Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
477/03.2TBVNO.C3.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
NÃO COMPARÊNCIA DO NOTÁRIO
ASSEMBLEIA GERAL
REPRESENTAÇÃO
CONTITULARIDADE DE QUOTA SOCIAL
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 05/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS - SOCIEDADES ANÓNIMAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL ( AÇÃO, PARTES E TRIBUNAL ) / PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, p. 217.
- Ferrer Correia, Lições, p.364.
- IDET, “Código das Sociedades Comerciais” Anotado, Vol. I, p. 681.:
- Joaquim Taveira da Fonseca, Textos-Sociedades Comerciais, CEJ, CDOA, p. 128.
- Menezes Cordeiro, “Código das Sociedades Comerciais” Anotado, 2009, p. 228; Manual de Direito Comercial, II Volume, 2001, pp. 240, 244.
- Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial”, Vol. IV, Sociedades Comerciais”, 1993, p. 291.
- Rodrigues Bastos, Notas ao “Código de Processo Civil”, vol. BB, 3.ª Edição, 2000, pp. 221/222.
- Vaz Serra, RLJ, Ano 107, p. 5 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 56.º, 58.º, 59.º, 63.º, N.º7, 280.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, (NCPC): - ARTIGOS 7.º, 8.º, 9.º, 542.º, 637.º, N.º2, 638.º, N.º7, 662.º, 640.º, 682º, 674.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS, QUE ACOMPANHOU A PROPOSTA DE LEI N.°113/XBB.
LEI N.º41/2013: - ARTIGO 3.º AL. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11.1.2011 – PROC. 801/06 6TYVNG.P1.S1– IN WWW.DGSI.PT
Sumário :
I) As actas das reuniões sociais podem ser lavradas por notário quando a assembleia-geral assim o delibere, ou a pedido de qualquer sócio – art. 63º, nº7, do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo DL. 262/86, de 2.9 –, vigente à data da deliberação social anulanda.

II) O Notário solicitado para intervir não fica investido em quaisquer funções de controlo da legalidade da assembleia. Ao narrar os factos, no instrumento público, o documento passa a ter força probatória de documento autêntico, merecendo a fé pública e a confiança que lhe empresta aquela intervenção.

III) Ao contrário do regime previsto no Código Civil, em que a regra tendencial é a de sancionar com nulidade dos actos que violem a lei – art. 280º – no Código das Sociedades Comerciais o regime-regra é mais benévolo, é o da mera anulabilidade.

IV A deliberação social abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa acautelar os direitos da sociedade, mas, ao invés, é estranha a essa finalidade, almejando satisfazer o interesse egoísta do sócio ou sócios, que assim através do voto, colhe(m) para si, ou para terceiros, vantagens que prejudicam a sociedade ou outros sócios.

V) No art. 58º b) do Código das Sociedades Comerciais sanciona-se com a anulabilidade a deliberação social em que o direito de voto é exercido com fins alheios ao interesse social prosseguindo vantagens especiais para o votante ou terceiro, em prejuízo do ente societário ou de outros sócios ou de ambos.

VI) O abuso do direito – art. 334º do Código Civil – sobretudo, na modalidade de venire contra factum proprium, tem de evidenciar uma conduta reprovada pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito, tornando patente um comportamento que trai a confiança incutida por uma conduta anterior, que outra ulterior em contradição com aquela torna censurável e que, clamorosamente, desvirtua a funcionalidade do direito exercendo.

VII) Se entre o facto que desencadeou a confiança e aquele que a trai intercedeu um facto novo juridicamente relevante, que ao indutor da confiança não pode ser imputado e que afecta a sua posição jurídica e/ou os seus interesses legítimos, não se pode afirmar que a conduta ulterior caia na alçada sancionatória ou punitiva do instituto.

VIII – Não age com abuso do direito de voto, o sócio que tendo informado que compareceria na assembleia geral da sociedade ré, como representante comum dos demais contitulares de quota indivisa, requer atempadamente a comparência de notário para estar presente nesse acto e, ante a não comparência deste, de que tomou conhecimento no dia da assembleia geral por não ter sido convocado pela Presidente da mesa da assembleia geral, se recusa a participar naquela qualidade, afirmando intervir apenas em nome individual.
Decisão Texto Integral:

Proc. 477/03.2TBVNO.C3.S1

R-496[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            1º -AA

           

            -BB

            -CC 

            4º- DD, e;

             5º- EE

             Instauraram, em 18.3.2003, no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Ourém, acção declarativa, de condenação, com processo ordinário, contra:

             FF, Lda. 

            Pediram:

           - Sejam anuladas as deliberações tomadas na assembleia-geral da sociedade ré, no dia 16 de Fevereiro de 2003;

           - A condenação da ré a reconhecer como eficaz a transmissão da quota no valor nominal de € 150.000,00 operada entre os autores e a sociedade “GG-S.G.P.S,S.A.”, pela escritura de aumento do capital social da referida sociedade.

            Para o efeito, alegaram, em síntese:

           A ré é uma sociedade por quotas com o capital social de € 600.000,00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Ourém, sob o nº …, constituída por escritura de 29 de Março de 1956;

           O autor AA é viúvo de HH e os autores BB, CC, DD e EE, filhos do autor AA e de HH e seus únicos e universais herdeiros;

            HH era titular, em comum com o autor AA, de uma quota com o valor nominal de € 150.000,00 na sociedade ré;

           Por escritura pública datada de 19 de Dezembro de 2002 os Autores procederam ao aumento de capital da sociedade anónima “GG-…, SA”, com sede na ..., ..., ..., através da realização de entradas em espécie e em dinheiro;

            Nessa escritura foi integrada a quota que os autores detinham na ré;

            Por carta, entregue em 6 de Janeiro de 2003 os autores deram conhecimento à ré da escritura de aumento do capital social da GG-…., S.A;

           Por carta registada com aviso de recepção, expedida em 31 de Janeiro de 2003, foi convocada assembleia-geral extraordinária da Ré, para ter lugar no dia 16 de Fevereiro de 2003.

            Esta convocatória foi enviada apenas ao autor AA, motivo pelo qual, os autores BB, CC, DD e EE não compareceram a tal assembleia-geral;

          Existe insuficiência da convocatória, na medida em que, em tal assembleia, estava em causa a alienação da quota dos autores na ré, que o único autor convocado não tinha poderes para deliberar, porque os restantes contitulares da quota não lhe tinham conferido poderes de disposição;

           A acta da mencionada assembleia-geral não foi lavrada por notário, contrariamente, ao que havia sido requerido pelo autor AA, em tempo oportuno.

            O autor AA foi ilegalmente impedido de participar na discussão e na votação da ordem dos trabalhos, quando sendo representante comum dos demais contitulares da quota, apenas estava impedido de votar o ponto dois da convocatória, em virtude de não ter poderes de disposição.

           No que se refere à negação do consentimento da ré para a integração da quota de que os autores são contitulares no capital social da “GG, …., S.A.”, porque não se tratou de uma cessão de quotas, mas apenas de um acto de transmissão entre vivos, a validade e eficácia de tal transmissão verifica-se, independentemente desse consentimento, porque, por aplicação do disposto no art. 228º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais, bastava e basta a mera comunicação do acto, à ré.

            Em todo o caso, sempre seria eficaz perante a ré, em virtude de esta não ter apresentado por escrito a proposta de amortização da quota a todos os autores, sendo certo que nenhum dos autores participou na deliberação, seja porque nem sequer foram convocados, seja porque o único autor convocado, foi impedido de participar na deliberação.

           Por fim, a proposta de amortização sempre se teria de considerar omitida, na medida em que não obedeceu aos requisitos legais, concretamente, o previsto no art. 231º, nº 2, al. d) do Código das Sociedades Comerciais.

           

            Contestou a ré.

            Disse, nomeadamente, e no que para o que ora interessa:

           Com a cessão da quota de que eram contitulares na ré, para a sociedade GG, S.A., os autores afastaram, à revelia da lei e do pacto social e do conhecimento ou consentimento da sociedade ré, qualquer possibilidade de a ré, no futuro, se opor à entrada de novos sócios, estranhos à sociedade, quer o direito de preferência dos restantes sócios da ré, numa futura transmissão dessa quota.

            E esse aumento de capital social consubstancia uma verdadeira e própria cessão de quotas.

            No caso vertente, é aplicável o nº2 do art. 228º do Código das Sociedades Comerciais, que exige o consentimento da sociedade quanto à cessão a estranhos de quotas da mesma sociedade, além de que foi violado o pacto social da ré, cuja cláusula quinta estabelece a preferência a favor dos sócios da ré, em caso de cessão de quotas a estranhos;

           A convocatória foi enviada apenas ao autor AA, porque este último, além de contitular da quota, era o representante comum dos restantes autores e, por aplicação do nº2 do art. 222º do Código das Sociedades Comerciais, o dever de convocação mostra-se cabalmente cumprido.

            Além disso, não estava em causa a alienação da quota, porque o que foi submetido à deliberação, foi apenas a discussão e aprovação de uma proposta de amortização da quota a apresentar aos autores.

           A acta não tinha de ser elaborada por notário, porque o autor AA não endereçou o correspondente pedido em tempo útil, uma vez que o quinto dia útil seguinte ao da data em que tal pedido foi remetido à ré, foi o dia 17 de Fevereiro de 2003, ou seja, um dia depois da realização da assembleia geral, sendo certo que o nº 7 do art. 63º do Código das Sociedades Comerciais alude a cinco dias úteis antes da data da assembleia geral.

           O pretenso impedimento do autor AA em participar nos trabalhos da assembleia-geral da ré em 16 de Fevereiro de 2003, é a demonstração cabal da má-fé com que os autores litigam.

            Além disso, o autor AA, ao afirmar, contrariamente ao que havia dito momentos antes do início dos trabalhos e ao que constava de carta dirigida à ré, mais de um ano antes, nos termos da qual havia sido nomeado representante comum dos restantes autores, que se encontrava naquela assembleia, a título pessoal e que não representava os outros autores, colocou-se, voluntariamente, em posição de não poder votar.

            Por isso, não deve poder prevalecer-se de uma situação que ele próprio criou, sob pena de abuso de direito.

            A proposta de amortização foi válida e eficazmente apresentada, quer porque o autor AA é o representante comum de todos os autores, nos termos do art. 222º, nº2, do Código das Sociedades Comerciais, quer porque essa proposta não está sujeita a qualquer formalismo, podendo ser verbal, desde que seja receptícia e a verdade é que foi logo comunicada, no dia da assembleia geral, ao mesmo autor AA;

            Pediu:

            A improcedência da acção e a condenação de todos os autores em multa e indemnização à ré, como litigantes de má-fé, em montante não inferior a € 5.000,00 e, cumulativamente, a condenação do autor AA, também como litigante de má-fé, em multa e indemnização à ré, em montante nunca inferior a € 5.000,00.

            Os autores replicaram.

 

           Reiterando a sua posição e pugnando pela sua absolvição do pedido de condenação como litigantes de má-fé e pedindo a condenação da ré em multa e indemnização como litigante de má-fé.


***

            A final, em 20.4.2011 (fls. 569 a 643) foi proferida sentença que:

           - Julgou a acção não provada e improcedente e, em consequência, absolveu a Ré de todos os pedidos.

           - Condenou cada um dos Autores, como litigantes de má-fé, na multa equivalente a 7 Ucs.

            - Determinou a notificação de ambas as partes, nos termos e para os efeitos previstos no art. 457º, nº 2 do Código de Processo Civil, para efeitos de fixação do montante da indemnização devida à ré, com fundamento na litigância de má-fé dos autores.


***

            Inconformados, recorreram os autores para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 13.11.2012 – fls. 813 a 817 – anulada a sentença recorrida, ordenando a repetição do julgamento para apreciação do art. 6º da B.I. com a seguinte redacção:

           “Antes da realização da assembleia-geral de 16 de Fevereiro de 2003, o autor AA assumiu-se perante os restantes sócios da ré como representante comum dos contitulares da quota dos autores?” 

 


***

            Foi repetido o julgamento, tendo o teor de tal artigo sido dado como provado.

            Foi proferida sentença em 31.1.2014 – fls. 1062 a 1148 – na qual foi decidido:

           “Termos em que julgo a presente acção não provada e improcedente e, em consequência, absolvo a ré de todos os pedidos.

           

            - Condeno cada um dos autores AA; BB; CC; DD e EE, como litigantes de má-fé, na multa equivalente a 35 UCs.

           - Condeno os autores AA; BB; CC; DD e EE, como litigantes de má-fé, a pagarem aos Ilustres Mandatários da ré, a quantia global de € 40.954,20, devidas por honorários – art. 457º nº 1 al. a) do Código de Processo Civil.”


***

            Inconformados, recorreram os Autores para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 14.10.2014 – fls. 1413 a 1425 verso (7º Volume) – concedeu provimento ao recurso e, consequentemente, anulou a realização da assembleia de 16.02.2003, com as legais consequências. Mais, absolvendo os autores da condenação como litigantes de má fé.


***

           

           A Ré recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

           A) Resulta claro do teor das alegações e conclusões dos ora Recorridos, apresentadas em sede de recurso de apelação perante o Tribunal a quo que as mesmas não cumprem os requisitos/formalismos previstos no artigo 640.°de Código de Processo Civil que constituem condição de admissibilidade e conhecimento do recurso pela relação.

            B) Desde logo porque, pretendendo como pretendiam impugnar a decisão sobre matéria de facto deveriam os ora Recorridos ter especificado, não só os pontos de facto que na sua perspectiva foram incorrectamente julgados, mas quais os meios probatórios que pretendiam ver reapreciados e impunham decisão diversa, indicando, quando esses meios de prova se encontrem gravados, as concretas passagens da gravação em que funda a sua impugnação.

           C) Esse ónus, não cumpriram os ora Recorridos, que se limitaram a fazer referências vagas e imprecisas à prova documental e testemunhal, cingindo-se em relação à primeira a reproduzir de forma parcelar e descontextualizada excertos de documentos e transcrevendo um excerto, de uma frase, proferida por uma testemunha — II – mais uma vez de forma tendenciosa e descontextualizada.

           D) Tendo omitido, em absoluto, nas suas conclusões o cumprimento desse ónus sendo por isso impossível, a partir delas, delimitar — positiva e objectivamente — o objecto do recurso, como prescrito nos artigos 635.°, n.°4, 639.°, n.°1 e 608.°, n.°2 do Código de Processo Civil.

           E) Atento o incumprimento pelos Recorridos do disposto o artigo 640.° do Código de Processo Civil, cumpria ao Tribunal da Relação rejeitar o referido recurso.

           E) Não o tendo feito o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 635.°, n.°4, 639.°, n.° 1 e 608.°, n.°2 do Código de Processo Civil, e, bem assim o disposto no já referido artigo 640.° do Código de Processo Civil.

           G) Acresce ao exposto que o Acórdão recorrido padece de vício de excesso de pronúncia, porquanto, na apreciação das respostas dadas aos artigos 4.° e 5,° da Base Instrutória, o Tribunal da Relação procedeu ao reexame da prova testemunhal produzida, quando os ora Recorridos não a sindicaram limitando-se a alegar que o Tribunal de 1ª Instância desconsiderou prova documental constante dos autos.

            H) Ao reapreciarem a prova testemunhal quando tal não lhes foi requerido em sede de recurso, o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 635.° n.° 4 e 639.°, n.° 1 do Código de Processo Civil, bem como o artigo 608.° do mesmo diploma.

           I) Uma vez que se encontrava limitado na reapreciação da matéria de facto, não só às concretas questões de facto identificadas pelos apelantes, mas também, aos concretos meios de prova impugnados, o que manifestamente extravasou.

           J) Ao proceder à alteração à resposta dada ao artigo 5.° da Base Instrutória, com fundamento em que a prova de um facto como “a intenção do Autor AA” exige uma prova mais forte, incisiva e exigente, o Tribunal da Relação deixa plasmado um entendimento de que quando está em causa a prova de intenções por recurso a prova testemunhal, se exige uma especial força probatória dos depoimentos, exigência essa que não encontra qualquer respaldo na lei.

            K) Ao fazê-lo o Tribunal da Relação incorreu em erro manifesto na apreciação da prova.

           L) O Douto acórdão Recorrido é ainda violador dos princípios da livre apreciação e imediação da prova, previstos, respectivamente, nos artigos 607, n.°5 e 604.° e 605.° do Código de Processo Civil.

           M) Desde logo porque, o Tribunal a quo procedeu à alteração à resposta ao Artigo 5.° da Base Instrutória fazendo absoluta tábua rasa da prova produzida em 1ª Instância, de forma injustificada e infundamentada, desconsiderando, em absoluto a convicção formada pelo Tribunal de 1ª Instância, fazendo tábua rasa da mesma e atropelando toda a valoração ali realizada e alterando a matéria de facto com base juízos de mera suposição e argumentos lógico-formais, como sejam que a actuação do Autor AA poderia, do ponto de vista lógico, ter intenção distinta da que resultou provada em 1ª Instância – porque sim!

            N) É o julgador em 1ª Instância quem está melhor colocado para fazer esse juízo de forma acertada, não podendo a sua valoração ser, simplesmente desvalorizada e afastada, como sucedeu no Acórdão ora recorrido, por mera substituição por uma convicção do Tribunal da Relação assente em juízos abstractos, na base do mero “suponhamos”, como o que “aquele facto [em abstracto] não acarreta no domínio da pura lógica formal ou da vida real, necessária, inelutável e inexoravelmente, este propósito”.

            O) De igual modo o Tribunal a quo violou os aludidos princípios da livre apreciação da prova e da imediação da prova, ao proceder, como procedeu à alteração à resposta dada ao Artigo 7.° da Base Instrutória, ao fundamentar essa alteração no excerto do depoimento de uma exclusiva testemunha que, como resulta do texto da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, não mereceu qualquer credibilidade ao tribunal perante o qual a testemunha se apresentou, por inúmeras vezes, quer em 2010, quer em 2013 aquando da repetição do julgamento para apreciação de novo artigo da Base Instrutória.

           P) Acresce ainda ao exposto que o Douto Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 334.° do Código Civil, ao considerar, ao contrário do considerado pelo Tribunal de 1ª Instância que não se encontram reunidos in casu os pressupostos do abuso de direito, tanto nas modalidades de venire contra factum proprium e tu quoque e, em consequência, considerar por verificado o vício omisso da presença da Notária, gerador de anulabilidade das deliberações tomadas na Assembleia Geral da Ré de 16 de Fevereiro de 2003.

           Q) A Douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância é, por demais, exemplar e esclarecedora quanto à solução jurídica dada à questão em apreço, sendo a solução jurídica nela plasmada a mais acertada em face a toda a factualidade apurada.

           R) A avaliação do abuso de direito dos AA. implica, ao contrário da análise levada a cabo pela Douto Acórdão recorrido, consideração de todo o contexto que antecedeu e envolveu a realização da Assembleia Geral da Ré de 16 de Fevereiro de 2003 e, tudo quanto, determinou a impugnação pelos AA. das deliberações ali tomadas através da presente acção.

           S) Tal análise foi exemplarmente realizada e valorada pelo Tribunal de 1ª Instância não merecendo qualquer censura, e tendo concluído acertadamente, que a presente acção não foi mais do que um mecanismo destinado a obter, por via travessa, contra a Lei e contra o pacto social da Ré, a eficácia de uma cessão de quotas celebrado de forma ilícita e encapotado de aumento de capital de uma sociedade terceira, estranha à própria Ré, em manifesta afronta aos direitos dos demais sócios – nomeadamente, o de preferência na aludida alienação das participações sociais — através da impugnação da decisão da sociedade de recusar o consentimento à cessão por si operada.

            T) Neste sentido, bem andou o Tribunal de primeira instância em dar por verificados os requisitos do abuso de direito, assim desvalorizando o vício de falta de notário.

            U) Mais, neste contexto, actuou igualmente de modo exemplar o Tribunal de 1ª Instância ao dar por verificados os pressupostos da litigância de má-fé previstos no artigo 456.° do Código de Processo Civil, atenta a prova acutilante e intensa da gravidade das condutas assumidas pelos AA. e prescritas naquele preceito.

            V) O grau de convicção que determinou a sua condenação como litigantes de má-fé pelo Tribunal de 1ª Instância foi de tal modo evidente e ferido de gravidade que determinou, inclusivamente, o agravamento da sua condenação após a repetição do julgamento para apreciação do artigo 6.° da Base Instrutória.

            W) Pelo que não poderá tal decisão deixar de ser mantida.

           X) Pelos motivos expostos, não poderá o Douto Acórdão recorrido deixar de ser revogado e substituído por acórdão que rejeite a admissibilidade do recurso de apelação no que respeita à impugnação da matéria de facto por incumprimentos dos requisitos a que alude o artigo 640.° do Código de Processo Civil, ou, caso assim não se entenda, ser revogado e substituído por acórdão que considere improcedentes as de alteração à matéria de facto peticionadas pelos apelantes.

            Y) E bem assim, não poderá o Douto Acórdão recorrido deixar de ser revogado e substituído por Acórdão que confirme, em toda a linha a Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.

           Assim, deve ser concedida a revista, revogando a decisão recorrida.

           Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Julgado.


***

           

           Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos[2]:

            1) - A ré é uma sociedade por quotas com o capital social de € 600.000,00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Ourém, sob o nº79, constituída por escritura de 29 de Março de 1956 – (alínea A) da matéria assente);

            2) - Nos termos da cláusula quinta do pacto social da ré, “é livre a cessão de quotas entre os sócios; para estranhos a cessão no todo ou em parte fica dependente do direito de preferência dos restantes sócios, ou de qualquer deles, nos termos seguintes:

                “a) Quando qualquer sócio desejar ceder a sua quota – no todo ou em parte – avisará os restantes por carta registada com aviso de recepção, na qual indique o nome do pretendente e o preço da cessão;

               “b) Se no prazo de vinte dias, a contar da data da recepção da carta, nenhum dos sócios desejar usar da preferência, bastando para tal não responder, fica o cedente livre para efectuar o contrato com o pretendente, nos termos da proposta;

                “c) Se qualquer sócio desejar a opção, fá-lo-á pelo preço da proposta, devendo no prazo de cinco dias, a contar da comunicação, entregar ao cedente um sinal correspondente a dez por cento do mesmo preço e fixando-se desde logo um prazo, que ficará escrito, para a efectivação do negócio;

                “d) Se o sócio pretendente não entregar o sinal naquele prazo, fica o cedente imediatamente liberto de compromisso e poderá realizar o seu contrato com o estranho, o mesmo sucederá se o adquirente não efectivar o negócio no prazo marcado;

                “e) Se qualquer dos contraentes, havendo sinal passado, se negar, haverá perda do sinal ou restituição em dobro, conforme o caso;

               “f) Se mais que um sócio desejar a opção haverá licitação partindo da base da proposta e a quota será atribuída – no todo ou em parte – ao que mais der, aplicando-se o regime de sinal a prazos acima estabelecido” – (pacto social da Ré, junto por certidão a fls. 93 e seguintes e arts. 60º e 195º da contestação);

            4) - O autor AA é viúvo de HH e os autores BB, CC, DD e EE

filhos do autor AA e de HH e seus únicos e universais herdeiros – (alínea B) da matéria assente);

            5) - HH era titular, em comum com o autor AA de uma quota com o valor nominal de € 150.000,00 na sociedade ré – (alínea C) da matéria assente);

           6) - Todos os autores são gerentes da ré – (alínea J) da matéria assente);

            7) - Em 7 de Junho de 2001 os autores comunicaram por escrito à ré que designavam como representante comum dos titulares da quota junto da sociedade ré o autor AA – (alínea I) da matéria assente);

           8) - Por escritura pública datada de 19 de Dezembro de 2002 os Autores procederam ao aumento de capital da sociedade anónima “GG-…, SA” com sede na ..., ..., ..., através da realização de entradas em espécie e em dinheiro – (alínea D) da matéria assente);

           9) - Na escritura referida em D) foi integrada a quota que os autores detinham na ré – (alínea E) da matéria assente);

           10) - Consta da escritura referida em D): “Que pela presente escritura e em execução das deliberações tomadas na mencionada assembleia geral realizada em 28 de Março do corrente ano aumentam o capital da aludida sociedade para seis milhões quatrocentos e cinquenta mil euros integralmente subscrita e realizada parte em dinheiro e parte pela transferência de bens, pertencentes a eles outorgantes (accionistas), quer em nome próprio quer em comum, e sem determinação de parte ou de direito, pela forma seguinte (…)

               d) A quantia de quatrocentos e onze mil e seis euros a realizar pela transferência para a sociedade de uma quota no valor nominal de cento e cinquenta mil euros no capital da sociedade comercial por quotas FF, Lda.” (…) quota esta à qual é atribuído o valor de quatrocentos e onze mil e seis euros e pertencente em comum e sem determinação de parte ou direito aos accionistas AA, BB, CC e EE – (alínea F) da matéria assente);

            11) - A GG-…, S.A., matriculada sob o nº… na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, é uma sociedade anónima, tendo por objecto a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas, constituída com o capital social de € 6.500.000,00 representado em seis milhões e quinhentas mil acções com o valor nominal de € 1,00 cada, nominativas, sendo o Conselho de Administração presidido pelo autor AA e constituído por dois vogais, os autores CC e o autor DD, estando a transmissão de acções, entre vivos, a favor de terceiros, dependente do consentimento da sociedade, através de deliberação da assembleia geral tomada por maioria qualificada de 66% do capital social e os accionistas não alienantes gozam do direito de preferência na sua alienação – (pacto social e certidão do registo comercial da sociedade GG junto aos autos, a fls. 526 a 542 e arts. 6º e 7º da petição inicial);

           12) - Com o aumento do capital referido em D), os autores aglutinaram todas as participações sociais de que eram titulares – (resposta ao nº 2 da base instrutória);

           13) - Por carta entregue em 6 de Janeiro de 2003 os autores deram conhecimento à ré da escritura referida em D) – (alínea T) da matéria assente);

            14) - Tendo os autores entregue uma cópia do texto que ficou a constar da escritura – (resposta ao nº3 da base instrutória);

            15) - Por carta registada com aviso de recepção expedida em 31 de Janeiro de 2003 foi convocada assembleia-geral extraordinária da Ré, para ter lugar no dia 16 de Fevereiro de 2003, com a seguinte ordem de trabalhos:

            1. Deliberar sobre a cessão da quota indivisa dos herdeiros da falecida sócia, HH, realizada por escritura pública de 19 de Dezembro de 2002, conforme carta e cópia entregue em mão própria por aquele, no dia 6 de Janeiro, à gerência da nossa sociedade.

               2. Deliberar sobre a eventual recusa de consentimento à cessão enunciada no ponto anterior, e discussão sobre o conteúdo da proposta a apresentar àqueles sócios, nos termos previstos no art. 231º do Código das Sociedades Comerciais(alínea G) da matéria assente);

            16) - A convocatória referida em G) apenas foi enviada ao autor AA – (alínea H) da matéria assente);

           17) - O autor AA através de carta entregue em mão na sociedade, no dia 8 de Fevereiro de 2003 (sábado) requereu que a acta da assembleia-geral referida em F) fosse lavrada por notário – (alínea L) da matéria assente);

           18) - Os autores AA e BB compareceram no dia e hora designada para a realização da assembleia-geral – (alínea M) da matéria assente);

           19) - Antes da realização da assembleia-geral de 16 de Fevereiro de 2003, o autor AA assumiu-se perante os restantes sócios da ré como representante comum dos contitulares da quota dos autores – (resposta ao nº 6 da base instrutória);

           20) - No início da assembleia-geral o autor AA constatando a não presença de notário, requereu, a partir da leitura dos documentos de fls. 34 a 36, a interrupção dos trabalhos e a marcação de uma nova assembleia.

           No início dos trabalhos, o autor AA informou a Presidente da Mesa da Assembleia-Geral comunicando que vinha participar na mesma assembleia em nome próprio, ficando a constar da acta: apresentou-se ainda o senhor AA que declarou estar presente em seu nome próprio e que não representava os herdeiros de HH, apesar do documento assinado por todos os herdeiros de HH e que se encontra arquivado na nossa sociedade indicando o Senhor AA como representante destes herdeiros – (alínea N) da matéria assente);

           21) - Consta ainda da mesma acta: A Presidente da mesa depois de auscultada a assembleia quanto à legitimidade do Senhor AA para estar presente nesta reunião em nome próprio decidiu que apenas poderia ser aceite a presença do referido sócio, caso viesse na qualidade de representante dos herdeiros de HH qualidade que o próprio não aceitou. Foi decidido pela Presidente com o acordo unânime de todos os sócios presentes ou representados não aceitar que o mesmo senhor participasse nesta reunião em nome próprio sendo apenas concedido ao mesmo o direito a estar presente, mas não a votar nem a deliberar, dado não ser detentor de nenhuma quota em nome próprio nesta sociedade – (alínea O) da matéria assente);

           22) - E antes ainda de se dar início à discussão da ordem de trabalhos, a Presidente da Mesa esclareceu que sem prejuízo das conversações havidas com o Sr. AA relativamente ao seu pedido para estar presente um notário na presente assembleia, e independentemente de não ter sido assegurada a presença requerida, considera que, para além da ordem de trabalhos não obrigar a tal formalidade, não estão em causa quaisquer direitos essenciais de quem quer que seja, que possam ser postos em causa com a ausência de tal entidade – (alínea P) da matéria assente);

            23) - Com a atitude referida em N) o autor AA colocou-se numa posição de impedimento da sua participação na assembleia-geral – (resposta ao nº 4 da base instrutória);

           24) - Não se encontrava presente nenhum notário para lavrar a acta(alínea Q) da matéria assente);

            25) - A ré deliberou não consentir a cessão e amortizar a quota dos autores pelo valor de € 411.006,00 – (alínea R) da matéria assente);

            26) - A recusa do consentimento para a cessão referida em D) e a proposta de amortização realizada pela ré foram comunicadas ao autor AA no dia 16 de Fevereiro de 2003 – (alínea S) da matéria assente).

            Fundamentação:

           Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importar saber:

            - se não se verificam os requisitos processuais de que depende a apreciação pelo Tribunal da Relação da matéria de facto, não tendo os recorrentes dado cumprimento aos requisitos de que depende esse julgamento, pelo que não deveria ter sido admitido o recurso nessa parte;

            - se existe excesso de pronúncia por a Relação ter apreciado as respostas aos arts. 4º, e 5º da B.I., por não terem sido sindicadas pelos AA./apelantes;

           - se existe violação da lei processual no que respeita à fundamentação da alteração da resposta ao art. 5º da B.I.;

           

           - se existe violação dos princípios processuais da livre apreciação da prova e da imediação, no que respeita à alteração da resposta ao art.7º da B.I.;

            - se a Relação violou a lei ao considerar – ao invés da sentença apelada – que a conduta dos AA. não foi abusiva do direito ao invocarem a não presença de Notário na assembleia-geral da Ré de 16.2.2003;

           - se os AA. litigaram de má-fé, devendo ser sancionados tal como foi sentenciado em 1ª Instância.

            Fundamentação:

            Os recorrentes questionam o acerto da decisão da Relação, na vertente da apreciação da matéria de facto e na vertente substantiva, esta no que respeita a saber se houve ou não actuação abusiva do direito no quadro factual que abordaremos.

           Trata-se de uma acção de anulação de deliberações sociais tendo como objecto invalidar a decisão tomada na Assembleia-geral da Ré de 16.6.2.3003.

           Nos doze anos de pendência do processo, a 1ª Instância considerou procedente a acção dos AA. – mesmo após uma anulação da decisão para apreciação de matéria facto indicada pela Relação – sendo que, no segundo Acórdão, agora sob censura, foi revogada a sentença, pretendendo, agora, a Ré a revogação do Acórdão recorrido.

           Apreciando as questões processuais, desde logo, se no recurso de apelação de onde emergiu o Acórdão em crise os Recorrentes/AA. cumpriram os requisitos formais de que depende a reapreciação pela Relação da matéria de facto.

O assegurar de um duplo grau de jurisdição quanto à apreciação da matéria de facto foi tema de larga controvérsia no direito processual, havendo, até, quem, nessa omissão, visse violação do direito a um julgamento justo, sabidas que eram as limitações legais existentes quanto à possibilidade da alteração, pela Relação, da matéria de facto – primitiva redacção do art. 712º do Código de Processo Civil, (actualmente art. 662º do NCPC).

Na redacção actual, os poderes da Relação são mais amplos e processualmente mais simplificados.

O objectivo do legislador está patente na “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei n.°113/XBB, ao enfatizar o propósito do legislado de reforçar os poderes da 2.ª Instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, “para além de manter os poderes cassatórios — que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória —, são substancialmente incrementados os poderes-deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”. 

            O DL. 39/95, de 15.2 inovou, estabelecendo a possibilidade de as audiências finais e os depoimentos, informações e esclarecimentos nelas prestados serem gravados, [documentação da prova], “pondo termo ao peso excessivo que a lei processual vigente confere ao princípio da oralidade e concretizando uma aspiração de sucessivas gerações de magistrados e advogados” – citámos do preâmbulo do citado DL.

O recurso de apelação foi interposto na vigência do NCPC, sendo que, a fls. 1158 a 1159, foi proferido na 1ª Instância despacho, alertando os AA. recorrentes, referindo que a sentença recorrida foi proferida a em 31.1.2014, pelo que as alegações deveriam estar contidas no requerimento de interposição do recurso – art. 637º, nº2, do Código de Processo Civil – pelo que foram convidados a apresentar o requerimento de interposição do recurso acompanhado das alegações, tendo sido citados os arts. 3º al. a) da Lei nº41/2013 e o art. 638º, nº7, do Código de Processo Civil.

O art. 640º do Código de Processo Civil estatui sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, assim:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

                c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

                2. No caso previsto na alínea h) do número anterior, observa-se o seguinte:

               a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

              b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

           3. O disposto nos n.” 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.° 2 do artigo 636.°”

Já antes da Reforma de 2013, o art. 685º-B do Código de Processo Civil – redacção do DL. 303/2007, de 24.8 – conferia ao recorrente, impugnante da decisão de facto, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de indicar os concretos pontos de facto que considerava “mal” julgados; indicar quais os concretos elementos de prova constantes do processo ou da gravação, que impunham decisão diversa e, finalmente, a obrigação de transcrever, mediante escrito dactilografado, as passagens da gravação em que fundava a discordância.

Por sua vez, nesta hipótese, a parte contrária, na contra-alegação que oferecesse, podia apresentar transcrição dos depoimentos que infirmassem as conclusões do recorrente.

           Essencial é, pois, que o Recorrente possibilite, por via da gravação ou da transcrição dos depoimentos, a indicação dos concretos pontos de facto que considera mal julgados e especifique os concretos meios probatórios contidos nos registo ou na transcrição que impõem julgamento diverso da matéria de facto de que discordam. Na verdade, não se tratando de global reapreciação da matéria de facto, os recorrentes têm a seu cargo a indicação precisa dos pontos concretos de matéria de facto que considerem mal julgados assim possibilitando a reapreciação por um segundo grau de jurisdição.

           Ora, olhando as alegações dos Recorrentes/AA. vê-se que fundaram a sua discordância do julgamento da 1ª Instância mais na contradição da matéria de facto contida em M) e N) com a inserta na al. U) [sendo que esta foi posteriormente aditada], questionando ainda a resposta dada ao ponto nº6 da B.I. Argumentaram, também, com a força probatória de documentos que indicaram, mormente, a acta da Assembleia Geral (AG); questionaram a al. I) e os nºs 4º e 5º da B.I., relacionando o mau julgamento desses pontos da matéria de facto com a desconsideração da prova documental com eles relacionada, mormente, com a já referida acta da AG.

           No que respeita ao ponto 7º da B.I. socorreram-se os Julgadores da transcrição do depoimento da testemunha II. 

            Quanto ao ter o Tribunal apreciado os artigos 4º e 5º da B.I, os recorrentes alegam que houve excesso de pronúncia, porquanto as respostas dadas a esses pontos não foram postas em causa no recurso, visando a reapreciação da matéria de facto.

           Salvo o devido respeito, os Recorrentes, nas conclusões das suas alegações transcritas no Acórdão a fls. 1415 verso, enunciaram nas conclusões 10ª, 11ª, 12ª e 13ª que pretendiam ver alteradas as respostas aos pontos 1º, 4º, 5º e 7º da B.I.

            Os pontos em questão estavam assim formulados:

             1º - Com o aumento de capital referido em D) os autores visaram concentrar todas as suas participações?

                4º - Com a atitude referida em N) o autor AA colocou-se numa posição de impedimento da sua participação na assembleia-geral?

                5º - Com o intuito de invocar a falta de convocatória dos restantes autores?

                7 º - No início da assembleia-geral o autor AA entregou os requerimentos que dos autos são fls. 34 a 36?

           

            No Acórdão referem-se os fundamentos por que pretendiam as alterações:

            “Quanto ao 1º entendem que resposta deve ser alterada no sentido da sua prova plena.

                Invocam, para tanto, e essencialmente, o depoimento da testemunha JJ, da testemunha KK e ainda, da forma indirecta mas clara, dos depoimentos iniciais das testemunhas da Ré, LL e MM.

                E, ainda, de prova documental, qual seja, o próprio texto da escritura de aumento de capital da GG …, S.A. da natureza blindada dos seus estatutos, do carácter “intuito personae” dos mesmos pois que as suas acções são obrigatoriamente nominativas.

               No que tange aos 4º e 5º, pretendem a sua não prova dizendo que a participação de um sócio em Assembleia-Geral não se esgota no exercício do direito de voto.

               O uso do direito de falar e de intervir, pode, mediante exposição concreta de factos, influenciar o exercício do voto dos demais sócios.

                E foi esse direito que, ilegal e ilegitimamente, foi vedado ao Sr. AA pelos restantes sócios.

                No concernente ao 7º, clamam pela sua prova invocando o depoimento da testemunha II”.

            A Relação alterou a resposta ao ponto 5º para “não provado”. Aqui, os Recorrentes criticam a fundamentação invocada para a alteração, mas, salvo o devido respeito, sem razão. O Supremo Tribunal de Justiça não pode, em sede de matéria de facto, sindicar o julgamento da Relação, a menos que haja violação das regras de direito probatório material, pelo que, estando em causa a apreciação de prova testemunhal como resulta da fundamentação e de prova documental necessariamente com ela articulada, não pode este Tribunal sindicar o juízo de convicção dos julgadores na Relação, também porque a prova testemunhal pode ser usada para completar o sentido da prova documental.

             Sempre se dirá que o quesito se reporta a matéria de facto – saber da intenção do Autor – tendo o Tribunal acentuado que, quando assim é, o grau de exigência probatória deve ser maior, perspectiva de que não se discorda, tanto mais que a Relação, perante a audição das gravações, apenas dispõe de uma oralidade indirecta e não de imediação com a prova testemunhal.

            Quanto à resposta restritiva dada pela Relação ao quesito 7º, por maioria de razão, vale o que referimos. O facto do Tribunal ter expressado que a alteração se deveu à apreciação de uma única testemunha, não encerra qualquer violação daqueles princípios, sendo que a convicção dos Julgadores na Relação, não é sindicável por este Supremo Tribunal.

           Não foram violadas quaisquer regras probatórias de direito material que preencham os requisitos de apreciação que, excepcionalmente neste domínio, caibam a este Supremo Tribunal de Justiça, e que estão insertas no art. 682º, nºs 1 e 2, do NCPC, cujos termos (com a mera actualização da remissão), reproduz o anterior art. 729º, na redacção do DL. n.°303/007, de 24.8.

O Supremo Tribunal de Justiça é um Tribunal de revista, pelo que a apreciação da matéria de facto só tem lugar nos casos excepcionais previstos nos arts. 682º e 674º do Código de Processo Civil.

           Mantém-se actual o entendimento do Conselheiro Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil” – pág. 217:

           

            “Tanto na apreciação do recurso de revista como no de agravo, o Supremo Tribunal de Justiça, só conhece de questões de direito (art. 26° da LOFTJ).

Não controla a matéria de facto nem revoga por erro no seu apuramento; compete-lhe antes fiscalizar a aplicação do direito aos factos seleccionados pelos tribunais de primeira e segunda instâncias (…).

 Daí dizer-se que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista e não um tribunal de 3ª instância (art. 210°, nº5 da C.R.P.)”.    

Não sendo caso de aplicação do regime legal do art. 674º, nº3, do Código de Processo Civil – que legitima a alteração da matéria de facto no contexto do recurso de revista, apenas quando exista “ofensa duma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto e ofensa de preceito expresso de lei que fixe a força de determinado meio de prova” – não procede a pretensão da Recorrente quanto às questões processuais envolvidas na decisão da Relação quanto ao julgamento da matéria de facto.

Quanto à fulcral questão de saber se os AA., mormente, o 1º Autor AA actuou com abuso do direito.

Vejamos os factos que se antolham essenciais para apreciação da questão, divergentemente julgada pelas instâncias; a primeira instância, considerando que houve abuso do direito nas modalidades de venire contra factum proprium e tu quoque,  a Relação julgando que a actuação dos AA., mormente, de AA, não podem considerar-se abusivas.

A divergência das instâncias quanto à integração do comportamento dos AA., mormente, do Autor AA, como abusiva do direito (nas modalidades de venire contra factum proprium e tu quoque) – está no facto deste, desde 7.6.2001, ter comunicado à Ré que era o representante dos contitulares da quota pertencente à falecida HH, com quem foi casado, sendo filhos do casal os demais autores, e, ante a convocação da Ré para uma assembleia geral extraordinária aprazada para 16.2.2003, onde se iria deliberar sobre a cessão da quota indivisa dos herdeiros da falecida sócia, HH, realizada por escritura pública de 19 de Dezembro de 2002, conforme carta e cópia entregue em mão própria por aquele, no dia 6 de Janeiro, à gerência da nossa sociedade e sobre a eventual recusa de consentimento à cessão enunciada no ponto anterior, e discussão sobre o conteúdo da proposta a apresentar àqueles sócios, nos termos previstos no art. 231º do Código das Sociedades Comerciais”, ter requerido a presença de Notário; constatada a não presença do Notário, o Autor que, antes da realização dessa assembleia-geral de 16 de Fevereiro de 2003, se assumiu perante os restantes sócios da ré como representante comum dos contitulares da quota dos autores, informou a Presidente da Mesa da AG da Ré, que estava presente em nome próprio, não como representante dos herdeiros da falecida sócia HH, o que não foi aceite pela Presidente da Mesa, que, com o acordo unânime de todos os sócios presentes ou representados, não aceitou que o Autor participasse nesta reunião em nome próprio, sendo-lhe apenas concedido o direito a estar presente, mas não de votar nem de deliberar, por se ter considerado que não era detentor de nenhuma quota em nome próprio na sociedade ré.

            A Ré deliberou, nessa AG, não consentir a cessão e amortizar a quota dos autores pelo valor de € 411.006,00.

           A sentença da primeira instância, a que foi proferida primeiramente e aqueloutra depois da anulação para que fosse submetida a prova o aditado quesito, divergiram quanto a considerar a actuação do Autor e dos AA. como incursa no instituto do abuso do direito.

           Não existe divergência quanto a qualificar a não presença de Notário, requerida atempadamente pelo 1º Autor como um vício de procedimento e não como vício de conteúdo.

           Como se pode ler no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.1.2011 – Proc. 801/06 6TYVNG.P1.S1 – Relator Conselheiro Sebastião Póvoas – in www.dgsi.pt

           “No tocante à invalidade das deliberações sociais, há que proceder ao “distinguo” entre o procedimento deliberativo – sucessão de actos, ou processo de formação, conducente a alcançar um efeito – e a deliberação em si mesma – conteúdo, ou mérito, do acto produzido pelo acto colegial.

                Ali encontram-se os vícios de procedimento que equivalem às nulidades processuais, enquanto que aqui estão os vícios de conteúdo, equiparáveis aos do mérito do acto jurídico. (cf. Dr. Pedro Maia, “Deliberações dos Sócios”, in “Estudos de Direito das Sociedades”, 186 e ss.: “No vício de procedimento o que está em causa é como se chegou a certa deliberação, seja qual for. No vício de conteúdo, aquilo que se sanciona é o que se deliberou, independentemente do modo por que se chegou a essa deliberação.”).

                As actas das reuniões sociais podem ser lavradas por notário quando a assembleia-geral assim o delibere ou a pedido de qualquer sócio – art. 63º, nº7, do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo DL. 262/86, de 2.9, vigente à data da deliberação social anulanda, não sendo, por isso, aplicável o DL.76-A/2006, de 29.3.

            O Notário solicitado para intervir não fica investido em quaisquer funções de controlo da legalidade da assembleia. Ao narrar os factos, no instrumento público, o documento passa a ter força probatória de documento autêntico, merecendo a fé pública e a confiança que lhe empresta a intervenção do Notário.

           O Código das Sociedades Comerciais, nos arts. 56º e 58º, refere-se às duas qualificações de deliberações inválidas em sentido lato, regulando no art. 58º as deliberações nulas e no art. 59 º as deliberações sociais anuláveis.

“Das deliberações sociais enquanto realidades jurídicas sobressai a sua aplicabilidade a pessoas que nelas não participaram ou, mesmo, que a elas se opuseram.

 Ora tudo isto ocorre no seio do Direito privado, onde dominam a liberdade e a igualdade e onde ninguém surge dotado de “ius imperii”.

Compreende-se, por isso, sem recorrer a maiores considerações, a necessidade de subordinar cuidadosamente as deliberações sociais à lei e aos estatutos.

Apenas mercê duma legitimação encontrada nesses níveis se pode admitir o poder vinculativo das deliberações, em particular perante todos quantos nelas não tenham participado ou se lhes tenham oposto” – Professor Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, II Volume, 2001, pág.240.

“O Código das Sociedades Comerciais, resolvendo dúvidas anteriores distinguiu claramente as deliberações nulas – artigo 56º – das anuláveis – artigo 58.°.

Entre as primeiras, avultam:

- aquelas cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberações dos sócios - artigo 56.°/1, c);

- aquelas cujo conteúdo, directa ou indirectamente, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados nem sequer por vontade unânime dos sócios – artigo 56.°/1, d).

Por seu turno, cabe referenciar, como anulável,

- a deliberação que viole disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.°, quer do contrato de sociedade - artigo 58.°/1, a).” – Menezes Cordeiro, obra citada, pág.240.

            Ao contrário do regime previsto no Código Civil, em que a regra tendencial é a de considerar a nulidade dos actos que violem a lei – art. 280º –, no Código das Sociedades Comerciais o regime-regra é mais benévolo, é o da mera anulabilidade.

Segundo o tratadista citado, tal regime deve-se à intenção de “dinamizar a vida das sociedades comerciais, que ficaria embaraçada com uma multiplicação de situações de nulidade.” – pág. 244.

        A deliberação social abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa acautelar os direitos da sociedade mas, ao invés, é estranha a essa finalidade, do ponto em que apenas almeja satisfazer o propósito do sócio ou sócios que assim, através do voto, colhem para si, ou para terceiros, vantagens que prejudicam a sociedade ou outros sócios. 

        Se com tal prática houver prejuízo para a sociedade ou outros sócios “a consequência é a anulabilidade” – Professor Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial”, Vol. IV, Sociedades Comerciais”, 1993, pág. 291.

         “No fundo e em síntese, parece-nos não ser incorrecto reconhecer, apesar das reservas que alguns colocam ao entendimento que o critério decisivo para distinguir as deliberações nulas das anuláveis é o da imperatividade e interesse de ordem pública das deliberações viciadas.

 Sempre que esteja em causa a violação de normas do contrato de sociedade ou normas legais destinadas a integrar apenas a vontade dos associados na falta de regulamentação nos estatutos, a sanção será, por conseguinte, em princípio, a mera anulabilidade” cfr. “Textos-Sociedades Comerciais – CEJ – CDOA”, pág. 128, Estudo da autoria do Dr. Joaquim Taveira da Fonseca.

            No caso em apreço, as partes não controvertem que se trata de deliberação social anulável, a que foi tomada na AG de 16.2.2003, por a não comparência de Notário atempadamente requerida pelo Autor AA se enquadrar na previsão do nº1 a) do art. 58º do Código das Sociedades Comerciais.

            Na sentença da 1ª instância, depois de larga e douta abordagem doutrinal e jurisprudencial de questões agora não colocadas no recurso de revista – em função das conclusões das alegações da recorrente –, reconhecendo-se que a não comparência do Notário implicava a violação de uma regra de procedimento geradora de anulabilidade, considerou-se que os AA. agiram com abuso do direito – art. 334º do Código Civil – quer na modalidade de venire contra factum proprium, que na modalidade de tu quoque, e, portanto, a sua pretensão de invalidade da deliberação foi paralisada.

            Fundamentou-se assim:

            “O “venire contra factum propium” é a violação drástica do princípio da confiança e ocorre, quando alguém exercita determinado direito em contradição com uma sua conduta anterior, assumida ou anunciada, em que, fundadamente, a outra parte tenha confiado, desde que objectivamente adequada a despertar noutrem a convicção fundada de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira, nela investindo, em conformidade, as suas expectativas e até o seu capital.

               …apenas em circunstâncias especiais, essa contradição integrará o «venire contra factum propium», ou seja, desde que reunidos, cumulativamente, os seguintes pressupostos, reclamados pela tutela da confiança: a situação objectiva de confiança, o investimento da confiança e a boa fé subjectiva de quem confiou.

                «.Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzidas em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito»…

                Trata-se de uma a figura que é manifestação de tutela da confiança das pessoas e que assenta num modelo de quatro proposições, válido em geral:

                «1ª – Uma situação de confiança, que pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que está nessa situação sem ter violado os deveres de cuidado que ao caso cabiam;

               «2ª – Uma justificação para essa confiança, que requer que esta se tenha alicerçado em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal;

              «3ª – Um investimento de confiança, que exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efectivo, desenvolvido qualquer actuação baseada na própria confiança, actuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis;

                «4ª – A imputação da situação de confiança, que implica a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa vai-se, em regra, onerar outra, implicando que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada.

               Já o “tu quoque” visa impedir que alguém que tenha adoptado uma conduta ilícita, tire partido dessa situação, prevalecendo-se dela, para impor à contraparte o acatamento das consequências daí resultantes.

                «A fórmula tu quoque (também tu!) exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso: ou prevalecer-se da situação daí decorrente; ou exercer a posição violada pelo próprio ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada»

               «Trata-se de um caso de violação do dever de honeste agere que é eticamente inaceitável para o Direito (turpitudo sua non allegare) e que pode, com êxito, ser contrariado pelo exceptio doli».

               

               Nesta conformidade entendeu a decisão que o 1º Autor actuou com abuso de direito.

               Desde logo na modalidade do venire, por: “Se assumir, num primeiro momento, antes da realização da assembleia …como representante comum …e, logo de seguida, aquando do início dos trabalhos de discussão da ordem dos trabalhos …ter anunciado à presidente da mesa que, afinal apenas ali estava em nome próprio, propondo-se intervir a título meramente individual…se o autor AA não queria continuar a ser representante comum dos seus contitulares, deveria ter informado a sociedade ré, com a antecedência necessária…

                Isto, se tivesse agido com a transparência e a lealdade que se lhe impunham em relação aos restantes sócios e à própria sociedade ré.

                Mas essa não era a prioridade do autor AA.

               Como resultou da discussão e da causa, concretamente das respostas aos nºs 4 e 5 da base instrutória, esta foi a forma que encontrou para se colocar, de forma livre e deliberada, em posição de não poder intervir na deliberação …ter um pretexto para vir impugnar judicialmente as deliberações que viessem a ser tomadas, concretamente, para vir invocar a falta de convocatória dos restantes autores e, também, o pretensamente ilegal impedimento que a ré lhe impôs de participar activamente na assembleia-geral de 16 de Fevereiro de 2003, que, foi, aliás, o que o autor AA veio fazer na presente acção, assim como todos os restantes autores… o que também não pode é querer, faltando à verdade e omitindo um facto essencial, concretamente, o de que renunciou à sua qualidade de representante comum, no início da assembleia, ver anulada uma deliberação, com fundamento em ter sido impedido de nela participar e de a votar, quando foi ele próprio quem se colocou nessa situação…”.

            Quanto à modalidade do tu quoque:

           “A cessão de quotas, foi celebrada em violação do contrato de constituição desta sociedade, mormente da sua cláusula quinta que prevê o direito de preferência dos sócios, em caso de transmissão de quotas a terceiros…

               Apresentaram-lhes os factos como já consumados, com a entrega de uma carta, em 6 de Janeiro de 2003, na qual os autores deram conhecimento à ré da escritura referida em D), com uma cópia do texto que ficou a constar dessa escritura.

                E com esta atitude, adoptaram um comportamento ilícito, quer porque é contrário ao disposto no art. 228º nº 2 do Código das Sociedades Comerciais, quer porque violador das cláusulas de preferência estabelecidas no contrato de constituição da sociedade ré…

              E foi prevalecendo-se deste comportamento contrário à lei e ao pacto social que os autores querem agora ver anulada uma deliberação social tomada pela ré, no exercício do direito de recusa do consentimento que o mesmo art. 228º do Código das Sociedades Comerciais lhe confere, apenas porque a acta não foi redigida por um notário, quando a única consequência realmente relevante, emergente desta omissão, é a de que a acta, em vez de ter a força probatória plena de documento autêntico, tem a força probatória própria de um documento particular e, de resto, a veracidade dos factos que nela estão relatados nem sequer foi posta em crise, nesta acção, ao passo que, a consequência da anulação das deliberações tomadas pela ré, em 16 de Fevereiro de 2003, implicaria a produção plena dos efeitos daquele aumento de capital social, ou seja, a sua oponibilidade à ré.

               Se os autores fossem bem sucedidos, nos seus pedidos, alcançariam o seu objectivo de verem declarada a eficácia da cessão de quotas, ou aumento de capital social realizado, através da escritura pública de 19 de Dezembro de 2002, o que implicaria que sócia da ré passaria a ser a GG, …, S.A., quando este negócio jurídico está sujeito a consentimento da ré que, no caso, até foi rejeitado….”

           Já o Acórdão recorrido não considerou que a conduta do 1º Autor fosse passível de enquadramento no instituto do abuso do direito, argumentando:

           “Mas, se, em tese e em teoria, os pressupostos das referidas figuras consubstanciadoras do abuso de direito se mostram curialmente fixados, já não se pode acompanhar, sdr., o entendimento de que eles têm aplicação no caso concreto.

               Na verdade entre tais pressupostos e os factos de um caso concreto tem de existir uma relação de dependência, de causa-efeito, ou, numa outra perspetiva, de correspondência e adequação.

                Ora bem vistas as coisas tal relação não se verifica in casu.

                A atitude algo ziguezagueante e, até, como supra se expendeu, meandrosa, do Amado, bem como o não cumprimento do dever de os autores darem preferência à ré na cessão da quota, nada, ou pouco – insuficientemente pouco – têm a ver com sua pretensão de ver a assembleia assistida e a respetiva ata redigida por notário.

               Em função da dicotomia supra acertadamente invocada, qual seja, a diferenciação/autonomização entre vícios vícios de procedimento na convocação da assembleia e os vícios de conteúdo das deliberações nela tomada, é evidente que o vício presente quadra na primeira categoria.

               E, como bem invocam os recorrentes, tal vício coloca-se a montante de outros que possam ter-se verificado no âmbito da assembleia.

                Nesta conformidade os mesmos não se confundem nem se interpenetram.

                São autónomos e valem por si, de tal sorte que a verificação de um vício procedimental acarreta as respetivas consequências legais as quais não podem ser obstaculizadas pelo confronto da relevância e consequências das deliberações tomadas com uma outra e qualquer, diversa e autónoma, atuação do insurgente que invoca o vício formal/processual.

               Não tem, assim cabimento a argumentação de que com tal arguição os autores pretendem a anulação das deliberações e que as consequências desta anulação são muito superiores às que decorrem da não presença do notário.

               Se pretendem não poderiam pretender – sendo certo que de jure novit curia – porque, efetivamente, com este fundamento da ilegal não presença do notário, e como acertadamente se menciona na decisão, apenas pode decorrer que a realização da assembleia, ela própria, qua tale, independentemente da (i)legalidade das deliberações nela tomadas, seja anulada – art. 58º nº 1 al. a) do Código das Sociedades Comerciais.

               E não que as deliberações nela tomadas sejam declaradas nulas ou anuladas.

               Certo é que aquela consequência acarreta que estas deliberações, mais do que declaradas nulas  ou anuladas, sejam inexistentes, porque inconcretizada se deve ter a assembleia que as pode produzir e a respetiva ata que as pode comprovar.

               Mas tal é uma decorrência inelutável do primeiro e primitivo vício que não pode ser chamada à colação para se concluir pela existência do abuso de direito, pois que, como se viu, inexiste entre os factos aduzidos para alicerçar este abuso e a prévia e pertinente atuação do autor qualquer relação, ou, pelo menos, relação com adequação e magnitude bastante, para se poder concluir por tal abuso.

                Ademais a pretensão dos autores e a sua relevância não pode ser apoucada, porque minudente.

                Na verdade se o autor assim o pretendeu é porque não tinha confiança no modo como a assembleia podia ser conduzida e na fidedignidade da ata relativamente ao que nela se pudesse passar e deliberar. Assistia-lhe, pois, o direito de os trabalhos da assembleia fossem tutelados e fiscalizados por entidade idónea.

               Nesta conformidade a sua pretensão é legítima e tem magnitude.

                Pois que se atém à busca de uma maior fidedignidade dos atos da assembleia e, assim, à acrescida proteção dos direitos dos sócios bem como à sua mais fácil adstrição aos possíveis deveres, atentas as deliberações tomadas e a lei aplicável aos assuntos respeitantes ao teor das mesmas.

               E não se compreendendo a postura da ré em não diligenciar pela presença do notário, com a justificação e o entendimento – ilegais, como bem se diz na sentença – de que a ordem de trabalhos não obrigava a tal formalidade e não estavam em causa quaisquer direitos essenciais de quem quer que seja, que possam ser postos em causa com a ausência de tal entidade.

                Se ela estava de boa fé, e até porque as despesas notariais sempre seriam suportadas pelo requerente, não se alcança porque motivo não anuiu ao impetrado.

               E nem relevando, determinantemente, o facto de se ter provado que por se dizer em nome individual, o autor AA colocou-se numa posição de impedimento da sua participação na assembleia-geral.

               Na verdade, tudo visto e sagazmente interpretado, não custa acreditar que tal atitude e pretensão do autor tenha tido na sua génese e com ela tivesse gizado o fito de, por precisamente não ter confiança na legalidade e lealdade do que ali se viesse a deliberar e a consignar, pretender adiar a assembleia.

               O que – até certo ponto e porque, como se viu, a não presença do notário consubstanciou uma prévia atitude ilegal da ré –, se não justifica a sua atitude, pelo menos concede-lhe um elevado grau de compreensão e condescendência”.

A figura do abuso do direito, regulada no art. 334º do Código Civil, tem largo campo de aplicação no direito societário.

“...Não basta, pois, o ter-se determinado o sócio, por motivos extra-sociais; nem releva, só por si, o prejuízo da sociedade ou dos outros sócios.

Mas estas duas circunstâncias conjugadas definem o abuso do direito de voto.

Esta solução é aceite, por todas as doutrinas que, por diferentes vias, procuram estabelecer um limite ao poder da maioria, nos termos referidos” – Professor Ferrer Correia, in “Lições”, pág.364.

Para o Professor Vaz Serra – “O abuso do direito em deliberações sociais verifica-se, quando a deliberação, em vez de prosseguir, um fim social, isto é, de ser tomada no interesse da sociedade, o é em proveito exclusivo dos sócios que a aprovam ou de terceiros, conferindo vantagens especiais a eles ou aos terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios”.

 [...] O direito de voto é atribuído aos sócios para a realização do fim ou objecto social, pelo que se for exercido, não para esse fim, ou objecto, mas para a obtenção de vantagens especiais dos votantes ou de terceiros, em prejuízo da sociedade ou dos outros sócios, existe abuso do direito – art. 334º do Código Civil – e, portanto, violação da lei, sendo anulável a deliberação” – cfr. RLJ, Ano 107, págs. 5 e segs.

O instituto de abuso do direito – art. 334º do Código Civil – no contexto do direito societário é frequentemente invocado como instrumento morigerador de comportamentos egoístas quando se exercem direitos que a coberto da tutela de direitos sociais, próprios ou não, mais não visam, ou visam disfuncionalmente obter vantagens especiais para o exercente que assim faz sobrelevar o seu interesse pessoal sacrificando interesses da sociedade.

O instituto é aplicável a direitos subjectivos e posições jurídicas não deixando de ser aplicável no direito das sociedades.

No art. 58º b) do Código das Sociedades Comerciais são consideradas anuláveis as deliberações que:

 “Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos”.

O preceito sanciona o voto exercido com fins alheios ao interesse social visando vantagens especiais para o votante ou terceiro, em prejuízo do ente societário ou outros sócios ou ambos.

No “Código das Sociedades Comerciais Anotado-IDET”, Vol. I, em nota ao citado normativo, na pág. 681, pode ler-se[3]:

 “a) O Código das Sociedades Comerciais (vinte anos depois do CCiv.) contém disciplina pormenorizada das deliberações inválidas, incluindo as ofensivas (pelo conteúdo) aos bons costumes e as abusivas. É, pois, pouco curial continuar a recorrer, a propósito das deliberações abusivas, ao art. 334º do CCiv.” - preceito sincrético e largamente indefinido inclusive quanto às consequências jurídicas. b) Não é correcto dizer-se (à sombra do art. 334º do CCiv.) que deliberações abusivas são também as de conteúdo ofensivo dos bons costumes; além do mais, a destrinça está hoje marcada no Código das Sociedades Comerciais: arts. 56º, 1, d), e 58º, 1, b).

 Pode aceitar-se a qualificação das deliberações com fim contrário aos bons costumes como abusivas.

 Evitemos, porém, os equívocos…”.  

                Já o Professor Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado” – 2009 – pág. 228[4], em comentário ao citado preceito e sobre o “abuso do direito” ensina:

            “O exercício do voto pode, como em qualquer situação jurídica, incorrer em abuso do direito (334.°do Código Civil). Para tanto, ele deverá defrontar o núcleo axiológico fundamental do sistema, expresso pela locução boa fé e concretizado através de dois princípios mediantes: (a) a tutela da confiança legítima; (b) a primazia da materialidade subjacente.

             O abuso do direito toma corpo em grupos típicos de situações abusivas: venire contra factum proprium, inalegabilidades formais, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício.

           Todos estão profundamente radicados na jurisprudência dos últimos vinte anos.

            As deliberações sociais podem, por essa via, incorrer em abuso, violando, através de algumas destas figuras (que não são taxativas), o 334.° do Código Civil. Quando isso suceda, segue-se o regime da nulidade, por violação de um princípio injuntivo – 56.°/l, d).

           O 58.°/l, b), não pretende, objectivamente, ocupar o lugar do 334.° do Código Civil; nem faria sentido que, violado este preceito, se seguisse a mera anulabilidade”.

           No caso em apreço, não pode afirmar-se, de modo peremptório, que está em causa o carácter abusivo do direito de voto.

           A particularidade do caso não o subsume ao uso abusivo do voto, tal como se entende no art. 58º b) do Código das Sociedades Comerciais; do que se trata é do direito a votar no quadro factual e jurídico em que deveria intervir o Autor.

 

            Com efeito, num momento inicial o 1º Autor comunicou à Ré que era o representante dos contitulares da quota indivisa da falecida HH, e nessa veste, seria expectável para a Ré que se apresentasse na AG de 16.2.2003 para intervir naquela qualidade.

            O facto de, aí chegado, ter recusado intervir como representante dos contitulares da quota indivisa, teve uma causa objectiva que, razoavelmente, poderia levar a um volte-face; na verdade só no dia da AG aquele Autor, e os demais Autores, puderam saber que não estaria presente na AG, um Notário, direito que exercera atempadamente.

            Não fora esse facto novo – a ausência de Notário – para lavrar a acta – seria de esperar que o Autor interviesse como representante dos contitulares da quota. Seria atentar contra a confiança incutida na Ré que, sem qualquer motivo relevante, tivesse declinado essa qualidade. Mas não foi o que sucedeu.

            O abuso do direito, sobretudo na modalidade de venire contra factum proprium, tem de evidenciar uma conduta reprovada pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito, tornando patente um comportamento que trai a confiança incutida por uma conduta anterior, que outra ulterior em contradição com aquela torna censurável e que, clamorosamente, desvirtua a funcionalidade do direito.

         Se entre o facto que desencadeou a confiança e aquele que a desmente intercedeu um facto juridicamente relevante que ao indutor da confiança não pode ser imputado e que afecta a sua posição jurídica e ou os seus interesses legítimos, não se pode afirmar que a conduta cai na alçada sancionatória ou punitiva do instituto.

           De notar que, no próprio dia da AG da Ré, a Presidente da Mesa da Assembleia-Geral informou o 1º Autor que não estava presente o Notário, cuja intervenção este pedira, tentando persuadi-lo a prescindir desse direito e a intervir, ainda assim, como representante dos contitulares, o que não foi aceite.

           Tendo-se procedido à AG a deliberação tomada, tendo na origem e a montante um vício de procedimento que afecta o conteúdo, enferma de anulabilidade.

            Nesta perspectiva o Acórdão recorrido tendo considerado que o 1º Autor não agiu com abuso do direito, não merece censura.

           Finalmente, importa afirmar que, não sendo de considerar censurável a conduta do(s) Autor(es), não se vislumbra que possam ser condenados como litigantes de má fé, pese embora o facto de lhes ser reconhecida razão isso  não exclua a aplicação do instituto, pode ser condenado como litigante de má fé a parte que triunfa na acção.     

A condenação de pleiteante judicial como litigante de má fé tem um forte cariz punitivo do seu comportamento processual, sancionando uma actuação processual, eivada de dolo ou de negligência grave, ficando essa actuação incursa na previsão do art. 542º do NCódigo de Processo Civil.

Este normativo estatui:

“1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

3 – Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.”

As partes em juízo, não obstante a complexidade da controvérsia e a intensidade que colocam na defesa de posições próprias, estão sujeitas aos deveres de cooperação – art. 7º; boa fé processual – art. 8º; e recíproca correcção – art. 9º – na sua relação adversarial e em relação ao Tribunal, já que a lide visa a obtenção de decisão conforme à Verdade e ao Direito, sob pena da protecção jurídica que reclamam não ser alcançada, com desprestígio para si mesmas, para a Justiça e para os Tribunais.

Daí que o legislador, no art. 7º do Código de Processo Civil, imponha aos magistrados, partes e mandatários “o dever de cooperarem com vista à justa composição do litígio”.

O art. 8º do citado diploma – dever de boa fé processual – reafirma tal princípio ao aludir ao dever de actuação de boa-fé inerente ao dever de cooperação.

 

Uma das condutas em que se exprime a litigância de má-fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando intencionalmente um objectivo censurável. Também actua de má-fé, a parte que litiga com propósitos dilatórios, obstando pela sua conduta temerária, que o Tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo de realização de uma justiça pronta, que decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio.

 Quando assim procede o pleiteante litiga com má-fé material e instrumental, não só porque sabe que não lhe assiste o direito que ajuizou como faz deliberadamente mau uso dos meios processuais.

 

Como ensina o Conselheiro Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. BB, 3ª Edição – 2000 – pág. 221/222 – perspectiva cuja actualidade é patente:

            “A má fé processual tinha, entre nós, como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse.

A reforma processual de 95/96 mudou esse estado de coisas, considerando reveladora da má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave.

 A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.° e 266º-A.

Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé.

A doutrina tem classificado a má fé de que trata o preceito em duas variantes: a má fé material e a má fé instrumental, abrangendo a primeira os casos das alíneas a) e b) do nº2, e a segunda, os das alíneas c) e d) do mesmo número”.

A litigância de má-fé exige a consciência, de quem pleiteia de certa forma, sabe que não tem razão.

A defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, todavia, se não forem observados, por negligência ou culpa grave, os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé patenteia-se litigância de má fé.

            Se é certo que o direito de recorrer aos Tribunais para aceder à Justiça constitui um direito fundamental – art. 20º da Constituição da República – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do citado normativo do Código de Processo Civil.

   

Não se nos afigura que os AA., mormente o Autor AA, tivessem litigado com má fé, seja na vertente de actuação negligente, ou na vertente de culpa grave.

Para que assim se considerasse ter-se-ia que concluir que foram violados os deveres processuais e substantivos incompatíveis com uma proba actuação em juízo. É certo que as partes deram aos factos e ao enquadramento jurídico deles, interpretação e consequências jurídicas díspares: não é este, sem mais, o critério relevante para qualificar a actuação como litigância de má fé.

Esta pressupõe uma actuação censurável, e/ou indesculpável, querida pela parte que desconsidera aqueles deveres. No caso em apreço, os AA. não infringiram esses deveres de forma intencional, ou assumida com grosseira desconsideração.

            Pelo quanto dissemos o Acórdão não merece censura.

            Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil 

           

            Decisão:

            Nega-se a revista.

            Custas pela Ré, neste Supremo Tribunal de Justiça e nas Instâncias.

                 

     Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Maio de 2015

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

         

_________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] A numeração não consta das decisões das Instâncias. Foi introduzida na apreciação do recurso de Revista, por mera simplificação. 
[3] Suprimimos as notas de rodapé.
[4] Suprimimos as notas de rodapé