Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
046580
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SÁ NOGUEIRA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONHECIMENTO OFICIOSO
VÍCIOS DA SENTENÇA
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
PROVA
Nº do Documento: SJ19951019046580
Data do Acordão: 10/19/1995
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: ACORDÃO 7/95 DR 298/95 Iª SERIE A 28-12-1995, PÁG. 8211 A 8213
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

O Exmo. Procurador-Geral junto da Relação do Porto interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência relativamente à questão de se saber se, em recurso limitado à matéria de direito, em cuja motivação se não tenham invocado os vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto para a decisão e contradição insanável da fundamentação), é ou não possível ao tribunal de recurso conhecer oficiosamente da existência dos mesmos e, em consequência, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, sem que tal tenha sido pedido pelo recorrente.

Invoca existirem dois acórdãos em contradição sobre essa matéria, proferidos no domínio da mesma legislação, dos quais o acórdão fundamento, da mesma Relação, de 30 de Junho de 1993, no processo n.º 9340493, transitado em 7 de Julho do mesmo ano, decidiu no sentido de que é possível aquele conhecimento oficioso, e o acórdão recorrido, de 2 de Dezembro de 1993, no processo n.º 1041/93, transitado em 5 de Janeiro de 1994, igualmente da Relação do Porto, decidiu que o conhecimento dos vícios daquele artigo 410.º, n.º 2, não tem natureza oficiosa.
Foi proferido acórdão preliminar a julgar verificada a invocada oposição de julgados.
Só alegou a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, a qual, nas respectivas alegações, pugnou pela formulação de jurisprudência obrigatória no sentido de que «é de natureza oficiosa o conhecimento dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal».
Foram corridos os devidos vistos.

O artigo 410.º do Código Processo Penal, no seu n.º 2, estatui que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (como ocorre com os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça), o recurso pode ter como fundamentos a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou o erro notório na apreciação da prova, desde que qualquer desses vícios resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Simultaneamente, o n.º 3 do artigo 412.º do mesmo diploma estipula que, para os recursos que são apreciados pela Relação e em que esta deva conhecer de facto e de direito, o recorrente que invoque os vícios daquele artigo 410.º, n.º 2, deverá indicar, a seguir às conclusões, as provas que entende deverem ser renovadas perante o tribunal de recurso, e mencionará, em relação a cada uma, os factos que se destinam a esclarecer e as razões que justificam a renovação, mas não comina expressamente com a pena de rejeição do recurso a falta de cumprimento dessa obrigação, contrariamente ao que se consigna no n.º 2 desse artigo 412.º para os vícios que podem afectar as conclusões do recurso (falta de indicação das normas jurídicas violadas, do sentido dado pelo tribunal às regras legais aplicadas e do sentido que lhe deveria ser dado, e, no caso de invocação de erro de direito, da norma jurídica que, em seu entender, deveria ter sido aplicada).
Antes de se prosseguir com a análise das disposições legais com o sentido de se determinar o correcto entendimento da lei, considerada como um todo, integrado num dado sistema jurídico, julga-se conveniente clarificar diversos pontos.
As aludidas deficiências ou vícios da decisão, indicadas no n.º 2 do artigo 410.º em causa, não têm a natureza de nulidades do acto complexo de julgamento, contrariamente ao que, por vezes, tem sido afirmado, mas sim a de vícios da referida decisão, que têm como consequências finais uma declaração anulatória desta última e a necessária repetição do julgamento, na sua totalidade ou parcialmente, mediante o reenvio para outro tribunal.
Paralelamente, porém, pode uma certa decisão judicial enfermar de outros vícios, como os referidos no artigo 668.º do Código de Processo Civil (nomeadamente os da omissão e de excesso de pronúncia, de ininteligibilidade daquela, da contradição entre os pressupostos de facto e a aplicação do direito ou do erro na aplicação deste último), e, nesses casos, a consequência da sua verificação é não a repetição do julgamento na sua totalidade, feita por outro tribunal, mas ou a repetição do acto final de julgar (sentença ou acórdão), feita pelo mesmo tribunal que a proferiu e, se possível, pelos mesmos juízes, ou a correcção do erro, feita pelo tribunal de recurso, como resulta do confronto entre o n.º 2 e o n.º 3 do mencionado artigo 410.º e do disposto nos artigos 402.º, 403.º, 409.º, 425.º, 426.º, 428.º e 433.º, todos do Código de Processo Penal.
Desta forma, aquilo que poderá ser dito é que qualquer das situações aludidas, quando se verifique, se traduz em nulidades da decisão, as quais, nuns casos, conduzem à anulação integral do julgamento, e, noutros, unicamente à anulação daquela, mas têm sempre como efeito a correspondente reformulação da mesma, seja pela 1.ª instância, seja pelo tribunal de recurso, conforme as circunstâncias.
No presente processo apenas se tem de apreciar o regime dos vícios constantes daquele n.º 2 (erro notório, insuficiência da matéria de facto e contradição insanável) no aspecto de o respectivo conhecimento poder ser oficiosamente feito pelo tribunal de recurso ou só poder ser apreciado se se tiver verificado a invocação da sua existência por qualquer dos recorrentes.
Ora, logo após a entrada em vigor do actual Código de Processo Penal, e porque, contrariamente ao anterior, e com a finalidade de possibilitar uma apreciação e decisão autónomas, se acha nele consignada a possibilidade de restrição do objecto do recurso (à matéria penal relativamente à matéria cível, a cada um dos crimes, no caso de concurso de crimes, à questão da culpabilidade, relativamente à determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança que sejam aplicadas), conforme a expressa disposição do artigo 403.º, começou a defender-se que os poderes de cognição do tribunal de recurso se encontravam limitados pelas conclusões formuladas pelo recorrente no seu recurso, pelo que, a exemplo do que ocorre no processo civil, ao tribunal seria vedado conhecer de matéria que não tivesse sido focada ou suscitada no referido recurso.
É que a diferença em relação ao Código de 1929 surgia, nesse aspecto, como fortemente significativa aos olhos de quem se debruçava sobre o problema, uma vez que neste último diploma, como é sabido, e não obstante umas tímidas tentativas doutrinais e até jurisprudenciais surgidas nos últimos anos da sua vigência normal, não existia a possibilidade de limitação do objecto dos recursos, uma vez que tal Código era dominado pelo princípio expresso do conhecimento amplo da causa em relação a todos os arguidos, fossem ou não recorrentes (artigos 663.º e 667.º).
É preciso ter em atenção, no entanto, que a introdução, na lei processual penal, da situação da limitação do objecto do recurso não tem carácter tão amplo como a que caracteriza instituto semelhante do processo civil, uma vez que o n.º 3 do artigo 403.º do Código de Processo Penal expressamente dispõe que «a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever [sublinhado nosso] de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida», o que pode, desde logo, não tornar inviável o sentido proposto pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto para a formulação da requerida jurisprudência obrigatória.
Ora, para se decidir a questão posta à apreciação deste Supremo, tem de se ter em atenção que a estrutura do nosso processo penal se baseia em duas actividades judiciais distintas:
A efectivação de um estabelecimento (julgamento) da matéria de facto dentro de determinados parâmetros rígidos que compreende não só a apreciação e determinação primária dos factos apurados como também a formulação de conclusões em matéria de facto;
A subsunção dos factos dados como provados à norma ou às normas legais aplicáveis, mediante a realização de um julgamento de direito.
Em qualquer dos dois tipos de julgamento que o tribunal criminal tem de fazer, em cada caso concreto, porém, encontra-se afastado o princípio da livre disponibilidade das partes processuais que enforma as regras do processo civil.
O princípio constitucional de se não punir criminalmente um inocente sobreleva, com efeito, sobre o princípio civilístico da quase total disponibilidade das partes (que só não cobre as situações do interesse e ordem públicas) e é a sua observância que nos tem de conduzir para a solução do problema.
É essa observância que implica que o ordenamento jurídico não aceite, em princípio, ao contrário do que ocorre no processo civil, que os tribunais criminais se contentem com uma verdade formal, dissociada da realidade, e tenham de, como imperativo legal e de consciência, procurar, na medida do possível, averiguar a verdade material, por forma que só possa ser aplicada uma punição a quem, efectivamente, tenha cometido um acto ilícito criminalmente punível.
Não nos podemos esquecer, na realidade, de que, se os tribunais cíveis têm como função, entre outras, a determinação do direito aplicável nas relações entre cidadãos, os tribunais criminais têm como função o exercício de uma actividade punitiva, mas ressocializadora, dos cidadãos como infractores e têm igualmente como dever o ilibar os inocentes da aplicação de qualquer sanção punitiva.
E, porque se encontram em jogo a segurança, o bom nome e a liberdade dos cidadãos, o julgamento de direito a que os tribunais criminais têm de proceder não permite que a decisão se baseie em factos falseados, incorrectos ou incompreensíveis, desde que os respectivos vícios se enquadrem nas previsões do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, já que a estas últimas o legislador atribuiu gravidade suficiente para originarem uma declaração de nulidade do julgamento e uma repetição, total ou parcial, deste último.
Tem de se concluir, assim, que a própria natureza intrínseca do julgamento de direito em matéria criminal impõe a necessidade de se proceder oficiosamente à análise da matéria de facto (ainda que com observância dos condicionalismos impostos pela lei processual), mesmo que o recurso seja limitado à matéria de direito, isto é, impõe a necessidade de aplicação do regime do mencionado n.º 3 do artigo 403.º do Código de Processo Penal às situações em que o recurso não respeite à referida matéria de facto.
Assim, a delimitação do objecto do recurso à matéria de direito não pode ter como efeito a impossibilidade de o tribunal apreciar a existência dos vícios indicados naquele n.º 2 do artigo 410.º, sob pena de, se assim não for, se violarem os princípios constitucionais do direito à segurança dos cidadãos e do direito a um julgamento criminal justo.
Por último, haverá que recordar o comando do artigo 426.º do Código de Processo Penal, cuja redacção nos aparece como correspondente a uma clara opção do legislador no sentido que se propugna.
Dispõe, com efeito, esse artigo, significativamente colocado em último lugar no capítulo referente à tramitação unitária dos recursos:
Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Este artigo, atenta a forma como se encontra redigido, só pode ser entendido com o sentido de que o conhecimento dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal é, forçosamente, de natureza oficiosa, pois só assim se justifica o emprego da locução adverbial «sempre que» que nele foi utilizada.
Nestes termos, e em função do exposto, formulam a seguinte jurisprudência obrigatória:
É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
Em harmonia com o decidido, revogam o acórdão recorrido e determinam a repetição do respectivo julgamento (artigos 445.º, n.º 1, e 443.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Não há lugar a tributação.

Lisboa, 19 de Outubro de 1995.


Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - Pedro Elmano Figueiredo Marçal - António Sousa Guedes - Manuel Luís de Sá Ferreira - José Moura Nunes Cruz - Rui Manuel Lopes Pinto - Humberto Carlos Amado Gomes - Joaquim Daniel Araújo dos Anjos - Augusto Alves - Manuel de Andrade Saraiva - José Sarmento da Silva Reis - Victor Manuel Ferreira da Rocha - José Joaquim da Costa Figueirinhas (com declaração de que não concordo com o acórdão quanto à interpretação do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) - Manuel Castro Ribeiro (vencido, conforme declaração de voto que junto) - Sebastião Duarte da Costa Pereira (vencido, pelas razões da mui douta e erudita declaração de voto do Exmo. Conselheiro Castro Ribeiro).

Declaração de voto


Os termos da fixada jurisprudência serão perfeitamente aceitáveis de jure condendo, mas não se me afiguram conformes à lei estabelecida.

Na verdade, a clara redacção do n.º 2 do artigo 410.º, conjugada com o disposto nos artigos 412.º, n.os 1 e 3, e 430.º, n.º 1, e o seu confronto com o artigo 403.º, n.os 1 e 2, apontam no sentido de os «vícios» em causa só poderem justificar o reenvio do processo (artigo 426.º) quando sejam invocados «como fundamentos do recurso»; e isso estará em sintonia com a mens legislatoris, enquanto se atribui aos sujeitos processuais, como «recorrentes», uma inequívoca co-responsabilidade no bom e rápido êxito final da causa, nomeadamente consentindo-se-lhes a limitação do recurso nos amplos termos do artigo 403.º e impondo-se-lhes apertadas regras na motivação, que, além do mais, terá de enunciar especificamente os fundamentos do recurso e formular conclusões de acordo com o artigo 412.º, n.os 1 e 2.
A meu ver, não seria de invocar o disposto no n.º 3 do artigo 403.º em favor da fixada jurisprudência, por isso que a restrição ali cominada aos limites do recurso pressupõe a «procedência» dele, enquanto o eventual conhecimento oficioso dos «vícios» previstos no artigo 410.º, n.º 2, com a subsequente determinação do reenvio do processo, implicará, necessariamente, que se não conheça do objecto do recurso.
Também me não parece de decisivo valor o argumento do chamado «princípio constitucional de se não punir criminalmente um inocente» para apoiar o conhecimento oficioso dos «vícios» em referência; é que, a constatar-se algum desses «vícios», daí nunca poderia sair prejudicado o arguido, antes o contrário, pois o tribunal, ao proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos e perante a insuficiência deles, a contradição insanável da fundamentação ou o erro notório na apreciação da prova, forçosamente tinha de optar pela solução mais favorável àquele, inclusive absolvendo-o.
Entendo, ainda, não ser decisiva a invocação do artigo 426.º, uma vez que ele apenas visa esclarecer os efeitos dos «vícios», naturalmente quando destes se conheça por servirem de fundamento ao recurso nos termos do artigo 410.º, n.º 2.
Por último, não será despiciendo anotar alguma ilogicidade na decisão tomada acerca do que a lei designa por simples «vícios» emergentes da matéria de facto, quando, a propósito das «nulidades» da sentença, este Supremo Tribunal optou - e bem, no Acórdão de 6 de Maio de 1992 - pelo seu não conhecimento oficioso.
Em suma, votaria jurisprudência obrigatória em sentido oposto ao que se fixou, por me parecer mais conforme à letra e espírito da lei vigente.
M. Castro Ribeiro.