Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
39/16.4TRGMR.S2
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: VINÍCIO RIBEIRO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CASO JULGADO
MAUS TRATOS
TIPICIDADE
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 10/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
Doutrina:
- Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p. 332, 511 e 512;
- André Lamas Leite, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66 ; Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Coimbra Editora, Coimbra, 2014 ; REV, Julgar, Ano 12 (Especial), p. 45;
- Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110;
- Carlos Casimiro e Maria Raquel Mota, O crime de violência doméstica: a al. b) do nº 1 do art. 152° do Código Penal, Revista do Ministério Público, nº 122 - abril/ junho 2010, p. 133-175;
- Catarina Fernandes, book do CEJ, Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, p. 84-106 ; O crime de Violência Doméstica, in Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar, Centro de Estudos Judiciários, p. 94;
- Catarina Sá Gomes, O Crime de Maus Tratos Físicos e Psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, AAFDL, 2004, p. 59;
- Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Caso Julgado e Poderes de Cognição do ...”, Almedina, 1983, p. 302;
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, p. 215;
- J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, p. 497 e 498 ; 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 194;
- Jorge dos Reis Bravo, A actuação do Ministério Público no âmbito da Violência doméstica, Revista do Ministério Público, nº 102 - abril/junho 2005, p. 45 a 77, p. 66;
- José Francisco Moreira das Neves, Violência Doméstica - Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62;
- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial – com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 2014, p. 615-623;
- Maria Elisabete Ferreira, Da intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Coimbra: Almedina, 2005, p. 102;
- Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o crime de maus tratos conjugais, in Do crime de Maus Tratos, Cadernos Hipátia - nº 1, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres - CIDM, Lisboa, 2001, p. 19 e 20;
- Nuno Brandão, A tutela especial reforçada da violência doméstica, Rev. Julgar, nº. 12, - especial -, 2010, p. 09-24;
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404;
- Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre 2008 - Número Especial (Textos das Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal);
- Ramón Garcia Albero, Non Bis in Idem Material y Concurso de Leyes Penales, p. 24 e ss.;
- Ricardo Jorge Bragança de Matos, Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?, Revista do Ministério Público, nº 107- julho/setembro 2006, p. 89 a 120, p. 96;
- Sandra Inês Feitor, Análise crítica do crime de violência doméstica, 2012, in www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf;
- Teresa Magalhães, Violência e Abuso, Respostas Simples para Questões Complexas;
- Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, edição da A.A.F.D.L., 1980, 1º volume, p. 698;
- Tereza Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto, Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, 2001, in https://docentes.fd.unl.pt, p. 25 e 26.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 152.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA, N.º 4/2002, IN DR I SÉRIE-A, DE 27-06-2002, P. 5057 E SS.;
- DE 15-03-2006, PROCESSO N.º 05P4403;
- DE 07-01-2016, PROCESSO N.º 503/10.9PCOER-A.S1;
- DE 07-01-2016, PROCESSO N.º 204/13.6YUSTR.L1-A.S1;
- DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 252/14.9JACBR.S1;
- DE 23-06-2016, PROCESSOS N.º 135/04.0IDAVR-E.S1;
- DE 22-06-2017, PROCESSO N.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1;
- DE 28-02-2018, PROCESSO N.º 129/16.3GILRS.L1-B.S1;
- DE 06-06-2018, PROCESSO N.º 1/15.4GAMTS.S1;
- DE 13-09-2018, PROCESSO N.º 372/17.8PBLRS.L1.S1;
- DE 06-11-2018, PROCESSO N.º 1/16.7T8ESP.P1.S1;
- DE 20-02-2019, PROCESSO N.º 25/17.7GEEVR.S1;
- DE 20-02-2019, PROCESSO N.º 25/17.7GEEVR.S1;
- DE 26-02-2019, PROCESSO N.º 1684/14.8T8VCT.G1.S2;
- DE 28-03-2019, PROCESSO N.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1;
- DE 30-04-2019, PROCESSO N.º 4435/18.4T8MAI.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 23-04-2015, PROCESSO N.º 469/13.3PBAMD.L1-9, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 21-12-2005, IN CJTR, ANO 2005, TOMO V, P. 55;
- DE 12-04-2018, PROCESSO N.º 3/17.6GCIDN.C1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

- DE 08-01-2013, PROCESSO N.º 113/10.0TAVV.E1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-01-2015, PROCESSO N.º 849/10.6GDPTM.E1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-09-2017, PROCESSO N.º 518/14.8PCSTB.E1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-01-2018, SUMARIO, IN CJTR, ANO 2018, TOMO I, P. 317.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 10-07-2014, PROCESSO N.º 591/11.0PBGMR, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 27-02-2008, PROCESSOS N.º 0810050;
- DE 06-02-2013, PROCESSO N.º 2167/10.0PAVNG.P1;
- DE 10-07-2014, PROCESSO N.º 413/11.2GBAMT.P1;
- DE 09-05-2018, PROCESSO N.º 40/17.0GCOAZ.P1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-06-2018, PROCESSOS N.º 189/17.0GCOVR.P1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 303/2005;
- ACÓRDÃO N.º 319/2012;
- ACÓRDÃO N.º 246/2017.
Sumário :
I - Nos presentes autos do Tribunal da Relação de ..., por acórdão de 17-09-2018, foi o arguido X, condenado como autor material de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º. 1, al. b), do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses. Mais foi condenado o arguido/demandado a pagar à demandante M. a quantia de 7.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vincendos a partir da presente e até integral pagamento.
II - Inconformado, recorreu o arguido para este STJ, invocando os seguintes fundamentos: violação do caso julgado e do princípio ne bis in idem; falta de fundamentação; insuficiência para a decisão da matéria de facto; erro notório; erro de julgamento; não integração dos factos provados no tipo de crime de violência doméstica.
III - Começa-se pela apreciação da questão do caso julgado e do princípio ne bis in idem, não só por vir enunciada em primeiro lugar, mas também pela circunstância do seu conhecimento poder, eventualmente, prejudicar quer a decisão das questões subsequentes do presente recurso, quer do recurso interlocutório. Trata-se de uma questão complexa, difícil, de linha de fronteira, características bem demonstradas pela abundante tramitação processual que povoa ambos os autos (proc. 563/14 e o presente proc. 39/16).
IV - O princípio ne bis in idem pretende evitar que a mesma questão seja apreciada novamente, que um arguido seja julgado duas vezes pelo mesmo crime. A violação de tal princípio pressupõe que estejamos perante o mesmo sujeito (o arguido), os mesmos factos e o mesmo crime.
V - Conforme este STJ já considerou no ac. de 15-3-2006, proc. 05P4403, Rel. Oliveira Mendes, «O objecto do processo, como enfaticamente se consignou, é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem».
VI - Estão em causa as mensagens que o arguido enviou do seu telemóvel à assistente, dias antes da separação definitiva, que, exceptuando duas, já constavam, e foram dadas como provadas, no proc. 563/14, que correu contra o arguido e no qual o mesmo foi condenado por crime de falsidade de testemunho. Por despacho proferido no cit. proc. 563/14, em 25-01-2016, transitado em julgado em 29-02-2016, foi liminarmente indeferido o requerimento de abertura da instrução, no qual a requerente suscitava a questão também da verificação do crime de violência doméstica, por inadmissibilidade da instrução por falta de objeto. A assistente não impugnou tal despacho.
VII - A referida questão da violência doméstica deu depois origem a um outro processo - os presentes autos (proc. 39/16) -- despoletado por denúncia da assistente em 18/2/2016, que assim contornou a projecção e efeitos do caso julgado formal do proc. 563/14.
VIII - O pedaço de vida que constitui o objecto do presente processo já constava da acusação do proc. 563/14. Não obstante a extrema delicadeza da questão, já anteriormente salientada, afigura-se-nos, porém, que não poderá falar-se neste caso, verdadeiramente, de uma violação do princípio ne bis in idem. É certo, que os factos pelos quais o arguido foi condenado nestes autos (proc. 39/16) já constavam da acusação do processo 563/14 e foram dados como provados no acórdão condenatório no mesmo proferido. Todavia, para que os mesmos pudessem configurar a violação daquele princípio, teriam que se relacionar directamente com o objecto do processo (o pedaço de vida) 563/14, no qual o arguido foi condenado por falsidade de testemunho. Ora, os factos pelos quais o arguido foi condenado nestes autos por crime de violência doméstica constavam do cit. processo 563/14, mas foram ali alegados, e dados como provados, a título meramente circunstancial. Improcede assim esta questão do recurso
IX - O crime de violência doméstica é: - crime de relação, dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação; -um crime em que o bem jurídico protegido é plural e complexo; -e que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de maus tratos (físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação). Nem toda a ofensa à integridade física, por exemplo, ocorrida no seio de uma relação, integrará, necessária e forçosamente, um crime de violência doméstica, que o legislador tipificou em norma própria. Em primeiro lugar, haverá que ponderar se é lesado o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, e, em segundo lugar, se a conduta integra a noção de maus tratos. Os maus tratos, como se espelha na jurisprudência do STJ e da doutrina, hão-de assumir-se, ou traduzir-se, em lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas.
X - O arguido e a assistente viveram em união de facto entre, pelo menos, Setembro de 2007 e Julho de 2011. E nesse período tiveram diversas separações e reconciliações, de que se dá conta ao longo da matéria de facto. Pelo menos quatro. Como vimos supra, está em causa um eventual crime de violência doméstica (art. 152., n.º 1, al. b), do CP) cometido por meio de envio de mensagens electrónicas. Tais mensagens electrónicas, ocorridas entre 6-7-2011 e 16-8-2011, tiveram lugar, na fase da separação definitiva do casal e imediatamente após a consumação da mesma. A matéria fáctica provada evidencia também quatro momentos temporais distintos (Setembro e Novembro de 2006; Janeiro de 2009; Março e Abril de 2010 e Abril de 2011) onde constam, além do mais, diversas mensagens e emails enviados pela assistente ao arguido, bem reveladores da linguagem utilizada pelo casal. Este tipo de tratamento começou logo na fase inicial de namoro.
XI - O que ressalta da matéria de facto é que a relação entre o arguido e a assistente era pautada por troca de mails, remetidos por um e por outro, similares aos mails do arguido objecto dos presentes autos. O tipo de linguagem era recíproco. Como vimos, o conceito de maus tratos, essencial no crime de violência doméstica, tem na sua base lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas. Dado o tipo de linguagem utilizada pelo casal, e, no caso específico, pela própria assistente, bem expressa nas mensagens, , enviadas pela mesma ao arguido, não estamos perante lesões que integrem a figura jurídica dos maus tratos, não se verificando, por isso, o crime de violência doméstica. Da matéria fáctica verifica-se, igualmente, que a assistente continuou a manter contactos com o arguido após a separação definitiva (ocorrida em Julho de 2011) socorrendo-se do mesmo, e aproveitando os seus conhecimentos jurídicos, no âmbito de diversos processos judiciais identificados nos n.º 54 a 61 da referida matéria (de Julho de 2011 a Maio de 2013). Absolve-se o arguido da parte criminal.
XII - Quanto ao pedido de indemnização civil. Não resultam dos autos lesões ou danos provocados à assistente pela conduta do demandado. Vai o arguido absolvido, também, da parte cível.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            I. RELATÓRIO

            1. Nos presentes autos (Proc. 39/16.4TRGMR) do Tribunal da Relação de ..., por acórdão de 17/9/2018 (fls. 1488-1549, do 5.º vol.), foi o arguido AA, ..., ..., ...... condenado nos seguintes termos (transcrição):

«Pelo exposto e em conformidade decide este Tribunal Coletivo, julgar procedente a pronuncia por provada e parcialmente procedente o pedido cível formulado pela demandante BB, por parcialmente provado e, em consequência:

a) Condenar o arguido AA como autor material de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

             b) Suspender a execução a pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses;

c) Condenar o arguido/demandados AA a pagar à demandante BB a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vincendos a partir da presente e até integral pagamento;

             d) Mais condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 (quatro) UC´s (cf. arts. 374.º n.º 4, 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, bem como dos arts. 3.º e 8.º n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais);

e) Custas cíveis pelo demandado e pela demandante, na proporção do respetivo decaimento (cf. artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C., aplicável ex vi do artº. 523º do C.P.P.).»


 

Recurso do arguido

            2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1568-1697, do 5.º vol.) nos seguintes moldes (conclusões):

«CONCLUSÕES:

I) Tendo sido rejeitada, por inadmissibilidade legal, a instrução no âmbito do Processo nº 563/14.3TABRG, com fundamento em falta/insuficiência de inquérito, pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º do C.P., com base nas mesmas mensagens que fundamentam o douto despacho de pronúncia e o aresto recorrendo, aquela decisão de rejeição está coberta pela força do caso julgado (rebus sic stantibus), não podendo ser discutido nestes autos o relevo criminal daquelas mesmas mensagens, para efeitos de tipicização das mesmos no (mesmo) crime de violência doméstica;

II) Tendo essas mensagens sido trazidas pela Assistente ao conhecimento do Digno titular daquela outra ação penal, no âmbito da queixa deduzida naqueloutros autos, e de tal ordem que a elas este até aludiu na acusação pública proferida (no Processo nº 563/14.3TABRG, deste Venerando Tribunal), sendo o crime de violência doméstica um crime de natureza pública e não tendo o M.P, ao que parece, atribuído relevo criminal às mesmas, para efeitos da sua tipicização no crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º do C.P., como bem se decidiu na douta decisão de rejeição da instrução ali requerida, a eventual nulidade por insuficiência de inquérito, nos termos do art.120º, nº2, al. d) e 120º, nº3, al. c), do CPP, deveria ter sido oportunamente suscitada perante o respectivo titular (ou suscitada a respectiva intervenção hierárquica), por forma a despoletar um despacho de acusação/arquivamento (que pudesse ser sindicado em sede de instrução), o que não sucedeu;

III) É certo que, o despacho de rejeição da instrução crime não tem a natureza de decisão definitiva, pois o processo pode ser reaberto a todo o tempo (isto é, até ao decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal); contudo, tal só pode suceder se, entretanto, surgirem novos elementos de prova, nos termos do art. 279.º do CPP;

IV) No caso dos presentes autos nº 39/16.4TRGMR, a queixa que deu origem aos presentes autos não resultou, de todo, da alegação da existência de novos meios de prova, nos termos do art. 279º do CPP ; ao invés, trata-se de um inquérito autónomo que teve por base os mesmos factos e os mesmos meios de prova que já foram noticiados no Inquérito nº 563/14.3TABRG, aos quais não foi atribuído relevo criminal, tendo sido rejeitada a instrução, por inadmissibilidade legal, decisão coberta pela força do caso julgado rebus sic stantibus;

V) Nessa medida, a sujeição do arguido a julgamento com base nesses mesmos factos, redunda na violação do princípio constitucional “ne bis in idem”, devendo, por isso, o arguido ser absolvido da instância criminal;

VI) A não se entender assim, padece de inconstitucionalidade o segmento decisório que concluiu pela improcedência da exceção de caso julgado e pela inexistência de violação do princípio ne bis in idem, porque aplicado na vertente normativa segundo a qual não há lugar à violação do art. 29º/5 da CRP e art. 4º/1 do Protocolo nº7, da CEDH quando, depois do M.P., no âmbito de um crime de natureza pública, não atribuir relevo criminal a factos que tenham sido levados ao seu conhecimento (apesar de ter deduzido acusação onde referiu esses factos), não tenha sido arguida a insuficiência de inquérito perante o respectivo titular, tenha sido rejeitada a instrução, por inadmissibilidade legal e venha a ser instaurado um processo autónomo com base nesses mesmos factos, no âmbito do qual o arguido foi julgado e condenado;

VII) Compulsada a motivação exarada pelo Tribunal recorrido (supostamente) a propósito do ponto décimo da matéria de facto provada, nada, rigorosamente nada, se retira quanto aos fundamentos para que o Venerando Tribunal a quo concluísse o que concluiu quanto aos motivos que levaram o Arguido a prestar um depoimento pretensamente falso, como foi considerado na sentença condenatória, já transitada em julgado (proferida nos autos 563/14.3TABRG);

VIII) Nessa parte (ponto 10º dos factos provados), existe falta de fundamentação, determinante da nulidade do acórdão;

IX) Sustentou o arguido na sua contestação (artigos 195º a 204º) que as mensagens que criminalmente se lhe censuram, como instrumento de um putativo crime de violência doméstica, tinham um contexto e interligavam-se com outras, estas originadas na Assistente, de igual ou superior carga depreciativa, clamando pela valoração global do conjunto dessas comunicações (para poder ser esclarecido e coerente o ...o, de censura ou de não censura, a formular no âmbito do imputado crime);

X) Ainda em sede de contestação, o arguido, que sustentou que atento o lapso de tempo decorrido – mais de quatro anos até à queixa crime –, não tivera o cuidado de preservar nem telemóveis nem cartões de acesso ao serviço telefónico móvel terrestre, requereu, sob a alínea E), que a assistente fosse notificada para proceder ao depósito, na secção do Venerando Tribunal da Relação de ..., dos aparelhos de telemóvel, melhor identificados nos “certificados de constatação de facto” de folhas 87 a 90 e 161 a 177 dos autos (que a assistente, por isso, preservara), municiados dos cartões de acesso ao serviço telefónico, com os números ali também referidos, tudo para os fins melhor identificados nos pontos 200º e 201º desse articulado (seja, para demonstrar o facto vertido na conclusão IX);

XI) Por despacho lavrado sob termo de conclusão datado de 21/05/2018, o Tribunal decidiu nos seguintes termos: “Quanto à requerida notificação da Assistente para proceder ao depósito na seção deste Tribunal de ..., dos aparelhos de telemóvel com os cartões de acesso ao serviço telefónico, por idêntica ordem de razões às aduzidas pelo arguido /Requerente, no ponto 197º da contestação, para não ter conservado os SMS que alegadamente lhe terão sido enviados pela Assistente, não é de admitir, nem sendo de exigir, que a Assistente os tenha conservado/mantido, pelo que se indefere o requerido”;

XII) Implicitamente, o Tribunal Recorrido sustentou que o meio de prova seria de obtenção impossível ou muito duvidosa, a pretexto de que não seria de admitir (nem de exigir) que a Assistente conservasse os aparelhos e os cartões de acesso ao serviço telefónico móvel terrestre, em virtude, precisamente, das razões invocadas pelo Arguido no art.º 197º da sua Contestação (e que justificavam a não detenção dessas sms`s pelo próprio);

XIII) Tal conclusão, porém, não tem qualquer respaldo ao nível de quaisquer factos que se possam considerar, desde já, provados ou assentes nesta matéria, sequer a nível indiciário, designadamente por recurso à prova por presunções (naturais ou ad homini – vide art.º 351º do CC), antes pelo contrário, já que a assistente denotou possuir e conservar esses objetos ao ponto de fazer certificar essa detenção notarialmente, conforme decorre dos “certificados de constatação de facto” de folhas 87 a 90 e 161 a 177 dos autos, não sendo equacionável que, servindo estes objetos de “corpo de delito”, se tivesse entretanto “desfeito” dos mesmos;

XIV) Não visando obter prova legalmente inadmissível, nem pretendendo socorrer-se de meio de prova que lhe esteja vedado, que seja inadequado ou que vise finalidades dilatórias, este meio de prova não se apresenta, muito menos notoriamente, como de impossível, sequer de muito duvidosa, obtenção, razões pelas quais, por ser inequivocamente relevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, o tribunal deveria, em homenagem a uma lógica da mais ampla e possível indagação da matéria de facto relevante para uma decisão justa e conscienciosa, ter admitido a produção desse meio de prova perante si suscitado (e, na sua falta, diligenciar, até oficiosamente, pela sua produção), em ordem a indagar de forma exaustiva sobre a realidade do facto que se apressou, precipitadamente, em dar como não provado, cerceando, despreocupadamente, a correspondente iniciativa do Arguido;

XV) Ao assim (não) proceder, incorreu o Tribunal Recorrido no vício (endógeno) da insuficiência para a decisão da matéria de facto, quanto à alínea o) da factualidade não provada;

XVI) No decurso da audiência de julgamento, o arguido requereu a junção aos autos de um documento que consubstancia um certificado notarial do teor de mensagens recebidas no telemóvel de marca “Nokia”, de cor preta, a si pertencente, provenientes do número ..., utilizado pela Assistente, documento não impugnado pela Recorrida;

XVII) Na factualidade provada, o Tribunal apenas transcreveu um segmento ínfimo das mensagens, não transcrevendo muitas outras que constam desse certificado e que permitem aferir do tipo de linguagem usada pela Assistente, mesmo num contexto de harmonia e franca afetividade entre ambos;

XVIII) Impunha-se, para a boa decisão da causa, que tivessem sido vertidas na factualidade provada todas as mensagens constantes do certificado ou, pelo menos, aquelas que entroncam com o que foi alegado na contestação a tal propósito, e que se vertem de folhas 34 a 40 destas alegações;

XIX) Ao assim (não) proceder, incorreu o Tribunal Recorrido no vício (endógeno) da insuficiência para a decisão da matéria de facto, quanto ao ponto 27º da factualidade provada;

XX) O Tribunal a quo deu como demonstrado o que consta do ponto 65.º dos factos provados, a saber: “Na data referida em 4 (23/01/2009), a assistente enviou ao arguido, através do seu telemóvel com o n.º ..., as mensagens com o seguinte teor:

1. às 01h35m: “Ho filho da puta monte de merda pensei k estavas muito triste. da tua mulher até tremes mas eu não te tenho medo nenhum”;

2. às 01h 20m: “Metes mesmo nojo até aos porcos preocupado com a merda de um camisas k se estao ca é pork se esqueceram. Preocupa te em resolver a reg do poder paternal. Palhaço

XXI) Com base no documento, não impugnado pela assistente, a que se refere a conclusão XVI supra, e no elenco da factualidade tida por provada, o Tribunal apenas transcreveu duas das mensagens oriundas da assistente, num período cronológico em que ambos se encontravam separados (pontos 37 e 47 dos factos provados), não transcrevendo uma mensagem, datada de 02/03/2009, das 09h18m, referente a momento temporal em que já se haviam reconciliado (ponto 47 dos factos provados), que consta desse certificado e que permite aferir do tipo de linguagem usada pela Assistente mesmo num contexto de reconciliação e de harmonia;

XXII) Impunha-se, para a boa decisão da causa, que tivesse sido vertida na factualidade provada a aludida mensagem, constante do certificado em causa e imediatamente a seguir às duas dadas por assentes no referido ponto 65 dos factos provados, que demonstra o que foi alegado na contestação, a saber: Dois de Março de 2009, às 09h18m:“Há … filho da puta.”;

XXIII) Ao assim (não) proceder, incorreu o Tribunal Recorrido no vício (endógeno) da insuficiência para a decisão da matéria de facto, quanto ao ponto 65º da factualidade provada;

XXIV) Conjugando o teor das mensagens enviadas pelo arguido que constam dos pontos 3, alíneas d), f), g) e l) e os factos dados como provados nos pontos 7º, 8º e 53º a 61º da factualidade provada, por um lado, com as regras de experiência comum e da “normalidade do acontecer”, por outro, é forçoso concluir pela inexistência de qualquer intuito de vingança por parte do arguido, aquando da prestação do depoimento em 19/09/2013, no âmbito do Processo nº 3606/12.1TBBRG;

XXV) Esse pretenso intuito é manifestamente incompatível com a prestação pelo arguido de outros depoimentos, a pedido da Assistente, já após o envio das mensagens e anteriores (esses depoimentos) ao depoimento putativamente falso (de 19/09/2013), os quais foram relevados pelos diversos tribunais na decisão da matéria de facto e cujas decisões foram favoráveis aos interesses da Assistente;

XXVI) Ao assim proceder, e sem prescindir do vício já invocado na conclusão VIII supra (falta de fundamentação), incorreu o Tribunal Recorrido no vício (endógeno) do erro notório na apreciação da prova, quanto ao ponto 10º da factualidade provada;

XXVII) Se (ainda) assim não for entendido, considera o recorrente que, foi adquirida prova bastante nos autos que impõe decisão diversa (no sentido de o dar como não provado) daquela que resulta do ponto 10º da factualidade provada, no que respeita à motivação que terá levado o arguido a prestar o suposto falso depoimento, no processo atrás identificado;

XXVIII) É esta, de facto, a única convicção racional, lógica e equilibrada que se extrai da conjugação dos documentos de folhas 274 a 277 (teor da queixa com que a assistente iniciou os autos 563/14.3TABRG), do teor das declarações prestadas, aos 31/10/2014, no Inquérito destes autos, de folhas 352 a 354, dos factos provados 48º, f) e 54º a 59º, das declarações complementares prestadas pela assistente no citado Inquérito crime, aos 06/05/2015, de folhas , do RAI deduzido pelo aqui arguido nesses autos, de folhas e dos documentos de folhas 410 a 414 (documento de que decorrem factos que, apesar de não terem sido dados por provados, ou por não provados, são considerados como assentes pelo Tribunal a quo, ao expor a motivação da decisão da matéria de facto provada relacionada com os pontos 66º a 68º), do RAI deduzido pela aqui assistente naqueles autos, aos 19/11/2015, de folhas , das declarações prestadas pela assistente no julgamento destes autos e identificadas / transcritas a folhas 51 a 62 supra destas alegações, do teor do depoimento da testemunha (equidistante e dotada de razão de ciência, como reconheceu o Tribunal) CC, filha da assistente, transcritas a folhas 63 a 65 destas alegações;

XXIX) A decisão recorrida incorre, assim, em erro de julgamento, quanto ao ponto 10º dos factos provados, matéria que deverá passar a integrar o elenco da factualidade não provada;

XXX) Foram determinantes para o Tribunal Recorrido, em ordem a convencer-se da realidade dos factos vertidos nos pontos 9, 12, 13 e 14 a 21, as declarações da própria assistente e das testemunhas, que se identificam na motivação produzida, que integram, sem exceção, o seu rol de amizades;

XXXI) Estranha o Recorrente que, o facto de a Assistente estar de relações cortadas com a sua filha mais velha CC, com a sua mãe DD, com o seu irmão, com o seu ex-marido EE, com o recorrente e com muitos dos seus amigos (com quem cortou relações só porque passaram a integral o rol de testemunhas do aqui Recorrente), tenha genericamente servido, esse facto, para descredibilizar, à partida, o depoimento dessas pessoas (na parte em que era desfavorável aos interesses e à tese da recorrida), apesar de a Assistente constituir o denominador comum de todos esses contenciosos;

XXXII) Além do mais, não se consegue aceitar, porque não se entende, que se atribua às declarações da assistente uma espécie de valor probatório reforçado tanto mais quanto é certo que, a Assistente (além de ter inequivocamente confessado que considera o Recorrente mau companheiro e mau pai) começou por negar ter remetido ao recorrente mensagens com teor idêntico ao daquelas que censura ao recorrente, sustentando expressamente que não usa esse tipo de linguagem, tendo depois sido surpreendida com a junção aos autos, pelo recorrente, de mensagens que lhe enviou e que contrariam frontalmente essa sua posição (como decorre da transcrição das suas declarações de folhas 73 a 76 supra);

XXXIII) No que respeita à testemunha FF, ..., sucedeu até que esta, a dado trecho do seu depoimento, supra transcrito a folhas 76 a 78 supra – depoimento que foi prestado na presença da Assistente, e sem que esta a tivesse então desmentido –, procurou sustentar, na esteira do que vem alegado pela Assistente no pedido cível, que o “medo” que dizia que a Assistente sentia, por causa das mensagens que recebera do Recorrente e por causa da condição de ... do seu interlocutor, era um medo atual, que ainda hoje a Assistente sentia, justificando a sua afirmação com o facto de na precisa manhã do dia em que prestou depoimento o arguido ter reencaminhado à Assistente mensagens que esta lhe havia enviado há uns anos atrás, isto segundo o que a própria Assistente lhe havia reportado na manhã do seu depoimento;

XXXIV) Uma vez que se tratava de um facto rotundamente falso (a ser verdadeiro, conceda-se, era muitíssimo grave), integrador de uma vera calúnia (destinada a prejudicá-lo, já se vê, por via da sua condenação criminal), o Recorrente deduziu imediatamente requerimento nos autos, pugnando pela produção de meio de prova suscetível de provar o sustentado (ciente de que a prova do facto jamais seria produzida, pois o mesmo não ocorrera no plano ontológico), sendo que só então, na sequência de nova tomada de declarações à assistente, esta, candidamente – como se ouve na gravação e lê na transcrição de folhas 79 a 82 supra -, afirmou que a testemunha se confundira, pois ela não lhe teria dito o que a mesma reportara mas, antes, que o seu (da assistente) mandatário lhe reencaminhara essas mensagens (seria bom de ver o que sucederia se o Recorrente não tivesse deduzido em ...o o requerimento em causa, de folhas : a calúnia passaria incólume !);

XXXV) Também no que respeita à testemunha GG, teve esta de ser confrontada com as suas próprias declarações, prestadas em Inquérito, de natureza contraditória, no que tange ao aspeto de, então, ter declarado que lera as mensagens remetidas pelo Recorrente e, em julgamento, ter declarado que não as lera, que fora a assistente quem lhe falara sobre elas (vide transcrição de folhas 83 e 84 supra);

XXXVI) Decorre do exposto que, o Tribunal funda a convicção nas declarações da assistente, pessoa que comprovadamente não disse a verdade e que demonstra vera animosidade para com ele (desde logo, sobre o teor das mensagens que ela própria remetia ao assistente, negando até que remetesse mensagens com o teor das que foram dadas por provadas), no depoimento de uma testemunha que, sendo até qualificada (é advogada), reportou facto falso (induzida em erro ou não pela assistente, fica a dúvida, nunca esclarecida) e no depoimento de outra testemunha que teve de ser confrontada com o teor das suas próprias declarações, antes contraditoriamente prestadas;

XXXVII) Acresce que, o Tribunal a quo, em ordem a fundar a sua convicção sobre o suposto intuito do arguido em intimidar a assistente, prevalecendo-se do seu status de magistrado (ponto 9º dos provados), estriba-se na mensagem referida no ponto 4º dos provados, a qual foi enviada pelo arguido num contexto cronológico (a 23/01/2009) em que havia sido esbulhado dos seus haveres pessoais e profissionais, bem como insultado pela Assistente, na presença de um agente da PSP que participou na busca domiciliária à sua habitação, onde foram efetivamente encontrados os bens em causa (que a mesma antes dizia que tinha doado a uma instituição de solidariedade, do Porto);

XXXVIII) Ainda que se conceda que a mensagem - para além de não ter qualquer aderência à realidade ontológica - não é feliz, é ininteligível, à luz das regras de experiência comum, que uma mensagem enviada em 23/01/2009 (dois anos e meio antes da rutura definitiva), e num contexto deveras específico, seja repescada pelo tribunal para atribuir ao arguido um dolo específico, no que respeita ao envio das mensagens em Julho e Agosto de 2011, consubstanciado no intuito de inquietar, perturbar, incomodar, humilhar, ofender a honra e consideração da assistente e provocar medo nesta nomeadamente por ser ... ...;

XXXIX) Surpreende-se, até, neste específico ponto, uma inadmissível, porque não explicada, dualidade de critérios, aliás ostensiva, por parte do tribunal a quo: apesar de o Tribunal ter dado como provado que durante a fase inicial de namoro a assistente enviou ao arguido mensagens nas quais o apelidou de “bandido”, “lacrau”, “gringo”, “vadio”, “safado”, “burro”, cabrão” e “vadio” – melhores descriminadas no ponto 28º - e que, já em 2010, lhe tenha enviado os e-mails ditos em 48º, referindo-se ao arguido: “ o mentiroso és tu”, “Oh cadelão o verdadeiro crime ainda está para vir…há”, “caro camarinha(…) agora junta isto ao facto de quereres estar casado, até já me mete nojo esta conversa(…), facto é que considerou que não seria de afastar a tipicidade do crime de violência doméstica “designadamente por via da reciprocidade de condutas, posto que num e noutro dos casos, estamos perante momentos divergentes, sendo grande a distância temporal que os separa” (cfr. fls. 54 do acórdão, último parágrafo). Ou seja, as mensagens insultuosas dirigidas pela Assistente ao arguido, em 2010, não serviram para afastar, por via da reciprocidade de condutas, a tipicidade do crime de violência doméstica supostamente praticado pelo arguido, consubstanciado pelo envio de mensagens em 2011; todavia, o conteúdo da mensagem enviada pelo arguido, num determinado contexto, à Assistente, em 23/01/2009, serviu – e de que maneira – para o tribunal colar ao arguido o propósito de intimidação, no que respeita ao envio de mensagens muito ulteriores (porque datadas de Julho e Agosto de 2011);

XL) Seja como for, isto é, ainda que se entendesse que o arguido atuou com o propósito de intimidar, perturbar, incomodar, humilhar, ofender a honra e consideração da Assistente e provocar medo na Assistente nomeadamente por ser ......, os autos evidenciam prova, por exuberância, de que não só não tinham aquelas essa adequação ou apetência como, sobretudo, que esses efeitos não foram provocados na recorrida;

XLI) Para tanto, basta compulsar o conjunto dos factos dados por provados e concretamente enunciados supra, nas folhas 90 a 95 destas alegações (que, por mera comodidade de exposição, aqui se têm de dar por reproduzidos, dada a sua profusão e extensão);

XLII) Além do mais, nas declarações que prestou em audiência, a Assistente não apresentou qualquer explicação razoável que, racionalmente, permita compatibilizar os comportamentos por si assumidos após a receção das mensagens (factos dados por provados e identificados a folhas 90 a 95 destas alegações) com o medo que diz ter sentido, motivado pelo envio das mensagens e pela condição de ... do seu interlocutor, a que o mesmo alude na mensagem dita em 4º dos provados (basta atentar, ainda que distraidamente, no teor da transcrição daquelas, constante de folhas 95 a 99 supra);

XLIII) A Ex.ma Assistente também não conseguiu explicar, de forma racional e escorreita, porque é que, na queixa criminal originária que apresentou contra o recorrente, em 19 de Março de 2014 (a que deu origem ao processo no âmbito do qual o Recorrente viria a ser condenado por falsas declarações) não aludiu ao teor das mensagens em causa, só o tendo feito no dia 31/10/2014 (como se alcança do teor da mesma transcrição, constante de folhas 95 a 99 supra);

XLIV) Embora tenha tentado passar a mensagem de que a inércia inicial se deveu à falta de confiança no sistema de justiça, tal justificação mostra-se totalmente incompatível com o facto de a Assistente já ter intentado, e com êxito, mais de seis processos, criminais e de outra natureza, contra o seu ex-companheiro e pai da sua filha, outros tantos contra o primeiro marido (com quem esteve casada quatro meses), ter desencadeado os processos ditos em 54º a 59º dos provados (designadamente aqueles em que arrolou o recorrente como testemunha) e, ainda e até, um processo criminal contra uma Ex.ma ...a ... (por causa de um depoimento que esta prestou no processo acima referido, com o número 563/14.3TABRG);

XLV) Questionada pelo M.P., pelo Tribunal e pela Defesa, sobre como explica que, apesar do medo que disse sentir pelo envio das mensagens, ainda assim não resistiu à indicação do arguido como testemunha nos processos ditos em 54º a 59º e porque pediu ao arguido, através da sua mandatária forense, para que o arguido analisasse e desse a sua opinião sobre a contestação que intentava produzir no Processo nº 3606/12.1TBBRG (precisamente aquele no qual foi produzido o depoimento pelo aqui arguido e que a assistente, e o Tribunal, disseram ser falso), a mesma perdeu-se em declarações impercetíveis, racionalmente falando, para não dizer verdadeiramente enigmáticas (vide transcrição constante de folhas 105 a 107);

XLVI) De útil apenas se retira a (tentativa de) justificação de que era a única testemunha, facto este falso, pois que contrariado pelo teor dos documentos de folhas 415 a 424, 1300 a 1315 e 1316 a 1356 destes autos;

XLVII) Questionada pelo M.P., pelo Tribunal e pela Defesa, sobre como explica que, apesar do medo que disse sentir pelo envio das mensagens, ainda assim, tivesse ido de férias com o Recorrente já depois deste lhe ter enviado mensagens como as que constam das alíneas a), b) e c) do ponto 3º, a mesma apresentou a explicação, tão enigmática quanto implausível, constante das transcrições de folhas 108 a 114 supra, onde até tentou justificar o facto de com ele se deitar na mesma cama e quarto (e com ele ter tido trato sexual, embora sustente que foi só uma vez) para a filha JJ não estranhar e porque o quarto vazio, apesar de mobilado, cheirava a esgoto (facto perentoriamente negado pela testemunha HH, vide transcrição de folhas 115 a 117);

XLVIII) Auscultada sobre a natureza ou objeto do medo que disse sentir em face da atuação do arguido (consubstanciada nas mensagens), a assistente pretendeu fazer crer ao Tribunal (com base no pressuposto errado de que o Tribunal de ..., onde o então recorrente exercia funções, e o Tribunal de Família e Menores, funcionarem no mesmo edifício) que alimentaria o medo de que o aqui recorrente pudesse exercer o seu suposto poder e influência junto dos seus colegas de profissão para lhe retirar a guarda da filha (vide transcrição do trecho das suas declarações constante de folhas 118 a 122 supra), medo esse que ela própria logo tratou de arredar, explicando que o arguido era demasiado preguiçoso para tomar conta da filha (se isto não é patente animosidade contra ele, o que será ?);

XLIX) Queria a assistente, a um passo, dar a entender que (naturalmente) gostava muito da filha e – logo - não queria perder a sua “guarda”, ao mesmo tempo que tentou condicionar o tribunal, dando a entender que poderia haver uma decisão de absolvição, estribada no corporativismo e no suposto grande poder que os ...es terão (quanto mais não seja para se defenderem uns aos outros), poder que o arguido supostamente alardeava;

L) Não se pondo em causa esse amor, resta contudo a dúvida sobre a qualidade do mesmo, considerando os depoimentos das testemunhas CC, sua filha, e do seu ex-marido, pai da filha CC (com quem esta vive desde os 12/13 anos de idade), cujos trechos, elucidativos, se mostram evidenciados supra, a folhas 123 a 131;

LI) Evidencia-se, assim, que a justificação do medo conexionado com a guarda da filha (mais nova), além de objetivamente injustificado, não se mostra, do ponto de vista subjetivo, minimamente plausível, conclusão a que o Tribunal a quo deveria ter chegado, por ser a única que se consegue racionalmente extrair a partir das declarações da própria assistente, em que aquele tribunal afirmou ter-se valido para afirmar tal facto;

LII) Ainda no que tange à genuinidade dos supostos sentimentos de que a assistente alega ser portadora e dos supostos efeitos que nela haviam causado as mensagens enviadas pelo Arguido, o que inequivocamente resultou do conjunto da prova produzida quanto ao perfil da Assistente, relevante para se concluir pela implausibilidade de tais sentimentos (humilhação, medo, inquietação, perturbação, afetação da sua autoestima), é de molde a afirmar que o Tribunal a quo errou clamorosamente (também) nesta sede;

LIII) Para tanto são convocáveis os depoimentos da testemunha CC (cujo depoimento não só não foi desvalorizado como, a espaços, foi destacado, na motivação elaborada), filha mais velha da assistente que, no trecho destacado a folhas 135 a 138 supra, a propósito da imputação à assistente, protagonizada pelo arguido junto da sua pessoa, de ser uma acompanhante de luxo, referiu que tal alegação é corroborada pelo seu pai, com quem ela vive e que, no confronto entre a palavra da mãe, a aqui assistente, e a do pai, confia mais na do pai;

LIV) A que se devem somar os depoimentos de II, amigo da assistente (trechos transcritos a folhas 138 a 140 e 153 a 158, respetivamente ao tentar, com inexplicável oposição do Tribunal, dar conta do tipo de prenda que os amigos, entre eles o depoente, deram à assistente, quando esta fez anos e, por outro lado, ao descrever minuciosamente o projeto de abertura de bar de striptease, com a colaboração ativa da assistente, como sócia), LL, ex-marido da assistente (folhas 128 a 131, onde alude ao caráter extrovertido, à pouca sensibilidade da assistente, expressa, v. g., no facto de não poupar a filha JJ, que tem com o arguido, dos contenciosos que mantém com este), DD, mãe da Assistente (trecho transcrito a folhas 141 a 146 supra, onde explica que a mesma desencadeou muitos processos judiciais, que a assistente se terá apropriado de uma quantia, propriedade da filha CC, neta da depoente, que lhe fora doada por familiar, que a assistente terá mandado a filha mais velha para o hospital, depois de uma tareia que lhe aplicou e que a assistente afirmou várias vezes querer ver o irmão morto), MM, amigo da assistente (trechos transcritos a folhas 146 a 152 e 165 a 166, onde este explica que foi contactado pela assistente para “pregar um susto” ao irmão, que a andava a incomodar, assim como à filha, e que corroborou o interesse e intervenção da assistente na execução do projecto do bar de striptease) e NN, também amigo da assistente (trecho transcrito a folhas 158 a 165 supra, onde este também confirma o aludido interesse da assistente em ser sócia e participar da execução do projeto relacionado com esse tipo de bar);

LV) Perante tudo o exposto, resulta manifestamente implausível, à luz das regras da experiência comum, a explicação que a Assistente dá para a perturbação que diz ter sentido ao receber as mensagens enviadas pelo Arguido, atribuindo esses sentimentos à sua personalidade “púdica”, desde logo em face do teor das mensagens que, ela própria, enviou ao aqui Arguido (e nas quais usa recorrentemente insultos em português vernacular);

LVI) Não é minimamente expectável nem credível, segundo as normais regras da experiência comum que, alguém que emprega tal terminologia (nas mensagens que enviou ao Arguido) se possa sentir ofendida, amedrontada, humilhada, perturbada e fortemente afetada quando deste, mais tarde, recebe mensagens de idêntico teor depreciativo;

LVII) Mais a mais quando tem perfil para ser sócia de bar de striptease (projeto no qual se empenhou), quando tem a sensibilidade própria de quem não sente rebuço em pedir que preguem um susto ao irmão (que diz querer ver morto) e em ofender a integridade física da filha mais velha (por supostamente não gostar do respetivo namorado);

LVIII) Não se trata de afirmar uma simples convicção alternativa quanto à prova (ou não) dos factos em causa mas, antes, da única convicção que é possível sustentar em face dos meios de prova em causa, constatando-se que a do Tribunal é assaz incompleta, até lacunosa, não tendo este procurado minimamente identificar as aludidas e graves incongruências, e encontrar a resposta à matéria de facto que as poderia logica e racionalmente harmonizar, como nestas alegações se fez, devendo, por isso, ter sido dados como não provados – porque, repete-se, os meios de prova em causa não consentem, racionalmente, outra resposta - os pontos 9º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, constantes dos “factos provados” do douto acórdão em crise;

LIX) Impunha-se que o Tribunal recorrido desse como provado que a assistente, além das que resultam dos factos provados números 48. e 65., usava de linguagem, verbal e escrita, de teor idêntico ao das mensagens dadas por demonstradas;

LX) Tal imposição resulta do certificado notarial junto pelo arguido aos autos, em julgamento (não impugnado pela assistente), da convicção que o próprio Tribunal formulou a propósito da afirmação do facto vertido no ponto 27º dos factos provados, das declarações da assistente, pessoa a quem deu credibilidade (no trecho transcrito a folhas 171 a 173 supra), do depoimento da testemunha II (no trecho respeitante a folhas 173 a 178 supra), do depoimento da testemunha MM (no trecho respeitante a folhas 179 a 180 supra) e no depoimento da testemunha NN (no trecho referente a folhas 180 a 182 supra);

LXI) A justificar – impor - que se dê como provado o vertido na alínea g) dos factos não provados;

LXII) Impõe-se, de igual forma, que se dê como provado o que se verte nas alíneas e), f), k), l) e m) dos factos não provados, em face da única impressão / convicção a extrair em face das regras da experiência comum quando conjugadas com o certificado notarial de mensagens (junto em audiência pelo arguido, com destaque para o sms do dia 17/09/2006, 19h 20m), com os factos provados constantes dos pontos 25, 26, 48 b) e c), 31 a 36 e 65, todos do respetivo elenco e com o teor do depoimento da testemunha CC, filha da assistente, considerada credível (no trecho respeitante a folhas 185 a 186 supra);

LXIII) É totalmente incompatível com as regras da experiência comum e do normal ser (e acontecer) que, alguém que (1) se predispõe a ser sócio de um “bar de strip” (sendo sugerida para elemento feminino dessa parceria por alguém que a identifica como tendo o perfil ideal, ut depoimento de II), que (2) pretende encomendar a terceiros o serviço de “pregar um susto” ao irmão (vide depoimento de MM), que (3) verbaliza várias vezes pretender ver o irmão morto (vide depoimento da mãe, DD), que (4) dá uma

“tareia” à filha mais velha, de maior idade e estudante universitária, por não gostar dos namorados que esta escolhe (ut depoimento da mãe da assistente, DD, quando instada a explicar por que motivo acha que a filha não está equilibrada psicologicamente), que (5) se apodera das economias da filha mais velha (ainda depoimento da mãe da assistente), que (6) redige e remete mensagens ao arguido em que, além de o apelidar de cabrão, filho da puta e monte de merda (pontos 27 e 65 dos factos provados), dá-lhe conta de que não tem medo nenhum dele (ponto 65 dos factos provados), que (7) refere-se ao arguido, dirigindo-se a agentes da polícia de segurança pública presentes numa busca ao seu domicílio, dizendo “aquele animal nem paga a pensão à filha” e, ainda defronte daqueles elementos policiais, a ele se dirige dizendo “és uma besta” (ponto 44 dos factos provados) e que (8), é economicamente autónoma e financeiramente independente, encontrando-se socialmente bem inserida (pontos 63 e 64 dos factos provados), dizíamos nós, é incompatível com as máximas da experiência de vida que se dê como não provado que esse alguém seja uma pessoa com fortes convicções e que não se deixa facilmente influenciar pelos outros – como resulta do facto dado como não provado, constante da alínea p);

LXIV) Esclareça-se, por não despiciendo que, a manter-se intocada a matéria de facto - cuja alteração ora se pretende -, quedaria sem qualquer justificação (racional) o facto de a assistente apenas se ter referido, pela primeira vez, às mensagens em causa no dia 31/10/2014 (cfr. fls. 352 a 354), mais de três anos depois das mesmas (que são de Julho e de Agosto de 2011), trazendo ao “processo 563” a tese que veio a vingar (naquele e nestes autos);

LXV) A alusão tardia às mesmas, em finais de Outubro de 2014, traduz facto material que logra sentido lógico e racional, à luz das regras da experiência e da modificação pretendida à matéria de facto, se se atentar em que se evidencia que alguém foi responsável, direta ou mediatamente, pela inerente iniciativa (que, doutra forma, jamais veria a luz do dia pois que, como se sustenta, as mensagens em causa não provocaram na assistente qualquer dano, muito menos os danos que o Tribunal a quo entendeu estarem verificados e integrarem o leque daqueles que o crime em espécie visa proteger);

LXVI) Esse alguém foi identificado (só faltando confirmar o nome) pela própria assistente, ao prestar declarações nestes autos, como se constata a partir do trecho de folhas 102 e 103 supra: o senhor inspetor judicial que (no âmbito de processo disciplinar movido pelo CSM ao aqui arguido, despoletado pelas supostas falsas declarações do dia 19/09/2013) a esteve a ouvir, segundo a mesma refere durante seis longas horas e que a terá informado de que as mensagens e mails poderiam servir de meio de prova,

LXVII) nem mais nem menos do que o ex.mo marido da ex.ma senhora desembargadora Drª OO (que praticamente dirigiu a audiência de julgamento destes autos, apesar de à mesma não presidir) e a quem, de seguida – no dia 17/10/2014, aliás treze escassos dias antes da alusão às mensagens -, a assistente remeteu, para o respetivo e-mail (...), essas mensagens e mails (como deflui dos documentos de folhas destes autos);

LXVIII) Desta forma, e em execução do plano que, a partir de então (e só a partir de então), delineou, procedeu ao linchamento público prévio do Arguido na comunicação social, com a cumplicidade / co-autoria do seu ilustre mandatário (o Tribunal a quo, inclusivamente, visualizou e ouviu, em audiência, a entrevista que ambos deram à RTP 3, no programa “...”, aos 26/01/2018), seguindo a estratégica de oportuna revelação, concomitante com o início do julgamento, de parte das mensagens por este enviadas, em letras de caixa alta e nas primeiras páginas dos jornais, com o nítido objectivo de, a reboque do interesse noticioso suscitado pela condição profissional do Arguido, lograr eficazmente criar a percepção pública da sua vitimização e um clamor pela punição daquele, por forma a que qualquer decisão absolutória fosse publicamente sentida como odiosa, com as consequências que, nos tempos que correm, são bem conhecidas, assim logrando um duplo desiderato, a saber:

LXIX) - No Processo n.º 563/14.3TABRG, a utilização das mensagens como meio de prova destinado à criação da convicção, no Venerando Tribunal, de que o Arguido se pretendia vingar da Assistente, essencial para explicar o dolo subjacente à prática do suposto crime de falso testemunho; - Nestes autos, a condenação do Arguido pelo teor das mesmas mensagens, pela prática do suposto crime de violência doméstica;

LXX) O crime de violência doméstica admite, hoje, dois modos alternativos de cometimento: - um, pressupõe a repetição ou reiteração dos comportamentos, os quais, se apreciados isoladamente, podem não assumir relevância criminal ou podem ser susceptíveis de configurar outros tipos de crime menos graves que a violência doméstica, nomeadamente, crimes de ofensa à integridade física simples ou qualificada, ameaça simples e agravada, coacção, perseguição, sequestro, injurias, difamação, devassa da vida privada, violação de correspondência ou de telecomunicações, gravações e fotografias ilícitas, violação, v.g.; - o outro modo de cometimento prescinde da reiteração e basta-se com um único ato ou omissão, desde que o mesmo configure um verdadeiro maltrato físico ou psíquico, devendo esta apreciação ter em conta a imagem global do facto, nomeadamente o modo de execução da conduta, a natureza das lesões e as sequelas sofridas pela vítima;

LXXI) Dito de outro modo, à luz do bem jurídico protegido por esta espécie os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica;

LXXII) Cremos ser este o sentido, entre outros, do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt e do AC RP de 30/01/2013 www.dgsi.pt/trp, sob pena de não revelando a conduta do agente “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto ( cfr. Valadão e Silveira, Maria Manuela “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Lisboa, 2001, pag. 21) o crime não se mostrar fundamentado;

LXXIII) O que fundamenta tal ilícito são pois os atos que, como expressa o Ac. RP de 28/09/2011 www.dgsi.pt/jtrp “ pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma evidenciam um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de pre...o sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vitima” e nos casos de actos singulares tem de se verificar uma especial qualidade da acção, sob pena de não se mostrar verificado o ilícito em causa;

LXXIV) Neste sentido, defende Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 519, que “uma acção isolada de pouca gravidade, mesmo que se configure uma infracção criminal (p. ex., uma leve ofensa corporal, ou injúria), não deve ser qualificada como um crime (grave – pois que, além de ter como limite máximo prisão de cinco anos, tem como limite mínimo um ano de prisão) de violência doméstica ou de maus tratos”;

LXXV) Esta interpretação, além de corresponder melhor à configuração do bem jurídico que a norma incriminadora visou tutelar, corresponde a uma decorrência do princípio constitucional da proporcionalidade em matéria de punição criminal, imposta pela disparidade das molduras penais estabelecidas, respectivamente, para os crimes de ofensa à integridade física simples, de injúria, de violência doméstica e de maus tratos;

LXXVI) Mister é saber, aqui, se, o conjunto isolado de comportamentos perpetrados pelo ora Recorrente assume uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar;

LXXVII) Com o devido respeito, entendemos que a decisão proferida, mesmo que não ocorra qualquer alteração na matéria de facto (no que não cremos vá suceder), não atenta verdadeiramente na dita imagem global do facto, desprezando o contributo de outros factos provados, designadamente os que resultam dos pontos 50º, 51º, 52º e 53º a 65º, todos inclusivé, da factualidade provada;

LXXVIII) Deles decorre, quanto ao modo de execução da conduta do Recorrente, que esta se circunscreveu a um curtíssimo período de tempo, através de sms`s isolados, dos dias 6 e 31 de Julho, 1, 2, 4 e 16 de Agosto de 2011, as dos últimos cinco dias já após as férias e a rutura definitiva da relação – de finais de Julho de 2011, ut facto provado n.º 3 -, quando ainda havia legítima expectativa de reconciliação, tanto mais que já tinha havido várias ruturas anteriores, porventura mais graves (pois até envolveram buscas judiciais), seguidas de reconciliação;

LXXIX) Sendo de salientar, quanto ao reflexo que as mensagens efetivamente produziram na Assistente que, não obstante o teor objectivamente injurioso das mensagens ditas nas alíneas a), b) e c) do ponto 3º (do dia 06/07/2011), face à atuação protagonizada pela Assistente, após o envio dessas mensagens injuriosas, consubstanciada no ato voluntário de ir de férias para o ... com o Recorrente, filhas deste e filha comum, é inelutável concluir pela inexistência de reflexo negativo e sensível na dignidade da vitima, por via da ofensa à sua saúde física ou emocional, provocada pelo envio dessas mensagens injuriosas e, em consequência, a imagem global do facto aponta para a inexistência de um verdadeiro maltrato;

LXXX) Ainda em sede de reflexo decorrente do envio das mensagens, não obstante o teor objectivamente injurioso das mensagens ditas nas alíneas d) a l) do ponto 3º – as restantes mensagens, em que o tribunal a quo considera que o arguido manifesta sentir desprezo pela Assistente, dirigindo-lhe provocações de cariz sexual e reveladoras de desconsideração pela mesma nesse domínio, rebaixando-a e expressando que tinha o dever de estar na cama consigo, sempre e enquanto o próprio ali permanecesse (SMS referidos em e), g), i) e j), insultando-a, apelidando-a de “filha da puta ” e “miserável” (SMS mencionados em h) e l)), dirigindo-lhe ameaças veladas (SMS indicados nas alíneas d), f), g) e l) -, apesar disso, facto é que, face à atuação protagonizada pela Assistente, após o envio das mensagens, consubstanciada no ato voluntário de solicitar a colaboração do Recorrente para depor como testemunha em vários processos em que a Assistente era parte, como resulta dos pontos 53º a 61º, e de com ela se continuar a relacionar tratando de assuntos que vão para além do assunto da filha comum (facto provado 53º), é inelutável concluir pela inexistência de reflexo negativo

e sensível na dignidade da vitima, por via da ofensa à sua saúde física ou emocional, provocada pelo envio destas mensagens pelo que, em consequência, a imagem global do facto aponta para a inexistência de um verdadeiro maltrato;

LXXXI) Não obstante o real desvalor da acção do Recorrente, consubstanciado nas injúrias que corporizam o teor das mensagens, afigura-se que o insignificante desvalor do resultado nos remete para uma gravidade que, situando-se embora dentro dos limites da incriminação por injúrias – estando há muito caduco o direito de queixa por este crime, considerando os mais de quatro anos que mediaram entre o conhecimento dos factos e a queixa -, não se afigura suficiente para que se conclua pela verificação de um “mau trato” psíquico idóneo a lesar a dignidade e a saúde em sentido amplo da ofendida (bem jurídico protegido pela incriminação);

LXXXII) O que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, e que perpassa da jurisprudência e doutrina citadas no corpo destas alegações, e que se evidencia de resto da sua génese e evolução, é a existência de uma vítima e de um vitimador, atuando este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela;

LXXXIII) Mister é saber, então, se ocorreu ou não uma relação de domínio ou subjugação e submissão por parte do Recorrente, que tenha atingido a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro, concretamente do Recorrente sobre a Assistente; ora, os factos provados, acima referidos na conclusão LXXVII, evidenciadores da preservação da relação interpessoal entre Recorrente e Arguida, são a demonstração, cabal e clara, de que essa dominação e subjugação nunca ocorreu;

LXXXIV) É totalmente incompatível com as regras da experiência comum e do normal ser (e acontecer) que, alguém que protagoniza os comportamentos, provados nos autos e concretamente referidos na conclusão LXIII supra, se tenha deixado reconduzir a uma qualquer subjugação, sujeição ou submissão, em face do comportamento do Recorrente consubstanciado no enviado daquelas mensagens;

LXXXV) O crime de violência doméstica, ao contrário do implicitamente afirmado na fundamentação jurídica do acórdão proferido pelo Tribunal recorrido, não pode ser cometido com reciprocidade (que o Tribunal disse estar in casu afastada atenta a distância cronológica entre as mensagens da assistente e as do recorrente);

LXXXVI) Pode haver, é certo, casos em que um dos agentes cometa o crime de violência doméstica e o outro cometa qualquer outro crime – de ofensas corporais, de ameaças, de injúrias –, desde que estes sejam praticados em condições que afastem o funcionamento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa;

LXXXVII) Ou podemos deparar-nos com situações, como a que estamos a apreciar, em que duas pessoas ligadas por particulares relações interpessoais, discutem, se insultam, reações resultantes de uma concreta e determinada situação vivencial de tensão e conflito, sendo os seus comportamentos equivalentes do ponto de vista da censurabilidade, não se alcançando qualquer posição de domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem distinguindo, um como vítima e o outro como agressor;

LXXXVIII) Do que decorre a atipidade ou insuscetibilidade de os factos dados por provados no ponto 3º integrarem a previsão do tipo (objetivo) de ilícito de violência doméstica, por falta de dignidade ou carência de tutela penal;

LXXXIX) No caso dos autos, porque não ocorre o crime pelo qual o mesmo vem condenado (pelo qual deve, antes, ser absolvido), não se verifica qualquer ilícito, tampouco dano indemnizável nem, quiça menos ainda, nexo de causalidade entre a conduta e o (suposto) dano, que fundamente a pretendida indemnização cível, pelo que deve o Recorrente ser dela absolvido;

XC) A decisão recorrida violou, assim e v. g., o disposto nos artigos 29º, 5, CRP, 4º, n.º 1, do Protocolo n.º 7 à CEDH, os artigos 1º, f), 279º, 283º, 303º, 308º, 358º, 359º, 379º, n.º 1, b) e 374º, n.º 2, todos do CPP, o art.º 351º do CC e o art.º 152º, n.º 1, b) do CP, devendo, na procedência do recurso, ser substituída por outra que, para ser justa e adequada ao Direito, revogue o acórdão recorrendo e absolva o arguido da instância ou, assim se não entendendo, absolva o Recorrente do crime por que vem pronunciado, bem como do pedido cível formulado nos autos, tudo com as demais consequências, com o que se fará inteira e sã Justiça!

O Recorrente declara expressamente ter interesse na apreciação do recurso interlocutório interposto, que com este há-de subir a esse Venerando Tribunal.

Junta: transcrição das declarações e dos depoimentos prestados.»

Resposta do MP na Relação de ...

                                                                                                              

3. O Ex.mo Magistrado do MP (Procurador-Geral Adjunto) na Relação de ... respondeu ao recurso em 5/11/2018 (fls. 1946-1953, do 7.º vol.), pronunciando-se pela sua improcedência, nos seguintes termos (conclusões):

«Em Conclusão:

1 - A circunstância de o M.P. ter, no âmbito do proc. 563/14.3TABRG, deduzido acusação pela prática de crime de falsidade de testemunho, nela narrando grande parte das mensagens a que se reportam os presentes autos alegadas e consideradas a título circunstancial, de contextualização do quadro que antecedeu e da motivação subjacente á prática pelo arguido daquele crime, nada reportando quanto à relevância ou irrelevância criminal específica das mesmas, não significa ou implica que o detentor da acção penal tenha determinado o arquivamento, mesmo que implícito, quanto a esse específico, não excluindo, pois, a possibilidade de, como foi o caso, vir a ser instaurado outro processo, tendo por objecto tais mensagens, inexistindo, pois, atropelo do "ne bis in idem".

2 - Revela-se normal que, atento o conteúdo das mensagens em questão, a denotarem o inconformismo do arguido com a separação e a falta de rebuço do mesmo de nelas expressar a sua qualidade de ... e poder inerente, com ameaças veladas, um cidadão médio, face á condenação, com trânsito, nos condicionalismos narrados sob os pontos 7 e 8, conclua, com naturalidade, que a conduta do arguido com a prática dos factos que levaram a tal condenação, tenha sido levada a cabo com a intenção de se vingar da assistente, por não ter conseguido a reconciliação que pretendia, mostrando-se cumprida a exigência de fundamentação a tal propósito, não se descortinando que haja que ser dar como não provado o ponto 10,

3 - Não se consegue topar que o intuito do arguido, revelado sob o mesmo ponto seja incompatível com a prestação pelo mesmo de outros depoimentos, a pedido da assistente, já após o envio das mensagens em causa nos autos e anteriores ao depoimento falso por que aquele foi condenado, já que o facto de a assistente lhe ter solicitado tais depoimentos e o visado se ter disponibilizado a prestá-los, não implica que, no momento concreto da prestação daquele depoimento falso o arguido não tivesse agido com aquela intenção, não se vendo, na formação de tal convicção, onde ocorra o assacado erro notório.

3 - Lido o conteúdo do douto aresto sob escrutínio, topa-se facilmente que o mesmo deu como provados factos bastantes para o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime por que o arguido veio a ser condenado, decorrendo ainda do texto do decidido que foram apreciados e apurados os aspectos e factos relevantes para a causa, sendo certo não decorrerem da mesmo, ainda que conjugado com as regras da experiência comum, quaisquer lacunas que cumprisse ao tribunal a quo sanar, sendo que, mesmo dando de barato que nem todas as mensagens constantes da documentação junta se encontram narradas no douto acórdão, tal não deixou de permitir ao tribunal (com as efectivamente narradas) aquilatar aquilo que, a este propósito, o recorrente almejava; aferir do tipo de linguagem usada pela assistente na sua relação com o arguido, no quadro do relacionamento entre ambos.

4 - Pese embora, em face da matéria factual que vemos decorrer da globalidade da prova produzida (apresentação "tardia" das mensagens, sem consideração autónoma relativamente à violência doméstica imputada, conteúdo de algumas das mensagens remetidas pela assistente ao recorrente, tipo de postura da assistente com familiares, amigos e o próprio recorrente e manutenção com este de relacionamento, inclusive íntimo, mesmo após o recebimento de algumas daquelas) pudessem permitir formação de convicção diversa da tomada, designadamente quanto a qualquer posição de evidente dominação e prevalência do recorrente sobre a assistente e um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal desta, com ameaça de pre...o sério para a sua saúde e bem-estar físico e psíquico, não detendo a mesma, manifestamente personalidade facilmente atemorizável, o certo é que

5 - esta não é a única convicção que é possível sustentar em face dos meios de prova em causa, pelo que, encontrando-se a decisão sob escrutínio motivada, contendo uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a convicção, com indicação e exame crítico das provas que serviram para a formar e a razão da credibilidade dos diversos meios de prova, designadamente das testemunhas, permitindo o exame do processo lógico ou racional que esteve na formação da convicção dos julgadores, e das razões que levaram a que determinada prova fosse valorada em detrimento de outra, o que permite deduzir, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, qual o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal os tivesse valorado no sentido em que o fez, segundo o princípio da livre apreciação da prova e as regras da experiência comum, não se vendo que a convicção assim formada não tenha suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos existentes nos autos podem fornecer,  mostrar-se-á  a  mesma inabalável.

Este, o nosso entendimento.

Vas Exas, com ponderação e saber, farão JUSTIÇA»

Resposta da assistente

                                                                                                             

4. A assistente respondeu ao recurso do arguido (fls. 1959-1984, do 7.º vol.), pronunciando-se pela sua improcedência, nos seguintes termos (conclusões):

«CONCLUSÕES:

1. O acórdão recorrido não padece de quaisquer erros na aplicação da matéria de direito, e, por isso, deverá ser mantida a decisão do Venerando Tribunal da relação do Porto, competindo, assim, a este Tribunal ad quem usar dos seus poderes/deveres (funcionais) de confirmação.

2. A decisão sob censura encontrou nas provas produzidas em audiência de julgamento e na prova documental, a consubstanciação perfeita entre a descrição e consumação dos factos por parte do arguido e a norma jurídica incriminadora, existindo suficiente clareza e precisão nos factos imputados ao único arguido do processo – AA.

3. Através da leitura dos autos, constata-se que nos mesmos fez-se referência expressa ao facto do arguido AA ter praticado os factos em discussão nos autos após a assistente ter terminado definitivamente a relação de namoro que mantivera consigo.

4. No acórdão descreve-se também concretamente os factos praticados pelo arguido, sendo certo que, além de transcrever as mensagens que consubstanciam a prática do crime de violência doméstica, também se identificou o dia e a hora em que as mesmas lhe foram enviadas – cfr. fls. 87 a 119 e 161 a 177 e 303 a 351.

5. Na mencionada decisão, refere-se também que o arguido AA deu início ao processo de intimidação e perseguição constante dos autos com o intuito de castigar a assistente pelo facto da mesma ter terminado definitivamente a relação de namoro que tinha consigo, por não aceitar o fim da relação, tendo ficado claramente demonstrando quais os motivos subjacentes à prática de tais factos pelo arguido, isto é, a sua intenção.

6. Através da leitura do acórdão, é ainda manifesto que além de fazer referência à disposição aplicável, após mencionar qual o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica e o tipo objetivo e subjetivo do mencionado crime, demonstrou claramente que no caso concreto, com o envio das mensagens, o arguido AA, violou o bem jurídico integridade psíquica, liberdade e honra, que com a sua conduta o mesmo quis ofender esses bens jurídicos, e ainda que o mesmo atuou de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

7. O Tribunal a quo, sem seguir a formatação omissiva do Ministério Público, porque a isso não é obrigado, fez uma descrição fáctica coerente com a prova produzida, com indicação precisa dos factos que foram dados como provados, e integradores tanto dos elementos objetivos como dos elementos subjetivos do crime de violência doméstica, pelo que, na decisão sob censura estão reunidos todos os elementos necessários, quer quanto aos factos, quer quanto aos fundamentos de direito, que sustentaram a condenação do arguido AA com a aplicação de uma pena.

8. Os fundamentos utilizados pelo arguido para tentar justificar uma não condenação, além de serem falsos, não retratam a verdade resultante do julgamento, pois, ao contrário do alegado, o tribunal “a quo” apreciou com a devida atenção a prova produzida durante as diversas sessões de julgamento, e, por isso, as alegações de recurso do arguido, não passam de uma última tentativa de se “agarrar” a uma inexistente e falsa questão formal.

9. Nas motivações apresentadas, esqueceu-se o arguido que, em alegações orais produzidas na última sessão de audiência, no passado dia 2018-07-02, que se encontram registadas ao minuto 09.20 a 09.55, o seu mandatário referiu expressamente que se arrependeu de ter invocado tal questão prévia, prejudicando a sua apreciação, pelo que, muito se estranha que o mesmo venha agora em sede de recurso tentar retratar-se de tal “desistência” depois de conhecido o veredicto desfavorável do coletivo.

10. Apesar de tal recuo expresso e evidente na estratégia de defesa do arguido, não se poderá todavia deixar de referir que o objeto do processo nº. 563/14.3TABRG, que correu termos no Tribunal da Relação de ..., constavam algumas das mensagens que fundamentam o despacho de pronúncia proferido nos presentes autos, as quais, no âmbito daquele outro processo, foram levadas ao conhecimento do Ministério Público pela ora assistente na queixa que apresentou e tem vindo a ser referenciadas na acusação pública deduzida, sem que indevidamente fossem conhecidas e consequentemente fosse atribuída relevância criminal às mesmas, para efeitos de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do Código Penal, o que, como é consabido não é suficiente para cobrir esses factos pela força de caso julgado, razão pela qual, podia ser discutido nestes autos o relevo criminal das mesmas mensagens, para efeitos de tipificação das mesmas no crime de violência doméstica.

11. A doutrina e a jurisprudência dominantes têm vindo a defender que só ocorre violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem, no caso em que, no âmbito de um determinado processo criminal, tenha existido uma decisão definitiva que conheça de determinados factos com relevância penal (decisão essa que tanto pode ser uma sentença, um despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público, um despacho de não pronuncia do ... de instrução criminal ou um despacho que declare a extinção do procedimento criminal, por prescrição, por desistência da queixa ou por qualquer outra causa) e esses mesmos factos, venham a ser considerados, noutro processo, para efeitos de imputação ao mesmo arguido da prática de um qualquer crime, independentemente da distinta qualificação jurídica efetuada num e noutro dos processos,

12. Da análise do processo n.º 563/14.3TABRG e dos presentes autos é evidente que os factos por que o arguido foi pronunciado nos presentes autos, não foram objeto de apreciação e decisão no processo nº. 563/14.3TABRG, pois, embora na acusação deduzida pelo Ministério Público no processo nº. 563/14.3TABRG seja feita referência às mensagens que o arguido enviou à assistente (que resultaram provados no acórdão condenatório proferido), o certo é que, as mesmas foram alegadas e consideradas a título meramente circunstancial, na contextualização do quadro que antecedeu e da motivação subjacente à prática pelo arguido do crime de falsidade de testemunho, por que veio a ser condenado por decisão já transitada em jugado.

13. Não oferece dúvida que tendo os ditos factos sido participados pela ora assistente no âmbito daquele processo nº. 563/14.3TABRG, quando prestou declarações, na fase de inquérito, estando em causa uma conduta legalmente descrita como violadora de bens jurídicos tutelado pela lei penal, deveriam ter sido objecto do inquérito/investigação realizada pelo Ministério Público e que o despacho final proferido pelo Ministério Público deveria ter-se reportado à sua (ir)relevância criminal, o que não aconteceu, não sendo, em nosso entender, de acolher a posição defendida pelo arguido, no sentido de que ao descrever tais factos na acusação, sem lhes atribuir relevância criminal, o Ministério Público determinou o arquivamento (implícito) dos autos, nessa parte.

14. É assim de acolher, a posição do pelo tribunal a quo, no sentido de que a verificação do caso julgado e a violação do princípio ne bis in idem só ocorrerão, no caso de, o âmbito de determinado processo, existir uma decisão definitiva que conheça de determinados factos com relevância criminal e esses mesmos factos, venham a ser considerados, noutro processo, para efeitos de imputação ao mesmo arguido da prática de um qualquer crime, ou seja, a circunstância de o Ministério Público não ter investigado os factos que foram levados ao seu conhecimento pela ora assistente, na fase inicial do inquérito, e ter proferido despacho de acusação, onde pese embora referenciado tais factos não lhes atribui relevância penal, não exclui a possibilidade de vir a ser instaurado outro processo tendo por objeto tais factos, pelo que, se conclui que o tribunal a quo andou bem, ao decidir pela improcedência da exceção do caso julgado e pela inexistência de violação do princípio ne bis in idem, invocados pelo arguido.

15. A convicção do Tribunal quanto à prova dos factos dados como provados formou-se com base no conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e na prova documental junta aos autos e respetiva apreciação crítica à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida.

16. A prova da factualidade exarada nos pontos 1 e 2, assentou nas declarações conjugadas do arguido e da assistente BB, que, nessa parte se revelaram, consentâneas, situando a assistente o início da vida em comum com o arguido em junho de 2007 e confirmando o arguido a vivência em união de facto com a assistente, pelo menos, desde setembro de 2007 (não conseguindo o arguido precisar, com exatidão, quando teve inicio, afirmando que tal ocorreu ao ter conhecimento de que a assistente estava grávida da filha de ambos, que veio a nascer em dezembro de 2007, sendo um bebé prematuro), sendo o arguido e a assistente concordantes em afirmar que após um período de cerca de 15 dias de férias que passaram no ..., em julho de 2011, não mais voltaram a viver juntos (resultando das declarações prestadas pelo arguido, que a indicação que deu de que o fim da relação ocorreu em meados de agosto de 2011, corresponde ao momento a partir do qual se convenceu de que a separação/rutura era definitiva) e que a vida em comum que tiveram, registou diversas interrupções, indicando o arguido terem sido quatro ou cinco, resultando das declarações prestadas pela assistente, confirmada a existência de, pelo menos, quatro interrupções, duas delas reportadas aos momentos referidos nos pontos 34 e 38. Em relação às razões que estiveram na origem das interrupções da vida em comum entre ambos, registadas em momento anterior ao da rutura definitiva, as declarações do arguido e da assistente foram concordantes em afirmar que a iniciativa foi sempre do arguido, que abandonava a residência onde vivia com a assistente, referindo a assistente que o arguido apresentava como explicação para essa sua atitude “ataques de pânico” e manifestando o arguido que nem sempre, na génese das separações registadas ao longo do período de vida em comum com a assistente, estiveram desavenças entre ambos, estando em causa, por vezes, a avaliação que fazia do relacionamento.

17. A matéria factual vertida nos pontos 3 e 4 provou-se com base nas declarações da assistente que afirmou ter o arguido lhe enviado as mensagens nos mesmos pontos referenciadas, tendo diligenciado pela certificação notarial do respetivo teor, conforme certificado de constatação de facto que se mostra junto a fls. 81 a 90 dos autos e que foi examinado na audiência de discussão e julgamento, constando os prints do visor do telemóvel onde consta tais mensagens a fls. 77 a 86 dos autos. Atendeu-se também às declarações do arguido que admitiu ter enviado tais mensagens à assistente, ainda que referindo não se recordar, em concreto, do contexto em que enviou algumas delas, mencionando que, estando separado da assistente, procedeu dessa forma, em resposta a provocações da assistente e, por, na altura, ainda acreditar no reatamento da relação entre os dois.

18. Para prova da factualidade exarada no ponto 5, foram determinantes as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, respetivamente, que confirmaram que após a separação definitiva entre ambos (não reatando a vida em comum a partir de final de julho de 2011, após o regresso do período de férias que passaram juntos no ...) trocaram mensagens e emails, resultando o teor de algumas das mensagens e de alguns dos emails enviados pelo arguido à assistente, depois da separação definitiva, expresso no certificado de constatação de facto junto a fls. 87 a 89 e no certificado junto a fls. 161 e seguintes, com particular relevância por referência ao período temporal em causa, para fls. 171 a 177 e, ainda, do teor dos emails juntos a fls. 510 a 520.

19. Os factos vertidos no ponto 6, foram considerados provados com base nas declarações da assistente, que confirmou ter pedido ao arguido para que fosse testemunha em duas ações cíveis, em que era parte o seu pai, entretanto falecido, esclarecendo a assistente que dirigiu essa solicitação ao arguido pelo facto de o mesmo estar inteirado da matéria que estava em discussão nessas ações, que respeitava a negócios do seu pai, que o arguido acompanhou. A aludida solicitação, pela assistente ao arguido, através de email (numa das situações, por intervenção da sua mandatária forense), resulta também corroborada pelo pelo teor dos documentos juntos a fls. 389 a 391 e 415 a 424 dos autos e ficando a efetiva prestação de depoimento pelo arguido no âmbito de tais processos e o desfecho destes com decisão final, em sentido favorável à aqui assistente, demonstrada pelo teor das certidões juntas a fls. 425 a 438, 1300 a 1315 e 1316 a 1356 dos autos.

20. A prova da matéria factual vertida nos pontos 7 e 8 assentou no teor dos documentos (cópias certificadas dos acórdãos proferidos respetivamente por este Tribunal da Relação de ... e pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo nº. 563/14.3TABRG), que se mostram juntas a fls. 935 a 993 dos autos.

21. A prova dos factos descritos nos pontos 9, 10 e 14 resultou da análise crítica do Coletivo de ...es, assente nas regras da experiência comum e da normalidade da vida, teve em consideração a atuação desenvolvida pelo arguido, e assentou no teor das mensagens que o mesmo enviou à assistente e ao contexto em que o fez, pois, sendo o arguido ... de direito, e estando bem ciente dessa sua qualidade que demonstrou de forma clara e evidente em várias ocasiões, designadamente, na mensagem que enviou à assistente em 23/01/2009, com o teor que consta no ponto 4 dos factos provados, quando se referiu ao poder dos ...es, expressando serem eles que mandavam nisto tudo, ao dirigir à assistente mensagens com o teor daquelas que vêm referenciadas nas alíneas d), f), g) e l), não poderia deixar de saber que, a sua qualidade de ..., relevaria para que a assistente receasse, pelo que poderia fazer para a prejudicar, como efetivamente receou (assegurando a assistente, nas declarações que prestou, que, sentiu receio de que o arguido, sendo ... e manifestando-lhe que “os ...es são o maior poder do mundo”, lhe ia tirar a filha de ambos).

22. A factualidade vertida no ponto 11, ficou provada com base nas declarações da assistente que afirmou ter uma forte ligação afetiva ao pai, sentindo profundo desgosto e grande tristeza com a morte deste, ocorrida em 08/10/2010, tendo o arguido acompanhado toda a situação e estando inteirado do estado emocional vivenciado pela assistente, após a morte do seu pai, confirmando as testemunhas CC, GG e PP, respetivamente, filha e amigas da assistente, no depoimento que prestaram, que a assistente ficou muito triste e abatida com a morte do pai, o que a deixou fragilizada, não tendo ainda superado esse acontecimento na altura em que aconteceu a sua separação do arguido.

23. Os factos constantes dos pontos 12, 13, 15 a 21, foram considerados provados com base nas declarações da assistente/demandante, que no relato que fez do estado emocional e sentimentos vivenciados, em consequência da conduta do arguido, ao receber as mensagens que o mesmo lhe enviou, com o teor das descritas no ponto 3 (afirmando a assistente que, nessa altura, ainda continuava a gostar do arguido, pese embora estivesse ciente de que não havia condições para manter a relação com o mesmo), denotou espontaneidade, assertividade, coerência e objetividade, deixando transparecer sofrimento emocional, o que, à luz das regras da experiência comum, se mostra verosímil, em face da conduta assumida pelo arguido (homem de quem a assistente gostava e pai de uma das suas filhas, que, na altura, tinha 3 anos de idade), para consigo, ao enviar-lhe mensagens com o teor das referenciadas no ponto 3, merecendo, por isso, as declarações da assistente, credibilidade. Relativamente ao medo que sentiu, ante o teor das mensagens que lhe foram enviadas pelo arguido enunciadas nas alíneas f) g), k) e l) do ponto 3, a assistente concretizou-o referindo que temia que o arguido lhe pudesse fazer mal e, principalmente, sendo ele ..., que lhe pudesse tirar a filha de ambos.

24. Para a decisão do Venerando Tribunal da Relação do ... foi também tido em consideração o depoimento da testemunha, GG [amiga da assistente, há mais de 15 anos, privando com a mesma quase diariamente, que começou por referir não ter visto as mensagens enviadas pelo arguido à assistente e que apenas tomou conhecimento por esta lhe ter falado das mesmas, no entanto, ao ser confrontada com o depoimento que prestou em sede inquérito, exarado a fls. 181 e 182 dos autos – cuja leitura se procedeu na audiência de julgamento, com observância dos requisitos legais, conforme ficou a constar da correspondente ata – disse ter visto uma ou outra dessas mensagens, afirmando que a assistente evidenciava sentir-se muito perturbada e incomodadíssima com tais mensagens, manifestando ter receio de sair de casa e não o fazendo sozinha, à noite, só saindo se os amigos a fossem buscar. Afirmou que após a separação do arguido, a assistente, que era uma pessoa muito alegre e bem disposta, ficou triste, abatida e cabisbaixa, não se arranjava].

25. O tribunal a quo teve ainda em conta as declarações da testemunha PP [amiga de longa data da assistente] que afirmou ter visto/lido algumas das mensagens que o arguido enviou à assistente, estando presente, em algumas das situações, em que a assistente as recebeu, confirmou que a assistente ao receber as ditas mensagens ficou magoada, ressentida e “muito em baixo”, tinha medo de sair à noite e não o fazia sozinha; referenciando ter existido um conjunto de fatores que “ a puseram em baixo”, estando a assistente já fragilizada quando aconteceu a separação, este acontecimento e as mensagens enviadas pelo arguido em nada ajudaram, sendo que a assistente gostava do arguido, ficando bastante abatida psicologicamente, evidenciando perplexidade, profunda tristeza, mágoa e não se arranjava.

26. Para a decisão que se pretende seja confirmada por esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o tribunal a quo considerou ainda o depoimento de QQ [amiga da assistente há 19 anos], afirmou que a assistente lhe mostrou algumas das mensagens, mostrando-se chocada e perturbada face ao seu teor. Confirmou que a assistente dizia que tinha medo e que à época desses acontecimentos apresentava-se com um ar desleixado, não comia], bem como o depoimento de RR [amiga da assistente há cerca de 10/11 anos, confirmou que após a separação do arguido, a assistente não se arranjava, andava desmazelada, não comia, estava muito em baixo, tendo as mensagens recebidas enviadas pelo arguido afetado muito a assistente].

27. Por sua vez, a testemunha FF, amiga da assistente há 20 anos, afirmou ter lido algumas das mensagens em questão, que lhe firam mostradas pela assistente, assegurando que esta última, quando as recebia, ficava em pânico, assustada e perplexa, ficava inquieta, sentindo receio do que viria dali, chegando a assistente a dizer-lhe que tinha medo que o arguido lhe tirasse a filha, sendo que após a prestação de depoimento pelo arguido, no âmbito do processo mencionado no ponto 7, a assistente se convenceu de que a vingança do arguido se relacionou com esse depoimento. Manifestou, ainda, a identificada testemunha que assistente também se sentiu revoltada, muito zangada e triste, com a conduta do arguido], que referindo-se ao estado emocional vivenciado pela assistente após a separação do arguido e a receção das mensagens pelo mesmo enviadas, descreveram-no de forma consentânea, deixando transparecer coerência, consistência e objetividade, merecendo, por isso credibilidade.

28. Também a testemunha SS, amigo da assistente, tendo-a conhecido em 2011, já após a mesma se ter separado do arguido, confirmou que, ao tempo, a assistente não saia sozinha à noite e quando aceitava os convites que lhe fazia para saírem, com outros amigos, tinha de ir buscar e levar a casa, confirmando terem confraternizado em festas, à noite, reportando-se a alguns desses eventos, as fotografias, com que foi confrontado na audiência de julgamento e que se mostram juntas a fls. 496, 498 e 500 dos autos.

29. Para prova dos factos vertidos nos pontos 22 a 24 e 28 a 30 foram determinantes as declarações conjugadas do arguido e da assistente, que, em relação a tal factualidade, se revelaram concordantes, sendo que quanto o momento em que teve início da união de facto entre ambos, a assistente situou-o em junho de 2007 e, o arguido, pese embora não precisando com exatidão esse momento, confirmou a vivência em união de facto com a assistente, pelo menos, desde setembro de 2007, nos termos que se deixaram explanados supra, na motivação referente ao ponto 1.

30. A convicção do Tribunal no sentido de dar como assente os factos que constam do ponto 32 alicerçou-se nas declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, respetivamente, que se mostraram concordantes ao afirmar que as separações de ambos, ocorridas antes da separação definitiva aconteceram por iniciativa do arguido, que, por ser acometido de ataques de pânico, abandonava a residência comum.

31. As declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, foram também determinantes para a prova da factualidade vertida nos pontos 33 a 36, em conjugação com o teor dos documentos juntos a fls. 140 a 145 (email enviado pelo arguido à assistente e minuta de promessa de casamento), tendo assistente confirmado ter recebido o email em questão e ter-se recusado a assinar a promessa de casamento que lhe foi enviada pelo arguido, resultando do teor das mensagens trocadas entre o arguido e a assistente, reportadas a datas próximas (anteriores e posteriores), à data do email mencionado no ponto 34, designadamente, daquelas que se mostram transcritas a fls. 102 a 105, que o arguido e assistente, por essa altura, se encontravam separados.

32. Os factos vertidos nos pontos 37 a 40 provaram-se a partir das declarações do arguido, que relatou tais acontecimentos, revelando consistência e objetividade, tendo a assistente, nas declarações que prestou, confirmado a ocorrência da separação em referência, o que também resulta corroborado pelo teor da mensagem que a assistente enviou ao arguido em 23/01/2009, pelas 01h:20m, que consta do certificado, a fls. 1411 dos autos e pelo teor das mensagens que o arguido enviou à assistente, em 12/03/2009 e em 17/03/2009, que consta dos documentos de fls. 102 a 105, vindo o arguido a ser restituído dos bens em questão, na sequência de diligência de busca e apreensão realizada à residência da assistente, conforme decorre do teor do auto junto a fls. 1243 a 1245 e do termo de entrega inserto a fls. 452.

33. A prova dos factos exarados nos pontos 41 a 45 assentou no teor da certidão extraída do processo (autos de inquérito) nº. 7/09.2TABRG, junta a fls. 1227 a 1260, com particular relevância para as peças processuais que a integram que constam a fls. 1228 verso a 1234 (queixa), 1238 verso a 1240 (despacho que determinou a busca, mandado de busca e apreensão), 1243 a 1245 (auto de busca e apreensão, termo e guia de entrega), 1252 (auto de notícia), 1257 verso (requerimento apresentado pelo ali queixoso e ora arguido, em 26/02/2009) e 1258 (despacho homologatório da desistência de queixa e consequente arquivamento dos autos).

34. Para prova dos factos descritos nos pontos 46 a 48 foram decisivas as declarações do arguido e da assistente, que confirmaram terem voltado a reconciliar-se após a separação ocorrida entre finais de 2008 e inícios de 2009, resultando a troca de mensagens e de emails entre ambos e o teor daqueles que se mostram elencados no ponto 48, confirmado pelo teor dos documentos insertos a fls. 375, 378, 379, 380, 385, 387 e 388.

35. A convicção do Tribunal quanto à prova dos factos descritos nos pontos 49 e 50 formou-se com base no depoimento assertivo da testemunha QQ, que assegurou que o arguido e assistente, conviviam com amigos e familiares, aconselhando o arguido o pai da assistente em alguns assuntos, que requeriam conhecimentos jurídicos, não deixando o arguido e assistente, transparecer, publicamente, quaisquer conflitos ou desentendimentos entre ambos.

36. Os factos vertidos nos pontos 53 a 59 e 61 resultaram provados com base nas declarações prestadas pela assistente, que os admitiu como verdadeiros, atendendo-se, ainda, ao teor dos documentos juntos a fls. 390 (email enviado pela assistente ao arguido, em 22/12/2011, do qua consta a solicitação mencionada no ponto 57), 391 (email de resposta do arguido nos termos indicados no ponto 58), 415 a 424 (petição inicial referente ao proc. nº. 238/09.5TBMIR), 1300 a 1315 (certidão extraída do processo 238/09.5TBMIR, contendo a resposta à B.I. e a sentença nele proferida) e 1316 a 1356 (certidão extraída do processo 45/11.5TBMIR, contendo a resposta à B.I., a sentença nele proferida e o acórdão do TRG).

37. O Tribunal sedimentou a convicção quanto à prova da factualidade vertida no ponto 64, a partir dos depoimentos conjugados das testemunhas GG, PP, SS e FF, que integram o círculo de amigos da assistente e com quem a mesma convive, sendo com alguns deles, mais concretamente, com as testemunhas SS e FF (o que foi pelos mesmos afirmado), em algumas ocasiões, à noite, em jantares e eventos festivos.

38. A condenação sofrida pelo arguido, mencionada no ponto 70, mostra-se certificada a fls. 1165 dos autos.

39. Atenta a vasta prova acima referida produzida nos autos, é manifesto que bem andou o tribunal em considerar demonstrados os factos constantes no acórdão dados como provados.

40. De harmonia com o disposto no artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal, na parte que para o caso dos autos releva, pratica o crime de violência doméstica, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais; b) A pessoa de outro o do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. (…) sendo punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

41. Em relação ao bem jurídico protegido por esta incriminação, sendo a questão controvertida na doutrina e na jurisprudência, acolhemos a posição que é maioritariamente defendida, de que é a saúde, física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal da vítima, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no nº. 1 do artigo 152º.

42. O crime de violência doméstica é um crime específico, que pressupõe a existência de relação entre o agente e o sujeito passivo/vitima de entre as elencadas nas alíneas a) a d) do nº. 1 do artigo 152º do Código Penal.

43. O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.

44. Para o preenchimento do tipo legal do crime em apreço não se exige, pois, que a vitima se encontre numa posição de subalternização e/ou de dependência, designadamente económica, do agente, pois que, não é elemento do tipo legal de violência doméstica que a ofendida tenha uma posição de relação de “subordinação existencial” ou seja, uma posição de inferioridade e/ou dependência com o arguido, apesar de constituir uma realidade sociológica presente em muitas das situações de violência doméstica previstas no art. 152.º do C. Penal, isso não significa que as esgote ou que constitua elemento típico de cuja demonstração depende a responsabilidade penal do agente.

45. A dificuldade está em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros, sendo certo que, tem sido entendido que a solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.

46. Os maus tratos psíquicos, abrangem uma multiplicidade de comportamentos, que podem consistir em humilhações, provocações, ameaças (mesmo, que – como defende Américo Taipa de Carvalho, – «não configuradoras em si do crime de ameaça»), os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras.

47. Decisivo para que tais comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos psíquicos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar.

48.Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).

49. Tendo presentes as considerações jurídicas que se deixam expendidas e revertendo ao caso dos autos, confrontando a factualidade provada vertida nos pontos 1, 3 a 5, 11 e 12, entendemos que a conduta do arguido, para com a assistente, BB, com quem viveu em condições análogas às dos cônjuges, durante cerca de 4 anos, ainda que de forma ininterrupta, ocorrendo a separação definitiva entre ambos, no final de julho de 2011, de enviar para o telemóvel da assistente, dias antes dessa separação e após a sua ocorrência, as mensagens em causa nestes autos, manifestando sentir desprezo pela mesma, dirigindo-lhe provocações de cariz sexual e reveladoras de desconsideração pela mesma, nesse domínio, rebaixando-a, insultando-a, dirigindo-lhe ameaças veladas, criando na assistente um quadro de insegurança, intranquilidade e medo de que o arguido vingasse de si, integra o conceito de “maus-tratos psíquicos”.

50. A circunstância de ter resultado provado que no período temporal em que enviou à assistente os SMS com o teor referenciado, o arguido também lhe enviou outros em que declarava o seu amor pela assistente e o seu desejo de reatamento da relação afetiva com ela, não afasta o preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, sendo essa ambivalência de comportamentos recorrente, em situações como a que surge configurada nos autos, em que o arguido pretendia reatar a relação com a assistente, quando esta não queria fazê-lo, sendo, nesse contexto e dado o respetivo teor, as mensagens em que o arguido afirmava sentir amor pela assistente, reveladoras da frustração do arguido, por não conseguir que a assistente o aceitasse de volta.

51. O facto de ter sido considerado provado que, em datas muito anteriores ao período temporal em que se verificou o envio pelo arguido à assistente das mensagens de que se trata, a assistente em mensagens que enviou ao arguido (designadamente, em 2009 e 2010) dirigiu-lhe expressões tais como “cadelão”, “camarinha”, “filho da puta”, “metes nojo mesmo até aos porcos”, também não leva a afastar o preenchimento do crime de violência doméstica, designadamente, por via da reciprocidade de condutas, posto que, num e noutro dos casos, estamos perante momentos divergentes, sendo grande a distância temporal que os separa, nada impedindo, que nesta situação, os factos praticados pelo arguido, tendo como vítima a assistente e sendo lesado o bem jurídico tutelado pelo crime de violência domestica, nos termos sobreditos, sejam subsumíveis a tal tipo legal de crime.

52. Perante a matéria factual provada vertida nos pontos 9, 10, 11 e 12, dúvidas não existem de que, ao agir do modo descrito o arguido atuou com dolo, agindo livre, deliberada e conscientemente, com o intuito conseguido de inquietar, perturbar, incomodar, humilhar, ofender a honra e a consideração da assistente provocar medo nesta, nomeadamente, por ser ... de direito, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punível por lei.

53. Concluímos, assim, que a descrita conduta do arguido preenche, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal, por não se verificarem quaisquer causas de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade do arguido.

54. O tribunal a quo também andou bem na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, pois, dentro dos limites abstratos definidos na lei, ponderou bem todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime depunham a favor ou contra o arguido, sendo aquela pena limitada pela culpa deste revelada nos factos e é adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial.

57. O grau de ilicitude dos factos, revela-se mediano, tendo em conta, o modo de execução dos factos, que se traduziu no envio de SMS, durante um período temporal relativamente curto e atendendo a que, em consequência da conduta do arguido, a assistente, que é mãe de uma das suas filhas, que, na altura tinha apenas 3 anos de idade, vivenciou sentimentos de tristeza, intranquilidade e receio.

58. O dolo do arguido, reveste a forma de dolo direto, cuja intensidade se nos afigura mediana, tendo em conta o estado emocional evidenciado pelo mesmo, perante a rutura da união de facto com a assistente, com a ambivalência de sentimentos e de atitudes manifestados, perante o inconformismo por não ter conseguido a reconciliação pretendida, sendo o arguido ... de direito, sendo-lhe particularmente exigível a não adoção de condutas da natureza daquela que adotou, para com a assistente, justificando, por isso, um ...o de censura acrescido que subjaz à globalidade dos apurados comportamentos deste, em cujo contexto concretizou a supremacia que considerou da sua condição de ....

59. Resultou também provado que, o arguido ... de direito, exercendo funções num ...o local cível, encontra-se socialmente bem inserido e é uma pessoa estimada por colegas e amigos, no entanto, já regista uma condenação, pela prática de crime de falsidade de testemunho, por factos praticados, posteriormente àqueles que estão em causa nos presentes autos, tendo estado subjacente à prática daquele crime, a intenção de se vingar da assistente por não ter conseguido a reconciliação pretendida.

60. Há, ainda, que ter em conta as exigências de prevenção, ligadas à necessidade de evitar a multiplicação de crimes desta natureza, sendo que as exigências de prevenção geral mostram-se prementes, já que como se sabe, o tipo de crime em causa nos autos vem proliferando na nossa sociedade, sendo por todos conhecidas as consequências trágicas que, muitas vezes, lhe andam associadas; e as exigências de prevenção especial, revelam-se, à partida, abaixo da média, tendo em conta que a conduta do arguido surge como um acontecimento isolado, numa vida conforme ao direito, estando, ao que tudo indica ultrapassada a situação que o motivou a praticar os factos.

61. Tudo visto e ponderado andou bem o tribunal a quo em considerar adequada a aplicação ao arguido de uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

62. No que respeita ao pedido de indemnização civil, tendo ficado assente a existência de facto ilícito e danoso cometido pelo arguido/demandado e em face da demais factualidade que resultou provada, nomeadamente dos pontos 15 a 20, dúvidas não existem de que, se mostram preenchidos todos os enunciados pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, pelo que, bem andou o tribunal a quo em condenar o arguido a compensar os danos sofridos pela assistente.

63. Ficou, de facto, demonstrado que em consequência da atuação do recorrente, a assistente se sentiu inquieta, angustiada e com receio de que o demandado pudesse fazer-lhe mal; que após a rutura definitiva da relação com o arguido/demandado, durante algum tempo, sempre que o seu telemóvel tocava, a demandante sentia-se nervosa e inquieta, vivendo em sobressalto; que durante esse período temporal, a demandante deixou de sair sozinha de casa, à noite, só o fazendo quando alguém a ia buscar; que ao ler as mensagens que lhe foram enviadas pelo arguido/demandado, com o teor das referenciadas nas alíneas b), c), e), h), i) e j) do ponto 3, a demandante sentiu-se humilhada, desprezada, insultada, envergonhada, triste e afetada na sua dignidade enquanto mulher; que nesse período sentiu a sua auto-estima diminuída e o seu amor-próprio reduzido, pelo que, é manifesto que os danos morais sofridos pela assistente/demandante, constituem danos cuja gravidade merece a tutela do direito, sendo, por isso, nos termos do disposto no artigo 496º, nº 1, do Código Civil, indemnizáveis conforme decidiu o tribunal a quo.

64. A assistente considera assim que, na decisão recorrida, não foi violada qualquer norma jurídica; que as normas jurídicas aplicadas foram corretamente interpretadas e aplicadas; que a matéria de facto foi corretamente dada como provada, pois, as provas acima indicadas conduziam à solução alcançada pelo tribunal a quo, não devendo, por isso, ser renovada qualquer prova.

65. Por último, declara-se perante os Senhores ...es Conselheiros e principalmente perante o Senhor Conselheiro a quem vier a ser distribuído este recurso, que, atenta a extensão das matérias aqui desenvolvidas, a complexidade das mesmas, e ainda ao modo como o processo se desenvolveu na primeira instância, e apesar do esforço do mandatário da recorrida, não lhe foi possível encurtar as conclusões do recurso.

TERMOS EM QUE,

e nos demais de direito que V. Exas. douta e superiormente suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, por via dele, ser mantido o douto acórdão recorrido, como aliás é de, DIREITO E DE JUSTIÇA».

Parecer da Ex.ma PGA neste Supremo Tribunal

5. Por seu turno, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu, em 28 de Dezembro de 2018, douto parecer (fls. 1990-1999, do 7.º vol.), também a seguir transcrito:

«1 – O Tribunal da Relação de ..., funcionando como tribunal de 1ª instância, condenou, por Acórdão de 17.09.2018, o ... ... AA, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), do CP.

            2 – Irresignado, interpôs recurso o arguido em tempo e com legitimidade.

O recurso foi admitido com o efeito e modo de subida devido.

O MºPº e a Assistente responderam tempestivamente e com legitimidade.

3 – Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o seu âmbito - art. 412º, nº 1, do CPP e Ac. do STJ, de Fixação de Jurisprudência, nº 7/95, de 19.10.1995, in DR, 1ª Série-A, de 28.12.1995).

3.1. O arguido levou às prolixas e longas dissertações a que chama de conclusões de recurso, as seguintes questões:

- a sujeição do arguido ao presente julgamento com base em mensagens que haviam sido já objecto de análise no proc. 563/14.3TABRG, arquivado por falta/insuficiência de inquérito, traduz-se na violação do princípio “ne bis in idem”, padecendo de inconstitucionalidade o segmento da decisão relativa à improcedência da excepção do caso julgado.

- existe falta de fundamentação no que tange aos factos provados sob o n.º 10, pelo que é nula a decisão recorrida.

- o Tribunal recorrido incorreu no “vício (endógeno) da insuficiência para a decisão da matéria de facto, quanto à alínea o) da factualidade não provada, quanto ao ponto 27.º da factualidade provada e quanto ao ponto 65º da factualidade provada.

- o Tibunal recorrido incorreu no vício (endógeno) do erro notório na apreciação da prova, quanto ao ponto 10º da factualidade provada.

- o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento quanto ao ponto 10º dos factos provados, matéria que deverá passar a integrar o elenco da factualidade não provada.

- os factos provados no ponto 3º não integram a previsão do tipo (objectivo) de ilícito de violência doméstica por falta de dignidade ou carência de tutela penal, pelo que deve ser absolvido.

3.2 – O MºPº, na sua resposta, rebate os argumentos e as conclusões de recurso do arguido, pugnando pela manutenção do julgado, que não merece censura.

3.3 – No mesmo sentido, a resposta da Assistente, que defende não padecer a decisão recorrida de quaisquer vícios que arrastaria a sua nulidade.

4 – Em nosso parecer, o recurso do arguido não merece provimento.

4.1 - Importa reter que o recurso não é um novo julgamento, mas um “remédio jurídico” que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, procedendo ao reexame das decisões proferidas pelo tribunal inferior.

Por outro lado, o art. 127.º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.

E, como assinala o MºPº na sua resposta “sempre que a convicção seja possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova”.

Acompanhando o douto Acórdão do STJ, de 17/10/2012, que espelha a jurisprudência pacífica deste Venerando Tribunal, dele citamos:

O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa, assim, a repetição do julgamento na 2ª instância, mas dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente a todas as provas produzidas em audiência.

O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.° do CPP.

No sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que, conforme o artº 127º o CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

São admissíveis as provas que não forem admitidas por lei.- artº 125º do CPP

O citado art. 127.° indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, perante as provas produzidas que motivaram essa convicção, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova, e traduz a dimensão soberana da independência judicial na administração da justiça.

Por isso, os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, reexaminando decisões proferidas por jurisdição inferior.

Ao tribunal superior pede-se que aprecie a decisão à luz dos dados que o ... recorrido possuía.

(…) O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. (v. Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 - 5.ª Secção)

O exame crítico das provas imposto pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto tem como finalidade impor que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, para que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra. (v. Ac. do S.T.J. de 01.03.00, BMJ 495, 209)

Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. (Ac do STJ de 12 de Abril de 2000, proc. nº 141/2000-3ª; SASTJ, nº 40. 48.)

Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.

Como se decidiu por ex., no Ac. de 3-10-07, proc 07P1779, deste Supremo e, desta 3ª Secção, a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” de facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos. (…)”.

Em síntese e, parafraseando o Acórdão deste Supremo de 03-04-2008, Proc. n.º 2811/06 - 5.ª Secção.

No recurso de matéria de facto, haverá que ter por objectivo o passo que se deu, da prova produzida aos factos dados por assentes, e/ou o passo que se deu, destes à decisão. O recorrente poderá insurgir-se contra o modo como teve lugar um ou ambos os momentos deste trânsito, desde logo, impugnando a matéria de facto devido ao confronto entre a prova que se fez e o que se considerou provado, lançando mão do disposto no n.º 3 do art. 412.º do CPP, e podendo mesmo ser pedida a renovação de prova, ou, então, invocando um dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Neste caso, o vício há-de resultar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e tanto pode incidir sobre a relação entre a prova efectivamente produzida e o que se considerou provado (al. c) do n.º 2 do art. 410.º), como sobre a relação entre o que se considerou provado e o que se decidiu (als. a) e b) do n.º 2 do art. 410.º).

Em qualquer das hipóteses, haverá que ter em conta que, uma coisa é considerar objecto do recurso ordinário a questão sobre que incidiu a decisão recorrida e, outra, ter por objecto do recurso essa decisão ela mesma. No primeiro caso, haverá que decidir de novo a questão que foi levada a julgamento, podendo inclusive atender-se a factos novos e produzir prova nunca antes produzida. No segundo caso, haverá que apreciar da bondade da decisão recorrida só a partir dos dados de que o(s) julgador(es) recorrido(s) dispôs(useram). Acresce que a avaliação da decisão e a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo julgamento global de todo o objecto do processo.

Importa ainda ter em consideração, quanto ao julgamento de facto pela Relação, que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e, outra, é detectar-se no processo de formação da convicção do julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que e impossível reproduzir. (…)”.

4.2 - Revertendo ao caso dos autos, não se detecta, na decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, quaisquer dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2 e n.º 3, do CPP.

Os factos provados são suficientes para a decisão, não se surpreende nela qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova.

A matéria de facto mostra-se fixada.

Não assiste razão ao recorrente nesta parte do seu recurso.

4.3 - Igualmente carece de razão na invocada violação do princípio ne bis in idem, pelas razões pormenorizada e proficientemente expendidas no Acórdão recorrido, no segmento “Da excepção do caso julgado/violação do princípio ne bis in idem”.

Com efeito, no pº 563/14.3TABRG, o ora recorrente foi acusado e julgado por crime de falso testemunho.

A ora Assistente requereu a abertura de instrução para que o arguido viesse também a ser pronunciado pelo crime de violência doméstica, mas o requerimento respectivo foi indeferido.

Não obstante algumas das mensagens que o arguido enviou à ofendida constarem da descrição do libelo acusatório naquele processo, “foram-no a título de contextualização do quadro que antecedeu e de motivação subjacente à prática pelo arguido do crime de falso testemunho” que, balizou o objecto do processo/julgamento.

Não foram aquelas mensagens objecto de inquérito, acusação ou julgamento prévio. Tais mensagens, integram o acervo das que conduziram à condenação do arguido nos presentes autos, pelo crime de violência doméstica.

Não se verifica, por isso, violação do princípio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado.

4.4 - Carece igualmente de razão o arguido quando defende que os factos provados não integram o elemento objectivo do crime.

A violência prevista no art. 152.º do CP, não é só física. É também psicológica, quantas vezes mais graves do que a corporal pelas sequelas psíquicas permanentes ou por muito tempo sentidas pelas vítimas. Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação 8, ao art. 152.º, do seu Comnetário ao Código Penal “Nos termos do art. 3.º, al. b), da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, (…) o conceito de violência doméstica abrange «todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorre na família ou na unidade doméstica, ou (…) entre companheiro ou ex companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima”.

De modo reiterado e prolongado no tempo o arguido infligiu maus tratos psicológicos à ofendida, como abundamente resulta da factualidade provada e definitivamente fixada.

Mostram-se assim, preechidos os elementos típicos objectivos e subjectivos, do crime de violência doméstica pelo qual foi o arguido condenado.    

5 - Pelo exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência total do recurso interposto pelo arguido AA.»

******

******

            6. Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, nada tendo sido requerido.

Não tendo sido requerida a audiência, o processo prossegue através de julgamento em conferência (arts. 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), ambos do CPP).

Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência cumprindo agora apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É a seguinte a matéria de facto provada, bem como a fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida:

«Vem o arguido
AA, ..., ... [...],
 
pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal.

A ofendida BB constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização contra o arguido/demandado, pedindo que seja condenado a pagar-lhe a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), para ressarcimento de danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros legais, a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento.

             O arguido/demandado apresentou contestação escrita, deduzindo a exceção do caso julgado e a violação do princípio ne bis in idem e, sem prescindir, alegando factualidade tendente a caraterizar a natureza e o tipo de relacionamento mantido entre o próprio a assistente, designadamente, tendo em conta a linguagem e as expressões reciprocamente utilizadas, defende que a conduta cuja prática lhe é imputada no despacho de pronúncia não integra qualquer crime e não é passível de o constituir na obrigação de indemnizar a demandante com base na responsabilidade civil por facto ilícito. Conclui pugnando pela sua absolvição do crime por que vem pronunciado, bem como do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante. Arrolou testemunhas de defesa.

              Realizou-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais conforme consta das respetivas atas.

*

Da exceção do caso julgado / violação do princípio ne bis in idem

Na contestação que deduziu sustenta o arguido que tendo sido objeto do processo nº. 563/14.3TABRG, deste Tribunal da Relação de ..., a maior parte das mensagens que fundamentam o despacho de pronúncia proferido nos presentes autos, as quais, no âmbito daqueloutro processo, foram, pela ora assistente, na queixa que apresentou, trazidas ao conhecimento do Ministério Público e vindo a ser referenciadas, na acusação pública deduzida, sem que fosse atribuída relevância criminal às mesmas, para efeitos de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do C.P., não tendo sido suscitada a eventual nulidade por insuficiência do inquérito (nos termos do disposto no artigo 120º, nº. 2, al. d) e nº. 3, al. c), do C.P.P.), a mesma ficou sanada e tendo sido rejeitada, por inadmissibilidade legal, a abertura da instrução, requerida pela assistente, no âmbito do identificado processo n.º 563/14.3TABRG, com fundamento em falta/insuficiência de inquérito, pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do C.P., tal decisão de rejeição está coberta pela força de caso julgado (sob reserva da cláusula rebus sic stantibus), redundando na comprovação judicial do despacho de arquivamento (implícito) dos autos determinado pelo Ministério Público, não podendo ser discutido nestes autos (na ausência de novas provas que invalidem aquele arquivamento), o relevo criminal das mesmas mensagens, para efeitos de tipificação das mesmas no crime de violência doméstica.

Nesta conformidade, conclui o arguido que a sua sujeição a julgamento nos presentes autos, constituiu violação do princípio constitucional ne bis in idem, devendo, por isso, ser absolvido da instância criminal.

Vejamos:
Como é sabido o instituto do caso julgado não se mostra especificamente regulado no nosso ordenamento jurídico-penal, o que suscita algumas dificuldades.
De harmonia com o disposto no artigo 29º, nº. 5, da Constituição da República Portuguesa ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime.
A citada norma constitucional consagra o princípio ne bis in idem, sendo que este “embora pensado e estruturado em razão da segurança e paz jurídica”, “assume também uma garantia fundamental do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto” – cfr. Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, págs. 218 e 226.
Conforme escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, págs. 497 e 498, o princípio ne bis in idem «comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
(…)
 A constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime»
A dificuldade está em determinar o que deve entender-se pela expressão “mesmo crime” empregue no nº. 5 do artigo 29º da CRP .
«Como refere Frederico Isasca, in ob. cit., pág. 220 e 221, nota de rodapé (1), crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare” (...) “a expressão crime não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o nº 5 do art.º 29º da Constituição da República Portuguesa proíbe é, no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal».
Fazendo o levantamento dos entendimentos que vem sendo defendidos no que toca à definição do objeto do processo, tendo por referência os ensinamentos de Eduardo Correia e de Castanheira Neves, Figueiredo Dias e a evolução da doutrina, conclui Frederico Isasca, in ob. cit. p. 240: O objeto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível.
Acerca dos critérios de identidade do facto para efeito do “ne bis in idem” e em resposta à questão quando é que um facto se pode considerar “o mesmo”, para dessa forma se poder dizer que está a ser objeto dum novo julgamento, citamos o que escrevem Tereza Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto, Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, 2001, acessível no endereço https://docentes.fd.unl.pt, págs. 25 e 26,
«(…)
De acordo com a doutrina dominante, o conceito de identidade do facto é de natureza material e não puramente processual e, por outro lado, é um conceito normativo e não um conceito naturalístico.
Significa isto que não é o processo que determina se o facto é ou não o mesmo, mas sim as características materiais do facto que podem infirmar ou confirmar a identidade do mesmo.
A identidade do facto é, por seu turno, um conceito normativamente modelado para o qual concorrem não só aspectos naturalísticos do objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado, acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum processo.
 Nesse sentido, a doutrina aponta três vectores da identidade do facto que devem ser tipos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do facto legalmente descrito e a identidade de bem jurídico agredido. Agente, facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo.
 Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo.
(…)
Existirá dupla valoração sobre o mesmo facto quando o ...o de valor jurídico formulado incida sobre o mesmo agente e o mesmo facto em função da tutela do mesmo bem jurídico. Isto acontecerá independentemente da natureza da sanção aplicável. Para além destes casos de identidade plena de factos, ainda será necessário ponderar as situações de identidade parcelar dos factos em função das relações lógicas e axiológicas de identidade (i.e. consunção e, eventualmente, especialidade) e subordinação (i.e. subsidariedade) entre as normas que valoram as situações jurídicas. O que vale por dizer que a dupla valoração só é realmente evitada quando se sujeita o material analisado às regras vigentes que regulam as relações de concurso de normas. Só assim se pode garantir que uma pessoa ou entidade não é duplamente julgada ou condenada pelo mesmo facto, no seu todo ou em parte. (…)»
Conforme evidencia o Prof. Eduardo Correia, in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Caso Julgado e Poderes de Cognição do ...”, Almedina, 1983, pág. 302: «(…) o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim, o que está na base do instituto
Em relação ao alcance do princípio ne bis in idem, que constitui manifestação substantiva do caso julgado, constitui objeto de controvérsia jurisprudencial, saber se a proibição nele ínsita engloba apenas os factos que foram conhecidos e objeto de decisão no 1º processo ou se também os factos que aí podiam e deviam ter sido conhecidos e que não o foram, v.g. pela circunstância de o Ministério Público, no despacho final de encerramento do inquérito que proferiu, não os ter considerado autonomamente.  
  Salvo o devido respeito pela posição contrária, sufragamos o entendimento de que só ocorrerá violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem, no caso em que, no âmbito de um determinado processo criminal, tenha existido uma decisão definitiva que conheça de determinados factos com relevância penal (decisão essa que tanto pode ser uma sentença, um despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público, um despacho de não pronuncia do ... de instrução criminal ou um despacho que declare a extinção do procedimento criminal, por prescrição, por desistência da queixa ou por qualquer outra causa) e esses mesmos factos, venham a ser considerados, noutro processo, para efeitos de imputação ao mesmo arguido da prática de um qualquer crime, independentemente da distinta qualificação jurídica efetuada num e noutro dos processos.      
Como se expressa no Acórdão da R.C. de 21/12/2005, in CJ, Ano 2005, Tomo V, pág. 55: “Para que se verifique a existência de caso julgado impõe-se que o tribunal tenha apreciado efectivamente os factos que vêm submetidos segunda vez à sua apreciação na prespectiva da sua subsunção a determinado tipo de crime e sua imputação ao agente.”
Á luz das considerações que se deixam expendidas, revertendo ao caso dos autos, relevam para a apreciação da questão que nos ocupa, os seguintes elementos:
I Com referência ao processo nº. 563/14.3TABRG:
a) Em 19/03/2014, a ora assistente BB apresentou, junto dos Serviços do Ministério Público de ..., participação criminal contra o ora arguido, que deu origem ao processo nº. 563/14.3TABRG, por factos suscetíveis de integrarem o crime de falsidade de depoimento – cf. fls. 274 a 277;
b) Remetida a aludida participação aos Serviços do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de ..., no dia 31/10/2014, a ora assistente prestou declarações, tendo, nesse ato, a ora assistente referenciado que, após a separação definitiva do arguido, ocorrida em julho de 2001, o mesmo, nesse mês e nos meses de agosto e setembro, enviou-lhe mensagens, traduzindo que “a declarante se ia arrepender e muito do fim da relação”, apresentando a ora assistente documentação atestando o teor de tais mensagens, que foi junta ao processo – cf. fls. 352 a 354 e 314 a 351;
c) Entre as mensagens constantes dos documentos que a ora assistente juntou ao processo no ato aludido em b) e que lhe foram remetidas pelo arguido, contam-se as seguintes – cf. fls. 314, 315, 324, 325, 326, 327, 328, 329 e 330:
1. Em 06/07/2011, às 08:59 horas: “Tu, és minha. Vai ser assim toda a vida e ninguém se vai arrepender. És minha.”;
2. Na mesma data, às 13:59 horas: “Neste momento, só consigo sentir nojo, vergonha de ti. Muito vergonha mesmo. Mas, ATENÇÃO, nada que me surpreenda, nada de novo, o mesmo de sempre.
“… Nessa altura as coisas já não estavam bem.”
 Porca.
3. Em 31/07/2011, às 13:17 horas: “Estás muito enganada. Eu não penso que tu és maluca. Eu sei que tu és uma militante e voluntária. Mas, o teu reinado acabou. Alguém te vai tirar o tapetinho dos pés.

No teu caso mentira e crime estão interligados.”;

4. Em 01/08/2011, às 00:30 horas: “Sabes: tenho um grupo de cerca de 50 “amigas” (talvez mais) que fodo quando, como e onde quero. Já viste se o circo acabasse!? Lamento dizer-te que não fazes parte do grupo. Não tens os requisitos mínimos.”

5. Na mesma data, às 13:23 horas: “Uma coisa é absolutamente certa: mais cedo ou mais tarde, alguém se vai arrepender muito.”

Dadas as circunstâncias esse alguém não sou eu.”

6. Ainda no mesmo dia, às 13:50 horas: “Não te esqueças: ALGUÉM SE VAI ARREPENDER E MUITO.”

7. Em 02/08/2011, às 02:18 horas: “Vai-te foder, sua filha-da-puta.”

8. Na mesma data, às 15:09 horas: “O teu dever é estares na cama sempre que eu me deitar e sempre que eu acordar.

 Não estás a cumprir com as tuas obrigações”.

9. Ainda no mesmo dia, às 19:43 horas: “Desculpe incomodá-la D. BB. Mas é que ouvi dizer que se dedica ao fabrico e à comercialização de artigos de ourivesaria. Assim sendo e porque tenciono dar um presente original a uma amiga, pergunto-lhe se me pode fazer um broche?”

10. No dia 04/08/2011, às 00:48 horas: “Não percas a esperança. Nem de um dia perceberes quem eu era, quem sou e quem pareço.”
d) No âmbito do referenciado processo, por despacho de 19/10/2015, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nº. 1 e 3, do Código Penal; - cf. fls. 278 a 283;
e) No alicerce de tal imputação reside o facto de o arguido, na qualidade de testemunha, ter, no dia 19/09/2013, prestado depoimento, na audiência de julgamento, realizada no âmbito da ação declarativa, sob a forma de processo ordinário nº. 3606/12.1TBBRG, da extinta Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de ... (intentada pelo irmão da ora assistente contra esta, para anulação da escritura de cessão de quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do pai de ambos e de anulação do testamento efetuado por este último por alegada falta de capacidade e sanidade mental do testador), faltando, deliberada e conscientemente, à verdade. – cf. fls. 278 a 283
f) Nos factos narrados na acusação referenciada na alínea d), o Ministério Público alegou no ponto 18, o seguinte:
«Entretanto, em Julho desse ano de 2011, terminou a relação do arguido com a BB, por causa do que lhe foi endereçado por correio eletrónico e pelo telefone, músicas e mensagens, manifestando ora o seu amor para com ela e desejo de reatamento, ora mensagens e expressões de rancor e intimidatórias.
Entre outras, as seguintes:
- 7.07.2011, 3.51, AA: «Sempre pensei que seriamos capazes de ultrapassar esta adversidade  … Não sabia que tinhas deixado de gostar de mim. Não me disseste. E, os sentimentos retiram-se a objectividade necessária para entender e acreditar que isso tinha acontecido. Sinceramente estou sem energia para aguentar este embate. Não sei se quero continuar a viver, Provavelmente, não. Amei de mais.»
  - 11.07.2011, 5.55: «Se puderes: abraça, beija, toca, cheira, faz amo, sente o coração palpitar da pessoa que amas … Eu, infelizmente estou privado disso. A mulher que eu amo, não me ama a mim.»
   - 31.07.2011, 13.17: AA: «Estás muito enganada. Eu não penso que tu és maluca. Eu sei que tu és uma militante e voluntária. Mas, o teu reinado acabou. Alguém te vai tirar o tapetinho dos pés. No teu caso mentira e crime estão interligados.»;
  - 1.08.2011, 0,30 AA: «Sabes: tenho um grupo de cerca de 50 “amigas” (talvez mais) que fodo quando, como e onde quero. Já viste se o circo acabasse!? Lamento dizer-te que não fazes parte do grupo. Não tens os requisitos mínimos.»
 - 1.08.2011, 13.23 AA: «Uma coisa é absolutamente certa: mais cedo ou mais tarde, alguém se vai arrepender muito. Dadas as circunstâncias esse alguém não sou eu.»
- 1.08.2011, 13.50, AA: «Não te esqueças: ALGUÉM SE VAI ARREPENDER E MUITO.»
- 2.08.2011, 15.09, AA: «O teu dever é estares na cama sempre que eu me deitar e sempre que eu acordar. Não estás a cumprir com as tuas obrigações.».
- 3.08.2011, 6.44, AA: «A tua postura não permite qualquer avanço. Assim nem vale a pena tentar …»
- 7.08.2011, 7.52, AA: «Neste momento, tenho duas certezas: 1- Que te amo; 2- Que quero fazer-te muito feliz. Juro.»
  - 7.08.2011, 8.30, AA: «Por tudo isto, peço-te: deixa-me que te faça feliz. Abre-me o teu coração e a porta de casa, para eu poder reentrar na tua vida …»
- 16.08.2011, 18.38, AA: «…Não queiras despertar o pior que há em mim…Mentirosa. Miserável.». – cf. fls. 279 verso e 280.
g) Em 19/11/2015, a assistente requereu a abertura da instrução, invocando a insuficiência do inquérito e investigação, defendendo que atenta a matéria de facto constante da acusação e a prova documental junta aos autos, a conduta do arguido deveria ser agravada nos termos do disposto no artigo 361º do Código Penal e ainda ser suscetível de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do Código Penal. – cf. fls. 1268 a 1276. 
h) Por despacho proferido em 25/01/2016, que transitou em julgado em 29/02/2016, foi liminarmente indeferido o requerimento de abertura da instrução mencionado na al. g), por inadmissibilidade da instrução por falta de objeto (omissão no RAI dos factos necessários ao completo preenchimento do tipo de crime imputado ao arguido), em violação do disposto no nº. 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal. – cf. fls.  1268, 1298 e 1299.
i) No âmbito do mencionado processo nº. 563/14.3TABRG, o arguido foi julgado e condenado, por acórdão deste Tribunal da Relação, proferido em 16/05/2017, transitado em julgado, em 02/03/2018, pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º nºs. 1 e 3, do Código Penal. – cf. fls. 973 a 1073 e fls. 1165.
j) No acórdão referenciado na al. i) foi dado como provado, no ponto 25 da matéria factual provada, que o arguido endereçou à assistente, por correio eletrónico e telefone, músicas e mensagens, designadamente, as descritas no ponto 18 da acusação, cujo teor se referenciou supra, na al. f). – cf. fls. 975.
BCom referência aos presentes autos:
k) Tiveram origem na denúncia apresentada pela assistente contra o arguido, em 18/02/2016, pela prática de factos que se referem às mensagens que lhe foram, pelo mesmo, remetidas, enquadrando a denunciada conduta do arguido ao crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do C.P. – cf. fls. 2 a 16;
l) O arguido veio a ser pronunciado pela prática, em coautoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal.
m) Os factos que fundamentam a imputação do aludido crime, descritos na pronúncia são os seguintes:

1 - A assistente e o arguido viveram em união de facto entre, pelo menos, Setembro de 2007 e Julho de 2011, de forma não ininterrupta.

2 - Já que, durante aquele período, assistente e arguido separaram-se por, pelo menos, 3 ou 4 vezes, tendo após cada uma dessas separações, ocorridas por desavenças entre ambos, voltado a viver juntos, após reconciliação.

3 - A partir da separação definitiva ocorrida em Julho de 2011, o arguido enviou do seu telemóvel com o nº. ... à assistente, para os telemóveis que se encontravam na posse desta, as mensagens, com o seguinte teor:

a) Em 6/07/2011, às 08,59 horas: “Tu, és minha. Vai ser assim toda a vida e ninguém se vai arrepender. És minha.”;

b) Na mesma data, às 13,59 horas: “Neste momento, só consigo sentir nojo, vergonha de ti. Muito vergonha mesmo. Mas, ATENÇÃO, nada que me surpreenda, nada de novo, o mesmo de sempre. (…) Porca.

c) Ainda no mesmo dia, às 14,35 horas: “Estou a mijar. Isto diz-te alguma coisa? Ou a tua boquinha não pode falar?

d) Em 31/07/2011, às 13,17 horas: “Estás muito enganada. Eu não penso que tu és maluca. Eu sei que tu és uma militante e voluntária. Mas, o teu reinado acabou. Alguém te vai tirarara dos pés. No teu caso mentira e crime estão interligados.”;

e) Em 1/08/2011, às 00,30 horas: “Sabes: tenho um grupo de cerca de 50 “amigas” (talvez mais) que fodo quando, como e onde quero. Já viste se o circo acabasse!? Lamento dizer-te que não fazes parte do grupo. Não tens os requisitos mínimos.”

f) Na mesma data, às 13,23 horas: “Uma coisa é absolutamente certa: mais cedo ou mais tarde, alguém se vai arrepender muito. Dadas as circunstâncias esse alguém não sou eu.”

g) Ainda no mesmo dia, às 13,50 horas: “Não te esqueças: ALGUÉM SE VAI ARREPENDER E MUITO.”

h) Em 02/08/2011, às 02,18 horas: “Vai-te foder, sua filha-da-puta.”

i) Na mesma data, às 15,09 horas: “O teu dever é estares na cama sempre que eu me deitar e sempre que eu acordar.

 Não estás a cumprir com as tuas obrigações”.

j) Ainda na mesma data, às 19,43 horas: “Desculpe incomodá-la D. CC. Mas é que ouvi dizer que se dedica ao fabrico e à comercialização de artigos de ourivesaria. Assim sendo e porque tenciono dar um presente original a uma amiga, pergunto-lhe se me pode fazer um broche?”

k) No dia 4/08/2011, às 00,48 horas: “Não percas a esperança. Nem de um dia perceberes quem eu era, quem sou e quem pareço.”

l) Em 16/08/2011, às 18,38 horas: “… Não queiras despertar o que há de pior em mim. Não tens vida para te aguentar à bronca. Mentirosa. Miserável.”

4 - Antes da separação supra referida em 3, o arguido enviou à assistente, em 23/01/2009, uma mensagem do mesmo telemóvel, com o seguinte teor: “Ela é ...a e, como os outros, poder, influencia e amigos. São eles K mandam nesta merda toda. Aliás, tu já viste como é.” 

5 - Após o fim da união de facto com a assistente, que não aceitou, o arguido enviou várias mensagens para telemóveis usados pela assistente ou por correio eletrónico, com músicas e/ou texto, ora declarando o seu amor por aquela e o seu desejo de reatamento da relação afetiva com ela, ora dirigindo-lhe expressões de idêntico teor às supra referidas em 3.
 (…)

7 - Em 19/09/2013, no âmbito do processo nº. 3606/12.1TBBRG, da extinta Vara Mista de ..., o arguido prestou depoimento no sentido de que o falecido pai da assistente não tinha capacidade para outorgar o testamento aí em discussão, e pelo qual, este deixava a esta filha a sua quota disponível, contribuindo decisivamente para a anulação do mesmo.

8 - A prestação de tal depoimento deu origem ao processo nº. 563/14.3TABRG deste Tribunal da Relação de ..., no qual foi apresentada denúncia por esses factos, em 19/03/2014, pela assistente, e no qual o arguido veio a ser condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho, por douto acórdão de 16/05/2017, confirmado em sede de recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça.

9 - Foi o próprio arguido que instigou o irmão da assistente a propor a ação referida em 7, apesar de saber que era falsa a alegada incapacidade do pai da assistente, à data da realização do testamento anulado.

10 - O arguido agiu da forma descrita em 3 a 5 com o intuito conseguido de inquietar, perturbar, incomodar, humilhar, injuriar, ameaçar e provocar medo nesta, nomeadamente, por ser ... de direito.

11 - E ao atuar da forma referida em 7 e 9 com a intenção de dela se vingar por não ter conseguido a reconciliação que pretendia.

12 - O arguido sabia que no circunstancialismo de tempo em que foram enviadas as mensagens referidas em 3, a assistente se encontrava fragilizada, pela morte do pai, sentindo-se mais vulnerável.

13 - Nesse período, a assistente estava bastante triste e abatida, sentindo-se insegura por ter receio que o arguido se vingasse dela, tendo durante algum tempo inclusive deixado de sair à noite.

14 - A assistente sentiu-se perseguida pelo arguido.

15 - O arguido agiu livre, deliberada, conscientemente e de forma voluntária, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
**
Perante o que se deixa descrito, resulta evidente que os factos por que o arguido foi pronunciado nos presentes autos, não foram objeto de apreciação e decisão no processo nº. 563/14.3TABRG.
É certo que a quase totalidade das mensagens que vêm referidas no despacho de pronúncia proferido nos presentes autos como tendo sido enviadas pelo arguido à assistente foram descritas na acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido, no âmbito do processo nº. 563/14.3TABRG e que tal factualidade foi dada como provada, no acórdão proferido no âmbito dos mesmos autos, que condenou o arguido pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º nºs. 1 e 3, do Código Penal.
Contudo, os factos em questão, que se reportam às mensagens que o arguido enviou à assistente, que foram narrados na acusação deduzida pelo Ministério Público no processo nº. 563/14.3TABRG e que resultaram provados, no acórdão condenatório proferido, foram alegados e considerados a título circunstancial, na contextualização do quadro que antecedeu e da motivação subjacente à prática pelo arguido do crime de falsidade de testemunho, por que veio a ser condenado, por decisão já transitada em jugado.
 Não oferece dúvida que tendo os ditos factos sido participados pela ora assistente no âmbito daquele processo nº. 563/14.3TABRG, quando prestou declarações, na fase de inquérito, estando em causa uma conduta legalmente descrita como violadora de bens jurídicos tutelado pela lei penal, deveriam ter sido objeto do inquérito/investigação realizada pelo Ministério Público e que o despacho final proferido pelo Ministério Público deveria ter-se reportado à sua (ir)relevância criminal, o que não aconteceu, não sendo, em nosso entender, de acolher a posição defendida pelo arguido, no sentido de que ao descrever tais factos na acusação, sem lhes atribuir relevância criminal, o Ministério Público determinou o arquivamento (implícito) dos autos, nessa parte.
Porém, tendo em conta a posição que acolhemos, no sentido de que a verificação do caso julgado e a violação do princípio ne bis in idem só ocorrerão, no caso de, o âmbito de determinado processo, existir uma decisão definitiva que conheça de determinados factos com relevância criminal e esses mesmos factos, venham a ser considerados, noutro processo, para efeitos de imputação ao mesmo arguido da prática de um qualquer crime, entendemos que a circunstância de o Ministério Público não ter investigado os factos que foram levados ao seu conhecimento pela ora assistente, na fase inicial do inquérito, e ter proferido despacho de acusação, onde pese embora referenciado tais factos não lhes atribui relevância penal, não exclui a possibilidade de vir a ser instaurado outro processo tendo por objeto tais factos (neste sentido, cf., entre outros, Ac. da R.E. de 06/01/2015, proferido no proc. nº. 849/10.6GDPTM.E1, acessível no endereço www.dgsi.pt).
Consequentemente, em face do que se deixa exposto, entende-se que a sujeição do arguido a julgamento pelos factos/crime por que foi pronunciado nos presentes autos não viola o caso julgado, nem o princípio ne bis in idem.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela improcedência da exceção do caso julgado e pela inexistência de violação do princípio ne bis in idem, invocados pelo arguido.
*

             Não se suscitaram nem existem nulidades ou quaisquer outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem á apreciação do mérito da causa.

              II - Fundamentação

              2.1. Os factos provados
              Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos:
              Da pronúncia:

1. A assistente BB e o arguido viveram em união de facto entre, pelo menos, setembro de 2007 e julho de 2011, de forma não ininterrupta.

2. Já que, durante o período indicado em 1, assistente e arguido separaram-se por, pelo menos, 4 vezes, tendo após cada uma dessas separações, ocorridas por divergências entre ambos, voltado a viver juntos, após reconciliação.

3. Dias antes da separação definitiva, que aconteceu em finais de julho de 2011, e a partir dessa separação, o arguido enviou do seu telemóvel com o nº. ..., à assistente, para os telemóveis que se encontravam na posse desta, as mensagens, com o seguinte teor:

a) Em 06/07/2011, às 08:59 horas: “Tu, és minha. Vai ser assim toda a vida e ninguém se vai arrepender. És minha.”;

b) Na mesma data, às 13:59 horas: “Neste momento, só consigo sentir nojo, vergonha de ti. Muito vergonha mesmo. Mas, ATENÇÃO, nada que me surpreenda, nada de novo, o mesmo de sempre. (…) Porca.

c) Ainda no mesmo dia, às 14:35 horas: “Estou a mijar. Isto diz-te alguma coisa? Ou a tua boquinha não pode falar?

d) Em 31/07/2011, às 13:17 horas: “Estás muito enganada. Eu não penso que tu és maluca. Eu sei que tu és uma militante e voluntária. Mas, o teu reinado acabou. Alguém te vai tirar o tapetinho dos pés.

No teu caso mentira e crime estão interligados.”;

e) Em 01/08/2011, às 00:30 horas: “Sabes: tenho um grupo de cerca de 50 “amigas” (talvez mais) que fodo quando, como e onde quero. Já viste se o circo acabasse!? Lamento dizer-te que não fazes parte do grupo. Não tens os requisitos mínimos.”

f) Na mesma data, às 13:23 horas: “Uma coisa é absolutamente certa: mais cedo ou mais tarde, alguém se vai arrepender muito.”

Dadas as circunstâncias esse alguém não sou eu.”

g) Ainda no mesmo dia, às 13:50 horas: “Não te esqueças: ALGUÉM SE VAI ARREPENDER E MUITO.”

h) Em 02/08/2011, às 02:18 horas: “Vai-te foder, sua filha-da-puta.”

i) Na mesma data, às 15:09 horas: “O teu dever é estares na cama sempre que eu me deitar e sempre que eu acordar.

 Não estás a cumprir com as tuas obrigações”.

j) Ainda no mesmo dia, às 19:43 horas: “Desculpe incomodá-la D. BB. Mas é que ouvi dizer que se dedica ao fabrico e à comercialização de artigos de ourivesaria. Assim sendo e porque tenciono dar um presente original a uma amiga, pergunto-lhe se me pode fazer um broche?”

k) No dia 04/08/2011, às 00:48 horas: “Não percas a esperança. Nem de um dia perceberes quem eu era, quem sou e quem pareço.”

l) No dia 16/08/2011, às 18:38 horas: “… Não queiras despertar o que há de pior em mim. Não tens vida para te aguentar à bronca. Mentirosa. Miserável.”

4. Antes da separação definitiva referida em 3, o arguido enviou à assistente, em 23/01/2009, pelas 13h:40m, uma mensagem do mesmo telemóvel, com o seguinte teor: “Ela é ...a e, como todos os outros tem poder, influencia e amigos. São eles K mandam nesta merda toda. Aliás, tu já viste como é.” 

5. Após o fim da união de facto com a assistente, que não aceitou, o arguido enviou várias mensagens para telemóveis usados pela assistente ou por correio eletrónico, com músicas e/ou texto, ora declarando o seu amor por aquela e o seu desejo de reatamento da relação afetiva com ela, ora dirigindo-lhe expressões com o teor das supra referidas em 3.

6. O arguido após a referida separação definitiva foi indicado pela assistente como testemunha em, pelo menos, dois processos de natureza cível, cuja decisão foi favorável à assistente, tendo neles prestado depoimento.

7. Em 19/09/2013, no âmbito do processo nº. 3606/12.1TBBRG, da extinta Vara Mista de ..., o arguido prestou depoimento no sentido de que o falecido pai da assistente não tinha capacidade para outorgar o testamento aí em discussão, e pelo qual, este deixava a esta filha a sua quota disponível, contribuindo decisivamente para a anulação do mesmo.

8. A prestação de tal depoimento deu origem ao processo nº. 563/14.3TABRG deste Tribunal da Relação de ..., no qual foi apresentada, pela assistente, denúncia por esses factos, em 19/03/2014 e em cujo âmbito o arguido veio a ser condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho, por Acórdão de 16/05/2017, confirmado, em sede de recurso, pelo Supremo Tribunal de Justiça.

9. O arguido agiu da forma descrita em 3 a 5 com o intuito conseguido de inquietar, perturbar, incomodar, humilhar, ofender a honra e a consideração da assistente e provocar medo nesta, nomeadamente, por ser ... de direito.

10. E ao atuar da forma referida em 7 o arguido atuou com a intenção de se vingar da assistente por não ter conseguido a reconciliação que pretendia.

11. O arguido sabia que no circunstancialismo de tempo em que foram enviadas as mensagens referidas em 3, a assistente se encontrava fragilizada pela morte do pai, sentindo-se mais vulnerável.

12. Nesse período, a assistente estava bastante triste e abatida, sentindo-se insegura por ter receio que o arguido se vingasse dela, tendo inclusive, durante algum tempo, deixado de sair sozinha à noite.

13. A assistente sentiu-se perseguida pelo arguido.

14. O arguido agiu livre, deliberada, conscientemente e de forma voluntária, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Do pedido cível:

Para além dos factos acima descritos, provou-se, ainda:

15. Em consequência direta e necessária da descrita atuação do arguido/demandado, do envio pelo arguido/demandado de mensagens com o teor das referenciadas, a demandante sentiu-se inquieta, angustiada e com receio de que o demandado pudesse fazer-lhe mal.

16. Ainda em consequência da descrita conduta do arguido/demandado, após a rutura definitiva da relação com o arguido/demandado, durante algum tempo, sempre que o seu telemóvel tocava, a demandante sentia-se nervosa e inquieta, vivendo em sobressalto.

17. E durante esse período temporal, a demandante deixou de sair sozinha de casa, à noite, só o fazendo quando alguém a ia buscar.

18. De igual modo, em consequência da descrita atuação do arguido/demandado, ao ler as mensagens que lhe foram por este enviadas, com o teor das referenciadas nas alíneas b), c), e), h), i) e j) do ponto 3, a demandante sentiu-se humilhada, desprezada, insultada, envergonhada, triste e afetada na sua dignidade enquanto mulher;

19. Vendo, ainda, a demandante, nesse período, a sua autoestima diminuída e o seu amor-próprio reduzido;

20. E vivenciando sentimentos de tristeza, angústia e ansiedade.

21. A demandante ainda hoje se sente revoltada com a atuação do arguido/demandado, mencionada no ponto 7.       

Da contestação:

Provou-se:

22. Durante o tempo em que viveram juntos, como se marido e mulher fossem, o arguido e assistente fixaram residência na casa pertencente à última, sita na ....

23. Dessa relação nasceu, em ...2007, a filha de ambos, JJ, atualmente com 10 anos de idade.

24. O arguido e assistente conheceram-se em agosto de 2006 e iniciaram relação de namoro, no mês seguinte, em setembro de 2006.

25. Nessa altura, o arguido era casado com TT e, embora estando o casamento em rutura, viviam na mesma casa, com as duas filhas do casal, atualmente com 16 e 20 anos de idade, respetivamente.

26. Durante a fase inicial do namoro, o arguido e a assistente trocavam amiúde mensagens, através de telemóvel.

27. Em algumas das mensagens que a assistente enviou ao arguido, na fase aludida em 26, a assistente apelidou o arguido de “bandido”, “lacrau”, “gringo” “vadio”, “safado”, “burro”, “cabrão” e “vadio”, o que ocorreu, designadamente, nas mensagens enviadas:

- Em 08/09/2006, pelas 11h:36m: “Vadio …”;

- Em 11/09/2006, pelas 05h:190m: “Cabrão …”;

- Em 14/09/2006, pelas 18h:03m: “Ho gajo tenho de aproveitar para trabalhar e aproveitei e vim visitar o meu pai ho burro”;

- Em 15/09/2006, pelas 19h:05m: “Estás bem gringo”;

- Em 23/09/2006, pelas 22h:44m: “Engraçado tenho a mesma opinião de ti: vadio e safado”. Beijinhos, passa bem.

- Em 10/11/2006, pelas 20h:42m: “Então lacrau”;

- Em 12/11/2006, pelas 22h:33m: “Mi tu lacrau”;

- Em 28/11/2006, pelas 16h:17m: “amo-te bandido”.

28. Decorridos alguns meses após o início da relação de namoro com o arguido, a assistente engravidou da filha JJ, que veio a nascer a .../2007.

29. Na sequência dessa gravidez, o arguido e a assistente passaram a viver juntos, em condições análogas às dos cônjuges, o que sucedeu, pelo menos, a partir de setembro de 2007.

30. Nos meses que antecederam a sua vivência em comum, o arguido a assistente saiam juntos, para jantar e divertirem-se “na noite”, convivendo com alguns amigos comuns e passando fins de semana juntos.

31. O arguido começou a verbalizar que, a breve prazo, se iria divorciar da sua mulher e a assistente a manifestar-se desejosa de que tal fosse concretizado.

32. As separações mencionadas no ponto 2 ocorridas anteriormente à separação definitiva, aconteceram por iniciativa do arguido, que abandonava a casa onde residia com a assistente.

33. Uma dessas separações aconteceu por altura em que teve lugar a proposta de celebração de promessa de casamento, apresentada pelo arguido à assistente em 02/04/2009.

34. O envio pelo arguido à assistente da minuta desse contrato promessa ocorreu por e-mail, do dia 02/04/2009 onde o arguido escreveu:

“Subject (assunto): Vigarice

Junto segue em anexo o contrato.

Proponho-te que te aconselhes com os teus melhores amigos e juristas.

Sei, tenho a certeza, que todos vão dizer o seguinte: “Oh BB, tu vais vigarizar o gajo !?”

No entanto, eu, aos teus insultos e insinuações perversas, respondo, assim, com este contrato. Mas só faço este contrato porque estou convicto que tu, em breve, vais liderar o grupo do ... ou do ... e, como tal, vais auferir um vencimento muito superior ao meu.

Estás a ver como eu sou um grande vigarista ?

Quem ler o contrato, e conhecer a realidade dos factos, diz que eu sou um grande palerma !

Mas não faz mal. Eu sinto-me melhor assim a viver contigo, partilhando tudo.

AA”.

              35. A assistente recusou-se a assinar a aludida promessa de casamento.

36. Após a referenciada separação, a assistente e o arguido voltaram a reatar a vida em comum.

37. Anteriormente à aludida separação ocorrera uma outra, em dezembro de 2008, saindo o arguido da casa onde vivia com a assistente.

38. O arguido deixou naquela casa os seus bens pessoais, designadamente, peças de vestuário, artigos de higiene, um MP4 e um computador portátil.

39. O arguido deslocou-se a casa da assistente para levar os ditos objetos, o que não concretizou, pelo facto de a assistente não o ter permitido.

40. Após ter diligenciado no sentido recuperar aqueles bens, por via extrajudicial, recorrendo à colaboração da PSP e à intervenção de uma pessoa amiga, o que se revelou infrutífero, 

41. No dia 02/01/2009, o arguido apresentou, junto dos Serviços do Ministério Público de ..., queixa-crime contra a ora assistente, que deu origem a Inquérito nº. 7/09.2TABRG. 

42. No âmbito dos autos de inquérito referenciados no ponto anterior, na sequência de promoção do Ministério Público, foi determinada, por despacho judicial de 08/01/2009, a realização de busca domiciliária à residência e garagem da assistente

             43. Tal busca foi realizada no dia 16/01/2009, entre as 17h:15m e as 18h:45m, tendo sido apreendidos parte dos bens que o arguido descrevera na queixa apresentada contra a ora assistente, cujo valor foi pelo arguido estimado em cerca de €26.000,00.

44. No decurso da aludida busca domiciliária, foi por um dos agentes da PSP que participou em tal diligência, levantado auto de notícia contra a ora assistente, por se ter referido ao ora arguido nos seguintes termos “aquele animal, nem paga a pensão à filha” e por se ter dirigido ao ora arguido dizendo-lhe “és uma besta”.

45. Em 26/02/2009, o ora arguido apresentou requerimento, nos autos de inquérito, indicados em 41, em que:

- Desistiu da queixa apresentada contra a ora arguida; e

- Declarou que, à data da prática dos factos, o valor dos bens indicados no ponto 38 e 43 não excedia 50 unidades de conta.

46. Perante o requerimento referido em 45, o Ministério Público, homologou a desistência da queixa apresentada contra a ora arguida, declarado extinto o procedimento criminal e determinando o arquivamento dos autos aludidos em 41.   

47. No período que mediou entre a data aludida em 43 e o momento referenciado em 45, o arguido voltou a reconciliar-se com a assistente.

             48. O arguido e a assistente continuaram a trocar mensagens e emails, entre os quais, se contam os seguintes:

a) No dia 15/03/2010, pelas 19h:45m:

“AA: ah...não estás a mentir.

Na verdade, verifico que estás a ver os mails. Mas, com quem?

BB: o mentiroso és tu

AA: acabas de ser acusada de um crime de injúrias, com pedido astronómico de indemnização civil, por danos morais ...

BB: Ó cadelão o verdadeiro crime ainda está para vir...ha...

(…)

b) No dia 19/04/2010, pelas 20h:08m, a assistente enviou ao arguido o email com o seguinte teor:

Caro camarinha: (…) Agora junta isto ao facto de quereres estar casado, até já me mete nojo esta conversa (…)

c) No dia 20/04/2010, pelas 00h:08m, a assistente enviou ao arguido o email com o seguinte teor:

“Só mais uma coisinha, eu vou comprar o fiat porque ainda não preciso de mais e ainda bem, pois não tenho dinheiro para o ferrari mas a tua mulher deve ter.

 o nome camarinha foi só para te lembrares da tua mudança”;

d) No dia 22/02/2011, pelas 19h:37m, a assistente reencaminhou para o arguido um email do seu ilustre mandatário forense, Dr. UU, contendo articulados produzidos numa ação onde era parte interessada o falecido Eng.º ..., seu (dela) pai;

e) No dia 01/04/2011, pelas 01h:01m, a assistente envia ao arguido um email com o seguinte teor:

Assunto: Phoda-se

f) No dia 01/07/2011, pelas 18h:48m, a assistente reencaminha para o arguido um email do ilustre mandatário Dr. UU, contendo despacho e articulado produzidos numa ação onde era parte interessada o falecido Eng.º ..., seu (dela) pai, e onde é solicitada a colaboração do arguido como testemunha;

g) No dia 03/07/2011, pelas 22h:13m, a assistente remete ao arguido um e-mail a encaminhar uma “música dos nossos tempos”, Xanadu – Shalali, cuja fonte é o youtube.

             49. Durante a vivência em comum, o arguido a assistente saíram com amigos e familiares, com estes socializando e convivendo, passando férias juntos e aconselhando o arguido o pai da assistente, na condução dos seus assuntos pessoais e profissionais.

             50. Não evidenciando o arguido e a assistente, publicamente, quaisquer conflitos ou atritos.

51. Em julho de 2011, em data exata não apurada mas posterior ao dia 6, a assistente e o arguido foram juntos de férias para o ..., onde estiveram durante 15 dias, na companhia da filha de ambos, JJ e das duas filhas do arguido, permanecendo em casa de um amigo.

52. Durante o aludido período de gozo de férias, a assistente e o arguido partilharam cama, quarto e mesa, tomando as refeições em conjunto, indo juntos para a praia e para outros locais de lazer.

53. Após a separação definitiva do arguido e da assistente, esta manteve contato com o arguido, tratando de assuntos que não apenas os respeitantes à filha que têm em comum.

Assim:

54. Em 22/12/2011, a assistente solicitou ao arguido, por escrito, que este testemunhasse no âmbito do processo “contra o beto” (...).

55. Ao que o arguido anuiu, respondendo, através de email datado de 23/12/2011, que estaria sempre disposto a colaborar na descoberta da verdade e que assim faria, caso ela o quisesse.

56. Nessa sequência, a assistente indicou o ora arguido com testemunha nesses autos (proc. nº. 238/09.5TBMIR, do Tribunal Judicial de ...), tendo o mesmo ali vindo a prestar depoimento, que foi positivamente valorado pelo Tribunal na decisão proferida sobre a matéria de facto.

57. De igual forma, a assistente, em 01/07/2011, solicitou ao arguido, por escrito, que este fosse sua testemunha no âmbito dos autos que, sob o número 45/11.5TBMIR, corriam termos pela extinta Vara de Competência Mista de ....

58. O arguido anuiu a tal solicitação, vindo a prestar depoimento nos autos referenciados em 57, que foi atendido/valorado pelo Tribunal na decisão proferida sobre a matéria de facto.

59. Em ambas os processos mencionados em 56 e 57, as decisões finais foram favoráveis aos interesses da ora assistente.

60. No dia 22/05/2013, pelas 16h:33m, a assistente, reportando-se à ação de anulação do testamento do seu falecido pai intentada pelo seu irmão, remeteu ao arguido um email, com o seguinte teor: «Nas testemunhas do meu irmão, além da minha mãe que me enganou muito bem “embora eu tenha sido avisada pelo meu Pai várias vezes” a BB K ficou espantada o pai dela k não sabia os Notários, tu etc… aparece a ... que eu nem sabia o nome dela todo, deve ser a ... que esteve aqui em casa, foste tu que deste a morada? É só por curiosidade pois mais ninguém a conhece. O julgamento é dia 19 de Setembro às 9.30 O Dr. ... prefere sem vídeo conferência mas se preferires não sei como é que se deve fazer mas penso que o advogado sabe. Agradeço que compareças. Cumprimentos BB» 

61. No dia 03/07/2012, a assistente solicitou ao arguido, através da sua mandatária forense, e no âmbito da ação cível nº. 3606/12.1TBBRG, que correu seus termos pela extinta Vara Mista de ... e mencionada supra, no ponto 7, que o arguido analisasse e desse a sua opinião sobre o articulado “Contestação” que a assistente intentava produzir naqueles autos.

62. O arguido é ... de direito há vinte anos, é economicamente autónomo e está socialmente bem integrado, tendo três filhas, duas do seu casamento, uma das quais, já maior e a mais nova, fruto da relação que manteve com a assistente.

63. A assistente é empresária que se dedicou ao ramo da ourivesaria, tendo rendimentos provenientes de bens da herança que lhe foi deixada pelo pai (que foi um conhecido empresário de ..., ligado ao grupo empresarial “..”), sendo, economicamente autónoma e financeiramente independente.

64. A assistente encontra-se socialmente bem inserida e tem um grupo de conhecidos e amigos, com os quais convive, designadamente, em algumas ocasiões, à noite.

              Provou-se, ainda, que:

              65. Na data referida em 4 (23/01/2009), a assistente enviou ao arguido, através do seu telemóvel com o nº. ..., as mensagens com o seguinte teor:

- às 01h:35m:Ho filho da puta monte de merda pensei k estavas muito triste. da tua mulher até tremes mas eu não te tenho medo nenhum”;

- às 01h:20m: “Metes mesmo nojo até aos porcos preocupado com a merda de uma camisas k se estao ca é pork se esqueceram. Preocupa te em resolver a reg do poder paternal. Palhaço”.

              Factos atinentes às condições pessoais do arguido:

66. O arguido é ... ..., exercendo funções num ...o Local ..., auferindo o vencimento correspondente;

67. Tem três filhas, respetivamente, com 19, 16 e 10 anos de idade, sendo a mais nova fruto da que manteve com a assistente;

68. O arguido paga prestação de alimentos às três filhas, sendo às duas mais velhas - uma das quais, já maior, tendo 20 anos de idade e frequentando o ensino universitário -, a quantia mensal de €550,00 e à filha que tem com a assistente a quantia de €125,00, a que acrescem despesas com a educação e de saúde;

69. O arguido encontra-se socialmente bem integrado e é pessoa estimada pelos colegas de profissão, seus amigos.
*
70. O arguido foi condenado por acórdão proferido em 16/05/2017, transitado em julgado em 02/03/2018, no âmbito processo comum nº. 563/14.3TABRG, deste Tribunal da Relação de ..., pela prática, em 19/09/2013, de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nºs. 1 e 3, do C.P., na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de €20,00 (vinte euros).


2.2. Factos não provados
              Não resultaram provados os factos que não se compaginam com os que foram dados por provados, nomeadamente, e com interesse para a decisão da causa:

Da pronúncia

              Não se provou que:

a) Foi o próprio arguido que instigou o irmão da assistente a propor a ação referida no ponto 7 dos factos provados.

Do pedido cível

Não se provou que:

             b) A demandante continue a sentir medo do que o demandado lhe possa vir a fazer;

              c) Em consequência da atuação do demandado que resultou apurada, a demandante passasse a sofrer de insónias e que, quando conseguia dormir, acordasse muitas vezes durante a noite, assustada porque tinha pesadelos e que o seu sono não mais tivesse voltado a ser igual.

d) Ainda hoje a demandante tenha sentimentos de insegurança e viva constrangida pelo medo de ser ofendida e prejudicada pelo demandado.

              Da contestação

              Excluindo as considerações tecidas e a matéria conclusiva alegada, não se provou que:

             e) Á data em que iniciou a relação de namoro com o arguido, a assistente mantivesse relação amorosa com outra pessoa;

             f) A essa data, o estado civil do arguido (casado) fosse conhecido da assistente e que esta soubesse que aquele vivia com a mulher e as duas filhas;

g) Ao longo dos cinco anos em que mantiveram a relação, nas mensagens que trocavam entre si, o arguido e a assistente usassem expressões (além das referidas nos pontos 48 e 65 dos factos provados) de teor idêntico ao das descritas no ponto 3 dos factos provados;

h) Para além das separações referenciadas nos pontos 33 e 37, as outras separações mencionadas no ponto 2 dos factos provados tivessem ocorrido em fevereiro de 2007 e em julho/agosto de 2008; 

              i) A separação definitiva do arguido e da assistente tivesse acontecido por iniciativa do arguido;

             j) As circunstâncias que estiveram na origem das separações referenciadas tivessem sido o facto de ao arguido desagradar que a assistente “bebesse uns copos”, (enquanto o próprio só bebia água); de a assistente tomar cronicamente medicação antidepressiva (com frequentes mudanças de humor associadas); e de o arguido nunca se ter acomodado à fixação da residência do casal na cidade de ...;

k) E, ainda, o facto de o arguido ter tido dificuldade em concretizar a formalização do divórcio com a esposa e de o arguido nunca ter deixado de manter com esta última uma relação de forte cumplicidade e amizade.

 l) A circunstância aludida no ponto anterior gerasse frequentes “cenas” de ciúmes por parte da assistente, denotando esta forte insegurança emocional e uma forte descrença na relação estabelecida com o arguido, bem como uma intensa desconfiança em relação a este último e às suas reais intenções a propósito.

m) Tivessem sido as circunstâncias descritas no ponto anterior e a fim de evitar a cessação da relação entre ambos que levou o arguido a propor à assistente a celebração do contrato promessa de casamento aludido nos pontos 33 e 34 dos factos provados.

n) Nas circunstâncias vertidas no ponto 40, a assistente socasse a cabeça do arguido, quando este se encontrava com a filha de ambos (na altura com 11 meses de idade) ao colo, arranhando-o, com as unhas, no pescoço;

o) As mensagens descritas no ponto 3 dos factos provados, ocorressem na sequência ou em resposta a outras mensagens de idêntico teor que a assistente tivesse dirigido ao arguido.

p) A assistente seja uma pessoa com fortes convicções e que não se deixa facilmente influenciar pelos outros.

2. 3. Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal quanto à prova dos factos descritos que resultaram assentes formou-se com base no conjunto da prova produzida, na audiência de julgamento e na prova documental junta aos autos e respetiva apreciação crítica à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida.

Concretizando:

              A prova da factualidade exarada nos pontos 1 e 2 assentou nas declarações conjugadas do arguido e da assistente BB, que, nessa parte se revelaram, consentâneas, situando a assistente o início da vida em comum com o arguido em junho de 2007 e confirmando o arguido a vivência em união de facto com a assistente, pelo menos, desde setembro de 2007 (não conseguindo o arguido precisar, com exatidão, quando teve inicio, afirmando que tal ocorreu ao ter conhecimento de que a assistente estava grávida da filha de ambos, que veio a nascer em dezembro de 2007, sendo um bebé prematuro), sendo o arguido e a assistente concordantes em afirmar que após um período de cerca de 15 dias de férias que passaram no ..., em julho de 2011, não mais voltaram a viver juntos (resultando das declarações prestadas pelo arguido, que a indicação que deu de que o fim da relação ocorreu em meados de agosto de 2011, corresponde ao momento a partir do qual se convenceu de que a separação/rutura era definitiva) e que a vida em comum que tiveram, registou diversas interrupções, indicando o arguido terem sido quatro ou cinco, resultando das declarações prestadas pela assistente, confirmada a existência de, pelo menos, quatro interrupções, duas delas reportadas aos momentos referidos nos pontos 34 e 38. Em relação às razões que estiveram na origem das interrupções da vida em comum entre ambos, registadas em momento anterior ao da rutura definitiva, as declarações do arguido e da assistente foram concordantes em afirmar que a iniciativa foi sempre do arguido, que abandonava a residência onde vivia com a assistente, referindo a assistente que o arguido apresentava como explicação para essa sua atitude “ataques de pânico” e manifestando o arguido que nem sempre, na génese das separações registadas ao longo do período de vida em comum com a assistente, estiveram desavenças entre ambos, estando em causa, por vezes, a avaliação que fazia do relacionamento.       

 A matéria factual vertida nos pontos 3 e 4 provou-se com base nas declarações da assistente que afirmou ter o arguido lhe enviado as mensagens nos mesmos pontos referenciadas, tendo diligenciado pela certificação notarial do respetivo teor, conforme certificado de constatação de facto que se mostra junto a fls. 81 a 90 dos autos e que foi examinado na audiência de discussão e julgamento, constando os prints do visor do telemóvel onde consta tais mensagens a fls. 77 a 86 dos autos. Atendeu-se também às declarações do arguido que admitiu ter enviado tais mensagens à assistente, ainda que referindo não se recordar, em concreto, do contexto em que enviou algumas delas, mencionando que, estando separado da assistente, procedeu dessa forma, em resposta a provocações da assistente e, por, na altura, ainda acreditar no reatamento da relação entre os dois.      
Para prova da factualidade exarada no ponto 5 foram determinantes as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, respetivamente, que confirmaram que após a separação definitiva entre ambos (não reatando a vida em comum a partir de final de julho de 2011, após o regresso do período de férias que passaram juntos no ...) trocaram mensagens e emails, resultando o teor de algumas das mensagens e de alguns dos emails enviados pelo arguido à assistente, depois da separação definitiva, expresso no certificado de constatação de facto junto a fls. 87 a 89 e no certificado junto a fls. 161 e seguintes, com particular relevância por referência ao período temporal em causa, para fls. 171 a 177 e, ainda, do teor dos emails juntos a fls. 510 a 520.

Os factos vertidos no ponto 6 provaram-se com base nas declarações da assistente, que confirmou ter pedido ao arguido para que fosse testemunha em duas ações cíveis, em que era parte o seu pai, entretanto falecido, esclarecendo a assistente que dirigiu essa solicitação ao arguido pelo facto de o mesmo estar inteirado da matéria que estava em discussão nessas ações, que respeitava a negócios do seu pai, que o arguido acompanhou. A aludida solicitação, pela assistente ao arguido, através de email (numa das situações, por intervenção da sua mandatária forense), resulta também corroborada pelo pelo teor dos documentos juntos a fls. 389 a 391 e 415 a 424 dos autos e ficando a efetiva prestação de depoimento pelo arguido no âmbito de tais processos e o desfecho destes com decisão final, em sentido favorável à aqui assistente, demonstrada pelo teor das certidões juntas a fls. 425 a 438, 1300 a 1315 e 1316 a 1356 dos autos.

A prova da matéria factual vertida nos pontos 7 e 8 provou-se com base no teor dos documentos (cópias certificadas dos acórdãos proferidos respetivamente por este Tribunal da Relação de ... e pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo nº. 563/14.3TABRG), que se mostram juntas a fls. 935 a 993 dos autos.      

Para prova dos factos descritos nos pontos 9, 10 e 14 foram determinantes as regras da experiência comum e da normalidade da vida, ante a atuação desenvolvida pelo arguido que resultou assente e atendendo ao teor das mensagens que enviou à assistente e ao contexto em que o fez, sendo o arguido ... de direito, ciente dessa sua qualidade e tendo manifestado, noutras ocasiões, designadamente, na mensagem que enviou à assistente em 23/01/2009, com o teor que consta no ponto 4 dos factos provados, o poder dos ...es, expressando serem eles que mandavam nisto tudo, ao dirigir à assistente mensagens com o teor daquelas que vêm referenciadas nas alíneas d), f), g) e l), não poderia deixar de saber que, a sua qualidade de ..., relevaria para que a assistente receasse, pelo que poderia fazer para a prejudicar, como efetivamente receou (assegurando a assistente, nas declarações que prestou, que, sentiu receio de que o arguido, sendo ... e manifestando-lhe que “os ...es são o maior poder do mundo”, lhe ia tirar a filha de ambos).

A factualidade vertida no ponto 11 provou-se com base nas declarações da assistente que afirmou ter uma forte ligação afetiva ao pai, sentindo profundo desgosto e grande tristeza com a morte deste, ocorrida em 08/10/2010, tendo o arguido acompanhado toda a situação e estando inteirado do estado emocional vivenciado pela assistente, após a morte do seu pai, confirmando as testemunhas CC, GG e PP, respetivamente, filha e amigas da assistente, no depoimento que prestaram, que a assistente ficou muito triste e abatida com a morte do pai, o que a deixou fragilizada, não tendo ainda superado esse acontecimento na altura em que aconteceu a sua separação do arguido.

Os factos constantes dos pontos 12, 13, 15 a 21, provaram-se a partir das declarações da assistente/demandante, que no relato que fez do estado emocional e sentimentos vivenciados, em consequência da conduta do arguido, ao receber as mensagens que o mesmo lhe enviou, com o teor das descritas no ponto 3 (afirmando a assistente que, nessa altura, ainda continuava a gostar do arguido, pese embora estivesse ciente de que não havia condições para manter a relação com o mesmo), denotou espontaneidade, assertividade, coerência e objetividade, deixando transparecer sofrimento emocional, o que, à luz das regras da experiência comum, se mostra verosímil, em face da conduta assumida pelo arguido (homem de quem a assistente gostava e pai de uma das suas filhas, que, na altura, tinha 3 anos de idade), para consigo, ao enviar-lhe mensagens com o teor das referenciadas no ponto 3, merecendo, por isso, as declarações da assistente, credibilidade. Relativamente ao medo que sentiu, ante o teor das mensagens que lhe foram enviadas pelo arguido enunciadas nas als. f) g), k) e l) do ponto 3, a assistente concretizou-o referindo que temia que o arguido lhe pudesse fazer mal e, principalmente, sendo ele ..., que lhe pudesse tirar a filha de ambos.  

Atendeu-se, ainda, aos depoimentos conjugados das testemunhas GG [amiga da assistente, há mais de 15 anos, privando com a mesma quase diariamente, tendo começado por referir não ter visto as mensagens enviadas pelo arguido à assistente e que apenas tomou conhecimento por esta lhe ter falado das mesmas, ao ser confrontada com o depoimento que prestou em sede inquérito, exarado a fls. 181 e 182 dos autos – a cuja leitura se procedeu na audiência de julgamento, com observância dos requisitos legais, conforme ficou a constar da correspondente ata – disse ter visto uma ou outra dessas mensagens, afirmando que a assistente evidenciava sentir-se muito perturbada e incomodadíssima com tais mensagens, manifestando ter receio de sair de casa e não o fazendo sozinha, à noite, só saindo se os amigos a fossem buscar. Afirmou que após a separação do arguido, a assistente, que era uma pessoa muito alegre e bem disposta, ficou triste, abatida e cabisbaixa, não se arranjava], PP [amiga de longa data da assistente, afirmou ter visto/lido algumas das mensagens que o arguido enviou à assistente, estando presente, em algumas das situações, em que a assistente as recebeu, confirmou que a assistente ao receber as ditas mensagens ficou magoada, ressentida e “muito em baixo”, tinha medo de sair à noite e não o fazia sozinha. Referenciando ter existido um conjunto de fatores que “ a puseram em baixo”, estando a assistente já fragilizada quando aconteceu a separação, este acontecimento e as mensagens enviadas pelo arguido em nada ajudaram, sendo que a assistente gostava do arguido, ficando bastante abatida psicologicamente, evidenciando perplexidade, profunda tristeza, mágoa e não se arranjava], QQ [amiga da assistente há 19 anos, afirmou que a assistente lhe mostrou algumas das mensagens, mostrando-se chocada e perturbada face ao seu teor. Confirmou que a assistente dizia que tinha medo e que à época desses acontecimentos apresentava-se com um ar desleixado, não comia], RR [amiga da assistente há cerca de 10/11 anos, confirmou que após a separação do arguido, a assistente não se arranjava, andava desmazelada, não comia, estava muito em baixo, tendo as mensagens recebidas enviadas pelo arguido afetado muito a assistente] e FF [amiga da assistente há 20 anos, afirmou ter lido algumas das mensagens em questão, que lhe firam mostradas pela assistente, assegurando que esta última, quando as recebia, ficava em pânico, assustada e perplexa, ficava inquieta, sentindo receio do que viria dali, chegando a assistente a dizer-lhe que tinha medo que o arguido lhe tirasse a filha, sendo que após a prestação de depoimento pelo arguido, no âmbito do processo mencionado no ponto 7, a assistente se convenceu de que a vingança do arguido se relacionou com esse depoimento. Manifestou, ainda, a identificada testemunha que assistente também se sentiu revoltada, muito zangada e triste, com a conduta do arguido], que referindo-se ao estado emocional vivenciado pela assistente após a separação do arguido e a receção das mensagens pelo mesmo enviadas, descreveram-no de forma consentânea, deixando transparecer coerência, consistência e objetividade, merecendo, por isso credibilidade.

A testemunha VV, amigo da assistente, tendo-a conhecido em 2011, já após a mesma se ter separado do arguido, confirmou que, ao tempo, a assistente não saia sozinha à noite e quando aceitava os convites que lhe fazia para saírem, com outros amigos, tinha de ir buscar e levar a casa, confirmando terem confraternizado em festas, à noite, reportando-se a alguns desses eventos, as fotografias, com que foi confrontado na audiência de julgamento e que se mostram juntas a fls. 496, 498 e 500 dos autos.

Para prova dos factos vertidos nos pontos 22 a 24 e 28 a 30 foram determinantes as declarações conjugadas do arguido e da assistente, que, em relação a tal factualidade, se revelaram concordantes, sendo que quanto o momento em que teve início da união de facto entre ambos, a assistente situou-o em junho de 2007 e, o arguido, pese embora não precisando com exatidão esse momento, confirmou a vivência em união de facto com a assistente, pelo menos, desde setembro de 2007, nos termos que se deixaram explanados supra, na motivação referente ao ponto 1.

A matéria factual vertida no ponto 25 provou-se com base nas declarações do arguido e no depoimento da testemunha TT, sua ex-mulher, que afirmaram, revelando, segurança, consistência, coerência e objetividade, que em setembro de 2006, estando casados, pese embora, a vigência do casamento fosse apenas formal, já não existindo relacionamento amoroso entre ambos, ainda viviam na mesma residência, com as suas filhas que têm em comum, na altura, menores, situando a testemunha TT em setembro de 2007 o momento em que a própria e o arguido se separaram de facto [o que se revela consentâneo com a altura em que o arguido iniciou a união de facto com a assistente], vindo a divorciar-se em 2013.

Para prova da factualidade que consta dos pontos 26, 27 e 31 foram determinantes as declarações do arguido, em conjugação com o teor dos documentos que constam a fls. 381, 383 (emails) e 1396 a 1414 (certificado notarial do teor das mensagens recebidas nos aparelhos de telemóvel apresentados pelo arguido provenientes do nº. ... e do nº. ...), tendo este último documento sido junto pelo arguido, já no decurso da audiência de julgamento, tendo a assistente admitido ter dirigido algumas das expressões indicadas no ponto 27 e não tendo posto em causa o envio ao arguido das mensagens transcritas no documento inserto a fls. 1396 e seguintes, sendo que algumas delas, contém as expressões referenciadas no ponto 27.   

A convicção do Tribunal no sentido de dar como assente os factos que constam do ponto 32 alicerçou-se nas declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, respetivamente, que se mostraram concordantes ao afirmar que as separações de ambos, ocorridas antes da separação definitiva aconteceram por iniciativa do arguido, que, por ser acometido de ataques de pânico, abandonava a residência comum.

As declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, respetivamente, foram também determinantes para a prova da factualidade vertida nos pontos 33 a 36, em conjugação com o teor dos documentos juntos a fls. 140 a 145 (email enviado pelo arguido à assistente e minuta de promessa de casamento), tendo assistente confirmado ter recebido o email em questão e ter-se recusado a assinar a promessa de casamento que lhe foi enviada pelo arguido, resultando do teor das mensagens trocadas entre o arguido e a assistente, reportadas a datas próximas (anteriores e posteriores), à data do email mencionado no ponto 34, designadamente, daquelas que se mostram transcritas a fls. 102 a 105, que o arguido e assistente, por essa altura, se encontravam separados.  

Os factos vertidos nos pontos 37 a 40 provaram-se a partir das declarações do arguido, que relatou tais acontecimentos, revelando consistência e objetividade, tendo a assistente, nas declarações que prestou, confirmado a ocorrência da separação em referência, o que também resulta corroborado pelo teor da mensagem que a assistente enviou ao arguido em 23/01/2009, pelas 01h:20m, que consta do certificado, a fls. 1411 dos autos e pelo teor das mensagens que o arguido enviou à assistente, em 12/03/2009 e em 17/03/2009, que consta dos documentos de fls. 102 a 105, vindo o arguido a ser restituído dos bens em questão, na sequência de diligência de busca e apreensão realizada à residência da assistente, conforme decorre do teor do auto junto a fls. 1243 a 1245 e do termo de entrega inserto a fls. 452.

A prova dos factos exarados nos pontos 41 a 45 assentou no teor da certidão extraída do processo (autos de inquérito) nº. 7/09.2TABRG, junta a fls. 1227 a 1260, com particular relevância para as peças processuais que a integram que constam a fls. 1228 verso a 1234 (queixa), 1238 verso a 1240 (despacho que determinou a busca, mandado de busca e apreensão), 1243 a 1245 (auto de busca e apreensão, termo e guia de entrega), 1252 (auto de notícia), 1257 verso (requerimento apresentado pelo ali queixoso e ora arguido, em 26/02/2009) e 1258 (despacho homologatório da desistência de queixa e consequente arquivamento dos autos).

Para prova dos factos descritos nos pontos 46 a 48 foram decisivas as declarações do arguido e da assistente, que confirmaram terem voltado a reconciliar-se após a separação ocorrida entre finais de 2008 e inícios de 2009, resultando a troca de mensagens e de emails entre ambos e o teor daqueles que se mostram elencados no ponto 48, confirmado pelo teor dos documentos insertos a fls. 375, 378, 379, 380, 385, 387 e 388.

A convicção do Tribunal quanto à prova dos factos descritos nos pontos 49 e 50 formou-se com base no depoimento assertivo da testemunha QQ, que assegurou que o arguido e assistente, conviviam com amigos e familiares, aconselhando o arguido o pai da assistente em alguns assuntos, que requeriam conhecimentos jurídicos, não deixando o arguido e assistente, transparecer, publicamente, quaisquer conflitos ou desentendimentos entre ambos.

  A matéria factual vertida nos pontos 51 e 52 provou-se com base nas declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, respetivamente (que confirmaram terem passado férias juntos, no ..., em casa de uma pessoa amiga/conhecida, acompanhando-os as duas filhas mais velhas do arguido e a filha que os dois têm em comum, ficando o casal no mesmo quarto e partilhando a mesma cama, sendo que as declarações que respetivamente prestaram, reportadas a estas férias, apenas divergiram sobre a existência de trato sexual, nesse período, que o arguido afirmou ter existido e a assistente negou) e no depoimento prestado pela testemunha HH, filha do arguido, que, pese embora essa relação, revelou consistência, coerência e objetividade, ao relatar como decorreram as férias que passou com o pai, ora arguido, a assistente e as irmãs, no ..., em julho de 2011.

Os factos vertidos nos pontos 53 a 59 e 61 resultaram provados com base nas declarações prestadas pela assistente, que os admitiu, atendendo-se, ainda, ao teor dos documentos juntos a fls. 390 (email enviado pela assistente ao arguido, em 22/12/2011, do qua consta a solicitação mencionada no ponto 57), 391 (email de resposta do arguido nos termos indicados no ponto 58), 415 a 424 (petição inicial referente ao proc. nº. 238/09.5TBMIR), 1300 a 1315 (certidão extraída do processo 238/09.5TBMIR, contendo a resposta à B.I. e a sentença nele proferida) e 1316 a 1356 (certidão extraída do processo 45/11.5TBMIR, contendo a resposta à B.I., a sentença nele proferida e o acórdão do TRG).

A prova da factualidade exarada no ponto 60 assentou no teor do documento (email) enviado pela assistente ao arguido, em 22/05/2013, que consta a fls. 400 dos autos. 

 A matéria factual vertida no ponto 62 provou-se com base nas declarações do arguido, sendo a sua boa integração social confirmada pelos depoimentos conjugados das testemunhas TT, XX e YY, sendo a primeira ex-mulher do arguido e os dois últimos seus amigos. 

Os factos constantes do ponto 63 provaram-se a partir das declarações prestadas pela assistente, que os confirmou.

             O Tribunal sedimentou a convicção quanto à prova da factualidade vertida no ponto 64, a partir dos depoimentos conjugados das testemunhas GG, PP, SS e FF, que integram o círculo de amigos da assistente e com quem a mesma convive, sendo com alguns deles, mais concretamente, com as testemunhas SS e FF (o que foi pelos mesmos afirmado), em algumas ocasiões, à noite, em jantares e eventos festivos.

             Para prova da matéria factual vertida no ponto 65 foi determinante o teor do documento (certificado notarial) que consta a fls. 1396 e seguintes dos autos, constando as mensagens de que ora se trata a fls. 1411, não pondo a assistente em causa o envio de tais mensagens ao arguido.

Os factos vertidos nos pontos 66 a 68 provaram-se com base nas declarações do arguido, atendendo-se, ainda, ao teor do documento (ata de conferência) junto a fls. 410 a 414 dos autos e ao depoimento da testemunha HH, filha mais velha do arguido, que confirmou ser estudante universitária.

A prova dos factos constantes do ponto 69 alicerçou-se nos depoimentos das testemunhas XX e YY, ambos ...es ..., que já exerceram funções no mesmo Tribunal que o arguido e que têm relação de amizade com o mesmo.

Por último, a condenação sofrida pelo arguido, mencionada no ponto 70, mostra-se certificada a fls. 1165 dos autos.

*

Não resultaram provados os factos descritos sob o ponto 2.2. porquanto:

 - No que tange à factualidade constante das als. a), c), e), g), h) e j) a n), não foi produzida, na audiência de julgamento, prova que confirmasse;

- No atinente aos factos vertidos nas als. b) e d), pese embora a testemunha FF, no seu depoimento, tenha afirmado que a assistente ainda hoje sente medo do arguido, fundamentou esse medo devido “à guerra judicial durante estes anos todos”, não resultando das declarações prestadas pela assistente, nem de quaisquer factos objetivos que resultassem apurados que o estado de insegurança e de medo da assistente em relação ao arguido possa fazer para a prejudicar, ainda perdurem;

- No que respeita à matéria factual que consta da al. f), as versões do arguido e da assistente, nas declarações que respetivamente prestaram, em que se referiram a este ponto, foram divergentes, afirmando o arguido que a assistente sabia, desde a fase inicial do namoro, que o seu estado civil era o de casado e negando a assistente que o soubesse, dizendo que só veio a tomar conhecimento desse facto em fevereiro de 2007, não logrando o Tribunal, na ausência de outra prova que confirmasse uma das versões em detrimento da outra, sedimentar a convicção sobre qual delas tem correspondência com a realidade;

- Relativamente à factologia exarada na al. i), resultou infirmada, ante a prova produzida, assegurando a assistente, nas declarações que prestou, ter sido a própria quem decidiu pela separação definitiva do arguido, após o período de férias que passaram no ..., em julho de 2011, relatando o arguido e a testemunha HH, nas declarações e depoimento que respetivamente prestaram, que na viagem de regresso de férias do ..., quando para no ..., a assistente afastou-se deles, permaneceu calada durante a viagem e foi embora para ..., onde resida enquanto o arguido ficou em ..., resultando a versão da assistente corroborada pelo teor de algumas das mensagens que o arguido lhe enviou, no dia 31 de julho e em agosto de 2011 (cf., entre outras, as mensagens enviadas naquele dia 31, às 20h:03m e às 22h:20m, no dia 7/08/2011, pelas 07h:52m e pelas 08h:30m e no dia 16/08/2011, às 17h:16m, que se mostram transcritas no certificado que se mostra junto aos autos a fls. 161 e seguintes) em que o arguido manifesta querer voltar a viver com a assistente e pede que a mesma o aceite;

- No que concerne à factualidade vertida na al. o), o arguido afirmou que ao enviar tais mensagens à assistente, fê-lo em resposta a provocações que esta lhe dirigiu, em mensagens que, por sua vez lhe enviou, não concretizando os respetivos termos; a assistente, por seu lado, ainda que admitindo poder ter respondido a uma ou outra das ditas mensagens que o arguido lhe enviou, designadamente, àquela que se mostra referenciada na al. b) do ponto 3, não deu resposta à maior parte delas e à(s) que respondeu não o fez nos mesmos termos que o arguido. Neste contexto, não tendo sido feita prova do teor de mensagens que a assistente tivesse enviado ao arguido, no período indicado no ponto 3 (sendo de referir que não constam do documento/certificado que o arguido juntou, no decurso da audiência de julgamento, inserto a fls. 1396 a 1414), não poderia o Tribunal deixar de dar como deu, por não provada a factualidade em referência;

- Finalmente, em relação aos factos exarados na al. p), os depoimentos das testemunhas LL, DD, MM e II (respetivamente, ex-companheiro e mãe da assistente e os dois últimos tendo feito parte de um grupo de amigos que a assistente integrou e com quem convivia, designadamente, em jantares, enquanto manteve o relacionamento com o arguido, sendo este amigo dos mesmos), designadamente, na parte em que se referiram às características da personalidade e ao comportamento da assistente, não foram valorados pelo Tribunal, sendo os depoimentos das testemunhas ... e DD, pela falta de isenção que deixaram transparecer, estando de relações cortadas com a assistente e denotando animosidade em relação à mesma e no respeitante à descrição da maneira de ser da assistente feita pelas testemunhas MM e II por, nessa vertente, se reportarem a um contexto de jantares e festas em que participavam, juntamente com o arguido, e referindo-se a testemunha II também à atitude da assistente enquanto empresária, no ramo da ourivesaria, tendo sido colaboradores nesse ramo até há 4/5 anos.


2.4. O direito

             2.4.1. Enquadramento jurídico-penal dos factos provados           
O arguido vem pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
Antes de mais, importa tecer algumas considerações jurídicas relativamente a enunciado crime.

De harmonia com o disposto no artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, na parte que para o caso dos autos releva, pratica o crime de violência doméstica, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais;

(…);

b) A pessoa de outro o do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

(…);

 sendo punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

Em relação ao bem jurídico protegido por esta incriminação, sendo a questão controvertida na doutrina e na jurisprudência, acolhemos a posição que é maioritariamente defendida, de que é a saúde, física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal da vítima, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no nº. 1 do artigo 152º – cf., entre outros, na doutrina, Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, págs. 511 e 512, Nuno Brandão, A tutela especial reforçada da violência doméstica, in Rev. Julgar, nº. 12, - especial -, 2010, págs. 15 e 16 e Catarina Sá Gomes, in O Crime de Maus Tratos Físicos e Psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, AAFDL, 2004, p. 59; e na jurisprudência, entre outros, Acórdãos da RP de 06/02/2013, proc. 2167/10.0PAVNG.P1 e de 10/07/2014, proc. 413/11.2GBAMT.P1 e Ac. da RL de 23/04/2015, proc. 469/13.3PBAMD.L1-9, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt).

O crime de violência doméstica é um crime específico, que pressupõe a existência de relação entre o agente e o sujeito passivo/vitima de entre as elencadas nas alíneas a) a d) do nº. 1 do artigo 152º do Código Penal.

O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.

Como se decidiu no Acórdão da R.E. de 09/01/2018, sumariado na C.J., Ano 2018, T. 1, pág. 317, no crime de violência doméstica, «A descrição típica esgota-se na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos por agente que se encontre com a vítima numa das relações mencionadas no preceito legal, ainda que se reconheça que o fundamento da ilicitude ou da sua agravação, subjacente à incriminação, se encontra na afetação da dignidade humana, decorrente da conjugação dos atos típicos ali previstos com a especial situação em que, reciprocamente, se encontram a vítima e o agente

Para o preenchimento do tipo legal do crime em apreço não se exige, pois, que a vitima se encontre numa posição de subalternização e/ou de dependência, designadamente económica, do agente, pois que, como se evidencia no Acórdão da RE de 26/09/2017, proc. 518/14.8PCSTB.E1, acessível no endereço eletrónico que vem sendo referenciado: «Não é elemento do tipo legal de violência doméstica que a ofendida tenha uma posição de relação de “subordinação existencial” ou seja, uma posição de inferioridade e/ou dependência com o arguido, apesar de constituir uma realidade sociológica presente em muitas das situações de violência doméstica previstas no art. 152.º do C. Penal, isso não significa que as esgote ou que constitua elemento típico de cuja demonstração depende a responsabilidade penal do agente.»

Com a redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao artigo 152º do Código Penal, introduzindo-se no corpo do nº. 1 o segmento «de modo reiterado ou não», foi ultrapassada a querela que se vinha suscitando de saber se para integrar o conceito de «maus tratos» bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a reiteração de condutas. Perante a atual redação do enunciado preceito legal, é isento de dúvidas que poderá bastar só uma conduta ou ato para que possa ser preenchido o crime de violência doméstica.

 A dificuldade está em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros.

Como se faz notar no Acórdão da R.P. de 13/06/2018, proferido no proc. 189/17.0GCOVR.P1, acessível no endereço www.dgsi.pt, a solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.

Com interesse para o caso concreto, importa a atentar no conceito de «maus tratos psíquicos».

 Conforme se escreve Catarina Fernandes - O crime de Violência Doméstica, in Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar, Centro de Estudos Judiciários, pág. 94, citando Teresa Magalhães, Violência e Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas -: «Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se pode traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à vitima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desmoralizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (…)»      

Os maus tratos psíquicos, abrangem, assim, uma multiplicidade de comportamentos, que podem consistir em humilhações, provocações, ameaças (mesmo, que – como defende Américo Taipa de Carvalho, in ob. cit., pág. 332 – «não configuradoras em si do crime de ameaça»), os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. (cfr., entre outros, Ac. da R.E de 08/01/2013, proc. 113/10.0TAVV.E1 e Ac. da RL de 05/07/2016, proc. disponíveis no endereço www.dgsi.pt).

Decisivo para que tais comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos psíquicos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar «a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar” (Ac. da RG de 10/07/2014, proc. 591/11.0PBGMR, acessível no endereço www.dgsi.pt).  

Dito de outro nodo, o comportamento tem de assumir uma dimensão ou intensidade bastante para poder ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a sua dignidade pessoal, enquanto sujeito compreendido no elenco definido nas diversas alíneas do nº. 1 do artigo 152º.

Na apreciação do(s) comportamento(s) assumido(s) pelo agente, em termos de se poder decidir se configura(m) «maus tratos psíquicos», haverá que ter em conta a   imagem global do facto. (cf. Nuno Brandão, in ob. cit., pág. 19 e Ac. da RC de 12/04/2018, proc. 3/17.6GCIDN.C1, acessível em www.dgsi.pt).     

Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).

*

             Tendo presentes as considerações jurídicas que se deixam expendidas e revertendo ao caso dos autos, confrontando a factualidade provada vertida nos pontos 1, 3 a 5, 11 e 12, entendemos que a conduta do arguido, para com a assistente, BB, com quem viveu em condições análogas às dos cônjuges, durante cerca de 4 anos, ainda que de forma ininterrupta, ocorrendo a separação definitiva entre ambos, no final de julho de 2011 (separação essa que o arguido não aceitou tendo procurado o reatamento da relação com a assistente), ao enviar para o telemóvel da assistente, dias antes dessa separação e após a sua ocorrência, mensagens com o teor das referenciadas no ponto 3 [a) Em 06/07/2011, às 08:59 horas: “Tu, és minha. Vai ser assim toda a vida e ninguém se vai arrepender. És minha.”;

b) Na mesma data, às 13:59 horas: “Neste momento, só consigo sentir nojo, vergonha de ti. Muito vergonha mesmo. Mas, ATENÇÃO, nada que me surpreenda, nada de novo, o mesmo de sempre. (…) Porca.

c) Ainda no mesmo dia, às 14:35 horas: “Estou a mijar. Isto diz-te alguma coisa? Ou a tua boquinha não pode falar?

d) Em 31/07/2011, às 13:17 horas: “Estás muito enganada. Eu não penso que tu és maluca. Eu sei que tu és uma militante e voluntária. Mas, o teu reinado acabou. Alguém te vai tirar o tapetinho dos pés.

No teu caso mentira e crime estão interligados.”;

e) Em 01/08/2011, às 00:30 horas: “Sabes: tenho um grupo de cerca de 50 “amigas” (talvez mais) que fodo quando, como e onde quero. Já viste se o circo acabasse!? Lamento dizer-te que não fazes parte do grupo. Não tens os requisitos mínimos.”

f) Na mesma data, às 13:23 horas: “Uma coisa é absolutamente certa: mais cedo ou mais tarde, alguém se vai arrepender muito.”

Dadas as circunstâncias esse alguém não sou eu.”

g) Ainda no mesmo dia, às 13:50 horas: “Não te esqueças: ALGUÉM SE VAI ARREPENDER E MUITO.”

h) Em 02/08/2011, às 02:18 horas: “Vai-te foder, sua filha-da-puta.”

i) Na mesma data, às 15:09 horas: “O teu dever é estares na cama sempre que eu me deitar e sempre que eu acordar.

 Não estás a cumprir com as tuas obrigações”.

j) Ainda no mesmo dia, às 19:43 horas: “Desculpe incomodá-la D. BB. Mas é que ouvi dizer que se dedica ao fabrico e à comercialização de artigos de ourivesaria. Assim sendo e porque tenciono dar um presente original a uma amiga, pergunto-lhe se me pode fazer um broche?”

k) No dia 04/08/2011, às 00:48 horas: “Não percas a esperança. Nem de um dia perceberes quem eu era, quem sou e quem pareço.”

l) No dia 16/08/2011, às 18:38 horas: “… Não queiras despertar o que há de pior em mim. Não tens vida para te aguentar à bronca. Mentirosa. Miserável.”], manifestando o arguido em tais mensagens, sentir desprezo pela assistente [afirmando, no SMS mencionado na al. b), sentir nojo da mesma], dirigindo-lhe provocações de cariz sexual e reveladoras de desconsideração pela mesma, nesse domínio, rebaixando-a e expressando que tinha o dever de estar na cama consigo, sempre e enquanto o próprio ali permanecesse [nos SMS referenciados nas als. c), e), g), i) e j)], insultando-a [apelidando-a de “porca”, “filha da puta”, “miserável”, nos SMS mencionados nas als. b), h) e l)], dirigindo-lhe ameaças veladas [nos SMS indicados nas als. d), f), g) e l)], criando o arguido, na assistente [que, na altura, se encontrava fragilizada pela morte do pai, sentindo-se mais vulnerável, do que o arguido tinha conhecimento], através desta sua descrita conduta, um quadro de insegurança, intranquilidade e medo de que o arguido vingasse de si, entendemos que o descrito comportamento do arguido, globalmente considerado, integra o conceito de “maus-tratos psíquicos”, tendo em atenção o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, nos termos que supra se deixaram definidos, sendo tal comportamento adequado a afetar, como afetou, o bem estar psicológico e emocional da assistente e ofendendo a sua dignidade pessoal, enquanto sua ex-companheira, com que viveu em condições análogas às dos cônjuges, durante cerca de 4 anos, ainda que, com algumas interrupções, e sendo mãe de uma das suas filhas. 

             De referir que a circunstância de ter resultado provado que no período temporal em que enviou à assistente os SMS com o teor referenciado, o arguido também lhe enviou outros em que declarava o seu amor pela assistente e o seu desejo de reatamento da relação afetiva com ela, não afasta o preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, sendo essa ambivalência de comportamentos recorrente, em situações como a que surge configurada nos autos, em que o arguido pretendia reatar a relação com a assistente, quando esta não queria fazê-lo, sendo, nesse contexto e dado o respetivo teor, as mensagens em que o arguido afirmava sentir amor pela assistente, reveladoras da frustração do arguido, por não conseguir que a assistente o aceitasse de volta.

             Por outro lado, o facto de ter resultado provado que em datas muito anteriores ao período temporal em que se verificou o envio pelo arguido à assistente das mensagens de que se trata, a assistente em mensagens que enviou ao arguido (designadamente, em 2009 e 2010) dirigiu-lhe expressões tais como “cadelão”, “camarinha”, “filho da puta”, “metes nojo mesmo até aos porcos”, também não leva a afastar o preenchimento do crime de violência doméstica, designadamente, por via da reciprocidade de condutas, posto que, num e noutro dos casos, estamos perante momentos divergentes, sendo grande a distância temporal que os separa, nada impedindo, que nesta situação, os factos praticados pelo arguido, tendo como vítima a assistente e sendo lesado o bem jurídico tutelado pelo crime de violência domestica, nos termos sobreditos, sejam subsumíveis a tal tipo legal de crime. – cfr., entre outros, Ac. da R.P. de 09/05/2018, proc. 40/17.0GCOAZ.P1, acessível no endereço www.dgsi.pt.

             Posto isto, perante a matéria factual provada vertida nos pontos 9, 10, 11 e 12, dúvidas não existem de que, ao agir do modo descrito o arguido atuou com dolo, agindo livre, deliberada e conscientemente, com o intuito conseguido de inquietar, perturbar, incomodar, humilhar, ofender a honra e a consideração da assistente provocar medo nesta, nomeadamente, por ser ... de direito, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punível por lei.

             Concluímos, assim, que a descrita conduta do arguido preenche, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal, por que foi pronunciado, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade do arguido.  

              2.4.2. Da pena a aplicar ao arguido

O crime de violência doméstica praticado pelo arguido é punível com pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos (cf. artigo 152º, nº. 1, do C.P.).

             Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, dentro dos limites abstratos definidos na lei, há que ponderar todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido, sendo aquela pena limitada pela culpa destes revelada nos factos e tendo a mesma de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial (cf. artigos 40º, nºs. 1 e 2 e 71º, ambos do C.P.).

             Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.

             A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num ...o de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215), sendo tal principio expressamente afirmado no nº. 2 do artigo 40º do C.P.

              Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.

              Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.

              Dando concretização aos mencionados vetores, o nº. 2 do artigo 71º enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

              Assim, há que ponderar:

             O grau de ilicitude dos factos, que se revela mediano, tendo em conta, o modo de execução dos factos, que se traduziu no envio de SMS, durante um período temporal relativamente curto e atendendo a que, em consequência da conduta do arguido, a ofendida, que é mãe de uma das suas filhas, que, na altura tinha apenas 3 anos de idade, vivenciou sentimentos de tristeza, intranquilidade e receio;

O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo direto, cuja intensidade se nos afigura mediana, tendo em conta o estado emocional evidenciado pelo mesmo, perante  a rutura da união de facto com a assistente, com a ambivalência de sentimentos e de atitudes manifestados, perante o inconformismo por não ter conseguido a reconciliação pretendida, sendo o arguido ... de direito, sendo-lhe particularmente exigível a não adoção de condutas da natureza daquela que adotou, para com a assistente, justificando, por isso, um ...o de censura acrescido que subjaz à globalidade dos apurados comportamentos deste, em cujo contexto concretizou a supremacia que considerou da sua condição de ....

As condições pessoais do arguido que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas, sendo o arguido ... de direito, exercendo funções num ...o local cível, encontrando-se socialmente bem inserido e sendo pessoa estimada por colegas e amigos.

Contra o arguido depõe a circunstância de registar uma condenação, pela prática de crime de falsidade de testemunho, por factos praticados, posteriormente àqueles que estão em causa nos presentes autos, tendo estado subjacente à prática daquele crime, a intenção de se vingar da assistente por não ter conseguido a reconciliação pretendida.  

Há, ainda, que ter em conta as exigências de prevenção, ligadas à necessidade de evitar a multiplicação de crimes desta natureza, sendo que as exigências de prevenção geral mostram-se prementes, já que como se sabe, o tipo de crime em causa nos autos vem proliferando na nossa sociedade, sendo por todos conhecidas as consequências trágicas que, muitas vezes, lhe andam associadas; e as exigências de prevenção especial, revelam-se, à partida, abaixo da média, tendo em conta que a conduta do arguido surge como um acontecimento isolado, numa vida conforme ao direito, estando, ao que tudo indica ultrapassada a situação que o motivou a praticar os factos.   

Tudo visto e ponderado considera-se adequada a aplicar ao arguido a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

Atendendo a que o arguido se mostra profissional e socialmente inserido, tendo 50 anos de idade, sendo que a condenação que regista por crime de falsidade de depoimento, se reporta a factos praticados após o cometimento daqueles por que ora vai condenado, ainda que motivado pelo desejo de vingança da assistente, mostrando-se decorridos cinco anos sobre a data em que praticou este último crime, somos levados a entender que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para afastar o arguido da prática de futuros crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção e, nessa medida, decidimos, suspender a execução da pena unitária de prisão que lhe foi aplicada, por igual período de tempo, ou seja, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.

 2.4.2. Do pedido de indemnização civil

A assistente/demandante BB pretende, pela presente ação civil enxertada no processo penal, efetivar a responsabilidade civil emergente de facto ilícito imputado ao arguido/demandado.
           Decorre do disposto no artigo 483º do Cód. Civil que, a obrigação de indemnizar, em sede de responsabilidade civil por facto ilícito, tem como pressupostos:
- o facto ilícito;
- o nexo de imputação do facto ao agente (culpa);
- o dano; e
- o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

             Revertendo ao caso concreto, estando já assente a existência de facto ilícito cometido pelo arguido/demandado e em face da demais factualidade que resultou provada, dúvidas não existem de que, se mostram preenchidos todos os enunciados pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, impendendo sobre o arguido/demandado a obrigação de indemnizar a assistente/demandante pelos danos sofridos em consequência da sua atuação.

Em relação aos danos, dado que a pretensão indemnizatória que a demandante deduz nos autos, se refere apenas a danos não patrimoniais, importa referir que tal tipo de danos são indemnizáveis desde que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artigo 496º, nº 1, do Código Civil), cabendo ao julgador, em cada caso, dizer se o dano é ou não merecedor dessa tutela e fixar a indemnização com base em critérios de equidade (vide o nº 3 do mesmos artigo).

             Pede a demandante, a título de indemnização, para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros).

             Decorre dos factos provados vertidos nos pontos 15 a 20 que, em consequência da atuação do arguido/demandado, do envio por este de mensagens com o teor das referenciadas:

- A demandante sentiu-se inquieta, angustiada e com receio de que o demandado pudesse fazer-lhe mal;

- Após a rutura definitiva da relação com o arguido/demandado, durante algum tempo, sempre que o seu telemóvel tocava, a demandante sentia-se nervosa e inquieta, vivendo em sobressalto;

- E durante esse período temporal, a demandante deixou de sair sozinha de casa, à noite, só o fazendo quando alguém a ia buscar;

- Ao ler as mensagens que lhe foram enviadas pelo arguido/demandado, com o teor das referenciadas nas alíneas b), c), e), h), i) e j) do ponto 3, a demandante sentiu-se humilhada, desprezada, insultada, envergonhada, triste e afetada na sua dignidade enquanto mulher;

- Vendo, ainda, a demandante, nesse período, a sua autoestima diminuída e o seu amor-próprio reduzido;

- E vivenciando sentimentos de tristeza, angustia e ansiedade.

É incontroverso que os danos morais sofridos pela assistente/demandante, constituem danos cuja gravidade merece a tutela do direito, sendo, por isso, nos termos do disposto no artigo 496º, nº 1, do Código Civil, indemnizáveis.

Embora não sendo suscetíveis de avaliação pecuniária, já que atingem bens que não integram o património, os danos não patrimoniais podem ser compensados com a atribuição de uma reparação ou satisfação adequada à pessoa lesada, que possa contribuir para minorar de algum modo e compensar o sofrimento psicológico em que tais danos se traduzem, não devendo por isso ser atribuído valor indemnizatório meramente simbólico.

             De harmonia com o estatuído no artigo 496º, nº 3, do C. Civil, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, o julgador deve nortear-se por critérios de equidade, tendo em conta, as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso.

             Assim, no caso vertente, ponderando os enunciados elementos, sendo o grau de culpa do arguido/demandado mediano, considerando a respetiva situação económica – auferindo vencimento correspondente à categoria de ... de direito, num ...o local e tendo três filhas, a quem paga pensão de alimentos, no montante global de €675,00, a que acrescem despesas de educação e de saúde –, bem como a da demandante – auferindo rendimento, de montante não determinado, provenientes de bens da herança que lhe foi deixada por seu pai e tendo uma filha, menor a cargo –,para tentar compensar, de algum modo, o sofrimento da demandante, em termos de equidade, tem-se por ajustado fixar a indemnização a atribuir-lhe em €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
Tal quantia é acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados a partir da presente data, pois que, se mostra atualizada com referência à mesma (cf. artº. 566º, nº. 2 do C. Civil e Ac. do STJ, de Uniformização de Jurisprudência, nº. 4/2002, publicado no DR I Série-A, de 27/06/2002, pág. 5057 e segs.), até efetivo e integral pagamento.

            III - Decisão

             Pelo exposto e em conformidade decide este Tribunal Coletivo, julgar procedente a pronuncia por provada e parcialmente procedente o pedido cível formulado pela demandante BB, por parcialmente provado e, em consequência:

a) Condenar o arguido AA (……….)»

***********

**********

Apreciação do recurso

2. Apreciando.

           Conforme jurisprudência pacífica, as conclusões delimitam, sem pre...o das questões de conhecimento oficioso, os poderes de cognição do Tribunal de recurso (art. 412.º, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, pág. 316; jurisprudência do STJ referenciada no Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Rel. Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Rel. Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Rel. Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Rel. Manuel Augusto de Matos).

As questões levantadas nas conclusões do presente recurso, já sintetizadas quer na Resposta do Ex.mo PGA junto da Relação de ..., quer no parecer da Ex.ma PGA junto deste STJ, têm a ver com:

--violação do caso julgado e do princípio ne bis in idem;

--falta de fundamentação;

--insuficiência para a decisão da matéria de facto;

--erro notório;

--erro de julgamento;

--não integração dos factos provados no tipo de crime de violência doméstica.

*********

Está em discussão um eventual crime de violência doméstica (art. 152.º, n.º 1, alínea b) do CP) cometido por meio de envio de mensagens electrónicas[1].

*********

● Começaremos pela apreciação da questão do caso julgado e do princípio ne bis in idem, não só por vir enunciada em primeiro lugar, mas também pela circunstância do seu conhecimento poder, eventualmente, prejudicar quer a decisão das questões subsequentes do presente recurso, quer do recurso interlocutório (fls. 1427 e ss.).

Trata-se de uma questão complexa, difícil, de linha de fronteira, características bem demonstradas pela abundante tramitação processual que povoa ambos os autos (Proc. 563/14 e o presente Proc. 39/16).

O Ac. TC 86/2004, DR II S. de 19 de Março de 2004, que enumera vária jurisprudência do TC sobre o caso julgado, refere que:

«Sobre o alcance da garantia constitucional do caso julgado, assente, como se sabe, no princípio da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito (artigo 2º da Constituição), na especial força vinculativa das decisões dos tribunais (actual n.º 2 do artigo 205º) e no princípio da separação de poderes (artigos 2º e 111º, n.º 1), bem como no n.º 3 do artigo 282º da Constituição, logo a Comissão Constitucional teve oportunidade de se pronunciar, entre outros, no seu Acórdão n.º 87, de 16 de Fevereiro de 1978 (in Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978, pp. 24 e seguintes).»

⁎ O actual CPP não define o caso julgado, o que tem motivado diversas posições na jurisprudência[2] fazendo apelo quer à aplicação subsidiária do regime do CPCivil[3], quer ao CPP de 1927 e princípios gerais do direito penal.
A doutrina[4] e a jurisprudência[5] têm vincado a autonomia do processo penal.

Os tribunais superiores não têm encarado o problema de maneira uniforme[6]. E a questão levantou-se, por exemplo, a propósito de diversos normativos do CPC (arts. 667.º, 669.º e 686.º, correspondentes aos arts. 614.º e 616.º do actual CPC; o art. 686.º do anterior CPC foi revogado pelo DL 303/2007, de 24/8).

Escreve-se em recente aresto deste STJ que:

«Tendo presente que a noção de caso julgado não nos é dada pelo actual Código de Processo Penal, não podendo a mesma ser decalcada da noção dada pelo Código Processo Civil no artigo 497º porquanto em processo penal não existe uma realidade que possa ser tomada como “as partes do processo” e o pedido é o de aplicação de uma sanção penal em virtude da comissão de um facto criminalmente punível, conjugado como o da declaração de uma inexistência no caso concreto, de obstáculos às respectivas ilicitudes e culpabilidade do agente e a causa de pedir é a circunstância de se configurar que o agente terá tido uma conduta susceptível de gerar uma sanção de natureza penal, há assim que recorrer aos princípios gerais do processo penal a fim de se delimitar a noção de “caso julgado”. Neste sentido decidiu já o STJ no Assento n.º 3/2000, no qual se concluiu: “entende-se, por tal motivo, e uma vez que a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, que se têm de considerar ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior CPP, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós”. (Extracto do Ac. STJ de 6/6/2018, Proc. 1/15.4GAMTS.S1, Rel. Manuel Augusto Matos).

⁎ Além da questão do caso julgado e da eventual aplicação subsidiária do regime do CPCivil, também se discute a relação entre o caso julgado e o princípio ne bis in idem[7].

Escreve-se, a propósito, no Ac. STJ 15/2009, DR I S. de 23/11/2009, que:

«O caso julgado material mostra-se constitucionalmente tutelado através da consagração do princípio non bis in idem, constituindo, como já se deixou consignado, a dimensão objectiva daquele princípio. Nesta dimensão são a segurança e a certeza da decisão judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal, que se visam proteger. Estão aqui subjacentes valores atinentes à imagem e credibilidade dos tribunais e ao interesse dos sujeitos processuais e da própria comunidade, designadamente o interesse na tutela estável dos bens jurídicos, mediante a imutabilidade da decisão, essencial às legítimas expectativas dos sujeitos processuais e à confiança do cidadão e da comunidade na justiça e nos tribunais.

Na sua dimensão subjectiva, porém, o princípio non bis in idem, enquanto garante da posição do arguido, integrado num processo penal justo e equitativo, tem prevalentemente em vista a protecção do condenado, defendendo -o contra a possibilidade de ser julgado por mais de uma vez pelo mesmo facto, ou seja, a possibilidade de repetição arbitrária do julgamento, com dupla punição pelo mesmo crime ou condenação após um julgamento absolutório.»

O princípio ne bis in idem encontra-se dogmaticamente bem escalpelizado no Ac. do TC 303/2005[8], que caracteriza, com rigor, as suas vertentes: processual e substantiva.

Extracta-se do mesmo, pela sua clareza, o seguinte passo:

«11. Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, dando-se, assim, dignidade constitucional expressa ao clássico princípio non bis in idem (  ou ne bis in idem, na expressão mais universalmente utilizada).

Numa primeira concretização, a doutrina penalística costuma assinalar que o princípio tem uma vertente substantiva e outra processual. Sempre de um modo geral, designadamente sem entrar na consideração da pluralidade de ramos do direito sancionatório, pode dizer-se que, do ponto de vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infracção; do ponto de vista processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infracção penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação.

O “ne bis in idem” processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo “mesmo crime” em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Dâmocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena.

Outro há-de ser o fundamento para a vertente estritamente material do princípio, porque aí, sendo a dupla penalização simultânea, não é a afronta à paz jurídica que está em causa. O fundamento da proibição da plúrima punição pelo “mesmo crime” no âmbito do mesmo processo só pode encontrar-se em conjugação com os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, isto é, pela ideia de que, sendo as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade, e que a “dupla penalização” materializa, só por si, a desnecessidade ou a desproporção (Sobre o acolhimento constitucional do princípio da necessidade das penas, pode ver-se a jurisprudência elencada no ponto 8.1 do já referido acórdão n.º 494/2003).

Ora, aos diferentes fins de protecção correspondem diferentes pressupostos e consequências jurídicas, designadamente quanto ao que deve entender-se por “mesmo crime” para cada uma das duas vertentes do princípio (Cf. Ramón Garcia Albero, “Non Bis in Idem Material” y Concurso de Leyes Penales, p. 24 e ss).

Sucede que o caso dos autos não coloca um problema de violação do princípio constitucional da proibição do “duplo julgamento” na vertente processual, pois o que está em causa é a alegada violação do princípio por “dupla penalização” do arguido, no âmbito do mesmo processo e por um só acto de julgamento, aspecto cuja cobertura pelo enunciado do princípio no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição não é isento de dúvidas.

Para J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 194), depois de afirmarem que, como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), o non bis in idem obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos do mesmo sujeito pelo mesmo crime, e que na clarificação do sentido do que deve entender-se por “prática do mesmo crime” tem de recorrer-se aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais, o n.º 5 do artigo 29.º da Constituição “proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime”. O mesmo entendimento parece ser o de Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, edição da A.A.F.D.L., 1980, 1º volume, p. 698, quando, a propósito da teoria o concurso de normas e da sua articulação com o ne bis in idem, reconhecendo que aquilo que o texto do n.º 5 do artigo 29.º da Constituição dá é a versão adjectiva do princípio, afirma que isso “parece implicar também a força constitucional do significado substantivo do princípio, até na medida em que este é um dos fundamentos da importância do seu alcance adjectivo ou processual. Daí que a questão do chamado concurso de normas também possa ser vista como uma exigência deste princípio, e assim estudada”.

           De qualquer modo, o Tribunal Constitucional não tem recusado perspectivar pelo ângulo da violação do princípio “ne bis in idem” situações, como a presente, de punição em concurso efectivo de ilícitos criminais, pelo mesmo acto de julgamento, no âmbito do mesmo processo. Mas sempre concluiu que não era violado o referido princípio, assentando, precisamente, a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem distintos nos crimes em presença, como sucedeu nos acórdãos. n.ºs  102/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1999) e 566/2004 (este inédito, mas disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), em que estavam em causa situações de concurso real entre os crimes de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, previstos nos artigos 21.º, n.º 1, e 28.º, da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, no primeiro caso, e de tráfico de estupefacientes e de outro crime, previstos nos artigos 21.º e 23.º daquela lei, no segundo.

            Como se escreveu naqueles arestos:

«Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a “prática do mesmo crime” ou perante um concurso efectivo de infracções, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra).

É que, sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto, porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma acção delituosa, o que vale por dizer de uma mesma conduta naturalística.

Para decidir se existe um único crime ou um concurso efectivo de crimes, há que recorrer - recordam aqueles autores (ob. e loc. cit.) - “aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais”».

 

            Entretanto, dentro da mesma vertente material do princípio, o Tribunal Constitucional veio a entender que o princípio consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição podia ser aplicado, por analogia, a hipóteses de concurso de crimes e contra-ordenações “quando os bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas sejam idênticos”, pelo acórdão n.º 244/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Julho de 1999), em que estava em causa a norma do artigo 14.º do RJIFNA, “no sentido de consentir que a mesma factualidade comporte simultaneamente uma punição a título de crime e a título de contra-ordenação”.

            Também neste aresto - em que o concurso de infracções se estabelecia entre ilícitos de diferentes ramos punitivos -, depois de salientar que não basta invocar a punição plural de um facto ou acção unitários para se ter como demonstrada uma violação do nº 5 do artigo 29º da Constituição, se afirma que o apuramento de tal violação pressupõe que as normas em causa sancionem - de modo duplo ou múltiplo - substancialmente a mesma infracção. A contrariedade ao princípio "ne bis in idem" depende assim da identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas.» (extracto do cit. Ac. TC 303/2005, DR II S. de 5/8/2005)

A Constituição da República Portuguesa (CRP) tem uma das suas bases essenciais no reconhecimento e consagração dos direitos e deveres fundamentais a que dedica, expressamente, toda a sua I parte (arts. 12.º a 79.º).

E tais direitos fundamentais, em regra constantes do texto constitucional, podem, de acordo com o n.º 1, do art. 16.º da CRP, estar consagrados noutras leis e nas regras aplicáveis do direito internacional.

Os direitos e deveres fundamentais assumem-se na dualidade entre direitos, liberdades e garantias (Título II da Parte I: arts. 24.º a 57.º), por um lado, e direitos e deveres económicos, sociais e culturais (Título III da Parte I; arts. 58.º a 79.º), por outro.

Os primeiros podem configurar direitos, liberdades e garantias pessoais (arts. 24.º e ss.), direitos, liberdades e garantias de participação política (arts. 48.º e ss.) e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (arts. 53.º e ss.).

Por seu turno, os direitos e deveres económicos, sociais e culturais, que a doutrina também apelida de direitos fundamentais sociais ou direitos sociais, podem configurar direitos e deveres económicos (arts. 58.º e ss.), direitos e deveres sociais (arts. 63.º e ss.) e direitos e deveres culturais (arts. 73.º e ss.).

O princípio do ne bis in idem (n.º 5 do art. 29.º da CRP) está consagrado no âmbito direitos, liberdades e garantias pessoais.

 O princípio ne bis in idem pretende evitar que a mesma questão seja apreciada novamente, que um arguido seja julgado duas vezes pelo mesmo crime (proibição do duplo julgamento; tal princípio ne bis in idem constituiu o cavalo de batalha na questão do eventual concurso entre os crimes de falsificação e de burla, que o Assento do STJ 8/2000, DR I S. de 23/5/2000--cuja constitucionalidade já por diversas vezes foi apreciada, nomeadamente através do Acs. TC 303/2005, cit., e 375/2005, DR II S. de 21/9/2005-- resolveu no sentido do concurso real ou efectivo).

A violação de tal princípio pressupõe que estejamos perante o mesmo sujeito (o arguido), os mesmos factos e o mesmo crime.

            ⁎ De relevo, também neste domínio, a noção de objecto do processo.

           

Conforme se escreve no Ac. TC 130/98, DR II S. de 7 de Maio de 1998 e no BMJ 474, pág. 69 e ss. «Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, definem e fixam o objecto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.»

           Ou, mais recentemente, no Ac. STJ 11/2013, DR I S. de 19/7/2013[9]:

«“Para Figueiredo Dias o objecto do processo não é já a «concreta e hipotética infracção acusada», mas não é tão -pouco «o facto na sua existência histórica, que importa averiguar no decurso do processo» (Cavaleiro Ferreira, representante da concepção naturalística em Portugal), e em relação ao qual a identidade teria de se estabelecer com base na conexão naturalística. O objecto do processo será antes um recorte, um pedaço da vida, um conjunto de factos em conexão natural (e não já naturalística, por tal conexão não ser estabelecida com base em meros ...os procedentes de uma racionalidade própria das ciências da natureza) analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os ...os jurídicos pertinentes. O objecto do processo será assim uma questão-de-facto integrada por todas as possíveis questões-de-direito que possa suscitar.”

2 — Aliás, como acentua Figueiredo Dias (20) “Segundo o princípio da acusação [...] a actividade cognitória e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação.

Deve pois afirmar -se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo esta que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória [...]) e a extensão do caso julgado (actividade decisória [...])

É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal.”». (sublinhado e negrito nossos)

            ⁎ Sobre as questões do caso julgado e do princípio ne bis in idem é mais vasta, por razões óbvias, que têm a ver com a circunstância de muitos processos acabarem na 2.ª instância, a jurisprudência das Relações[10].

Porque elucidativa do panorama jurisprudencial, e importante relativamente a conceitos pertinentes como “julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”, “mesmo crime”, “objecto do processo”, elabora-se a seguir uma listagem de decisões deste Supremo Tribunal de justiça:


Ac. STJ de 12-02-2003, Proc. n.º 4524/02 - 3.ª, Rel. Armando Leandro
V - O princípio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado (art. 29.º, n.º 5, da CRP), importa o reconhecimento de direito subjectivo fundamental que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo «mesmo crime», implicando obviamente a proibição de ser condenado alguém por um crime de que já tenha sido definitivamente absolvido, bem como a proibição da aplicação renovada de sanções penais pela prática do mesmo crime.
VI - O arquivamento de um inquérito, nos termos do art. 277.º, n.º 2, do CPP (por falta de indícios), não constitui um “julgamento” para os efeitos do art. 29.º, n.º 5, da CRP, nem tem força de caso julgado.

     Ac. STJ de 14-01-2004, Proc. n.º 3677/03 - 3.ª, Rel. Silva Flor
I - O preceito do art. 29.º, n.º 5, da CRP, que estabelece que ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime, comporta, além de um direito subjectivo fundamental que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, um princípio constitucional objectivo que obriga o julgador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
II - Poderá, em certas situações, ficar por relevar penalmente uma parte de um facto delituoso, mas, caso a caso, poder-se-à lançar mão de soluções que minimizam esse inconveniente, como a consideração para efeitos punitivos da conduta parcelar mais grave, que preferirá sempre à punição da conduta menos grave.
III - Se resulta da matéria dada como provada que o arguido deteve inicialmente uma quantidade de canabis não apurada com rigor, levou a maior parte para França e deixou o restante na sua residência em Portugal, vindo a ser condenado naquele país pela detenção da canabis que para lá levou, essa detenção inicial pelo arguido de determinada quantidade de canabis, a que depois deu dois diferentes destinos, integra a prática de um único crime de tráfico, tal como aconteceria se tivesse vendido a canabis a diferentes pessoas, em momentos distintos e em locais diversos.
IV - E, tendo sido condenado em França pela detenção de uma quantidade substancialmente maior do que aquela que deixara em Portugal, a sua conduta global deve considerar-se punida, e não pode ser de novo condenado pela prática do mesmo crime, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.

     Ac. STJ de 2-03-2006, Proc. n.º 96/06 - 5.ª, Rel. Costa Mortágua
I - O efeito negativo do caso julgado consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão: é o princípio do ne bis in idem, inserto como garantia fundamental pelo art. 29.º, n.º 5, da CRP (Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, pág. 484).
II - O elemento de natureza objectiva da proibição do ne bis in idem é dado pela identidade entre o pedido e a causa de pedir do feito já julgado e daquele por que se pretende instaurar o novo processo.
III - Por transposição de conceitos processuais civis, dir-se-á que o pedido e a causa de pedir se reconduzem aos termos da própria acusação: enquanto que a causa de pedir é o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação ao arguido de uma pena, o pedido é a pretensão de reconhecimento jurisdicional de que aquele facto constitui o crime pelo qual o arguido é acusado, da sua responsabilidade criminal e consequente aplicação da sanção cominada por lei, dentro dos limites penal e processualmente admissíveis.
IV - A expressão “crime” deve ser entendida como uma certa conduta ou comportamento, como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível a determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime (Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, p. 219).
V - O que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal (Roxin, 1987, p. 315).
VI - Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados.
VII - O objecto do processo penal será o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível.
VIII - A delimitá-lo temos uma dimensão subjectiva e uma dimensão real: a primeira exige que durante todo o iter processual se mantenha sempre o mesmo arguido e a segunda impõe a identidade do facto no decurso de todo o processo.

               Ac. STJ de 08-03-2006, Proc. n.º 4401/05 - 3.ª, Rel. Sousa Fonte
I - Constando da factualidade provada que a cocaína agora apreendida ao arguido (20,958+2,302+0,598 g, com grau de pureza variável entre os 69,9% e os 73,2%) é parte dos mais de 505,840 kg que ele transportou desde a ... e por cujo transporte foi condenado, por acórdão de 14-12-01, em 9 anos e 10 meses de prisão, é manifesto que o objecto do presente processo foi já apreciado e julgado naquele acórdão, tendo o arguido sido condenado (também) pelos factos agora acusados: a circunstância de, no acto da (primeira) detenção, não lhe ter sido apreendida toda a droga por que acabou por ser então punido não pode transformar a que fugiu à apreensão em facto novo, autónomo, susceptível de legitimar a abertura de uma nova acusação e uma nova condenação, sob pena de violação grosseira do princípio constitucional do ne bis in idem.
II - Conforme corrente jurisprudencial dominante neste tribunal, a sentença que incidiu sobre infracções parcelares integradas num crime continuado, não constitui caso julgado impeditivo do julgamento das que só posteriormente foram descobertas, pois o princípio ne bis in idem, se constitui obstáculo a que uma pessoa seja condenada duas vezes pelos mesmos factos, não pode constituir fundamento para que fiquem por punir factos que nunca foram julgados. E, dentro dessa tese, e nessa hipótese, o agente só será condenado pela nova actividade se esta se mostrar mais grave do que a(s) já julgada(s), o que nunca sucederia no caso vertente, em que a pena eventualmente a aplicar pela detenção daquelas cerca de 24 g de cocaína não teria quaisquer reflexos na pena que está a cumprir, correspondente a uma actividade incomensuravelmente mais grave. (…)
    (no mesmo sentido, Ac. STJ de 6/6/2018, Proc. n.º 1/15.4GAMT.S1 - 3.ª, Rel. Manuel Augusto de Matos)

Ac. STJ de 15/3/2006, Proc. 05P4403, Rel. Oliveira Mendes

III - É evidente que a circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.

IV - Aliás, a nossa Constituição consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu art. 29.°, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime».

V - A expressão julgado mais do que uma vez não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo. É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva declaração de extinção da responsabilidade criminal.

VI - De igual modo, o inciso mesmo crime não deve nem pode ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico. Crime significa, aqui, um comportamento de um agente espáciotemporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma, sentença ou de decisão que se lhe equipare.

VII - O termo crime não deve ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado - e não tanto de um crime - que se quer evitar. (…)

X - Fixado o sentido do termo crime, importa, ainda, precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de facto e de sujeitos de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão, ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo objecto processual.

XI - Ora, aquele não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do «objecto do processo».

XII - Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado. (…) (…).

XXI - O objecto do processo, como enfaticamente se consignou, é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem. (…)[11] (sublinhado nosso).

 

Ac. STJ de 12/11/2008, Proc. 08P2868, Rel. Henriques Gaspar

VI - Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.

VII - O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do ... e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) – cf. Ac. do STJ de 23-01-2002, Proc. n.º 3924/01.

VIII - O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental daquele em relação à finalidade a que está adstrito. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta.

IX - Na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado – a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes –, deixa de subsistir a razão do caso julgado formal, que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental.

X - Por isso, a prescrição do procedimento criminal não pode, na dimensão substancial, estar coberta por qualquer caso julgado formal quanto à estabilidade de determinado regime, dos vários que podem suceder-se no tempo, porque sempre pode interpor-se, posteriormente, algum elemento novo ou com susceptibilidade para produzir efeitos relevantes na conjugação dos pressupostos, que são essencialmente dinâmicos, da prescrição.

(no mesmo sentido, e do mesmo relator, Ac. STJ de 24/5/2006, Proc. 06P1041)

 Ac. STJ de 23/10/2008, Proc. 08P3158, Rel. Custódio Montes

1. O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois da primeira ter sido julgada com trânsito em julgado, havendo, entre ambas, uma tríplice identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir;

(no mesmo sentido, Ac. STJ de 7/4/2005, Proc. 05P437, Rel. Ferreira de Almeida)

Ac. STJ de 13/10/2011, Proc. 141/06.0JALRA.C1.S1, Rel. Rodrigues da Costa

I - O objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum.

II - A actividade do tribunal penal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade, salvo em casos permitidos por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração dos factos – arts. 303.º, 309.º, 358.º e 359.º, entre outros, do CPP.

III -Por seu turno, a actividade decisória do tribunal também tem de se confinar ao objecto da acusação (art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal); é por força dessas exigências que se diz que o objecto do processo tem de se manter o mesmo – eadem res –, desde a acusação até ao trânsito em julgado, daí derivando os princípios da identidade, da unidade e da indivisibilidade.

IV -É ainda dentro dos limites da acusação que se define a extensão do caso julgado, visto que o tribunal deve apurar tudo o que diga respeito a esse objecto (aos factos que dela constam e são imputados ao arguido) de uma forma esgotante, sendo certo que, se os não tiver apurado, tudo deve passar-se como se o tivessem sido, segundo o princípio designado da consunção.

V - A delimitação do objecto do processo está relacionada fundamentalmente com todas as garantias de defesa, assegurando-se que nenhum outro indivíduo, que não o arguido, seja julgado pelos factos constantes da acusação e permitindo-se-lhe uma defesa eficaz, subordinada aos princípios do contraditório e da audiência, mas também garantindo, dentro de certa maleabilidade, conjugada com a rigidez que lhe é característica, a investigação da verdade material.

VI -Se é a acusação que delimita o objecto do processo, são os factos daquela constantes imputados a um concreto arguido e constituindo crime que fixam o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua actividade cognitiva e decisória.

Ac. STJ de 12/9/2013, Proc. n.º 29/07.8GEIDN.C1.S1 - 5.ª, Rel. Souto Moura
I - O que se discute no recurso é saber se a decisão de 1.ª instância proferida nestes autos, confirmada pela Relação, violou o caso julgado, por ter condenado por um facto já julgado noutro aresto, entendendo-se o “facto”, obviamente, em sentido normativo, como uma única infração, e não em sentido meramente naturalístico, como um evento histórico isolado.
II - Nenhum arguido poderá ser julgado mais de uma vez pelo mesmo facto (art. 29.º, n.º 5, da CRP). Ora, o facto “é o mesmo” se já foi conhecido, e ainda se, não tendo sido conhecido, podia tê-lo sido. Podia tê-lo sido se cabia nos poderes de cognição do ..., se era compatível com o grau de maleabilidade tolerado do objecto do processo. Por isso, é que na fixação do objecto do processo costuma fazer-se intervir também um terceiro princípio, chamado da consunção. O ponto de encontro entre a identidade e a indivisibilidade traça a fronteira da factualidade “consumida” pelo processo, e que portanto não pode renascer noutro processo.
III - Estamos dentro do âmbito do caso julgado, sem risco de violação do princípio ne bis in idem, se nos mantivermos dentro do grau de maleabilidade tolerada do objecto do processo. Esta, só será ultrapassada se houver alteração substancial de factos, a qual, por seu turno, gira à volta do conceito operacional de “crime diverso” introduzido pela al. f) do art. 1.º do CPP.
IV - Porque o legislador se quis referir a “facto diverso” utilizando a expressão “crime diverso”, então terá que se determinar se o facto é outro, necessariamente, com apelo a uma referência normativa (com apelo ao “mesmo bem jurídico”), e não simplesmente histórico-naturalista.
V - O arguido foi condenado no Proc. n.º 7 … por factos que se situam desde o início de Novembro de 2003 até Outubro de 2005, e, no tocante aos factos que integravam o Proc. n.º 5 …, que se desenrolaram entre o princípio de Agosto de 2005 e fim de Janeiro de 2006. Estamos, pois, perante uma atuação que se estendeu por um período de Novembro de 2003 a Janeiro de 2006. Por todo este conjunto de factos o arguido foi condenado numa sentença de 26-06-2007. Depois de tomar conhecimento desta condenação, e portanto da censura que lhe era dirigida, o arguido decidiu ignorar a interpelação, e só assim se explica que tenha persistido no seu comportamento omissivo danoso até Novembro de 2007.
VI - Ocorreu pois uma renovação do processo de resolução criminosa e tal parece suficiente para que se não possa englobar numa única infração toda a atuação em foco, e daí que se não levantem objeções à posição assumida, a propósito, no acórdão recorrido (que entendeu não haver qualquer violação ao caso julgado).

Ac. STJ de 18/5/2017, Proc. n.º1385/11.9PILRS.L1.S1-5.ª, Rel. Nuno Gomes da Silva
X - Determina o art. 279.º, n.º 1, do CPP, que esgotado o prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não pode ser requerida o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
XI - Como ensina a doutrina comentarista não se trata propriamente de um caso julgado material mas de um «paralelo instituto de caso decidido a que subjazem os mesmos interesses da paz jurídica do arguido ínsitos no princípio ne bis in idem residindo o núcleo essencial deste instituto na garantia de que o Estado não pode perseguir mais do que uma vez pela mesma infracção» garantia essa que relativamente às decisões do Ministério Público se consubstancia no impedimento de «que uma pessoa seja constituída arguida mais do que uma vez pelos mesmos factos» (sublinhado acrescentado). Outra doutrina vai no mesmo sentido: «(…) do que se trata é da proibição de alguém ser duas vezes constituído “arguido” pelos mesmos factos – litispendência ou ne bis in idem, em processo penal deveriam aferir-se exactamente por este momento».
XII - Como decorre dos arts. 58.º, n.º 1, al. a) e 272.º, n.º 1, do CPP, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática do crime é obrigatório que a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a constitua arguido e a interrogue como tal logo haja fundada suspeita da prática de crime.
XIII - Se num certo inquérito não chegou a haver fundada suspeita da prática de um crime e, consequentemente, ninguém foi constituído arguido estão ausentes as razões que subjazem ao que se designa por «instituto de caso decidido». (….)

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Ambos os processos (563/14 e o presente 39/16) são férteis em variada tramitação processual (parte dela mencionada no aresto em crise, transcrito supra a págs. 33-36 do presente acórdão).

Além da descrita no aresto em crise, os presentes autos (Proc. 39/16) foram mandados arquivar pelo Ministério Público (Procurador-Geral Adjunto) junto da Relação de ..., por despacho de 14/11/2016, por falta de indícios suficientes do crime de violência doméstica (fls. 532-538 do II vol.), onde se escreve nomeadamente, que «o que se evidencia por parte do arguido, com o envio das mensagens em causa é o despeito, o inconformismo com a separação, a tentativa de reconciliação, com a utilização, bastas vezes de linguagem menos própria e de mau gosto, a ofender a honra e dignidade da visada, por vezes com tom intimidatório, de ameaça velada, podendo equacionar-se a perturbação da vida privada, sendo que, porém, como acima se frisou, se extinguiu, há muito, o direito de queixa por tais possíveis delitos. (…) (…).

Ao que acresce que, pese embora a aparente mudança comportamental da denunciante face ao recebimento das mensagens, denotando inquietação e tristeza, não se mostra, como se referiu, evidenciada situação de prevalência ou dominância do arguido em relação a ela, o que facilmente se retira do conteúdo da globalidade das mensagens a que se reporta o “certificado” de fls. 161 a 177, bem como da documentação junta a fls. 357 a 504 donde se poderá, colher, além do mais, que o relacionamento cordial entre ambos mesmo após a ocorrência das mesmas, atestado, designadamente, pela disponibilização do arguido para servir de testemunha em processo, a favor da denunciante, por outras mensagens trocadas, e não deixa de ser corroborado pelas testemunhas indicadas pelo arguido, no sentido de a ofendida não deter personalidade facilmente atemorizável. (…).»

A assistente requereu a abertura da instrução (fls. 585 e ss. do II vol.), que foi rejeitada por despacho de 12/1/2017 (fls. 656-666 do II vol.) por inadmissibilidade (art. 287.º, n.º 3—não enumeração de factos concretos).

Houve recurso para o STJ, que, por acórdão de 21/6/2017, revogou a decisão recorrida (fls. 777 e ss. do II vol.).

Refere tal acórdão que «A assistente, para além de ter enunciado as razões de facto e de direito da sua discordância em relação à decisão do MP de arquivamento por falta de indícios suficientes, muito embora de forma pouco rigorosa, indicou os factos e o direito de modo a termos por cumprido o ónus imposto na parte final do n.º 2 do art. 287.º do CPP, pelo que não deve, nem pode, ser rejeitado como foi, por falta de cumprimento daquele ónus, o requerimento de abertura de instrução que aquela assistente apresentou», e que «O requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente foi rejeitado, também, por omitir a identificação do arguido, omissão que efectivamente ocorre. Porém, só a falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido e de indicação das disposições legais aplicáveis constitui motivo de rejeição sem possibilidade de convite ao assistente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução. No caso de falta de identificação do arguido deve pois o assistente ser convidado a completar aquele requerimento.»

Foi então, na decorrência deste aresto do STJ, elaborado novo RAI (fls. 808 e ss. do III vol.).

Foi proferida decisão instrutória em 5/2/2018 (fls. 1075 e ss. do III vol.), que pronunciou o arguido pelo crime de violência doméstica (art. 152.º, n.º 1, al. b) do CP).

E no Proc. 563/14 foi interposto, pelo arguido, recurso do acórdão condenatório para estre STJ, que, por acórdão de 18/1/2018, julgou o mesmo improcedente.

O despacho acusatório de 19/10/2015 (acusa o arguido da prática do crime de falsidade de testemunho do art. 360.º, n.º 1 e 3 do CP), exarado pelo Ministério Público no Proc. 563/14, embora no seu n.º 18, no que tange às mensagens e expressões, as qualifique como de «rancor e intimidatórias» (negrito nosso), não aborda a questão da violência doméstica. É absolutamente omisso nesse aspecto.

Note-se que qualquer um dos crimes (seja o de falsidade de testemunho, pelo qual o arguido foi acusado e condenado, seja o de violência doméstica) é de natureza pública, o que impunha se retirassem desde logo, também quanto à violência doméstica, as devidas consequências.

E como vimos atrás, na parte em que se transcreveu a decisão em crise, tal processo (563/14) teve origem na participação criminal, contra o ora arguido, feita em 19/03/2014, pela assistente BB, por factos suscetíveis de integrarem o crime de falsidade de depoimento. Tal participação termina pedindo seja aberto inquérito por «estarmos perante um comportamento passível de censura criminal», não referindo, expressamente, o crime de falsidade de depoimento.

Aquando das declarações, no dia 31/10/2014, no âmbito de tal processo, a assistente referiu então que, após a separação definitiva do arguido, ocorrida em julho de 2001, o mesmo, nesse mês e nos meses de agosto e setembro, enviou-lhe mensagens, traduzindo que “a declarante se ia arrepender e muito do fim da relação”, apresentando a ora assistente documentação atestando o teor de tais mensagens, que foi junta aos autos.

Referenciavam-se, assim, pela primeira vez, factos susceptíveis de integrarem eventualmente o crime de violência doméstica.

Quando a assistente presta as referidas declarações, onde alude às mensagens, o objecto do processo ainda não estava estabilizado e definido. Só com a acusação é que tal acontece. E em tais declarações não refere expressamente o crime de violência doméstica. Nem tinha que o fazer. Limita-se a carrear factos para os autos. A qualificação jurídica dos mesmos compete ao tribunal (desde logo ao MP na acusação, o que não aconteceu, como vimos).

Também vimos supra, pela mesma transcrição, que em 19/11/2015, «a assistente requereu a abertura da instrução, invocando a insuficiência do inquérito e investigação, defendendo que atenta a matéria de facto constante da acusação e a prova documental junta aos autos, a conduta do arguido deveria ser agravada nos termos do disposto no artigo 361.º do Código Penal e ainda ser suscetível de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal.». 

Subsequentemente, por despacho proferido em 25/01/2016, transitado em julgado em 29/02/2016, foi liminarmente indeferido o requerimento de abertura da instrução por inadmissibilidade da instrução por falta de objeto (omissão no RAI dos factos necessários ao completo preenchimento do tipo de crime imputado ao arguido), em violação do disposto no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.

Contrariamente ao que aconteceu nos presentes autos (Proc. 39/16), a assistente não impugnou tal despacho de 25/1/2016 do Proc. 563/14, que rejeitou liminarmente o seu RAI.  

Relembre-se que no acórdão em crise, a propósito desta questão do caso julgado e do princípio ne bis in idem, se consignou o seguinte:
 «Perante o que se deixa descrito, resulta evidente que os factos por que o arguido foi pronunciado nos presentes autos, não foram objeto de apreciação e decisão no processo nº. 563/14.3TABRG.
É certo que a quase totalidade das mensagens que vêm referidas no despacho de pronúncia proferido nos presentes autos como tendo sido enviadas pelo arguido à assistente foram descritas na acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido, no âmbito do processo nº. 563/14.3TABRG e que tal factualidade foi dada como provada, no acórdão proferido no âmbito dos mesmos autos, que condenou o arguido pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º nºs. 1 e 3, do Código Penal.
Contudo, os factos em questão, que se reportam às mensagens que o arguido enviou à assistente, que foram narrados na acusação deduzida pelo Ministério Público no processo nº. 563/14.3TABRG e que resultaram provados, no acórdão condenatório proferido, foram alegados e considerados a título circunstancial, na contextualização do quadro que antecedeu e da motivação subjacente à prática pelo arguido do crime de falsidade de testemunho, por que veio a ser condenado, por decisão já transitada em jugado.
 Não oferece dúvida que tendo os ditos factos sido participados pela ora assistente no âmbito daquele processo nº. 563/14.3TABRG, quando prestou declarações, na fase de inquérito, estando em causa uma conduta legalmente descrita como violadora de bens jurídicos tutelado pela lei penal, deveriam ter sido objeto do inquérito/investigação realizada pelo Ministério Público e que o despacho final proferido pelo Ministério Público deveria ter-se reportado à sua (ir)relevância criminal, o que não aconteceu, não sendo, em nosso entender, de acolher a posição defendida pelo arguido, no sentido de que ao descrever tais factos na acusação, sem lhes atribuir relevância criminal, o Ministério Público determinou o arquivamento (implícito) dos autos, nessa parte.
Porém, tendo em conta a posição que acolhemos, no sentido de que a verificação do caso julgado e a violação do princípio ne bis in idem só ocorrerão, no caso de, o âmbito de determinado processo, existir uma decisão definitiva que conheça de determinados factos com relevância criminal e esses mesmos factos, venham a ser considerados, noutro processo, para efeitos de imputação ao mesmo arguido da prática de um qualquer crime, entendemos que a circunstância de o Ministério Público não ter investigado os factos que foram levados ao seu conhecimento pela ora assistente, na fase inicial do inquérito, e ter proferido despacho de acusação, onde pese embora referenciado tais factos não lhes atribui relevância penal, não exclui a possibilidade de vir a ser instaurado outro processo tendo por objeto tais factos (neste sentido, cf., entre outros, Ac. da R.E. de 06/01/2015, proferido no proc. nº. 849/10.6GDPTM.E1, acessível no endereço www.dgsi.pt).
Consequentemente, em face do que se deixa exposto, entende-se que a sujeição do arguido a julgamento pelos factos/crime por que foi pronunciado nos presentes autos não viola o caso julgado, nem o princípio ne bis in idem.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela improcedência da exceção do caso julgado e pela inexistência de violação do princípio ne bis in idem, invocados pelo arguido.» (sublinhados nossos).

Ou, como se escreve no parecer da Ex.ma PGA junto deste STJ:

«Não obstante algumas das mensagens que o arguido enviou à ofendida constarem da descrição do libelo acusatório naquele processo, “foram-no a título de contextualização do quadro que antecedeu e de motivação subjacente à prática pelo arguido do crime de falso testemunho” que, balizou o objecto do processo/julgamento.

Não foram aquelas mensagens objecto de inquérito, acusação ou julgamento prévio. Tais mensagens, integram o acervo das que conduziram à condenação do arguido nos presentes autos, pelo crime de violência doméstica.

Não se verifica, por isso, violação do princípio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado.»

  

A referida questão da violência doméstica deu depois origem a um outro processo--os presentes autos (Proc. 39/16) -- despoletado por denúncia da assistente em 18/2/2016.

Tal questão da violência doméstica fora apreciada pelo cit. Despacho (despacho de 25/1/2016, transitado em 29/2/2016) que rejeitou o RAI da assistente nos autos 563/14.

A assistente deixou transitar tal despacho proferido no dito Proc. 563/14 e veio suscitar a questão nestes autos (39/16), ou seja em processo autónomo.

O despacho, transitado, que rejeita o RAI da assistente (Proc. 563/14) faz caso julgado formal e, na verdade, não implica, forçosamente, a morte dos autos.

O caso julgado formal, contrariamente ao caso julgado substancial, cujos efeitos se estendem a todo e qualquer processo, só tem efeito no próprio processo.

Os autos podem ser reabertos, a todo o tempo, desde que surjam novos elementos de prova (cfr. Ac. STJ 6/5/2004, Proc. 04P1132, Rel. Rodrigues da Costa).

A reabertura dos autos pressupõe despacho de arquivamento do Ministério Público (n.º 1 do art. 279.º do CPP).

Ainda que, eventualmente, se considerasse existir uma nulidade insanável (art. 119.º, alínea b) do CPP), em virtude de o Ministério Público, no despacho acusatório no Proc. 563/14, nada ter dito relativamente à violência doméstica, que como se disse é um crime de natureza pública, a mesma sempre teria que se considerar sanada pelo trânsito em julgado do despacho que rejeitou o RAI da assistente.

A reabertura do proc. 563/14 não aconteceu, porém, no caso em análise.

É que a assistente contornou a projecção e efeitos do caso julgado formal do proc. 563/14. Na verdade, a assistente apresentou, como vimos, denúncia que deu origem a um outro processo (os presentes autos 39/16) com base essencialmente nas mesmas mensagens[12] que constavam do Proc. 563/14. Mas nada refere quanto a eventuais novos elementos de prova, ou outra qualquer justificação, que permitissem a abertura de novo inquérito pelos mesmos factos que já constavam do cit. Proc. 563/14.

No proc. 563/14 existe não só o caso julgado do despacho que rejeitou o RAI da assistente, como também o caso julgado do acórdão final.

Existe uma ligação intrínseca entre os factos que estão na base do crime de falsidade de testemunho e de violência doméstica, como ressalta, por exemplo, não só da denúncia que deu origem aos presentes autos (39/16), que remete em vários dos seus articulados (v. g. nos n.º 4.º, 5.º, 6.º, 10.º) para a acusação do MP deduzida no proc. 563/14, como também do próprio acórdão recorrido quando se refere ao carácter circunstancial da alegação dos factos das mensagens narrados na acusação pública e dados como provados no respectivo acórdão do mencionado processo 563/14. 

O pedaço de vida (cfr. supra, nas págs. 62-63 deste aresto, transcrição do Ac. STJ 11/2013) que constitui o objecto do presente processo já constava da acusação do Proc. 563/14.

Não obstante a extrema delicadeza da questão, já anteriormente salientada, afigura-se-nos, todavia, na linha aliás do decidido pelo aresto em crise, que não poderá falar-se neste caso, verdadeiramente, de uma violação do princípio ne bis in idem. É certo que os factos pelos quais o arguido foi condenado nestes autos (Proc. 39/16) já constavam da acusação do processo 563/14 e foram dados como provados no acórdão condenatório no mesmo proferido.

Todavia, para que os mesmos pudessem configurar a violação daquele princípio, teriam que se relacionar directamente (cfr. Ac. STJ de 15/3/2006, Rel. Oliveira Mendes atrás sumariado) com o objecto do processo (o pedaço de vida) 563/14, no qual o arguido foi condenado por falsidade de testemunho. Ora, os factos pelos quais o arguido foi condenado nestes autos por crime de violência doméstica constavam do cit. processo 563/14, mas foram ali alegados, e dados como provados, a título meramente circunstancial.

Improcede assim esta questão do recurso.  

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● da questão da integração (ou não) dos factos provados no tipo de crime de violência doméstica.

Prosseguiremos com a apreciação desta questão, em virtude do seu conhecimento poder, eventualmente, prejudicar a decisão das demais.

O crime de violência doméstica (o arguido foi condenado de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 152.º) encontra-se disciplinado no art. 152.º do CP, do seguinte teor:

Artigo 152.º (Violência doméstica)

«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
c) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
       a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.»

Como se alcança da leitura do texto da lei, e das múltiplas alterações que sofreu ao longo do tempo, estamos perante um tipo de elevada complexidade onde mergulham diversas concepções de sociedade e de família.

O crime começou por ser consagrado na versão originária do CP de 1982 no art. 153.º com a epígrafe maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges.

Com a reforma de 1995 (DL 49/95), passou a constar do art. 152.º com a epígrafe maus tratos ou sobrecarga de menores de incapazes ou do cônjuge, tendo-se eliminado, além do mais, o requisito da malvadez ou egoísmo fazendo-se desaparecer o dolo específico.

A reforma de 1998 (L 65/98) consagrou no art. 152.º com a epígrafe maus tratos e infracção de regras de segurança e procedeu a alterações a nível do procedimento no que tange ao Ministério Público.

Com a L 7/2000 o crime passa a ser de índole pública.

Com a reforma de 2007 (L 59/2007) deu-se uma das maiores alterações consagrando-se no art. 152.º o crime de violência doméstica, que foi autonomizado dos crimes de maus tratos (art. 152.º-A) e do crime de violação de regras de segurança (art. 152.º-B). E consagrou-se a desnecessidade de reiteração.

A L 19/2013 acrescentou na alínea b) do n.º 1 a relação de namoro alargando novamente—o âmbito do crime já tinha sido consideravelmente alargado na revisão de 1995-- o âmbito dos sujeitos passivos.

Por último a L 44/2018 subdividiu o n.º 2 em duas alíneas consagrando matéria nova na alínea b) (difusão através da Internet…).

Vasta produção legislativa, quer a nível internacional, quer a nível interno, tem também sido produzida sobre o fenómeno da violência doméstica[13], a última das quais concretizada na L 80/2019, de 2/9, que altera a Lei do CEJ, disciplinando a formação obrigatória dos magistrados em direitos humanos e violência doméstica.

Igual sinal da complexidade do crime violência doméstica[14] está na determinação do bem jurídico protegido pelo mesmo.

O Ebook do CEJ, intitulado Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, contém diversos estudos elaborados por Magistrados Judiciais e do Ministério Público, nomeadamente a págs. 84-106, um trabalho acerca da Violência Doméstica elaborado pela Procuradora da República e Docente do CEJ, Catarina Fernandes, onde se faz uma síntese sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, que, pela sua clareza e fontes informativas, a seguir se reproduz:

«1) Saúde

A posição dominante tem sido e continua ainda a ser a sufragada por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.

Na Doutrina, a posição de Américo Taipa de Carvalho conta com a concordância, entre outros, de:

-- Catarina Sá Gomes (O Crime de maus tratos físicos e psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, 1ª reimpressão, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2004, p. 59);

-- Maria Elisabete Ferreira (Da intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Coimbra: Almedina, 2005, p. 102);

-- Maria Manuela Valadão e Silveira (Sobre o crime de maus tratos conjugais, in Do crime de Maus Tratos, Cadernos Hipátia - nº 1, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres - CIDM, Lisboa, 2001, p 19 e 20);

-- Jorge dos Reis Bravo (A actuação do Ministério Público no âmbito da Violência doméstica, Revista do Ministério Público, nº 102 - abril/junho 2005, p. 45 a 77, p. 66);

-- Ricardo Jorge Bragança de Matos (Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?, Revista do Ministério Público, nº 107- julho/setembro 2006, p. 89 a 120, p. 96);

-- Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre 2008 - Número Especial (Textos das Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal);

-- Carlos Casimiro e Maria Raquel Mota (O crime de violência doméstica: a al. b) do nº 1 do art. 152° do Código Penal, Revista do Ministério Público, nº 122 - abril/ junho 2010, p.133-175);

-- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio (Código Penal - Parte geral e especial – com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 2014, p. 615-623); e

-- Nuno Brandão (A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 – especial –, 2010, p. 9-24).

[cita depois jurisprudência das Relações]

2) Dignidade da pessoa humana

Encontram-se na Doutrina e na Jurisprudência algumas posições que, alargando amplamente

o objeto de tutela do crime de violência doméstica, o reconduzem à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). Também Sandra Inês Feitor defende esta tese (Análise crítica do crime de violência doméstica [Em linha], 2012, disponível na Internet em: <URL http://www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf >).

[cita depois jurisprudência das Relações]

3) Integridade pessoal

José Francisco Moreira das Neves (Violência Doméstica - Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62), recordando que o tipo objetivo do ilícito de violência doméstica inclui condutas que se consubstanciam em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual, conclui que o bem jurídico é a integridade pessoal, uma vez que a tutela da saúde, abrangendo a saúde física, psíquica e mental, “ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que este tipo de ilícito visa tutelar”.

4) Integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação

sexual e a honra

Também Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) discorda da posição maioritária na doutrina e jurisprudência nacionais, entendendo que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.

[cita depois jurisprudência—um aresto da RE]

5) Integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade

André Lamas Leite tem um posicionamento diferente do tradicional e dominantes [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, e Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra Editora, Coimbra, 2014].

Para este autor, o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: (…) »

A nível da jurisprudência deste STJ:

 

Escreve-se no Ac. STJ de 23/6/2016, Proc. 125/15.8PHNST.S1, Rel. Armindo Monteiro, que:

«O crime terá como bem jurídico a proteger, no descritivo típico, segundo alguns, uma panóplia de bens jurídicos, emprestando-lhe natureza complexa, como a saúde física e mental, a liberdade, na sua projecção individual, sexual; para outros a dignidade da pessoa humana, o da dignidade em geral e, em particular, a sua saúde.

Em Taipa de Carvalho, CCCP, I, 512, vemos sufragado o entendimento da protecção da saúde, nas suas díspares irradiações – física, psíquica e mental-; deste entendimento se não distanciará Nuno Brandão, in Julgar, Ano 12, 2010, 17 a 22, para quem o delito goza de “uma tutela penal especial reforçada“, mercê da carga acrescida de ilicitude e de dolo de que se mostram portadores os maus tratos, que tanto podem consistir em actos reiterados, habituais, mas sempre expressivos de gravidade, embora se possam traduzir em um acto isolado, neste caso portador de uma chocante e indesculpável carga de ilicitude e censura do agente, sem desprezar não só o acto em si como a sua repercussão na possibilidade de vida em comum, particularmente se a compromete sem remédio, sem possibilidade de subsistência, sacrifício absolutamente intolerável, à luz das concepções sociais reinantes, numa valoração da imagem global do facto, onde se há-de detectar um quadro, no dizer de Nuno Brandão, R E V. e loc. cit., degradado, de aviltamento, humilhante da dignidade, ofensividade e enfranquecimento da relação, integrando os maus tratos indiscutível “risco qualificado“ para a saúde física e psíquica do outro.

Os maus tratos hão-de traduzir “lesões graves, pesadas, da incolumidade corporal e psíquica do ofendido“, no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral “, nas palavras de André Lamas Leite, in R E V. Julgar, Ano 12 (Especial), 45.

Os maus tratos revelam e definem-se, em síntese abrangente, como actos denotando intenção de humilhação, indiferença, desprezo, desrespeito, crueldade, o propósito de fazer sofrer; a violência é tanto a física, a corporal, como a psíquica, em acumulação com as privações de liberdade e as ofensas sexuais, atentatórias em alto grau da pessoa e ser humano, sobretudo da dignidade que, pelo facto de o ser, lhe é merecida e devida, e por isso aquelas ofensas hão-de revelar-se intoleráveis no quadro da vivência em comum, à margem da harmonia que nela deve reinar, tornada um sacrifício insuportável.»

No Ac. STJ de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges, que:

«Considerando que o artigo 152.º está, sistematicamente, integrado no Título I do Código Penal, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”, entende Américo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, pág. 332) que «A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (…) A ratio deste art. 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas».

Acrescenta que «o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem os trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde».

(….)

No mesmo sentido, diversos arestos deste Supremo Tribunal, de que é exemplo o acórdão de 30-10-2003 (processo n.º 3252/03 - 5.ª), publicado em CJSTJ 2003, tomo 3, págs. 208 e ss., no qual se considerou que «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar».

Veja-se no mesmo sentido o acórdão de 04-02-2004, no processo n.º 2857/03-3.ª.

(….)

Para o acórdão de 5-11-2008, processo n.º 2504/08-3.ª Secção, versando o crime p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 7/2000, de 27-05, o bem jurídico protegido na incriminação, tendo em conta a sua inserção sistemática, era a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar.

No acórdão de 12-03-2009, processo n.º 236/09-3.ª Secção, considera-se que no crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge, sendo que esse bem pode ser violado por todo o comportamento que afecte a dignidade pessoal daquele, designadamente por ofensas corporais simples, invocando os acórdãos de 30-10-2003, já citado, e de 04-02-2004, processo n.º 2857/03-3.ª. Mantém o montante de 20.000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

(…..)

Para além do acórdão deste Supremo Tribunal de 30-10-2003, proferido no processo n.º 3252/03 - 5.ª Secção, publicado em CJSTJ 2003, tomo 3, págs. 208 a 222, no qual se considerou que «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar», do acórdão de 4-02-2004, proferido no processo n.º 2857/03, da 3.ª Secção, em que foi considerado que “o bem jurídico tutelado por este crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros”, de 6-04-2006, onde se inclui a prática de factos que atinjam de forma grave a dignidade de outro, e do já referido no acórdão de 2 de Julho de 2008, por nós relatado no processo n.º 3861/07, com transcrição parcial supra de fls. 46 a 50 deste acórdão, e outros já mencionados, como os acórdãos de 5-11-2008, processo n.º 2504/08, de 12-03-2009, processo n.º 236/09, de 13-07-2011, no habeas corpus n.º 552/11.0PWPRT-A.S1, in CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 189 e de 14-12-2016, processo n.º 952/11.0PHLRS.L1.S1.

Mais recentemente, pode ler-se no acórdão de 09-03-2017, proferido no processo n.º 1006/15.0JABRG.G1.S1 - 5.ª Secção: “O recorrente, condenado pelo crime de homicídio qualificado tentado procurou lesar um bem jurídico fundamental, a vida humana, logo por aí se revelando também um grau de ilicitude especialmente elevado, e certamente que a tutela eficaz desse bem torna muito prementes as necessidades de prevenção geral. E consumou, no crime de violência doméstica pelo qual também foi condenado, a lesão de outros bens de elevado significado pessoal e social como são a integridade psíquica, da liberdade e até a honra. O que evidencia, na imagem global do facto, um traço da sua personalidade que é o da falta de contenção para a ofensa de bens jurídicos de carácter pessoal”.

Com o mesmo Relator do anterior consta do acórdão de 20-04-2017, proferido no processo n.º 2263/15.8JAPRT.P1.S1, da 5.ª Secção, consta: “Na identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos no crime de violência doméstica generalizadamente, se apontam como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada.

A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.

Mas pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.

Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar.

Se a violência doméstica pressupõe aquela durabilidade relacional familiar e aquela outra situação de domínio e de constrangimento da livre determinação da vítima, de disposição da sua vida, num sentido mais geral, ou, dito de modo mais expressivo, «a eliminação do núcleo fundamental de autonomia da vontade e de disposição livre da mesma pela vítima» naturalmente que a intenção de matar pressupõe um “ir mais além”; pressupõe a intenção de atacar a vida da vítima, pondo-lhe fim e de, por essa via, terminar todo o envolvimento relacional que “possibilitava” uma certa conduta do agente. Atentar contra a vida humana é um plus significativo relativamente a martirizá-la com maior ou menor intensidade.”

Ainda do mesmo Relator, pode ler-se no acórdão de 28-02-2018, proferido no processo n.º 129/16.3GILRS.L1-B.S1, da 5.ª Secção: “Acerca da identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica é generalizado o entendimento de que são carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas als. a) a d) do n.º 1 do art. 152.º do CP. Assim, fica evidenciado que as dimensões da integridade física e da liberdade pessoal estão entre aquelas que o tipo legal visa proteger o que torna possível à luz da conjugação das disposições citadas a imposição da prisão preventiva”.

Passando à Doutrina. (…)»

No Ac. STJ de 21/11/2018, Proc. 574/16.4PBAGH.S1, Rel. Manuel Augusto Matos, que:

«III - Sistematicamente integrado, no CP, no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, especificamente, no capítulo dos crimes contra a integridade física, a teleologia do crime de violência doméstica assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo aquelas condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física como psíquica.»


E no Ac. STJ de 20/2/2019, Proc. 25/17.7GEEVR.S1, Rel. Júlio Pereira, que:

«O crime de violência doméstica integra-se no título I, dos crimes contra as pessoas, e no seu capítulo III, dos crimes contra a integridade física, da parte especial do Código Penal.

Não obstante a sua inserção sistemática entende-se que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é de natureza complexa. Em anotação prévia à autonomização deste crime e a propósito do crime de maus tratos e infracção de regras de segurança, escrevia Taipa de Carvalho “…deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agrave as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem os trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde.»

Perscrutando, além da doutrina, a jurisprudência deste STJ podemos concluir que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias vertentes, também como emanação da própria dignidade da pessoa humana.

Alinhavando e arrumando ideias fundamentais informadoras do crime em análise, podemos dizer que:

--estamos perante um crime de relação[15], dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação;

--um crime em que o bem jurídico protegido é plural e complexo;

--e que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de maus tratos (físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação).

Nem toda a ofensa à integridade física, por exemplo, ocorrida no seio de uma relação, integrará, necessária e forçosamente, um crime de violência doméstica, que o legislador tipificou em norma própria.

Em primeiro lugar, haverá que ponderar se é lesado o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, e, em segundo lugar, se a conduta integra a noção de maus tratos.   

Os maus tratos, como se espelha na jurisprudência do STJ, acima transcrita, e da doutrina a seguir mencionada, hão-se assumir-se, ou traduzir-se, em lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas.

  

«Creio que os critérios judiciais expostos apontam na direcção correcta, mas julgo que lhes falta ainda uma clara vinculação ao bem jurídico. Daí que me pareça sempre de exigir que o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima48. Admito que, na prática, este crivo acabe por não conduzir a resultados substancialmente distintos daqueles a que a jurisprudência vem chegando, mas o critério proposto já não será, ao menos, de todo inútil se através dele se puder alcançar uma maior nitidez na definição do recorte típico dos maus tratos físicos e psíquicos reportados a uma única actuação violenta.» Nuno Brandão, A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar, nº 12 – especial (sobre crimes no seio da família e sobre menores) –, 2010, p. 22 (artigo disponível na Internet).

«Os «maus tratos físicos ou psíquicos» devem, a nossos olhos, ser interpretados como lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo de tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral.» André Lamas Leite--na esteira de jurisprudência do STJ e da RC, que cita--, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, na cit. Revista Julgar, nº 12 – especial, pág. 45.

«Como resulta do texto da norma, o crime de violência doméstica não exige reiteração. Ainda assim, pelas suas características é usualmente um crime que se comete de forma reiterada e, neste sentido, podemos distinguir dois vectores: o da habitualidade e o da intensidade dos actos. Seja um acto isolado ou reiterado, se se verificar que apreciado à luz da intimidade do lar, coloca em sério risco a vida em comum, por reconduzirem a pessoa ofendida a vítima, de forma permanente, ou não, a um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, encontramos preenchido o tipo de violência doméstica.» (Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica)[16].

*****

Como se vê da matéria de facto provada (n.º 1 e 2), o arguido e a assistente viveram em união de facto entre, pelo menos, Setembro de 2007 e Julho de 2011.

E nesse período tiveram diversas separações e reconciliações, de que se dá conta ao longo da matéria de facto (cfr., nomeadamente, arts. 33, 36, 47). Pelo menos quatro.

Como vimos supra, está em causa e em discussão um eventual crime de violência doméstica (art. 152.º, n.º 1, alínea b) do CP) cometido por meio de envio de mensagens electrónicas.

Tais mensagens electrónicas, ocorridas entre 6/7/2011 e 16/8/2011, encontram-se descritas no n.º 3 da matéria de facto provada atrás transcrita. E tiveram lugar, atentos os parâmetros temporais constantes dos cit. arts. 1 e 2 da matéria de facto, na fase da separação definitiva do casal e imediatamente após a consumação da mesma.

A matéria fáctica provada evidencia quatro momentos temporais distintos (Setembro e Novembro de 2006—n.º 24, 26 e 27 dos factos provados; Janeiro de 2009—n.º 65 dos factos provados; Março e Abril de 2010-- n.º 48 dos factos provados e Abril de 2011—alínea e) do n.º 48 dos factos provados) onde constam, além do mais, diversas mensagens e emails enviados pela assistente ao arguido, bem reveladores da linguagem utilizada pelo casal.

Este tipo de tratamento começou logo na fase inicial de namoro (conheceram-se em Agosto de 2006 e começaram o namoro no mês seguinte—facto provado n.º 24) como se realça na matéria de facto provada:

  

«26. Durante a fase inicial do namoro, o arguido e a assistente trocavam amiúde mensagens, através de telemóvel.

27. Em algumas das mensagens que a assistente enviou ao arguido, na fase aludida em 26, a assistente apelidou o arguido de “bandido”, “lacrau”, “gringo” “vadio”, “safado”, “burro”, “cabrão” e “vadio”, o que ocorreu, designadamente, nas mensagens enviadas:

- Em 08/09/2006, pelas 11h:36m: “Vadio …”;

- Em 11/09/2006, pelas 05h:190m: “Cabrão …”;

- Em 14/09/2006, pelas 18h:03m: “Ho gajo tenho de aproveitar para trabalhar e aproveitei e vim visitar o meu pai ho burro”;

- Em 15/09/2006, pelas 19h:05m: “Estás bem gringo”;

- Em 23/09/2006, pelas 22h:44m: “Engraçado tenho a mesma opinião de ti: vadio e safado”. Beijinhos, passa bem.

- Em 10/11/2006, pelas 20h:42m: “Então lacrau”;

- Em 12/11/2006, pelas 22h:33m: “Mi tu lacrau”;

- Em 28/11/2006, pelas 16h:17m: “amo-te bandido”.»

E continuou posteriormente:

«65. Na data referida em 4 (23/01/2009), a assistente enviou ao arguido, através do seu telemóvel com o nº. ..., as mensagens com o seguinte teor:

- às 01h:35m:Ho filho da puta monte de merda pensei k estavas muito triste. da tua mulher até tremes mas eu não te tenho medo nenhum”;

- às 01h:20m: “Metes mesmo nojo até aos porcos preocupado com a merda de uma camisas k se estao ca é pork se esqueceram. Preocupa te em resolver a reg do poder paternal. Palhaço”.»

«48. O arguido e a assistente continuaram a trocar mensagens e emails, entre os quais, se contam os seguintes:

a) No dia 15/03/2010, pelas 19h:45m:

“AA: ah...não estás a mentir.

Na verdade, verifico que estás a ver os mails. Mas, com quem?

BB: o mentiroso és tu

AA: acabas de ser acusada de um crime de injúrias, com pedido astronómico de indemnização civil, por danos morais ...

BB: Ó cadelão o verdadeiro crime ainda está para vir...ha...

(…)

b) No dia 19/04/2010, pelas 20h:08m, a assistente enviou ao arguido o email com o seguinte teor:

Caro camarinha: (…) Agora junta isto ao facto de quereres estar casado, até já me mete nojo esta conversa (…)

c) No dia 20/04/2010, pelas 00h:08m, a assistente enviou ao arguido o email com o seguinte teor:

“Só mais uma coisinha, eu vou comprar o fiat porque ainda não preciso de mais e ainda bem, pois não tenho dinheiro para o ferrari mas a tua mulher deve ter.

 o nome camarinha foi só para te lembrares da tua mudança”;

(…)

e) No dia 01/04/2011, pelas 01h:01m, a assistente envia ao arguido um email com o seguinte teor:

Assunto: Phoda-se»

O arguido não aceitou o fim da união de facto com a assistente e pretendia o seu reatamento. Tal circunstância motivou, por parte do mesmo, o envio à assistente de mensagens ora de amor, ora similares à do art. 3 (v. n.º 5 da matéria de facto).

A decisão em crise entendeu, além do mais, que se verificava o crime de violência doméstica pois «o facto de ter resultado provado que em datas muito anteriores ao período temporal em que se verificou o envio pelo arguido à assistente das mensagens de que se trata, a assistente em mensagens que enviou ao arguido (designadamente, em 2009 e 2010) dirigiu-lhe expressões tais como “cadelão”, “camarinha”, “filho da puta”, “metes nojo mesmo até aos porcos”, também não leva a afastar o preenchimento do crime de violência doméstica, designadamente, por via da reciprocidade de condutas, posto que, num e noutro dos casos, estamos perante momentos divergentes, sendo grande a distância temporal que os separa, nada impedindo, que nesta situação, os factos praticados pelo arguido, tendo como vítima a assistente e sendo lesado o bem jurídico tutelado pelo crime de violência domestica, nos termos sobreditos, sejam subsumíveis a tal tipo legal de crime.»

Todavia, como bem se vê da matéria de facto acabada de transcrever com as mensagens da assistente, que se estendem desde Setembro de 2006 até Abril de 2011 (ano das mensagens em causa enviadas pelo arguido), não pode considerar-se «grande a distância temporal» que separa as mensagens da assistente das mensagens do arguido.

O que ressalta da matéria de facto é que a relação entre o arguido e a assistente era pautada por troca de mails, remetidos por um e por outro, similares aos mails do arguido objecto dos presentes autos. O tipo de linguagem era recíproco.

Como vimos, o conceito de maus tratos, essencial no crime de violência doméstica, tem na sua base lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas.

Dado o tipo de linguagem utilizada pelo casal, e, no caso específico, pela própria assistente, bem expressa nas mensagens, acima transcritas, enviadas pela mesma ao arguido, não estamos perante lesões que integrem a figura jurídica dos maus tratos, não se verificando, por isso, o crime de violência doméstica.  

Da matéria fáctica verifica-se, igualmente, que a assistente continuou a manter contactos com o arguido após a separação definitiva (ocorrida em Julho de 2011) socorrendo-se do mesmo, e aproveitando os seus conhecimentos jurídicos, no âmbito de diversos processos judiciais identificados nos n.º 54 a 61 da referida matéria (de Julho de 2011 a Maio de 2013).

Absolve-se o arguido da parte criminal.

 

Quanto ao pedido de indemnização civil.

Refere o artigo 377.º, n.º 1 do CPP que“a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização cível, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem pre...o do disposto no art. 82º, nº 3 do C.P.Penal.

Por seu turno o artigo 483.º n.º1 do C. Civil estabelece que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

A doutrina—sendo fundamental neste campo o ensino de Antunes Varela-- tem considerado como pressupostos da responsabilidade civil: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante - culpa; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Não resultam dos autos lesões ou danos provocados à assistente pela conduta do demandado.

Vai o arguido absolvido também da parte cível.

III DECISÃO

           Atento o exposto, os Juízes desta 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça acordam em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, absolvendo-o da parte criminal e cível.  

Fica prejudicado o conhecimento do recurso interlocutório.

Sem custas criminais (art. 513.º, n.º 1 do CPP).

Custas cíveis pela demandante (art. 523.º do CPP e 527.º, n.º 1 do CPC).

              Processei e revi (art. 94.º, n.º 2, CPP)

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Outubro de 2019

Vinício Ribeiro (Relator)

Conceição Gomes

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[1] É abundante a jurisprudência deste STJ sobre o crime de violência doméstica: cfr., recentemente, v.g., Acs. STJ de 23/6/2016, Proc. 125/15.8PHNST.S1, Rel. Armindo Monteiro; Ac. STJ de 20/4/2017, Proc.2263/15.8JAPRT. P1.S1, Rel. Nuno Gomes da Silva; Ac. STJ de 7/2/2018, Proc. 312/15.9POLSB.S1, Rel. Maia Costa; Ac. STJ de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges (caracteriza o crime e contém vasta informação legislativa, doutrinária e jurisprudencial); Ac. STJ de 21/11/2018, Proc. 574/16.4PBAGH.S1, Rel. Manuel Augusto Matos; Ac. STJ de 20/2/2019, Proc. 25/17.7GEEVR.S1, Rel. Júlio Pereira.
Especificamente sobre o crime de violência doméstica cometido através de envio de sms, cfr. na jurisprudência das Relações, Acs. RE de 1/10/2013, Proc. 258/11.0GAOLH.E1.A1, Rel. Martinho Cardoso; da RC de 18/6/2014, Proc. 718/11.2PBFIG.C1, Rel. Moreira Ramos; da RP de 8/10/2014, Proc. 956/10.5PJPRT.P1, Rel. Moreira Ramos.
[2] No Ac. STJ de 15/3/2006, Proc. 05P4403, Rel. Oliveira Mendes, refere-se que: «O recurso às normas do processo civil, nos termos do art. 4° do CPP, não se mostra adequado a colmatar esta omissão. Neste sentido se escreveu no Assento do STJ, de 27-01- 1993, publicado no DR I-A, de 10-03-1993, que os princípios que regem o caso julgado penal são produto de uma longa tradição e elaborada evolução, resultante da consideração do especial melindre da defesa dos direitos humanos e não se articulam adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estas últimas não possam ser aplicadas, nos termos do art. 4.° do CPP, pelo que se entende, uma vez que a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, terem de se considerar como ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior CPP, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós.»
No Ac. STJ de 17/6/2015, Proc. 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1, Rel. João Silva Miguel, escreve-se que: «Este Supremo Tribunal já teve oportunidade de apreciar questões sobre a reforma da sentença penal e a aplicabilidade subsidiária de normas do regime processual civil, sem que se surpreenda uma identidade jurisprudencial.».
De acordo com o Ac. STJ de 7/1/2016, Proc. 204/13.6YUSTR.L1-A.S1, Rel. Isabel Pais Martins, «A norma da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC não tem aplicação no processo penal».
No Ac. STJ de 7/1/2016, Proc. 503/10.9PCOER-A.S1, da mesma Relatora, escreve-se que: «A dupla condenação pelo mesmo facto ilícito típico, com violação do princípio referido em III, é solucionada por aplicação do art. 625.°, n.º 1, do CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.º do CPP, não constituindo ela fundamento do recurso extraordinário de revisão».
No Ac. STJ de 23/6/2016, Proc. 135/04.0IDAVR-E.S1, Rel. Francisco Caetano, faz apelo a diversos artigos do CPC sobre o caso julgado.
No Ac. RP de 27/2/2008, Proc. 0810050, Rel. Maria do Carmo Silva Dias, dá-se conta das duas posições escrevendo-se que «Assim e seguindo os critérios de integração de lacunas definidos no citado art. 4.º, não vemos qualquer obstáculo para que, como aí se preceitua, “Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios do processo penal”».
[3] A figura jurídica do caso julgado tem tido frequente tratamento na área cível, onde se burilam os conceitos de caso julgado material e formal, caso julgado positivo e negativo, efeitos do caso julgado material, autoridade do caso julgado e excepção do caso julgado: a nível doutrinário, cfr., recentemente, Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado—algumas notas provisórias, na Revista JULGAR on line de Novembro de 2018 e na jurisprudência Acs. STJ de 22/6/2017, Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1, Rel. Tomé Gomes; de 6/11/2018, Proc. 1/16.7T8ESP.P1.S1, Rel. Maria João Vaz Tomé (referencia muita doutrina e jurisprudência); de 26/2/2019, Proc. 1684/14.8T8VCT.G1.S2, Rel. Ana Paula Boularot; de 28/3/2019, Proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1, Rel. Tomé Gomes; de 30/4/2019, Proc. 4435/18.4T8MAI.S1, Rel. Fernando Samões (referencia muita doutrina).
[4] José Narciso da Cunha Rodrigues, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, Livraria Almedina 1989, pág. 384, refere‑se à tendencial autonomia do sistema de recursos relativamente ao processo civil, escrevendo que o «Código rompe abertamente com a tradição que, há quase um século, geminou os recursos penais e cíveis»
[5] Várias decisões do STJ se têm referido à autonomia do processo penal em vários campos: cfr., v. g., Ac. STJ 2/96, DR I S., de 10/1/1996 e no BMJ 452, pág. 61; Ac. STJ 9/2005, DR I S., de 6/12/2005; Ac. STJ de 9 de Dezembro de 2004, Proc. 4323/04‑5.ª, Rel. Pereira Madeira.
[6] A nível da Relações, no âmbito do anterior CPC, no Ac. RG de 26 de Março de 2007, Proc. 481/07‑1.ª, Rel. Cruz Bucho, defende‑se a inaplicabilidade dos artigos 667.º, 669.º e 686.º do VCPC e enumera‑se jurisprudência no sentido da referida inaplicabilidade do citado artigo 686.º do CPC ao processo penal. No mesmo sentido, e do mesmo Relator, cfr., Acs. RG de 23 de Abril de 2007, CJ, XXXII, T. II, pág. 294 e de 14 de Janeiro de 2008, Proc. 2226/07‑2.ª; Ac. RP de 15 de Outubro de 2008, Proc. 0844980, Rel. Custódio Silva; contra, cfr. Ac. RP de 31 de Janeiro de 2007, Proc. 0644810, Rel. Luís Gominho; Ac. RG de 12 de Março de 2007, Proc. 163/07‑1.ª, Rel. Anselmo Lopes; Ac. RP de 7 de Novembro de 2007, Proc. 0712964, Rel. Maria Leonor Esteves.
No Ac. RC de 25 de Janeiro de 2012, Proc. 819/10.4TBPMS‑A.C1, P1, Rel. Maria José Nogueira, decidiu-se que o artigo 669.º, n.º 2, als. a) e b), do Código de Processo Civil, não tem aplicação no processo penal. No sentido da inaplicabilidade da alínea a) do n.º 2 do artigo 669.º do CPC, Ac. RL de 23 de Junho de 2010, Proc. 103/10.3TYLSB.L1‑3.ª, Rel. Carlos Almeida; defendendo a aplicabilidade do mesmo artigo, Ac. RE de 5 de Março de 2013, Proc. 22/07.0GAPTM.E3, Rel. António João Latas.
[7] Referindo-se à autonomia do princípio do ne bis in idem perante o caso julgado, cfr. v.g., Ac. TC 246/2017, DR II S. de 25 de Julho de 2017, Ac. RL de 8/11/2011, Proc. 5752/09.0TDLSB.L1-5, Rel. Luis Gominho, Ac. RL de 22/2/2017, Proc. 555/15.5SDLSB.L1-3, Rel. Jorge Raposo.
Na doutrina sobre a autonomização do ne bis in idem perante o caso julgado, cfr. Henrique Salinas, Os Limites Objectivos do Ne Bis In Idem e a Estrutura Acusatória no Processo Penal Português, Universidade Católica Editora, 2014, cit., págs. 143 e ss. onde se sublinham os diversos fundamentos entre o caso julgado (valor da certeza e segurança jurídicas próprias de um Estado de Direito) e o ne bis in idem (garante da paz jurídica do indivíduo perante repetido poder punitivo estadual).
[8] Mais recentemente sobre o princípio do ne bis in idem, cfr. Ac. TC 319/2012 e o cit. Ac. TC 246/2017, que se baseia na moderna doutrina de Henrique Salinas e Inês Ferreira Leite.
[9] O STJ também já se debruçou, desenvolvidamente, sobre esta questão do objecto do processo no Ac. 1/2015, DR I S. de 27/1/2015.

[10] Cfr., v.g., Ac. RC de 14/1/2004, Proc. 3501/03, Rel. Belmiro Andrade; Ac. RC de 15/3/2006, Proc. 4337/05, Rel. Belmiro Andrade; Ac. RE de 11/3/2008, Proc. 2846/07-1, Rel. Ribeiro Cardoso; Ac. RC de 28/5/2008, Proc. 14/03.9IDAVR.C1, Rel. Alberto Mira; Ac. RL de 4/6/2008, Proc. 3715/2008-3, Rel. Varges Gomes; Ac. RL de 13/4/2011, Proc. 250/06.6PCLRS.L1-3, Rel. Rui Gonçalves; Ac. RL de 8/11/2011, Proc. 5752/09.0TDLSB.L1-5, Rel. Luís Gominho; Ac. RL de 17/4/2013, Proc. 790/09.5GDALM.L1-3, Rel. Maria da G. dos S. Silva; Ac. RP de 10/7/2013, Proc. 130/10.0GAMTR.P1, Rel. Alves Duarte; Ac. RP de 29/1/2014, Proc. 6237/09.0TDPRT.P1, Rel. Maria Dolores Silva e Sousa; Ac. RE de 6/1/2015, Proc. 849/10.6GDPTM.E1, Rel. Carlos Jorge Berguete; Ac. RG de 26/1/2015, Proc. 696/11.8GAFAF.G1, Rel. Ana Teixeira; Ac. RE de 16/6/2015, Proc. 51/04.6TABJA.E2, Rel. Sérgio Corvacho; Ac. RG de 28/10/2015, Proc. 950/11.9PIVNG.P2, Rel. Fátima Furtado; Ac. RL de 3/11/2015, Proc. 102/05.7TACDV.L2.-5, Rel. Carlos Espírito Santo; Ac. RC de 2/12/2015, Proc. 1255/09.9TBCVL.C1, Rel. Isabel Valongo; Ac. RP de 9/12/2015, Proc. 888/14.8GBPRD.P1, Rel. Jorge Langweg; Ac. RE de 2/2/2016, Proc. 114/13.7TARMR.E1, Rel. Isabel Duarte; Ac. RC de 3/2/2016, Proc. 64/14.0TAMMV.C1, Rel. Olga Maurício; Ac. RE de 23/2/2016, Proc. 192/13.9 GBABF.E1, Rel. Maria Filomena Soares; Ac. RC de 9/3/2016, Proc. 48/15.0GBLSA.C1, Rel. Isabel Valongo; Ac. RE de 5/7/2016, Proc. 132/13.5TAABF.E1, Rel. Alberto Borges; Ac. RG de 15/9/2016, Proc. 726/13.9TBEPS.G1, Rel. Maria Amália Santos; Ac. RP de 26/10/2016, Proc. 714/13.5PBVLG.P2, Rel. Maria Luisa Arantes; Ac. RE de 15/11/2016, Proc. 52/15.9 PEEVRE1, Rel. Carlos de Campos Lobo; Ac. RL de 22/2/2017, Proc. 555/15.5SDLSB.L1-3, Rel. Jorge Raposo; Ac. RP de 10/1/2018, Proc. 821/16.2T9GDM.P1, Rel. José Carreto; Ac. RE de 10/4/2018, Proc. 1559/16.6GBABF.E1, Rel. Gomes de Sousa; Ac. RE de 8/5/2018, Proc. 1927/16.3T9FAR.E1, Rel. Sérgio Corvacho; Ac. RE de 24/5/2018, Proc. 68/14.3IDSTR.E1, Rel. Maria Leonor Esteves; Ac. RL de 16/10/2018, Proc. 2528/16.1T9AMD.L1-5, Rel. José Adriano; Ac. RL de 28/11/2018, Proc. 4678/18.0T8LSB.L1-3, Rel. Maria Perquilhas; Ac. RG de 3/12/2018, Proc. 565/17.8PABCL.G1, Rel. Maria José Matos.
[11] Relativamente ao caso julgado, este aresto, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, defende não o recurso às normas do processo civil mas antes «terem de se considerar como ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior CPP, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós.»; sobre a noção de mesmo crime, cfr. também o cit. Ac. STJ de 6/6/2018, Proc. 1/15.4GAMTS.S1, Rel. Manuel Augusto Matos; o entendimento exposto na conclusão n.º XXI, por nós sublinhada, segue na esteira do defendido por Frederico Isasca Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992 e foi seguido em diversa jurisprudência das Relações, de que são exemplo, os Ac. RL de 4/6/2008, Proc. 3715/2008-3, Rel. Varges Gomes, Ac. RL de 3/11/2015, Proc. 102/05.7TACDV.L2.-5, Rel. Carlos Espírito Santo, Ac. RC de 9/3/2016, Proc. 48/15.0GBLSA.C1, Rel. Isabel Valongo, referenciados na nota 10 do presente acórdão.
[12] Apenas as mensagens contidas nas alíneas c) e l) do n.º 3 da matéria de facto provada é que não constavam do Proc. 563/14. As restantes são rigorosamente iguais.
[13] Pode ver-se elencada no cit. Ac. STJ de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges.

[14] Há várias teses de mestrado sobre violência doméstica, disponíveis na Internet, de que são exemplo: Sara Margarida N. das Neves Simões, O Crime de Violência Doméstica. Aspectos Materiais e Processuais, tese de mestrado sob a orientação do Prof. Germano Marques da Silva, U. Católica, 2015, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/18035/1/Tese%20Mestrado_final.pdf

Contém um vasto índice com referências bibliográficas.

Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica, tese de mestrado sob a orientação da Prof. Cláudia Cruz Santos, U. Coimbra, 2015, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/34769/1/A%20natureza%20publica%20do%20crime%20de%20Violencia%20Domestica%20Conjugal%20Uma%20perspectiva%20critica.pdf

Mariana Silva Gentil Carrilho, O crime de violência doméstica e a proteção da vítima, tese de mestrado sob a orientação da Prof. Ana B. P. de Morais Sousa e Brito, Universidade Lusíada de Lisboa, 2018, disponível em http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/3845/1/md_mariana_carrilho_dissertacao.pdf
Esquematiza as várias correntes (4) sobre o bem jurídico protegido, com referência de doutrina e jurisprudência: a saúde entendida como um bem complexo abrangendo a saúde física psíquica e mental; a dignidade da pessoa humana; a integridade pessoal; a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra.
[15] Cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial – com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 2014, p. 617 e doutrina aí citada; cit. Ac. STJ de 21/11/2018, Proc. 574/16.4PBAGH.S1, Rel. Manuel Augusto Matos.

[16] Uma visão crítica do pressuposto da intensidade pode ver-se em Maria Elisabete Ferreira, Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica (Comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de janeiro de 2013, proferido no âmbito do processo n.º 1354/10.6TDLSB.L1-5), publicado na Revista Julgar on line de Maio de 2017.