia lugar à qualificação do crime de homicídio nos termos previstos no art.º 132.º/2/b) do CP, fundamentando a sua posição nos seguintes (transcritos) termos:

“(…) Na especial censurabilidade - refere Figueiredo Dias (aqui, acompanhando Teresa Serra, “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64, Almedina) pretendem-se abranger “aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na retracção, a nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas” e à especial perversidade aquelas “em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação do facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas”.

No mesmo sentido tem apontado o nosso mais alto Tribunal (v., entre outros, Ac., de 27.5.04, in www.dgsi.pt) quando menciona que “«especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o ato criminoso é cometido”.

Depois desta resenha doutrinal e jurisprudencial, fechando o círculo, voltamos à questão inicial, i.e., se o arguido agiu ou não com especial censurabilidade ou perversidade.

Objectivamente, verifica-se a qualificativa da al. b) do n.º 2 do art.º 132.º do C.P. (“praticar o facto contra pessoa de outro sexo com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos cônjuges). Entendemos que “in casu” ocorre a qualificação.

Por um lado, no que concerne a uma eventual especial perversidade (qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do(s) agente(s)) convém não olvidar as características de personalidade do arguido que se evidenciam no facto 87.º provado, e, o que releva essencialmente e perpassa por toda a factualidade provada (o motivo latente era sempre o mesmo: “puta, vaca, tens amantes, andas com pretos”), os seus ciúmes exacerbados ao longo de vários anos, sem que houvesse qualquer razão para tanto, e sem que o arguido tentasse/lograsse controlá-los.

Por outro lado, no que respeita a uma eventual especial censurabilidade (forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso é cometido), evidencia-se logo, de modo claro, um crescendo de agressividade contra a ofendida, desenvolvida durante alguns dias (6.6.2019 a 13.6.2019 - v. factos provados 8.º a 21.º), sem qualquer interrupção, no  interior da residência do casal e, por  vezes, em frente ao filho menor de ambos, a qual terminou com a sua morte, procurada, querida e atingida pelo arguido.

Visualizados os acontecimentos neste prisma, além do pressuposto objectivo já enunciado, vislumbra-se uma especial malvadez (até crueldade) e desvalia no comportamento do arguido que se reconduzem à referida especial censurabilidade.

Aliás, em sentido análogo (também um caso de asfixia) à análise que se efetuou (se bem que o nosso caso em apreço se nos afigure com características de maior gravidade), parece apontar o Ac. do STJ, de 2.10.2019 (processo n.º 3622/17.7JAPRT.P1.S1; relator Lopes da Mota, in www.dgsi.pt) onde se conclui:

“VI. Estando provado que o arguido e a vítima viveram em coabitação, numa situação de comunhão de vida, durante mais de 13 anos, que, por virtude dessa relação, se prolongou uma especial relação pessoal entre os dois e que a morte da vítima resulta dessa vivência pessoal, em quebra brutal, por ciúme, de uma relação de solidariedade e entreajuda criada por aquela relação, mantida para além da cessação da coabitação, deve concluir-se que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

VII. Não se encontrando, nas circunstâncias do caso, motivo que lhe retire o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida, deverá também concluir-se que se revela operativo este efeito de agravação da culpa, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito”.

Em síntese, o arguido será, pois, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, a título doloso (dolo directo) de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), ambos do C.P.”.

Vejamos então se a circunstância qualificativa prevista no art.º 132.º/2/b) do C.P, tem pois aplicação na situação concreta dos autos, uma vez que a situação  sub judice, respeita exactamente ao caso em que a vítima do agente homicida (o arguido) é uma pessoa com quem este mantinha uma relação análoga à dos cônjuges e com quem vivia em comunhão de mesa e cama e habitação (relação essa que persistira 18 anos e da qual havia nascido um filho em ...4.2004).

Entendemos que a argumentação do arguido para pretender ver afastada a qualificativa prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 132.º do CP não podia ser mais desfazada da realidade, não invocando aliás nenhum facto concreto que permita afastar o juízo de “maior censura”, que o legislador consagra neste mormativo, como veremos melhor de seguida.

Nos termos do n.º 1 do art.º 132.º, o crime de homicídio é qualificado se «a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», enumerando-se, exemplificativamente depois no seu n.º 2, circunstâncias susceptíveis de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade.

Na interpretação do art.º 132.º/2 do CP haverá que apelar aqui para os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.

E segundo a doutrina, para integrar a qualificação do crime de homicídio, é essencial que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples, o qual desde logo constitui um facto ilícito muito grave, por se atentar contra o bem mais fortemente tutelado da nossa ordem jurídica - a vida humana.

Nas palavras de Teresa Serra, haverá especial censurabilidade quando "as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores", podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às "componentes da culpa relativas ao facto", fundando-se, pois, "naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude".

E existe especial perversidade quando se esteja perante "uma atitude profundamente rejeitável", no sentido de "constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade", estando aqui em causa as "componentes da culpa relativas ao agente" (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, páginas 63 e 64).

Também para Figueiredo Dias a qualificação tem "a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples" (Colectânea de Jurisprudência, 1987, IV, página 52)."

Do que se trata é, pois, de uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples.

É nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio.

A verificação de qualquer das circunstâncias exemplificadas no n.º 2 constitui só um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade, podendo negar-se este maior grau de culpa, apesar da presença de uma das referidas circunstâncias, e ao invés, concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, pela qualificação do homicídio, apesar de se negar a presença de qualquer dessas circunstâncias, se ocorrer outra valorativamente análoga, como ensina ainda Figueiredo Dias:

"(...) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; ou verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2.

Elementos estes sim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (...) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador" (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, página 26).

Esta especial censurabilidade terá de resultar de um comportamento que possa ser incluído nos exemplos padrão do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal já que os mesmos enunciam acções que têm em si um maior desvalor ético-jurídico, que pode decorrer da acção externa (instrumento utilizado, tipo e número de lesões, dinâmica do evento) ou dos aspectos relacionados com os motivos e objectivos que presidiram à acção (factos psíquicos).

A integração do comportamento num dos exemplos padrões não é motivo de imediata qualificativa, pois sempre se terá de apurar se existe, em concreto, uma especial censurabilidade na conduta do agente.

Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade a pena é agravada.

Nos termos da alínea b), do n.º 2 do art.º 132.º do CP a qualificativa decorre de caso presente, o agente ser aquele que mantinha com a vítima, uma relação análoga à dos conjugues há 18 anos e com quem cohabitava desde 2009 na morada constante dos autos, onde o crime de homicídio foi praticado.

Importa lembrar que esta qualificativa agravante foi prevista pelo legislador na alínea b) do n.º 2 do art.º 132.º do CP, na decorrência do facto de nessas circunstâncias aí descritas, o agente na sua acção homicida ter de vencer “as contra-motivações éticas relacionadas com os laços familiares de respeito e interajuda que devem estar presentes na relação marital ou da união de facto ”, acrescendo ainda o facto de no caso em apreço, o arguido e a vítima serem pais de um filho nascido em ...4.2004 (ainda menor na data do crime).

Dúvidas não existem pois que o arguido AA era o companheiro da BB há 18 anos e que para levar a cabo o comportamento supra descrito, de por termo à vida da sua companheira, mãe do seu filho menor, teve de vencer as normais concepções éticas que levam a presumir, que na união conjugal (legal ou de facto) existe uma relação de protecção e de respeito entre os dois membros dessa sociedade marital, que deve ser nutrido por cada um dos parceiros entre si, de forma mútua e recíproca, enquanto durar a mesma - e o arguido teve de vencer as contramotivações éticas, derivadas desses laços familiares de especial amor, respeito e interajuda, que o legislador presume existirem na relação conjugal.

Pelas razões supra expostas, vistas as considerações de Direito acima referidas, entendemos que também aqui no que respeita ao tipo incriminador do homicídio qualificado, a apreciação que o Tribunal a quo efetuou no Acórdão recorrido de forma pormenorizada e esclarecedora, leva-nos a concluir ser correcto o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, no que respeita a este concreto ilícito de homicídio qualificado imputado ao arguido em autoria material   e na forma consumada, em concurso real e efectivo com o crime de violência doméstica - sendo claro para nós, que pretensão do arguido de afastar tal qualificação prevista na alínea b) do nº do n.º 2 do art.º 132.º do CP não tem qualquer sustentação válida.

Na realidade, no que respeita ao afastamento da alínea b) do n.º do n.º 2 do art.º 132.º do CP, defendido pelo arguido, é verdade como já se viu, que a aplicação das circunstâncias qualificativas previstas no n.º 2 do art.º 132º do CP não se faz de modo automático, mas a análise detalhada da actuação do arguido leva a considerar na realidade especialmente censurável a sua conduta homicida.

Salienta-se que o arguido ciente embora da sua superioridade física masculina, não se absteve de no interior da sua casa e aproveitando-se da ausência da única testemunha ocular (o filho) e da impossibilidade de resistência daquela (colocada em posição de inferioridade física), desferiu pancadas de forma violenta, no corpo da companheira e mãe do seu filho menor, como bem o comprovam as várias lesões que a mesma apresentava e são descritas no relatório da autópsia.

E depois o arguido, terminou essa sequência de acções concretas de extrema violência e agressividade com um acto, que não deixa dúvida sobre a sua intenção de provocar a morte à companheira BB - apertou-lhe o pescoço até a mesma deixar de respirar - de toda esta actuação, resultando, pois, que o mesmo revelou ter uma personalidade malévola, sendo como tal, especialmente censurável a sua actuação homicida.

E não é seguramente o facto de o arguido ter vindo alegar (sem que tal se mostre sequer comprovado na factualidade provada) que procurou reanimar a BB e chamou as autoridades e os cuidados médicos, após o homicídio cometido, que é susceptível, como veio defender o mesmo, de afastar o juízo de especial censurabilidade que sobre ele recai isto é, que tem qualquer potencialidade para afastar tal qualificativa, pelas razões já por nós acima referidas e que nos abstemos de aqui repetir.

É um facto indiscutível que a relação de união de facto, análoga à dos conjugues (com todos os especiais deveres que a mesma comporta) entre o arguido AA e a sua companheira BB, existia na data do crime, quer o arguido se encontrasse de momento fora de si por ciúmes ou tivesse deixado de sentir afecto por ela ou não.

Embora a vida humana seja como acima se referiu o bem mais fortemente tutelado do nosso ordenamento penal e toda a vida humana seja igualmente digna dessa proteção penal sem discriminação, a razão de ser da especial censura que a existência de uma “relação de família” acarreta para o agente no caso de homicídio, tem a ver com o facto de o legislador partir do princípio de que os laços de conjugalidade existentes entre dois indivíduos ligados por uma relação de amor conjugal são especial e suficientemente fortes, para ser exigível entre ambos um muito maior e recíproco dever de respeito pela vida de cada um - tornando assim social e eticamente mais difícil de aceitar (e por isso muito mais censurável) que entre ambos ocorra uma situação de homicídio voluntário.

A lei penal portuguesa, na previsão desta alínea b) consagra, pois, “um dever ser” de maior exigência de respeito, que deve haver entre ambos os parceiros da relação conjugal (legal ou união de facto), no que respeita à preservação da vida de cada um.

O legislador parte do pressuposto de que, durante a relação conjugal, pela existência dos deveres de amor, respeito e interajuda entre ambos os seus membros, que a mesma pressupõe, devem esses laços criados ser suficientemente fortes no sentido de levar cada um dos elementos dessa relação conjugal a proteger mutuamente a vida do outro, sendo por isso especialmente censurável, a conduta daquele que assim não procede.

Note-se que esse dever de maior respeito exigível pela vida de cada um, impõe-se independentemente de em concreto, entre ambos os conjugues os laços de afecto poderem na realidade acabar por se tornarem mais ou menos intensos, à medida   que o  tempo   de   convívio entre eles aumenta e de poderem chegar até a desaparecer – trata-se de um dever abstracto de respeito, de jure condendo.

Atenta a matéria de facto provada relativa à situação pessoal de ambos os membros do casal desavindo, entende-se por isso, verificada no caso em apreço a circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal e bem andou o Tribunal a quo quando assim decidiu.

Melhor dizendo, estando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo de ilícito, e não se verificando qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, forçoso se torna concluir que o arguido cometeu um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo artigo 131.º e art.º 132.º n.º 1 e n.º 2 alínea b) todos do Código Penal

Em síntese, concordamos inteiramente com o enquadramento jurídico feito pelo Tribunal a quo.

Tendo em atenção a factualidade que ficou assente em julgamento e se poder ler na matéria de facto provada, mostram-se sem dúvida comprovados todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio qualificado que o arguido cometeu na forma consumada e em autoria material, nos termos acima referidos, nada havendo a censurar também nesta parte à decisão recorrida.

Concordamos, portanto, inteiramente com a qualificação jurídica efectuada na 1.ª instância, e analisando a decisão recorrida, quanto à fundamentação jurídica, consideramos que foram os factos provados correctamente enquadrados do ponto de vista do Direito, não havendo dúvidas que a lesão do direito à vida da vítima BB, foi executada pelo arguido na forma consumada e de forma especialmente censurável, atento o seu modus operandi.

Improcede, pois, esta concreta pretensão do arguido, sendo a sua conduta homicida qualificada nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 132.º do C.P.»

13. Defende o recorrente que o acórdão recorrido, “valorando um vago ‘elevado grau de ilicitude do facto’ com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio” violou o princípio da proibição da dupla valoração, “por consideração, na determinação da medida da pena, de circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto”.

Como claramente resulta da fundamentação transcrita, o acórdão recorrido, em concordância com o decidido em 1.ª instância, julgou qualificado o crime de homicídio com base na verificação da circunstância prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, isto é, por o facto ter sido praticado contra a pessoa com quem mantinha uma relação análoga à dos cônjuges, e por ter concluído que, no caso concreto, esta circunstância revela especial perversidade e censurabilidade.

É o que abundantemente se evidencia, em particular, quando o acórdão recorrido afirma que:

(a) “a argumentação do arguido para pretender ver afastada a qualificativa prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 132.º do CP não podia ser mais desfasada da realidade, não invocando” – como também agora não invoca, deve sublinhar-se –, “nenhum facto concreto que permita afastar o juízo de ‘maior censura’, que o legislador consagra neste mormativo”;

(b) decorre”, no caso presente, “o agente ser aquele que mantinha com a vítima, uma relação análoga à dos conjugues há 18 anos e com quem cohabitava desde 2009 na morada constante dos autos, onde o crime de homicidio foi praticado”;.que “esta qualificativa agravante foi prevista pelo legislador (…) na decorrência do facto de nessas circunstâncias aí descritas, o agente na sua acção homicida ter de vencer ‘as contra-motivações éticas relacionadas com os laços familiares de respeito e interajuda que devem estar presentes na relação marital ou da união de facto’, acrescendo ainda o facto de no caso em apreço, o arguido e a vítima serem pais de um filho nascido em ...4.2004 (ainda menor na data do crime)”;

(c) Dúvidas não existem pois que o arguido AA era o companheiro da BB há 18 anos e que para levar a cabo o comportamento supra descrito, de por termo à vida da sua companheira, mãe do seu filho menor, teve de vencer as normais concepções éticas que levam a presumir, que na união conjugal (legal ou de facto) existe uma relação de protecção e de respeito entre os dois membros dessa sociedade marital, que deve ser nutrido por cada um dos parceiros entre si, de forma mútua e recíproca, enquanto durar a mesma - e o arguido teve de vencer as contramotivações éticas, derivadas desses laços familiares de especial amor, respeito e interajuda, que o legislador presume existirem na relação conjugal.”;

(d) não sendo esta qualificativa de funcionamento automático, “a análise detalhada da actuação do arguido leva a considerar na realidade especialmente censurável a sua conduta homicida”;

(e)É um facto indiscutível que a relação de união de facto, análoga à dos conjugues (com todos os especiais deveres que a mesma comporta) entre o arguido AA e a sua companheira BB, existia na data do crime;

(f) A lei penal portuguesa, na previsão desta alínea b) consagra ‘um dever ser’ de maior exigência de respeito, que deve haver entre ambos os parceiros da relação conjugal (legal ou união de facto), no que respeita à preservação da vida de cada um”;

(g) O legislador parte do pressuposto de que durante a relação conjugal, pela existência dos deveres de amor, respeito e interajuda entre ambos os seus membros, que a mesma pressupõe, devem esses laços criados ser suficientemente fortes no sentido de levar cada um dos elementos dessa relação conjugal a proteger mutuamente a vida do outro, sendo por isso especialmente censurável, a conduta daquele que assim não procede”;

(h) Atenta a matéria de facto provada relativa à situação pessoal de ambos os membros do casal desavindo, entende-se por isso, verificada no caso em apreço a circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal e bem andou o Tribunal a quo quando assim decidiu”.

Carece, por conseguinte, de fundamento a alegação – omitindo qualquer referência à circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, que funda a decisão – de que a qualificação do crime de homicídio se baseou na valoração de “um vago ‘elevado grau de ilicitude do facto’ com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio, não podendo, por conseguinte proceder a arguição da violação do princípio da proibição da dupla valoração, nos termos em que vem efetuada.

É, pois, a partir da qualificação jurídica do facto, preenchendo o tipo de culpa agravado p. e p. pelo artigo 132.º do Código Penal, por especial censurabilidade e perversidade revelada pela circunstância prevista na al. b) do respetivo n.º 2, que se mostra devidamente fundamentada (em sentido convergente, os acórdãos de 2.10.2019, proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, e de 22.11.2019, proc. 323/18.2PFLRS.L1.S em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada), que devem ser examinadas as questões suscitadas a propósito da determinação concreta da pena.

Quanto à determinação da medida da pena

14. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.

A determinação da medida da pena vem fundamentada nos seguintes termos:

«C) Da medida concreta da pena aplicada ao crime de homicídio qualificado

(…) No que respeita à escolha e medida das penas concretas aplicadas ao arguido, o Tribunal a quo decidiu do seguinte modo:

“(...) Tendo em conta as considerações expostas importa, agora, por fim, determinar a medida concreta da pena no caso em apreço, não obnubilando e seguindo os três momentos supra referidos.

As molduras penais abstractas são as seguintes: (...)

- pena de prisão de 12 a 25 anos (arts. 131.º e 132.º, n.°s 1 e 2, al. b), ambos do CP) - crime de homicídio qualificado;

Dentro destes limites teremos, portanto, de elaborar a dosimetria cingidos à regra do art.º 71.º do CP., valorando: a culpa do agente, a concorrência de circunstâncias agravantes ou atenuantes estranhas à tipicidade e a satisfação das exigências preventivas (geral e especial).

Cabe referir, no âmbito da prevenção geral que há que colocar definitivamente termo a um dos principais flagelos da sociedade portuguesa, designadamente, aos maus tratos físicos e psicológicos, flagelo este que, em pleno século XXI continua a ser transversal na nossa sociedade, sem que se perspective qualquer atenuação, apesar da progressiva chamada de atenção da educação, da sociedade civil, do Estado e dos meios de comunicação social para a gravidade de tais comportamentos e para a desagregação manifesta que provoca nos agregados familiares, bem como para as consequências nefastas que provoca no desenvolvimento da pessoa humana, o atentado que potencia à dignidade  da  pessoa  e  as  consequências  decorrentes  para  o  corpo  e  a  saúde (física e psicológica) das vítimas.

Razões, de prevenção geral que ainda se mostram muito mais elevadas em casos como o presente, no qual, em contexto de violência doméstica, mais uma vez, resultou a morte da vítima, aumentando as cifras negras que neste tipo de criminalidade se vem verificando, apesar da progressiva e já referida advertência/chamada de atenção que nenhum cidadão, na “era da comunicação”, pode desconhecer.

No campo da prevenção especial, deve-se salientar o circunstancialismo seguinte:

a) A favor do arguido,

- a ausência de antecedentes criminais e a grande sensibilidade à pena que dele se espera pelo facto de ser primário;

- a confissão parcial dos factos, sem especial relevo para a descoberta da verdade material, atenta a prova constante e produzida nos autos;

- as relações cordatas com a vizinhança e amigos com quem estava habitualmente;

- o exercício de trabalho, como faxina no estabelecimento prisional;

b) Contra o arguido,

- a culpa é grave, assumindo a modalidade de dolo directo (ambos os crimes);

- a ilicitude também se mostra muito elevada se se considerar a quantidade e considerável gravidade das ofensas físicas e verbais perpetradas pelo arguido contra a ofendida BB e o período de tempo em que as mesmas perduraram;

- a circunstância de não obstante ter sido acusado pela prática de crime de violência doméstica e beneficiado da suspensão provisória do processo, terminada esta, ter perdurado na sua conduta delituosa, aliás, agravando-a, sem que tivesse interiorizado a gravidade da sua conduta até então perpetrada;

- a ausência de responsabilização para a sua conduta e de qualquer arrependimento;

- a sua baixa escolaridade (abandonou a escola quando da frequência do 2º ciclo);

- o não ter emprego regular desde 2011, passando a subsistir de subsídios (RSI);

- as suas características de personalidade (imaturidade, impulsividade, baixa tolerância à frustração, padrão pervasivo de irresponsabilidade e dificuldade em honrar os seus compromissos, inclusivamente, laborais, externalização da culpa com atribuições de responsabilidades a terceiros e egocentrismo);

Assim sendo, atendendo aos limites abstratos das penas de prisão, fazendo apelo a critérios de justiça, correta proporcionalidade entre a gravidade dos crimes e a culpa do arguido, concomitantemente com a ideia de uma certa intimidação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa, este tribunal reputa justo e adequado a condenação do arguido nas seguintes penas parcelares: (...)

- 20 (vinte) anos de prisão (crime de homicídio qualificado). (…)

Da passagem supra transcrita, relativa à determinação das medidas concretas das penas, verifica-se que foram em geral, correcta e devidamente ponderadas as circunstâncias relativas ao grau de culpa, manifestada no acto e no que respeita às necessidades de prevenção especial e geral, sentidas no caso em apreço, quanto ao arguido AA.

Ao contrário do defendido pelo arguido de forma abstracta e sem concretizar a sua pretensão em factos concretos, vê-se que no Acórdão recorrido se valorou correctamente o seu passado em termos de ausência de antecedentes criminais, a sua confissão parcial e a integração social, o seu percurso de vida e a sua situação familiar e económica e enquadramento social que foram apurados no julgamento e se encontram relatados na matéria de facto provada, bem como razões de prevenção geral e especial - todos estes, foram factores devidamente ponderados aquando da fixação da medida concreta da sanção a aplicar (penas parcelares).

O crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131.º/1/2) alínea b) do Código Penal é sancionado com uma moldura legal abstracta de pena de prisão de 12 anos a 25 anos.

Como já dissemos e contrariamente ao alegado pelo arguido, não foram demonstrados em julgamento factos relativos ao mesmo, anteriores ou posteriores ao crime, com aptidão para conduzir a uma diminuição acentuada a ilicitude do facto ou da culpa do agente, nomeadamente ter havido da sua parte, logo a seguir à prática do homicídio, actos demonstrativos de arrependimento sincero, tal como se preceitua no art.º 72.º/2 alínea c) do CP.

Ou seja, não só não se provou que tivesse havido um arrependimento do arguido susceptível de ser valorado em termos de atenuação especial da pena, e pelo contrário, o Tribunal a quo valorou exactamente em seu desabono, o facto de o mesmo não ter revelado qualquer arrependimento.

Assim, tudo visto e ponderados todos os factos apurados e descritos no Acórdão recorrido (por um lado aqueles que integram os tipos dos dois ilícitos por ele cometidos e por outro aqueles relativos ao seu enquadramento em termos sociais/familiares e profissionais), entendemos que não assiste qualquer razão ao recorrente na sua impugnação da medida concreta da pena aplicada, pela prática em autoria material do crime de homicídio qualificado, atentas as necessidades de prevenção geral e especial que o caso presente reclama.

Entende-se com efeito, que as penas parcelares encontradas pela 1.ª instância são adequadas e que as necessidades de prevenção geral são muito elevadas, nomeadamente no que respeita ao crime de homicídio, por se tratar da ofensa à vida de um ser humano.

Vida essa que constitui como já acima ficou dito, o bem jurídico  mais  fortemente  tutelado  pela  nossa  ordem jurídica - sendo certo que no caso presente, por se tratar de um indivíduo do sexo feminino companheira do arguido e mãe do seu filho, se encontrava por isso, numa situação de especial vulnerabilidade e à mercê do seu agressor, incapaz de lhe resistir -, devendo ainda ser ponderada a sua personalidade desvaliosa que ficou apurada, bem como as necessidades de prevenção especial, nos termos constantes do Acórdão recorrido.

As penas têm como finalidade principal, a reintegração do agente e a protecção dos bens jurídicos, tendo como limite máximo a medida da culpa, (art.º 40.º do cód. penal).

Ou melhor dizendo, culpa e prevenção são as referências norteadoras da determinação da medida da pena – art.º 71.º n.º 1 do Cód. Penal - a qual visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art.º 40.º n.º 1 do mesmo diploma legal.

A este propósito, refere o Prof. Figueiredo Dias “in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187: “o modelo de determinação da medida da pena consagrado no CP vigente «compete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos -dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares,  de advertência ou de segurança) do delinquente».

Há, ainda, que considerar as circunstâncias referidas no n.º 2 do art.º 71.º do Cód. Penal para a fixação concreta da medida da pena.

Assim resulta que a medida da pena não é pura matemática, antes uma operação complexa desenrolada em três fases:

1)  escolhem-se os fins das penas: pois só a partir deles se podem ajuizar os factos do caso concreto relevantes para a determinação da pena e para a valoração que lhe deve ser dada (o art.º 71.º/1 do CP indica a culpa do agente em primeiro lugar, mas no mesmo nível situa as exigências de prevenção), lembrando o que dispõe o art.º 40.º/1 sobre as finalidades da punição - protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade;

2)  fixam-se os factores que influem no doseamento da pena: as circunstâncias concorrentes no caso concreto, que em relação com os fins das penas, têm importância para a determinação do tipo e gravidade da pena (factores esses indicados a título de exemplo no art.º 71.º/2 do CP);

3)  tecem-se considerandos que fundamentam essa determinação efectuada (de acordo com o art.º 71.º/3 do CP.)

Ora sendo as finalidades das penas, como já acima referimos, a protecção de bens e valores jurídicos e a reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção especial respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas, equilíbrio esse que não inibe que perante o caso concreto, uma dessas finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.

E assim em complemento do que acaba de ser dito, face às finalidades das penas, em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º/2 do CP).

Só desta forma, se atingirá uma das finalidades das penas - a criação de um sentimento de segurança, de utilidade, de punidade e de justiça.

Postas estas considerações jurídicas, voltemos então ao caso concreto.

No caso dos autos, verifica-se de tudo o acima exposto, que não assiste razão ao arguido, no que respeita à sua pretensão de atenuação da pena parcelar concreta aplicada ao crime de homicídio qualificado, tendo em atenção os limites mínimos e máximo da moldura legal abstracta, prevista para este tipo de ilícito no art.º 132.º/2/b) do CP - pena de prisão de 12 a 25 anos - tendo o Tribunal recorrido valorado de forma justa e equilibrada todas as circunstâncias atenuantes que se verificaram no presente caso.

Por outras palavras, todas as circunstâncias que relevam para a fixação da medida concreta da pena (favoráveis e desfavoráveis) foram devidamente tidas em conta pelo Tribunal a quo, nos termos legais.

Com efeito, o recorrente não apresentou nenhum argumento factual susceptível de demonstrar que a medida da pena concreta de prisão aplicada ao crime de homicídio excede a sua culpa.

E como se sabe, medir e graduar a pena concreta, constitui uma tarefa assaz complexa para o julgador, onde releva a sua própria intuição assessorada pelas regras da experiência comum, face ao caso concreto em análise e o critério de uniformidade seguido pelo próprio tribunal em situações idênticas, ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes provadas; não esquecendo nunca que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Além do mais, os critérios de determinação da medida concreta das penas, são sempre subjectivos e discutíveis, não obstante as regras definidas pelas normas do Código Penal, pelo que subscrevemos o entendimento daqueles que defendem na Jurisprudência das Relações, que os Tribunais de recurso, não devem simplesmente alterar a medida das penas, só porque os julgadores no Tribunal “ad quem” possam ter um critério diferente do julgador recorrido.

Devem modificá-las sim, mas quando existam razões objectivas para tal, máxime, a violação dos princípios orientadores da determinação da medida das penas e no caso presente, como resulta da leitura atenta do texto do Acórdão, foram inteiramente respeitadas as normas aplicáveis nesta matéria.

Como se pode ver, a partir da leitura da decisão relativa aos critérios que presidiram a essa escolha, consideramos que o Tribunal “a quo”, fundamentou de modo claro e satisfatório a medida da pena concreta aplicada ao crime de homicídio, a qual se entende ser adequada ao grau de culpa manifestado pelo arguido e à justa satisfação das necessidades de prevenção especial e geral que o caso suscita.

Tudo visto, repete-se, a escolha e fixação da medida concreta da pena parcelar do crime de homicídio qualificado (pena de 20 anos de prisão), não nos merece qualquer censura, afigurando-se ser uma decisão justa e equilibrada, tendo em atenção a respectiva moldura legal abstracta e as fortes necessidades de prevenção geral que o caso suscita, como bem foi salientado pelo Tribunal a quo, assim como a idade do arguido e a sua personalidade desvaliosa que se encontra descrita no Acórdão (com traços de imaturidade, impulsividade, baixa tolerância à frustração, irresponsabilidade ...).

Com efeito, no caso presente, entendemos serem bastante significativas e prementes as necessidades de prevenção geral, sendo assim importante através de penas crime aplicadas pelos Tribunais aos agentes prevaricadores, passar uma mensagem de censura que permita uma educação e sensibilização da população em geral.

Tudo visto, em face da factualidade provada - nomeadamente quanto ao circunstancialismo em que o crime foi cometido - bem como quanto à situação pessoal do arguido e o facto de ser delinquente primário e o seu percurso de vida e enquadramento familiar e social (matéria que aqui se dá por reproduzida) - e ainda da fundamentação do Acórdão, não se verifica terem sido violados quaisquer dos preceitos legais aplicáveis na matéria, quanto à escolha e determinação da pena concreta parcelar aqui sindicada.

Deste modo, e em resumo, não releva a sua discordância feita em termos genéricos quanto à medida excessiva da pena parcelar aplicada ao crime de homicídio qualificado, por não estar essa discordância assente em qualquer substrato factual e a sua convicção não se poder substituir à convicção do julgador.»

15. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, o que deve constar da fundamentação (n.º 3).

Como se tem reafirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

16. A projecção destes princípios na determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.

17. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, retomando o que se disse em acórdãos anteriores, entre outros, no acórdão de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, cit., segue-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, op. cit., pp. 232-357).

18. Como se observou nos acórdãos de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1 e de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1 (em www.dgsi.pt), é, pois, na determinação da presença e na consideração destes factores, embora de enumeração não exaustiva, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, neste caso a vida, concretizada na acção levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação. A este propósito, importa ter presente que, como anteriormente se explicitou, estando a finalidade de prevenção geral delimitada pelos termos da protecção do bem jurídico violado (artigo 40.º do Código Penal), esta protecção conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto, constitucionalmente imposta, pelo que há-de ser a gravidade do facto, aferida pelo concurso das circunstâncias relevantes do artigo 71.º do Código Penal, que, a final, dentro dos limites mínimo e máximo da pena, servirá para definir os limites das necessidades de prevenção, em função da culpa revelada por essas circunstâncias, que também se lhe impõe como limite. Devendo, por conseguinte, a operação de determinação da pena alhear-se de considerações de natureza geral pressupostas pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas legalmente fixadas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração de factores relevantes para a determinação da medida da pena (como se observou, designadamente, no acórdão de 11.09.2019, proc. 1032/18.8JAPRT.S1, sumário em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/criminal_sumarios_2019.pdf).

19. Entende o recorrente que a pena “é desadequada e desproporcional”, porque fixada em violação dos artigos 40.º, e 71.º, n.º 2, do Código Penal, que na determinação da medida da pena não foi levado a cabo “nenhum juízo relativo à medição de um grau” de culpa, que se limitou à valoração de “um vago ‘elevado grau de ilicitude do facto’ com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio”, que foram ignoradas as “finalidades preventivas que subjazem à aplicação de qualquer pena”, que foi ignorado “o princípio da culpa” e que não foram ponderadas “as circunstâncias concretas que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente” (supra, 11).

A alegação funda-se em considerações de caráter genérico expendidas na motivação, a que acrescenta que “o acórdão recorrido não fez mais do que declarar que o grau de ilicitude era muito elevado porque o facto ilícito consistiu numa ofensa à vida de um ser humano”, que não foram devidamente valorados “fatores relativos à personalidade do agente”, como a “sua baixa escolaridade”, que deve funcionar no sentido da atenuação, e o facto de “não ter emprego”, pois está provado que exerce atividade como “faxina” no estabelecimento prisional, as suas condições pessoais, relevantes para aferir da sensibilidade à pena e da suscetibilidade de ser por ela influenciado, a ausência de antecedentes criminais, os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, que se “manifestou por via indireta, através do auxílio que procurou para salvar a vítima” e de “sincero arrependimento”.

20. Como já se viu (supra, 13), não procede a alegação de que o acórdão recorrido se limitou à valoração de “um vago ‘elevado grau de ilicitude do facto’ com base nas mesmas circunstâncias tidas em conta para a agravação do tipo base de homicídio”.

Também não procede a alegação de que não foram ponderadas “as circunstâncias concretas que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor ou contra o agente”, de que foram ignoradas as “finalidades preventivas que subjazem à aplicação de qualquer pena” e de que foi ignorado “o princípio da culpa”.

Na sua fundamentação, o acórdão condenatório tomou em consideração existirem elevadas razões de prevenção geral, “que ainda se mostram muito mais elevadas em casos como o presente”, e especificou as circunstâncias que considerou relevantes “no campo da prevenção especial”, a favor e contra o arguido, que o tribunal da Relação considerou “em geral, correcta e devidamente ponderadas” relacionando-as com o “grau de culpa”.

No campo da prevenção especial, o acórdão levou em conta:

a) “A favor do arguido, a ausência de antecedentes criminais e a grande sensibilidade à pena que dele se espera pelo facto de ser primário; a confissão parcial dos factos, sem especial relevo para a descoberta da verdade material; as relações cordatas com a vizinhança e amigos com quem estava habitualmente; o trabalho, como faxina, no estabelecimento prisional;

b) “Contra o arguido, a culpa grave, assumindo a modalidade de dolo directo; a ilicitude que também se mostra muito elevada se se considerar a quantidade e considerável gravidade das ofensas físicas e verbais perpetradas pelo arguido contra a ofendida BB e o período de tempo em que as mesmas perduraram; a circunstância de não obstante ter sido acusado pela prática de crime de violência doméstica e beneficiado da suspensão provisória do processo, terminada esta, ter perdurado na sua conduta delituosa, aliás, agravando-a, sem que tivesse interiorizado a gravidade da sua conduta até então perpetrada; a ausência de responsabilização para a sua conduta e de qualquer arrependimento; a sua baixa escolaridade (abandonou a escola quando da frequência do 2º ciclo); o não ter emprego regular desde 2011, passando a subsistir de subsídios (RSI); as suas características de personalidade (imaturidade, impulsividade, baixa tolerância à frustração, padrão pervasivo de irresponsabilidade e dificuldade em honrar os seus compromissos, inclusivamente, laborais, externalização da culpa com atribuições de responsabilidades a terceiros e egocentrismo)”.

Diz também o tribunal da Relação que “no acórdão recorrido se valorou correctamente o seu passado em termos de ausência de antecedentes criminais, a sua confissão parcial e a integração social, o seu percurso de vida e a sua situação familiar e económica e enquadramento social que foram apurados no julgamento e se encontram relatados na matéria de facto provada, bem como razões de prevenção geral e especial”.

Nota o tribunal da Relação que “contrariamente ao alegado pelo arguido, não foram demonstrados em julgamento factos relativos ao mesmo, anteriores ou posteriores ao crime, com aptidão para conduzir a uma diminuição acentuada a ilicitude do facto ou da culpa do agente, nomeadamente ter havido da sua parte, logo a seguir à prática do homicídio, actos demonstrativos de arrependimento sincero”,”susceptível de ser valorado em termos de atenuação especial da pena”; que “as necessidades de prevenção geral são muito elevadas, nomeadamente no que respeita ao crime de homicídio, por se tratar da ofensa à vida de um ser humano”, em particular por a vítima ser “um indivíduo do sexo feminino companheira do arguido e mãe do seu filho, que se encontrava por isso, numa situação de especial vulnerabilidade e à mercê do seu agressor, incapaz de lhe resistir”; que devem ser ponderadas “a personalidade desvaliosa do arguido que ficou apurada, bem como as necessidades de prevenção especial, nos termos constantes do acórdão recorrido”.

Depois de invocar as normas aplicáveis e de mencionar que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º do CP), conclui dizendo que “todas as circunstâncias que relevam para a fixação da medida concreta da pena (favoráveis e desfavoráveis) foram devidamente tidas em conta pelo Tribunal a quo, nos termos legais” e, em conclusão, que “a escolha e fixação da medida concreta da pena parcelar do crime de homicídio qualificado (pena de 20 anos de prisão), não nos merece qualquer censura, afigurando-se ser uma decisão justa e equilibrada”, dando particular relevo às necessidades de prevenção geral, de modo a “passar uma mensagem de censura que permita uma educação e sensibilização da população em geral”.

Destes excertos se extrai, pois, que a alegação do recorrente apenas pode ser entendida como uma manifestação de divergência quanto ao decidido, em geral, e, em particular, quanto aos particulares fatores que indica – “baixa escolaridade”, “não ter emprego”, ocupação na atividade de “faxina” no estabelecimento prisional, ausência de antecedentes criminais, e o comportamento posterior ao facto, nomeadamente o “auxílio que procurou para salvar a vítima” e o “sincero arrependimento”.

21. Em aplicação dos critérios anteriormente expostos, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado, deve, pois, comportar-se nos limites da gravidade dos factos definida pelas circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) descritas na matéria de facto provada, isto é, pelas circunstâncias que exprimem a gravidade do ataque ao bem jurídico (a vida humana, neste caso) protegido pela norma incriminadora.

A ponderação dessas circunstâncias, levada a efeito no acórdão recorrido não é merecedora de censura.

Dada a particular relevância conferida às necessidades de prevenção geral justificadas pela frequência de crimes de homicídio em contexto de violência doméstica, a valorar em função das consequências não culposas do facto [al. a), do n.º 2 do artigo 71.º do CP – supra, 17] importa sublinhar que estas se devem limitar pelo grau de culpa revelado pelas circunstâncias a atender por esta via (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).

Por esta via se devendo ponderar também, como se disse, os fatores de medida da gravidade do tipo de ilícito subjetivo e objetivo, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, e os fatores que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto e falta de preparação para manter uma conduta lícita).

22. O grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, tal como resultam dos factos provados, militam severamente contra o arguido.

Desde 2016 a 2019, com mais frequência a partir de 2018, em intensidade crescente, que terminou na morte, o arguido passou a discutir repetidamente com a vítima, sua companheira ao longo de 18 anos de vida, a insultá-la, a injuriá-la e a agredi-la com bofetadas e com pontapés. Entre 6.6.2019, logo depois de esta ter alta de um hospital psiquiátrico, onde esteve durante cerca de três semanas, e 12.6.2019, o arguido passou a injuriá-la e a agredi-la todos os dias. No dia 12.6.2019, pelas 14:00 horas, voltou a discutir com a vítima e, pelas 23:00, desferiu-lhe pancadas, com as mãos, na face, no nariz, na boca e no corpo, tendo a vítima ficou caída, imóvel. No dia 13.6.2019, durante a manhã, também dentro de casa, o arguido discutiu de novo com a vítima, voltou a injuriá-la e a agredi-la fisicamente, tendo a vítima sangrado abundantemente pelo nariz. O filho de ambos, que havia acordado com os gritos da mãe, ajudou-a a limpar o sangue, gastando um rolo de papel higiénico, sem, contudo, o estancar. O arguido mandou o filho às compras, ficando a sós com a vítima na casa em que residiam, e, após a saída do filho, continuou a desferir pancadas no rosto, na cabeça e no corpo da vítima. A dada altura, usando a sua superior força física, agarrou-lhe o pescoço, com as mãos, apertando-o fortemente, com o intuito de lhe tirar a vida, só o libertando quando esta deixou de resistir a caiu prostrada no chão. Provocou-lhe, assim, as graves, múltiplas e extensas lesões descritas nos pontos 22 a 37 da matéria de facto provada, em várias partes do corpo, nomeadamente, as lesões traumáticas crânio-encefálicas (com múltiplas áreas de infiltração sanguínea dos tecidos moles, hematoma subdural, hemorragia subaracnoideia e foco de contusão cerebral) e as lesões traumáticas cervicais (com múltiplas áreas de infiltração sanguínea bilaterais a nível do tecido celular subcutâneo, dos músculos, da faringe, do osso hióide e das estruturas cartilagíneas) que determinaram a morte da vítima por asfixia.

23. O arguido agiu com dolo direto, com persistência e determinação na intenção de matar, revelando insensibilidade e profundo desprezo pela vida da vitima. O grau de violação dos deveres que particularmente se lhe impunham, de respeito pela sua companheira, mãe do seu filho, com quem vivia numa relação análoga à dos cônjuges (esta relevante autonomamente, como se viu, para a qualificação do crime de homicídio), quer na execução do facto, quer nas repetidas condutas anteriores, pela sua frequência e intensidade, é extremamente elevado.

O comportamento do arguido anterior ao crime, nas suas relações com a vítima, pelas repetidas agressões durante cerca de três anos, não obstante o facto de não registar condenações criminais, denota falta de preparação para manter uma conduta lícita. Releva, em particular, a circunstância de, nesse período, ter beneficiado de uma medida de suspensão provisória de um processo por crime de violência doméstica, que não contribuiu para que modificasse o seu comportamento relativamente à vítima.

As condições pessoais e socioeconómicas do arguido revelam um contexto de carência e precariedade, com dificuldades de relacionamento intrafamiliar, pouco favoráveis a um processo de integração social com respeito pelos valores do direito, e um percurso de vida com pouco interesse na formação pessoal, no sentido de pautar a sua vida em conformidade com esses valores fundamentais da vida em sociedade. Estes elementos, associados ao contexto e ao modo como foi cometido o crime, são reveladores de elevadas necessidades de prevenção especial.

24. Não se evidenciam circunstâncias que devam merecer particular valoração por deporem a favor do arguido, com significativa relevância na determinação da pena.

A ausência de antecedentes criminais, que constitui indicador do comportamento anterior, não se sobrepõe nem neutraliza a relevância negativa do comportamento criminoso do arguido ao longo de cerca de três anos, nas suas relações com a vítima, e o facto de manter boas relações com outras pessoas e de atualmente trabalhar como faxina no estabelecimento prisional são de valor reduzido na consideração da globalidade dos factos. O mesmo sucede quanto à confissão e quanto ao invocado arrependimento, que, como se refere no acórdão recorrido, não se traduziu em ato juridicamente relevante.

25. São, pois, como consideraram as instâncias, muito elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção, revelados pelas circunstâncias mencionadas, a ter em consideração nos termos do artigo 71.º do Código Penal, sem ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).

Assim, tendo em conta a moldura da pena abstratamente aplicável, de 12 a 25 anos de prisão, não se surpreendem elementos que, na definição do substrato de facto, permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, a justificar uma intervenção corretiva. Não se verificando, por conseguinte, motivo que permita identificar violação, que o recorrente alega, do princípio de adequação e proporcionalidade que constitucionalmente se impõe na determinação das penas (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).

26. Alega ainda o arguido que foi violado o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição), pois que, “comparando a pena aplicada com decisões judiciais relativas a outros processos judiciais”, pela prática de crimes de homicídio qualificado em contexto de violência doméstica – citando um acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20-12-2011, que aplicou uma pena de 15 anos e 6 meses de prisão, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2020, que aplicou uma pena de 13 anos de prisão, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-07-2012, que aplicou uma pena de 18 anos de prisão, e um outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-07-2008, aplicou uma pena de 16 anos de prisão –, estando-se “perante uma pena aplicada desadequada e desproporcional”, “tratou de modo manifestamente desigual o recorrente relativamente a casos materialmente idênticos”.

A vinculação da jurisdição ao princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado (“todos os cidadãos são iguais perante a lei”, diz o n.º 1 do artigo 13.º da Constituição), que implica o tratamento igual ou semelhante de situações iguais ou semelhantes (Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. 1, Coimbra Editora, 2005, p. 121), exige, numa das suas várias dimensões, a aplicação de igual direito a casos idênticos e a utilização de um critério de igualdade na utilização dos poderes de determinação das penas (assim, Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, cit., p. 346). Este princípio, que, não sendo isolado, deve conjugar-se com outros princípios constitucionais, implica, na determinação da pena, a observância do critério de proporcionalidade (artigo 18.º da Constituição) na restrição do direito à liberdade, em função da consideração das circunstâncias previstas no artigo 71.º do Código Penal (supra, 15).

As situações descritas nos acórdãos citados pelo recorrente, nas suas particulares circunstâncias relativas aos factos e aos seus agentes, são diferentes da situação destes autos, sendo as penas fixadas em função do critério ou princípio da proporcionalidade legalmente imposto.

Pelo que, na consideração das diferenças e na observância deste critério, se conclui pela não violação do princípio da igualdade, improcedendo também a alegação do recorrente nesta parte.

27. Em conformidade com tudo o que vem de se expor, conclui-se pela improcedência do recurso.

Quanto a custas

28. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Nestes termos, em consideração da complexidade do recurso, considera-se adequada a condenação do recorrente em 5 UC.

III. Decisão

29. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.

b) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 5 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 3 de novembro de 2021.


José Luís Lopes da Mota (relator)


Maria da Conceição Simão Gomes