Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA CONCURSO DE CRIMES ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA CONCURSO APARENTE | ||
Data do Acordão: | 01/15/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA. DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS. | ||
Doutrina: | - Artur Vargues, Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. I, org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Lisboa: UCP, 2010, p. 240. - Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 41/ § 26 e ss., 42/ § 5, § 12 e ss., 43/ § 3 e ss.; Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421 (p. 291), § 444 (p. 302), § 454 (p. 306), Ibidem, § 453 (p. 306); Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2009 (2.ª reimpressão), § 314; “Unidade e pluralidade de crimes «où sont les neiges dántan?»”, Ars Ivdicandi — Estudos em homenagem ao Professor Doutor António Castanheira Neves, Coimbra, Coimbra Editora, vol. III, 2008, pp. 691-5. - Helena Moniz, “Falsificação de documentos e burla: unidade ou pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude?”, RPCC, 2011 (n.º 2), p. 325 e ss.. - Teresa Serra, Homicídio qualificado: tipo de culpa e medida da pena, Coimbra: Almedina, 1990, p. 107-109. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALS. E) E F), 410.º, N.ºS 1 E 2, 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71.º, 72.º, 73.º, 77.º, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, AL. B). LEI N.º 5/2006, DE 23-02: - ARTIGOS 3.º, 5.º, AL. E), E 86.º, N.º 1, AL. C). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -PROCESSO N.º 361/10.3GBLLE, IN HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/77DE29905C952C5680257868004EE9E5?OPENDOCUMENT * ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/95, DE 7 DE JUNHO (DR, I SÉRIE-A, DE 06.07.1995). | ||
Sumário : | I - Erro notório na apreciação da prova não é o mesmo que insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, nem se pode concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova apenas a partir de uma divergência entre a convicção pessoa do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do tribunal. II - Estando este Tribunal restringido quanto aos poderes de cognição não pode sindicar a má ou boa valoração da prova, nem discutir a valoração da prova produzida, pois isso constitui um conhecimento da matéria de facto que está vedado a este tribunal e não se integra no âmbito alargado dos poderes de cognição, a partir do estipulado no art. 410.º, n.º 2, do CPP. III - Para dar cumprimento ao disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, este tribunal não pode proceder a um exame crítico das provas produzidas ou sindicar eventuais erros de julgamento quanto à apreciação e valoração da prova, não pode analisar o processo cognoscitivo/valorativo realizado pelos magistrados dos tribunais a quo, mas apenas sindicar o próprio texto verificando se a partir do relatado existe algum erro tendo em conta o que foi dado como provado e a fundamentação da decisão que determinou uma certa condenação do arguido. IV - Sabendo que houve trânsito em julgado quanto à imputação do crime de detenção de arma proibida e sua punição, nestes autos apenas poderemos proceder à análise da qualificação jurídica na parte respeitante ao concurso de crimes entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio agravado pelo uso de arma. V - Este Supremo Tribunal pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, no respeitante ao concurso de crimes. VI - O concurso aparente em Figueiredo Dias é um concurso de ilícitos que em função da situação concreta se podem sobrepor (total ou parcialmente) ou não. Diferentemente daquilo que era entendido como concurso aparente em Eduardo Correia, que consistia, na verdade, num concurso de normas, pelo que a simples análise abstrata dos tipos legais de crime em conflito nos permitia chegar a uma conclusão, independentemente das concretas circunstâncias do caso. VII - Não podemos levar novamente para a determinação da medida concreta da pena os mesmos elementos que estiveram na base da qualificação do comportamento ilícito — o modo de execução do crime, como a relação de conjugalidade, o momento em que o executou: na sequência de um relacionamento sexual, quando a vítima estava em situação de dormência, e quando não seria de esperar que tal ocorresse —, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração. VIII - A proibição do duplo aproveitamento deve valer igualmente para os exemplos-padrão. IX - A partir desta moldura é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, parte final, do CP.; a partir dos factos praticados deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” (Figueiredo Dias). Na avaliação da personalidade ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. X - O legislador entende que, para além dos casos de atenuação especial previstos na parte especial do CP, haverá outras situações, situações extraordinárias em que, em nome da justiça e da equidade, não é possível estabelecer uma pena adequada à culpa concreta do agente e às necessidades de prevenção geral e especial, sem que se usem poderes extraordinários de atenuação. A diminuição da culpa e das exigências de prevenção a impor o regime especial de atenuação deve decorrer de uma análise da imagem global do facto. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I Relatório
1. Na 2.ª Vara Criminal do Porto, foi julgada, em processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, no processo n.º 1086/12.0JAPRT, a arguida AA, e condenada, por acórdão de 12 de julho de 2013, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal (doravante CP), na pena parcelar de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos arts. 3.º, 5.º, al. e), e 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, (com as alterações subsequentes), na pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e na pena única conjunta de 17 (dezassete) anos de prisão. 2. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 13 de novembro de 2013, concedeu provimento parcial ao recurso e anulou o acórdão anterior por insuficiência da fundamentação, determinando a sua reformulação. E assim foi elaborado novo acórdão a 9 de janeiro de 2014, que condenou a arguida nos mesmos termos referidos no ponto 1 deste relatório. 3. Não conformada com a decisão, a arguida recorre novamente para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 4 de junho de 2014, “julga totalmente improcedente o recurso” e “mantém nos seus precisos termos a decisão recorrida”. 4. Inconformada, a arguida interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo no disposto nos arts. 399.º, 401.º, n.º 1, al. b), 411.º, n.º 1, al. b) e 432.º, n.º 1, al. b), todos do Código de Processo Penal (doravante CPP), apresentando as seguintes conclusões: «1. Apesar da lei restringir a cognição do Supremo Tribunal de Justiça a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, conforme previsto no artigo 4100, n.° 2 do C.P.P. 2. Não há qualquer prova de que a arguida tenha agido de acordo com um plano previamente traçado com o objetivo de cometer o crime, pois não foi dado como provado que a arguida tenha transportado a arma até ao apartamento onde ocorreram os factos, nem qualquer outra circunstância demonstrativa de preparação de crime, assim, não deveria ter sido considerado provado, conforme foi na alínea j), que a arguida tenha "conjugado e concertado a sua conduta de acordo com um plano que havia traçado, com o desígnio (...)". 3. O facto de não ter sido apurado o motivo do crime (pois não consta do factualidade considerada provada) vem reforçar precisamente a inexistência de qualquer plano traçado por parte da arguida, com o desígnio de matar a vítima, uma vez que aponta para a espontaneidade da sua conduta e do desenrolar dos factos. 4. Não deve concluir-se por um concurso efetivo de crimes, mas antes aparente, devendo a arguida ser absolvida do crime de detenção de arma proibida, visto que a sua conduta em relação à arma se esgotou na prática do homicídio. 5. Não se pode ter como assente que arma era detida pela arguida. Este ato, único conhecido da arguida em relação à arma, configura simples uso: a arguida limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio, pelo que esta conduta não deve ser autonomizada e subsumida no ilícito do artigo 86°, n.° 1, alínea c), da Lei n.° 5/2006, de 23/02. Por consideração das declarações do inspetor João Morgado e da arguida (que constam do texto da decisão recorrida) e atendendo ao teor do Auto de apreensão de fls. 75, deverá ser dado como provado que a arguida não se manteve na posse da arma, deitando-a fora após a ocorrência dos factos. 6. Foi erradamente fixada a medida concreta da pena, sendo violado disposto nos artigos 40.0 e 71.° do Código Penal, pois a pena aplicada à arguida é excessiva e de severidade injustificada, tendo sido ultrapassada a medida da culpa, pelo que deverá ser reformada e reduzida. 7. Na ponderação da medida concreta da pena, e quanto ao modo de execução do crime, não deveria o Tribunal ter valorado, como valorou, a existência de um "plano traçado" ou "preparação antecipada", pois não tendo sido provado que a arguida transportou a arma até ao apartamento, nem qualquer outra circunstância demonstrativa de planeamento, não se pode sustentar a existência de preparação antecipada ou um plano traçado com o objetivo de cometer o crime. 8. Não deverão ser desvalorizados, na fixação da medida concreta da pena, os sentimentos manifestados pela arguida durante o julgamento, pois demonstrou claro arrependimento pelo sucedido, pedindo perdão aos familiares e amigos da vítima pelo ato cometido, evidenciando plena consciência da gravidade dos seus atos e interiorização da sua culpa. Arrependimento este que manifestou não só em Tribunal, como já antes tinha manifestado, designadamente na carta que escreveu à testemunha Ana Isabel pouco depois de ter sido detida. Tais sentimentos são, aliás, confirmados pela avaliação psicológica constante do relatório social, onde se sublinha esta consciência e interiorização dos atos praticados e das suas consequências por parte da arguida. 9. Deverão também ser devidamente valorados outros factores, com especial relevância quanto às finalidades de ressocialização da pena, como sejam, o facto da arguida ser primária e estar bem inserida socialmente conforme decorre do relatório social. Fatores como a frequência de um curso de assistente de geriatria com assiduidade e bom rendimento, o empenho no trabalho e no acompanhamento dos filhos, preocupação em veicular uma autoimagem valorizada, o apoio manifestado pelos irmãos e filhos nesta fase da sua vida, são reveladores da sua integração social e familiar. 10. É também de relevar a sua conduta produtiva e conforme às regras no estabelecimento prisional: exerce atividade nas Oficinas como costureira e frequenta o 90 ano de escolaridade; é reservada e evita a convivência massiva característica do meio prisional; centra-se nas visitas regulares dos seus familiares; da avaliação psicológica e psiquiátrica junto dos serviços clínicos do estabelecimento prisional, concluiu-se pela existência de sentimento de vergonha social e consciência dos danos que esta situação acarreta para o conjunto da sua família, bem como censura face ao crime de homicídio e reconhecimento da existência de vítimas e de danos. 11. O curso de assistente de geriatria que a arguida frequentava, por implicar especial vocação para o exercício da profissão, é demonstrador de caráter sensível, humanitário e compassivo. 12. Atendendo às circunstâncias acima mencionadas deverá concluir-se que as necessidades de prevenção especial são escassas e que a probabilidade de reincidência é inexistente, ou ainda que assim não se considere, pelo menos extremamente reduzida. 13. Entende-se ainda que, a considerar este Tribunal conforme pretende a defesa, que não houve "preparação antecipada" ou "plano traçado com o objetivo de praticar o crime" por parte da arguida, este facto é manifestamente relevante na avaliação da personalidade da arguida, para efeitos de ressocialização. 14. Tudo ponderado quanto às exigências de prevenção geral e especial, deverá satisfazer de modo adequado e suficiente, a aplicação à arguida de uma pena não superior a 14 anos de prisão. 15. Não entendendo o Supremo Tribunal existirem motivos para a redução da pena aplicada, deverão as circunstâncias atrás invocadas ser ponderadas para efeito de atenuação especial da pena, por consideração do disposto no artigo 72°, n.° 1 e artigo 73°, n.° 1, alíneas a) e b) do Código Penal. 16. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, considerando-se para este efeito, ainda que não de forma taxativa, as circunstâncias enumeradas no n.° 2 do artigo 72°. 17. O arrependimento e forte interiorização da sua culpa, demonstrado em sede de audiência de julgamento, na carta que escreveu à testemunha EE pouco depois de ter sido detida e na avaliação psicológica e psiquiátrica que consta do relatório social deverão ser tidos em consideração como fatores de atenuação especial da pena. 18. Também o facto da arguida ser primária, estar bem inserida socialmente conforme se retira do relatório social, remetendo-se nesta sede para as considerações atrás efetuadas a propósito da redução da pena, deverão ser considerados para este efeito. 19. A relevar ainda na ponderação da atenuação especial, a adoção no estabelecimento prisional de uma conduta produtiva, reservada, conforme às regras e centrada no apoio familiar. Termos em que, - deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogado o douto acórdão e substituído por outro que absolva a arguida do crime de detenção de arma proibida; - deverá ainda ser reformada e reduzida a medida concreta da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado pelo qual a arguida foi condenada, por violação do disposto nos artigos 40.° e 71.0 do Código Penal; - caso não se concorde com a redução da pena, deverá o crime de homicídio qualificado ser alvo de atenuação especial face ao disposto no artigo 72.º, n.° 1 e artigo 73°, n.° 1, alíneas a) e b) do Código Penal. » 5. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação do Porto, respondeu, tendo considerado que: - no que respeita à pretensa “incompatibilidade entre o facto provado de que a arguida agiu de acordo com um plano previamente traçado com o de não se ter demonstrado que transportou a arma para o apartamento”[na al. j)] — “Como é evidente, não existe qualquer contradição entre tais factos, pois a maior ou menor antecipação da formação da vontade de matar sobre a execução desse desígnio não depende, no caso em apreço, do facto da arma já se encontrar ou não no apartamento. Tal desígnio podia já estar formado há muitas horas ou mesmo dias, com a arma no apartamento. Não detecta tal vício ou qualquer dos outros mencionados no n.° 2 do art. 410.º do CPP.”; - no que respeita ao concurso aparente de infrações entre os crimes de homicídio e o de detenção de arma proibida, considerou que se estava perante a tutela de bens jurídicos diferentes pelo que não vê motivos para se afastar da jurisprudência e da doutrina que defende a existência de um concurso efetivo de crimes; - no que respeita à atenuação especial da pena — considerando este regime uma “válvula de escape para situações particulares em que se verificam circunstâncias que, relativamente aos casos previstos pelo legislador quando fixou os limites da moldura penal respetiva, diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto”, entendeu que “para além de ser incoerente a aplicação da atenuação especial ao homicídio qualificado [que a recorrente não põe em causa], a verdade é que toda a conduta da arguida [anterior contemporânea ou posterior ao crime] não revela qualquer circunstância favorável que abrande de modo significativo a ilicitude do facto, a sua culpa ou a necessidade da pena.” - por fim, em matéria de medida concreta da pena, e porque entende que não se vislumbra o “apregoado arrependimento” que a recorrente alega entende a pena atribuída como adequada. 6. Uma vez subidos os autos, no uso da faculdade concedida pelo art. 416.º, n.º 1, do CPP, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça apresentou parecer concluindo: « 2.4.1. É de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal — nos termos dos arts. 434.º e 420.º, n.º1/b) do CPP —, pelo menos no segmento em que a recorrente convoca a reapreciação da matéria de facto fixada pelas instâncias; 2.4.2 — É de negar, quanto ao mais, provimento ao recurso, confirmando antes o veredicto condenatório proferido, quer quanto à qualificação jurídica da conduta da arguida [em nota — Isto sem prejuízo de, nos termos supra enunciados em 2.3., 1.º parágrafo, poder vir a ser ponderada a sua correcção tendo em conta a agravante geral cominada no citado art. 86.º, n.º 3 da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.], e bem assim à medida concreta da correspondente reacção criminal: pena de 16 anos e 6 meses de prisão; quer quanto ao concurso de infracções e respectiva pena única.» 7. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão. II Fundamentação
1.1. Na decisão recorrida, são dados como provados os seguintes factos: «(Da acusação) a) No dia 16/06/2012, pelas 12,38 horas, a arguida e o seu marido, a vítima BB, entraram no interior do apartamento ..., nesta cidade, onde mantiveram relações sexuais sobre uma cama. b) Findo o relacionamento sexual, o BB, após ter-se deslocado ao WC, deitou-se novamente na cama, enquanto a arguida se dirigiu à cozinha. c) A arguida muniu-se de uma pistola semi-automática, de marca "Astra Unceta Y Cia S.A.", modelo "4000 Falcon", com o n.° de série 799818, de calibre ".22 LR", com cano estriado medindo cerca de 9,3 cm de comprimento, a qual se encontrava municiada com 3 munições daquele calibre, devidamente introduzidas no carregador inserido no seu interior. d) A pistola tem as dimensões de 16,5cm x 1 1 cm x 2,8cm (arma curta), com sistema de disparo por acção dupla/simples e percussão anelar, alimentada por aquele carregador, destacável, com capacidade para 10 munições de calibre ".22 LR". e) Apesar do mau estado geral de conservação da pistola, os seus mecanismos, designadamente os de percussão, encontravam-se em boas condições de funcionamento. f) As munições de calibre ".22LR", consistem em invólucro metálico, carga propulsora e projéctil de chumbo, de percussão anelar, e encontravam-se em condições de serem imediatamente disparadas por arma de fogo, como a sobredita. g) A arguida, depois de verificar que o ofendido se encontrava deitado e dormente, agarrou uma almofada, encostou-a à cabeça do BB e, sobre ela, encostou o cano da pistola, apontado na direcção da cabeça do ofendido, premiu o gatilho e efectuou um disparo, deflagrando uma das munições, vindo o seu projéctil metálico a atingir o BB na região parieto-temporal direita, a seguir trajecto penetrante ao longo da cavidade craniana e do cérebro, ficando alojado no osso temporal esquerdo. h) O projéctil, ao longo do seu trajecto na cavidade craniana, lacerou as meninges, nas regiões temporais direita e esquerda, e o encéfalo do BB. i) Sofreu assim o BB lacerações e hemorragias cerebrais e as lesões físicas descritas no relatório de autópsia de fls. 340 a 346 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, as quais foram a causa directa e necessária da sua morte. j) A arguida agiu do modo descrito, conjugando e concertando a sua conduta de acordo com um plano que havia traçado, com o desígnio, que alcançou, de matar dissimuladamente o ofendido, com quem estava casada. k) Para alcançar esse desígnio, utilizou aquela pistola e munição, bem sabendo que os mesmos são particular e especialmente eficazes para matar outrem, causando lesões físicas que directa e necessariamente causam a morte e que tais objectos foram concebidos com esse fim. l) De seguida, a arguida abandonou aquele apartamento, fechando-o à chave e levando consigo a pistola e munições remanescentes. m) A arguida não possui qualquer licença de uso e porte de arma de fogo, nem em seu nome se encontram registadas ou manifestadas quaisquer armas. n) A arguida bem sabia que a lei lhe vedava a posse e detenção da pistola e munições acima descritas. o) Agiu livre, consciente e deliberadamente e sabia que a sua conduta era proibida por lei. (Da Contestação) p) O BB teve desentendimentos com o filho mais velho (CC), relacionados com a conduta adoptada por este, em que lhe desferiu algumas bofetadas; q) A arguida recusava frequentemente manter relações sexuais com a vítima, alegando sofrer de dores aquando das mesmas; r) A arguida mantinha relação de amizade com DD, com quem gostava de conversar e de conviver.
s) AA integra uma fratria de treze irmãos, dos quais três faleceram, tendo o seu processo de crescimento decorrido no seio do agregado familiar de origem, em meio sócio comunitário de características rurais. O pai, já falecido, exercia atividade profissional como marceneiro, reformando-se precocemente por doença. A mãe dedicava-se à gestão do quotidiano doméstico e acompanhamento próximo da descendência, a par da prática de alguma atividade agrícola e da exploração de uma pequena mercearia instalada na parte inferior da residência. O agregado vivia de forma modesta, mas relativamente organizada, o que permitia a satisfação das necessidades básicas da família. A arguida, pelos 9 anos de idade e durante cerca de dois anos, residiu em Espanha com o avô materno. A arguida concluiu o 6° ano de escolaridade aos 12 anos de idade e, após ter permanecido em casa durante algum tempo apoiando a família na gestão doméstica, teve a primeira experiência de trabalho numa loja de venda de fruta. A partir dos 18 anos de idade, regista um percurso profissional regular, exercendo durante vários anos funções de vendedora/empregada de loja numa conhecida empresa em ... - "...", de onde saiu no âmbito de um processo de reestruturação da mesma. Seguiram-se outras atividades, entre as quais numa empresa têxtil em sociedade com uma irmã, cujo encerramento, por dificuldades económicas, esteve na origem de incompatibilização e rutura relacional entre as mesmas durante praticamente uma década. Mais tarde, trabalhou numa empresa de confeção de uma cunhada, de onde se desvinculou na sequência de um acidente de viação, que motivou uma situação de baixa por doença que perdurou três anos. Iniciou relação de namoro com a vítima pelos 18 anos de idade, contraindo matrimónio com, aproximadamente, 22 anos, altura em que já estava grávida do primeiro filho. Nos primeiros anos residiram em Darque, num apartamento adquirido pela arguida antes do casamento. Nos últimos dezassete anos, residiram na habitação que construíram em ..., em terrenos adjacentes à casa da sogra da arguida e contigua à casa de uma das cunhadas. - Condições sociais e pessoais À data dos factos, a arguida e a vítima residiam na morada de família, em .... O agregado integrava, ainda, o filho mais novo, sendo que o outro encontrava-se já emigrado em França, onde permanece há cerca de três anos. A arguida é caracterizada como empenhada no trabalho e no acompanhamento dos filhos, afável na interação social, com preocupação em veicular uma auto-imagem valorizada. O casal vivia dos rendimentos do trabalho e aparentava dispor de um bom nível de vida, gerindo a arguida de forma autónoma os recursos disponíveis, com evidência de acesso facilitado a bens. À data dos factos, a arguida encontrava-se a frequentar um curso de "Assistente de Geriatria", promovido pelo Centro de Emprego de ..., com assiduidade, bom rendimento e adequada interação social com os pares. A arguida beneficia do apoio da família de origem, nomeadamente dos irmãos, que a visitam regularmente, bem como dos dois filhos, ambos adultos, residentes em França, o mais velho desde há cerca de 3 anos e o mais novo na sequência dos factos que deram origem ao processo, trabalhando ambos na área da eletricidade. - Impacto da situação jurídico-penal A arguida tem adotado uma conduta em conformidade às regras prisionais, exerce atividade nas oficinas como costureira e frequenta o 9° ano de escolaridade. Protagoniza um quotidiano reservado, em que evita a convivência massiva característica do meio prisional, centrando-se nas visitas regulares dos seus familiares. Mantém consultas regulares de psicologia e psiquiatria junto dos serviços clínicos do estabelecimento prisional, em razão do impacto emocional do crime e do sentimento de vergonha social e consciência dos danos que esta situação acarreta para o conjunto da sua família. Verbaliza censura face ao crime de homicídio, independentemente das motivações e contextos, reconhecendo a existência de vítimas e de danos. Na comunidade de residência da arguida, genericamente subsistem sentimentos de revolta, estupefação e incredulidade. A arguida é alvo de acentuada rejeição pela generalidade dos conterrâneos. - Conclusão AA regista um percurso vivencial referenciado como integrado, salientando-se o seu trajeto laboral consistente e o desempenho adequado dos papéis sociais mais expectáveis, particularmente no contexto familiar e na interação no seio das suas redes de pares sociais. A imagem pessoal que projetava, assim como da vida conjugal, era vista pela família e pela comunidade em geral como de sucesso e funcionalidade, pelo que o impacto dos acontecimentos é de estupefação na área de residência, com sentimentos de rejeição face à arguida pela comunidade. Contudo, do ponto de vista familiar, a generalidade dos elementos do seu agregado de origem expressam sentimentos de apoio. Relativamente à natureza dos factos, a arguida reconhece a censurabilidade, independentemente das motivações/contextos, reconhece a existência de vítimas e de danos, embora necessite de reconhecer e interiorizar a gravidade e o desvalor da sua conduta. t) A arguida não tem antecedentes criminais registados.» 1.2. Resultaram não provados os seguintes factos: «Com pertinência ao objeto do processo e para além de factos inócuos, conclusivos ou opinativos, não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos constantes do ponto anterior e, nomeadamente, que: - A arguida haja utilizado a almofada do modo descrito na matéria assente com o intuito de abafar o som do disparo e assim impedir que terceiros o ouvissem; - A arguida pretendesse, com a morte do seu marido, conservar e fruir exclusivamente os bens comuns do casal e os próprios do ofendido, bem como acabar com a clandestinidade da relação afetiva que mantinha com outra pessoa do sexo masculino; - A relação entre a arguida e a vítima não tenha sido sempre pacífica e harmoniosa; - A arguida fosse insultada e agredida pelo marido, física e psicologicamente, quer quando, nos conflitos entre o marido e o filho CC, ela se interpunha, quer quando se recusava a manter relações sexuais com o marido; - O filho CC haja emigrado para França para pôr termo às agressões que sofria por parte do pai; - A vítima fosse pessoa de índole violenta; - A vítima haja tido vários desentendimentos com irmãos, inclusive com o Casimiro, em que chegaram a atentar contra a vida um do outro; - A arguida sofra de patologia que a impede de manter relações sexuais ou que as torna muito dolorosas; - A vítima acusasse a arguida de ter um amante e a forçasse a manter com ele (BB) relações sexuais; - A arguida tivesse sido alvo de abusos sexuais, enquanto criança, por parte do avô materno e que tal motivo a levasse a recusar a manutenção de relações sexuais com o marido; - A arguida fosse amante da testemunha DD; - A vítima tivesse como amante uma tal "..."; - Não tenha sido a arguida quem transportou a pistola até ao apartamento.» A partir das conclusões do recurso interposto pela recorrente, são as seguintes as questões a resolver: - persiste na contestação à matéria de facto provada, principalmente no que respeita ao facto provado j), e invocando para isso os vícios consagrados no art. 410.º, n.º 2, do CPP (conclusões 1, 2 e 3); - questiona a qualificação jurídica dos factos, considerando que devia ter sido absolvida do crime de detenção de arma proibida, ou entre este e o crime de homicídio existe uma relação de concurso aparente de crimes (conclusões 4, 5, e 6); - alteração da medida concreta da pena do crime de homicídio (conclusões 7 a 14); - aplicação do regime da atenuação especial da pena (conclusões 15 a 19). 1. Contestação da matéria de facto e vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (conclusões 1, 2 e 3) O Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 434.º, do CPP, apenas conhece de matéria de direito, com exceção dos vícios consagrados no âmbito do art. 410.º, n.º 2, do CPP. Parece entender-se do que a recorrente alega — e porque não explicita qual dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ocorre —, que no seu entendimento o vício em causa seria o de contradição insanável entre a matéria de facto provada e a fundamentação e erro notório na apreciação da prova, pois alegou que “não há qualquer prova de que a arguida tenha agido de acordo com um plano previamente traçado” e, todavia, “o Tribunal faz, por diversas vezes, referência ao facto da arguida ter “trazido”, ter “transportado” a arma, ou haver “preparação antecipada” ou “plano traçado””. E porque não foi provado que tivesse sido a recorrente a transportar a arma para o apartamento, nem foi provada qualquer “circunstância demonstrativa de preparação do crime”, entende que não poderia ter sido dado como provado o constante da al. j) dos factos provados ( «A arguida agiu do modo descrito, conjugando e concertando a sua conduta de acordo com um plano que havia traçado, com o desígnio, que alcançou, de matar dissimuladamente o ofendido, com quem estava casada.»). Ora, tudo isto já foi invocado aquando da interposição do recurso para o Tribunal da Relação do Porto, e também nesta a arguida/recorrente não explicitou quais os vícios a que aludia quando se referia ao art. 410.º, n.º 2, do CPP; e o Tribunal da Relação do Porto considerou que “a decisão recorrida não padece de qualquer vício carecido de reparação oficiosa”. Assim, quanto à decisão de 1.ª instância, o Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se formando caso julgado. Consideramos que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito, tal como dispõe o art. 434.º, do CPP; mas consideramos também que poderá conhecer oficiosamente dos vícios constantes do 410.º, do CPP, quando estes vícios se possam retirar do próprio texto da decisão recorrida, agora da decisão do Tribunal da Relação do Porto. Porém, apenas nos cabe apreciar oficiosamente daqueles vícios, e não apreciar matéria de facto que ficou estabilizada com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto e relativamente à qual já não é admissível recurso. Eventuais lacunas já não poderão ser colmatadas a não ser que haja alguma omissão de pronúncia sobre a qual aquele tribunal devesse ter sentenciado, ou quando tenha decidido com base em provas proibidas — o que de todo não é o caso. Mas, podendo este Tribunal conhecer oficiosamente dos vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do CPP, deverá, a partir do texto da decisão recorrida e apenas a partir da análise do texto do acórdão recorrido, verificar se existe algum vício da decisão, algum erro vício naquele. Ora, do texto da decisão recorrida é claro que foi dado como provado que a arguida se muniu de uma arma (facto provado c)), que quando o ofendido estava deitado e dormente a arguida disparou a arma contra ele (facto provado g)), provocando as lesões que determinaram direta e necessariamente a sua morte (facto provado i)), tendo a arguida agido de acordo com um plano traçado com vista a matar o ofendido (facto provado j)). Do acórdão resulta que a motivação da matéria de facto decorre da prova testemunhal realizada e do depoimento da arguida. Deste, percebe-se que a arguida quis que ficasse provado que a arma não tinha sido levada por ela para o apartamento, e que o disparo da arma foi acidental. Da prova testemunhal resulta que havia um bom relacionamento entre a arguida e a vítima, que terá sido utilizada uma almofada aquando do disparo, pois foram encontradas no orifício (provocado pelo disparo) do corpo da vítima fibras daquela almofada, e a vítima terá sido atingida quando dormia, pois não se encontraram sinais reveladores de alguma luta (o que permite não aceitar a versão da arguida de que a arma terá disparado inadvertidamente quando a descobriu junto à almofada e quando a vítima lhe tentou tirar a arma); acresce que foram encontrados vestígios de pólvora nas mangas do casaco e do vestido da arguida, tendo o inspetor da PJ (...) afirmado expressamente “que o tiro não pode ser acidental” (cf. acórdão recorrido, p. 27). E apesar de o irmão da arguida (...) ter afirmado que a aquela se queixava de violência física por parte do ofendido (cf. acórdão recorrido, p. 28), o certo é que o filho da arguida e da vítima (CC) afirmou que “nunca viu a mãe ser agredida pelo pai” (acórdão recorrido, p. 27). Assim, a partir do texto da decisão recorrida não se vislumbra que a matéria de facto dada como provada seja insuficiente para a decisão de condenação que foi tomada — sabe-se que arguida e ofendido entraram naquele apartamento e apenas a arguida saiu dele; sabe-se que arguida e ofendido mantiveram relações sexuais no apartamento e “findo o relacionamento sexual, o BB, após ter-se deslocado ao WC, deitou-se novamente na cama, enquanto a arguida se dirigiu à cozinha” (facto provado b)) e, em momento posterior, quando o ofendido se encontrava deitado e dormente (facto provado g)) disparou a arma sobre BB; sabe-se também que a arguida teve clara intenção de matar (disparou a curta distância) (cf. facto provado g)). Além disso, não existe contradição entre a matéria de facto provada e a fundamentação, ou uma contradição na fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão — toda a fundamentação nos traça o caminho em direção a uma punição por homicídio qualificado —, pelo que não podemos concluir que esteja verificado qualquer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP. E também não podemos concluir existir qualquer erro na apreciação da prova. Na verdade, erro notório na apreciação da prova não é o mesmo que insuficiência da prova para a decisão de facto proferida (e quanto a este não temos dúvidas de que a prova demonstrou ter sido a arguida que praticou o crime de homicídio, tendo em conta, em especial, os factos dados como provados c), g), h), i), j) e k)), nem se pode concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova apenas a partir de uma divergência entre a convicção pessoa do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do tribunal. Acresce que estando este Tribunal restringido quanto aos poderes de cognição não pode sindicar a má ou boa valoração da prova, nem discutir a valoração da prova produzida, pois isso constitui um conhecimento da matéria de facto que está vedado a este tribunal e não se integra no âmbito alargado dos poderes de cognição, a partir do estipulado no art. 410.º, n.º 2, do CPP. Pois, e voltamos a afirmá-lo, para dar cumprimento ao disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, este tribunal não pode proceder a um exame crítico das provas produzidas ou sindicar eventuais erros de julgamento quanto à apreciação e valoração da prova, não pode analisar o processo cognoscitivo/valorativo realizado pelos magistrados dos tribunais a quo, mas apenas sindicar o próprio texto verificando se a partir do relatado existe algum erro tendo em conta o que foi dado como provado e a fundamentação da decisão que determinou uma certa condenação do arguido. Ora, a matéria de facto dada como provada é suficiente para se poder concluir pela prática dolosa de um crime de homicídio qualificado — nomeadamente, tendo em conta os factos provados a), g), i), l) e o). É certo que da matéria de facto provada, e da fundamentação, não resulta como se concluiu pela existência de um plano, tal como se afirma no facto provado j). Mas, do texto da decisão recorrida está claramente exposto que foi a vítima que usou a arma e disparou, a curta distância, contra o ofendido quando este estava dormente, sem que o disparo tivesse sido acidental. O que é o bastante para que possamos concluir que não há um erro notório na apreciação da prova, pelo que também não se encontra preenchido o erro vício constante do art. 410.º, n.º 1, al. c), do CPP. Pelo que concluímos não estar verificado nenhum dos erros vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do CPP, pelo que improcede nesta parte o recurso interposto.
2. Qualificação jurídica dos factos e concurso aparente de crimes (Conclusões 4, 5, e 6) A recorrente entende que deveria ter sido absolvida do crime de detenção de arma proibida, previsto e punível no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; em relação a este crime a arguida foi condenada a pena de prisão de 1 ano e 6 meses, condenação confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto. Assim sendo, nos termos do art. 400.º, n.º 1, als. e) e f), do CPP, a decisão é irrecorrível para este tribunal, tendo formado caso julgado. E por isso o recurso é rejeitado nesta parte. Mas a recorrente entende ainda que este crime de detenção de arma proibida está em concurso aparente com o crime de homicídio qualificado, invocando para tanto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 361/10.3GBLLE (relator: Cons. Manuel Braz; in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/77de29905c952c5680257868004ee9e5?OpenDocument), segundo o qual “A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o irmão, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.” Sabendo que houve trânsito em julgado quanto à imputação do crime de detenção de arma proibida e sua punição, nestes autos apenas poderemos proceder à análise da qualificação jurídica na parte respeitante ao concurso de crimes entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio agravado pelo uso de arma. No sentido da admissibilidade do conhecimento oficioso no respeitante à qualificação jurídica, já se pronunciou este tribunal em acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298). Questionando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior” (acórdão cit., p. 4298-9), entendeu que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto de impugnação” (acórdão cit., p. 4299), e concluiu, e fixou jurisprudência, no sentido de que “O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”. Por isto, entendemos que este Supremo Tribunal pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, no respeitante ao concurso de crimes. Vejamos. A recorrente foi punida pelo crime de detenção de arma proibida, previsto no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos, ou pena de multa até 600 dias. Ou seja, para além da ilicitude do crime de homicídio qualificado, acresce uma outra ilicitude decorrente da detenção e transporte de arma sem autorização e fora das condições legais. Trata‑se de um outro crime, um crime de perigo abstrato, em que os bens jurídicos “protegidos pela norma são primacialmente a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, mas também a vida, a integridade física e bens patrimoniais dos membros da comunidade, face aos riscos sérios que derivam da livre (ou seja, sem controlo) circulação e detenção, uso e porte de armas (...) proibidas” (Artur Vargues, Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. I, org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Lisboa: UCP, 2010, p. 240). A recorrente entende que devia ter sido absolvida do crime de detenção de arma proibida, por considerar que este crime está em concurso aparente com o crime de homicídio qualificado, e para fundamentar a sua pretensão a recorrente trouxe para a discussão um acórdão deste Tribunal supra referido e a doutrina de Figueiredo Dias quanto os casos de concurso de crimes aparente, no sentido de que existiria um ilícito dominante — o do homicídio qualificado — e um ilícito dominado — o da detenção de arma proibida. Vejamos então o que se entende por concurso aparente em Figueiredo Dias[1]: «Figueiredo Dias começa por estabelecer uma distinção, diríamos radical, entre aquilo que designa como unidade de normas ou de leis e concurso de crimes. Abandonando os critérios baseados na unidade e pluralidade de tipos de crimes violados e o de unidade e pluralidade de acções praticadas pelo agente, como critérios possíveis de distinção entre a unidade e pluralidade de crimes, avança com um novo critério — o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global[2]. A unidade ou pluralidade não será mais uma unidade ou pluralidade de crimes, mas de factos puníveis. Assim, é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”[3]. E assim se deverá distinguir entre os casos do concurso efectivo, próprio ou puro (previsto no art. 30.º, n.º 1 do CP) — recondutível a “uma pluralidade sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis”[4] — e os casos de concurso aparente, impuro ou impróprio (também integrado no âmbito do art. 30.º, n.º 1 do CP) — caracterizado pelo facto de o comportamento ser “dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados”[5]. Logo esclarecendo que a forma de punição prevista no art. 77.º apenas será aplicável aos casos de concurso efectivo. Mas convém desde já notar que este concurso aparente pouco tem do “velho” concurso aparente, embora possamos dizer, de forma talvez demasiado simplista, que esta figura abarca os casos tradicionalmente integrados no “velho” concurso aparente por consumpção. Por seu turno, tudo o que correspondia ao caso de concurso aparente por especialidade ou por subsidiaridade é agora integrado na “concorrência de normas”, problema já não de concurso de crimes, mas a resolver no âmbito da interpretação da norma. Assim, de forma breve, podemos caracterizar a “concorrência de normas” como abrangendo aqueles casos em que “um dos tipos (lex specialis) integra todos os elementos de um outro tipo (lex generalis) e só dele se distingue porque contém um qualquer elemento adicional”[6] — designado como uma concorrência de normas por especialidade — e os casos em que “um tipo legal de crime deva ser aplicado somente de forma auxiliar ou subsidiária”, havendo uma relação de interferência ou de sobreposição entre os tipos em concorrência[7]. Fora destes casos de concorrência de normas estarão os casos até aqui integrados naquilo que era designado por concurso aparente por consumpção. Este engloba os casos em que “o conteúdo de um ilícito-típico inclui em regra o de outro facto, de tal modo que, em perspectiva jurídico-normativa, a condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o comportamento: Lex consumens derogat legi consuntæ”[8]. Este não será então um caso de unidade de leis, mas sim de “pluralidade de normas concretamente aplicáveis”[9] que originam um problema de concurso de crimes. E acaba por concluir que a “ideia que preside à categoria da consumpção é, na sua essência, aquela que dissemos dever presidir ao concurso aparente, impróprio ou impuro de factos puníveis”[10]. Fazem, pois, parte do âmbito do concurso de crimes o concurso efectivo, caracterizado por uma “pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global”, revelando o comportamento uma “pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional da dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeito de punição”[11]. Estes casos serão punidos segundo o regime previsto no art. 77.º do CP. Coisa diferente ocorre no então designado “concurso aparente” em que, apesar de se entender que ao comportamento se aplica uma pluralidade de normas típicas, apesar disto aquela presunção de pluralidade de sentidos do ilícito autónomos é elidida, “porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem, de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social”[12], por um sentido predominante, de modo que a punição segundo as regras do art. 77.º é tida como inaceitável. No âmbito desta nova figura do concurso aparente de Figueiredo Dias, integram-se todos aqueles casos “em que, apesar de o comportamento global ser subsumível a uma pluralidade de tipos legais concretamente aplicáveis, todavia deva concluir-se pela unidade do sentido social de ilicitude do facto punível”[13]. Resta saber se os casos tradicionalmente designados de concurso ideal são caracterizados por uma unidade de sentido de ilicitude ou por uma pluralidade; pensamos que casos haverá em que aquela unidade de sentido de ilicitude ocorre, afastando o concurso efectivo (como aquele caso em que o agente lesa a integridade física de alguém de modo a atingir a morte, sendo evidente neste caso a dominância de um único sentido de desvalor do ilícito), embora em outros se não possa afirmar a existência daquela unidade (como aquele caso em que o agente com uma só acção mata e lesa a integridade física de duas vítimas distintas). A unidade de sentido de ilicitude autónoma é dada pelo facto de, apesar de o comportamento integrar diversos tipos, haver no comportamento global um sentido de ilicitude dominante e fundamental. A determinação do sentido de ilicitude absolutamente dominante é aferida segundo diversos critérios[14] — o critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito global-final, o critério do crime instrumental ou crime-meio, o critério da unidade de desígnio criminoso, o critério da conexão espacio-temporal das realizações típicas, e o critério dos diferentes estádios de evolução ou de intensidade da realização global[15]. Ora, quando naquelas situações que habitualmente se integravam no concurso ideal se possa dizer que existe um único sentido de ilicitude autónomo e prevalecente, então estaremos também perante um caso de concurso aparente, na concepção actual de Figueiredo Dias[16]. Mas os casos de concurso aparente não podem ser punidos por um qualquer sistema de soma, pois isso constituiria uma violação do princípio do ne bis in idem[17]. Assim, a punição[18] será determinada dentro da moldura do singular ilícito-típico dominante e, dentro desta, é determinada a medida concreta da pena (os crimes “dominados” constituirão factores agravantes da medida da pena — na parte em que não participem da tipicidade do ilícito dominante, sob pena de violação do princípio do ne bis in idem e do princípio da proibição da dupla valoração); se, no entanto, o mínimo da moldura penal do crime “dominado” for superior ao mínimo da moldura do crime “dominante”, aquele mínimo funcionará como limite. E com isto a moldura penal na base da qual será determinada a pena concreta irá corresponder ao sentido dominante do desvalor do ilícito.» Ou seja, o concurso aparente em Figueiredo Dias é um concurso de ilícitos que em função da situação concreta se podem sobrepor (total ou parcialmente) ou não. Diferentemente daquilo que era entendido como concurso aparente em Eduardo Correia, que consistia, na verdade, num concurso de normas, pelo que a simples análise abstrata dos tipos legais de crime em conflito nos permitia chegar a uma conclusão, independentemente das concretas circunstâncias do caso. Na verdade, em Figueiredo Dias, apenas em função da situação concreta poderemos saber se o ilícito dominado constitui ou não uma conduta que se integre numa “unidade do sucesso ou acontecimento” (Figueiredo Dias) em que o agente se serve de “métodos, processos ou meios já em si mesmo puníveis”, ou se integre numa “unidade de desígnio criminoso”, ou se temos uma conexão espácio-temporal entre as realizações típicas, tudo de molde a permitir obter a conclusão de que o objetivo primacial do agente era a realização do ilícito dominante, e o ilícito dominado aparece como um ilícito secundário na análise global da ilicitude do comportamento concreto. Ora, no acórdão citado pelo recorrente verifica-se que “o arguido limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio” (acórdão citado), e foi dado como provado que “o arguido, movido pela revolta, dirigiu-se ao anexo onde habitava e saiu transportando uma espingarda. (...) Então, empunhou a espingarda na direcção do irmão e efectuou dois disparos na sua direcção, atingindo-o na cabeça, quando este se encontrava ao lado de sua mulher e mãe” (idem). Pelos factos provados, e tal como se concluiu naquele acórdão deste tribunal, a utilização da arma circunscreveu-se ao momento em que cometeu o crime de homicídio, sendo claramente o meio de que se serviu o arguido para cometer o seu desígnio. Diferente é o caso destes autos. Provou-se não só que foi a arguida que se muniu de uma pistola (facto provado c)), como se provou que após ter cometido aquele crime saiu do apartamento e trouxe consigo a pistola e as munições restantes (facto provado l)), sem que para tanto tivesse licença de uso e porte de arma, tendo mantido consigo a arma, dado que somente a deitou fora, num ecoponto junto ao Cabedelo, na segunda à noite ou na terça de manhã (declarações da arguida, ac. recorrido, p. 22). Ou seja, da matéria de facto provada não podemos englobar no desígnio de cometer o homicídio a detenção de arma proibida. A arguida permaneceu com a arma após o cometimento do crime, ou seja, guardou, deteve e transportou a arma, fora das condições legais, sem qualquer título legal para a usar. Assim sendo, consideramos que o crime de detenção de arma proibida praticado pela recorrente não está em concurso aparente com o crime de homicídio qualificado, não há qualquer justaposição ou interceção entre as condutas punidas por ambos os tipos. Pelo que, apesar de já ter havido trânsito em julgado relativamente à condenação pelo crime de detenção de arma proibida, nos termos do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, e portanto já não ser possível discutir esta questão, ainda assim consideramos ser juridicamente acertada a condenação em concurso efetivo de crimes, improcedendo nesta parte o recurso interposto.
3. Determinação da medida concreta da pena do crime de homicídio (conclusões 7 a 14) Entende a recorrente que a pena que foi fixada é “excessiva e de severidade injustificada, tendo sido ultrapassada a medida da culpa”, considerando que o tribunal não devia “ter valorado, como valorou, a existência de um “plano traçado” ou “preparação antecipada”, e deveriam ter sido valorizados os “sentimentos manifestados pela arguida durante o julgamento, pois demonstrou claro arrependimento pelo sucedido, pedindo perdão aos familiares e amigos da vítima pelo ato cometido, evidenciando plena consciência da gravidade dos seus atos e interiorização da sua culpa”. Acresce que entende que se deveria dar relevo ao facto de ser primária e estar bem inserida socialmente, revelar uma conduta produtiva na prisão e uma conduta de acordo com as regras em meio prisional, manifestando sentimento de vergonha, pelo que as necessidades de prevenção especial seriam escassas. E conclui que a pena não deveria ser superior a 14 anos, embora nunca esclareça se está a referir-se à pena parcelar para o crime de homicídio, se está a referir-se à pena única conjunta atribuída ao concurso de crimes. A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos art. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração). Assim, fatores como a ilicitude do facto, o modo de execução do crime e a sua gravidade, a intensidade do dolo, e o comportamento anterior e posterior da arguida serão fatores a ter em conta na determinação da medida concreta da pena. Estamos perante um caso em que a arguida apesar de verbalizar um bom relacionamento com o marido, e disso ser confirmado por diversas testemunhas, acaba por matar o ofendido, a curta distância, com um arma, regressando a casa e tentando fazer crer, aos que a rodeiam, que não sabe do marido. É certo que não podemos levar novamente para a determinação da medida concreta da pena os mesmos elementos que estiveram na base da qualificação do comportamento ilícito — o modo de execução do crime, como a relação de conjugalidade, o momento em que o executou: na sequência de um relacionamento sexual, quando a vítima estava em situação de dormência, e quando não seria de esperar que tal ocorresse —, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração. Na verdade, “não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime), Coimbra: Coimbra Editora, 2009 (2.ª reimpressão), § 314). Poderá ser outra a conclusão quando nos referimos às circunstâncias que integram o exemplo-padrão no caso do homicídio qualificado? A esta pergunta responde-nos Teresa Serra (Homicídio qualificado: tipo de culpa e medida da pena, Coimbra: Almedina, 1990, p. 107-109): “deve ou não valer, no domínio dos exemplos-padrão, o princípio da proibição do duplo aproveitamento? Procedem ou não aqui razões idênticas às que se verificam na formação de molduras penais através de elementos típicos? As respostas não podem deixar de ser afirmativas: a proibição do duplo aproveitamento deve valer igualmente para os exemplos-padrão. E deve ser assim porque procedem aqui razões idênticas às que se verificam na formação da moldura penal com recurso a elementos típicos: se a circunstância fundamenta uma moldura penal modificada, essa mesma circunstância não deverá já concorrer para a graduação da medida da pena. (...) [Assim] a valoração, a que o juiz não pode subtrair-se, deverá efetuar-se numa esfera bastante mais limitada, recorrendo essencialmente às circunstâncias generalizadoras constantes do n.º 2 do artigo 132.º, que depois não deverão ser tomadas em consideração na graduação da pena concreta”. Assim, a especial relação entre a arguida e a vítima, a fundamentar a culpa agravada e a especial censurabilidade e perversidade do facto, também demonstrada pelo momento em que a arguida matou a vítima (quando estava indefesa) que esteve na base da qualificação do homicídio não deve ser levada em consideração na determinação da medida da pena. Porém, o comportamento da arguida imediatamente posterior à realização dos factos, tentando fazer crer a todas as pessoas que não sabia do marido, o facto de ter trazido a arma consigo e tê-la deitado num ecoponto, ou seja, tentando desfazer-se da arma do crime de modo a facilitar o encobrimento da autoria dos factos, são de molde a a impor, como limite máximo da moldura concreta da pena a partir da culpa da arguida, uma pena bastante acima do limite mínimo da moldura penal abstrata do crime de homicídio qualificado. Será a partir deste limite máximo, e tendo em conta um ponto mínimo de tutela do bem jurídico vida, que atentas as necessidades de prevenção especial deverá ser estabelecida a pena concreta para o crime de homicídio. E, na verdade, só se compreende a pena de 16 anos e 6 meses em que vem condenada, exatamente porque as exigências de prevenção especial não são significativas: precisamente tendo em conta que se trata de delinquente primária; já demonstrou algum arrependimento, pelo menos verbaliza-o; está bem integrada no meio prisional, pois apresenta uma conduta em conformidade com as regras prisionais, exercendo atividade nas oficinas como costureira e frequentando o 9.º ano de escolaridade (cf. factos provados “condições sociais e pessoais”, transcritos supra). Não fosse isto e as exigências de prevenção geral e a culpa imporiam uma pena superior. No que respeita à determinação da pena em sede de concurso, também se nos afigura como correta, atenta a moldura do concurso entre um mínimo de 16 anos e 6 meses e um máximo de 18 anos de prisão, a pena de 17 anos em que vem condenada. Na verdade, nos casos de concurso de crimes, a determinação da pena única conjunta tem que obedecer aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem todavia exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP). A partir desta moldura é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique"[19]. Na avaliação da personalidade ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva). Assim, analisando globalmente os factos, as fortes exigências de prevenção geral, e as menores exigências de prevenção especial, entendemos como adequada a pena atribuída, assim improcedendo nesta parte o recurso interposto.
4. Atenuação especial da penal (conclusões 15 a 19) A recorrente entende ainda que se deveria ter procedido a uma redução da pena aplicando o regime especial de atenuação da pena, previsto nos arts. 72.º, e 73.º, do CP, porquanto o arrependimento e a forte interiorização da culpa pela arguida, assim como o facto de ser primária e bem inserida socialmente, ao que acresce o seu comportamento em ambiente prisional, justificariam aquela atenuação. O disposto no art. 72.º, do CP, constitui uma cláusula geral, uma “válvula de segurança” (Figueiredo Dias) que o legislador quis estabelecer admitindo que os casos específicos de atenuação especial expressamente previstos não sejam suficientes, isto por considerar que possam “existir circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura respectiva"[20] — nestes casos deverá então substituir-se a moldura abstrata do tipo legal de crime, por uma outra formada a partir dos critérios do art. 73.º, do CP. Ou seja, o legislador entende que, para além dos casos de atenuação especial previstos na parte especial do CP, haverá outras situações, situações extraordinárias em que, em nome da justiça e da equidade, não é possível estabelecer uma pena adequada à culpa concreta do agente e às necessidades de prevenção geral e especial, sem que se usem poderes extraordinários de atenuação. Para tanto, e tal como nos diz o art. 72.º, n.º 1, do CP é necessário que ocorram “circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”, portanto é necessário que ocorram elementos que nos permitam concluir estarmos perante um caso em que exista uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, uma diminuição acentuada da culpa do agente ou uma diminuição acentuada das exigências de prevenção. Ora, “a diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da atuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo"[21], ou seja, apenas se aplica este regime para casos extraordinários ou excecionais, casos em a situação atenua a “imagem global do facto, a gravidade do crime como um todo”. Além disto, as próprias situações descritas no art. 72.º, n.º 2, do CP, “não têm um efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido”.[22] Não vemos que no presente caso se possa invocar, atenta a imagem global do facto, e os factos dados como provados, estarmos perante uma situação excecional. Estamos perante um homicídio qualificado, praticado de forma violenta, quando o ofendido estava em estado dormente, e tentando-se depois encobrir a sua prática. O arrependimento da arguida, a sua boa inserção social, a sua adaptação ao meio e às regras prisionais, forma já elementos tidos em conta aquando da determinação da pena, e perfeitamente integrados no âmbito da moldura estabelecida para o tipo de crime praticado, sem que se sentisse necessidade de uma moldura menor. Na verdade, nada foi provado que nos permitisse concluir que a arguida agiu sob a influência de ameaça grave, ou sob a influência de alguém (cf. art. 72.º, n.º 2, al. a), do CP), nem sequer sabemos o motivo que a levou a praticar o crime para que possamos concluir que o motivo era honroso, ou que tinha atuado por forte solicitação ou tentação da vítima, ou que tenha resultado de uma provocação (cf. art. 72.º, n.º 2, al. b), do CP) e não decorreu um período de tempo considerável sob a prática dos factos (cf. art. 72.º, n.º 2, al. d), do CP). Além de que, o facto de “verbaliza[r] censura face ao crime de homicídio, independentemente das motivações e contextos, reconhecendo a existência de vítimas e danos” (cf. factos provados “impacto da situação jurídico-penal” supra transcritos) não configura uma situação excecional, diferente das normalmente previstas pelo legislador quando constrói uma moldura abstrata suficientemente ampla, que nos permita concluir pela aplicação do regime especial de atenuação especial, previsto nos arts. 72.º e 73.º, do CP, assim improcedendo o recurso nesta parte.
III Conclusão
Nos termos expostos acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça: Negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP, condena-se ao pagamento de 6 UC.
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de janeiro de 2015
(Helena Moniz)
(Nuno Gomes da Silva) ------------------
[2] Direito Penal – Parte Geral Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 20072, 41/ § 26 e ss. [3] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 41/ § 26. [4] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 41/ § 30. [5] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 41/ § 30. [6] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 5. [7] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 11; e distingue ainda entre uma subsidiariedade expressa e uma subsidiariedade implícita — ob. cit., 42/ § 12 e ss e § 15 e ss. [8] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 18. [9] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 20. [10] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 20. [11] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 3 e ss. [12] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 11. [13] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 2 (itálico do Autor). [14] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 17 e ss. [15] Neste último critério integram-se os casos em que a relação de subsidiariedade deva ser negada (e por isso afastada a concorrência de normas) e, pelo contrário, deva ser afirmada a pluralidade de sentidos de ilícito – o que sucederá entre, por exemplo, a tentativa de um crime qualificado que já inclui a consumação do crime fundamental; ou ainda os casos entre os crimes de perigo abstracto, concreto e crime de dano, nomeadamente quando a relação de subsidiariedade está afastada em virtude de cada um dos tipos proteger diferentes bens jurídicos – “também nestas hipóteses, determinada a pluralidade de normas incriminadoras concretamente aplicáveis, o sentido dominante do ilícito deve ser conferido ao comportamento global, ao menos em regra, pelo bem jurídico que sofre a forma mais intensiva de agressão” (Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 30; cf. também sobre todos estes critérios Figueiredo Dias, Unidade e pluralidade de crimes «où sont les neiges dántan?», Ars Ivdicandi — Estudos em homenagem ao Professor Doutor António Castanheira Neves, Coimbra, Coimbra Editora, vol. III, 2008, p. 691-5). [16] Afirmando que poderão ser integrados também nesta figura os casos de “factos posteriores co-punidos” e os “factos tipicamente acompanhantes” — Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 18. [17] Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 55. |