Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6686/18.2T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO
PRÉDIO RÚSTICO
ILICITUDE
REPARAÇÃO DO DANO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
EQUIDADE
CONTRATO DE COMODATO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 11/17/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A ilícita privação do uso de um prédio rústico (um campo de cultura arvense e de regadio) configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo.
II - Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação.
III - Indemnização que, em tal hipótese, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, deve ser fixada equitativamente (cfr. art. 566.º, n.º 3, do CC).
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 6686/18.2T8GMR.G1.S1

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

AA e esposa, BB, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e esposa, DD, pedindo que se:

“1. declare que foi validamente denunciado o contrato de comodato dos autos;

 2. condenem os réus a restituir aos autores o prédio descrito no artigo 4.º (…);

 3. condenem os réus a pagar aos autores a quantia de € 2.100,00 (…) pela privação do uso do mesmo prédio desde 23 de Abril de 2018 até ao mês da instauração desta ação, Novembro de 2018, acrescidos de € 300,00 (…), por cada mês ou fração, dos meses seguintes”.

Alegaram para tal – no que aqui interessa (ou seja, para efeito do último pedido, único em que a revista excecional foi admitida) – que, tendo denunciado o contrato de comodato do prédio descrito no art. 4.º da PI (de que os AA. são proprietários e os RR. eram comodatários) e tendo tal denúncia produzido efeitos em 23/04/2018, os RR. não restituíram o prédio, continuando, desde 23/04/2018, a privá-los de utilizar ou permitir que outros utilizem o prédio em causa e que, se os AA. o tivessem, podiam arrendá-lo por quantia nunca inferior a € 300 por mês, pedindo por isso, de indemnização pela privação do uso da “coisa”, o valor correspondente aos seu “valor locativo”.

Apenas o R. CC contestou, articulado em que suscitou a ilegitimidade da R. mulher (por esta nunca ter sido parte no contrato de comodato); em que invocou ser credor de indemnização pelas despesas que, durante os 15 anos de duração do contrato de comodato, fez para conservar e melhorar o prédio, indemnização que os AA. se recusam a pagar-lhe, razão pela qual tem direito de retenção sobre o prédio e não está, enquanto tal indemnização não lhe for satisfeita, obrigado a restituir o prédio; em que, a título reconvencional, alegou e pediu que lhe sejam pagas as despesas que efetuou para conservar e melhorar o prédio; e em que, concluindo, pugnou pela improcedência dos pedidos formulados em 2.º e 3.º lugares e pediu, a título reconvencional, que os AA. sejam condenados a indemniza-lo no valor de € 78.819,17, acrescido de juros de mora à taxa legal, até efetivo pagamento.

Os AA. replicaram, opondo-se à exceção de ilegitimidade suscitada, à reconvenção deduzida e ao direito de retenção invocado.

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador, que julgou a instância regular – tendo sido julgada improcedente a exceção da ilegitimidade suscitada – estado em que se mantém, e em que foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

Instruído o processo e realizada a audiência, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência: “declarou-se cessado o contrato de comodato relativo ao prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..., na freguesia de ..., com a área de 12.800 m2, composto de campo de cultura arvense e de regadio, a confrontar, do norte com EE e outro, do sul com FF e outro, do nascente com Estrada Nacional e, do poente, com GG e herdeiros, mais se condenando o réu CC na entrega imediata do mesmo aos ora autores e, bem ainda[,] no pagamento da quantia de € 175,00 (cento e setenta e cinco euros)/mês, contada desde o dia 23 de Abril (considerando-se os proporcionais) até efetiva entrega.”; sendo “a ré DD absolvida do pedido.”; e, por fim, dispôs-se: “(…) vai a reconvenção julgada improcedente, com a consequente absolvição dos autores do pedido.”

Inconformado, interpôs o R. CC recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação ....., por Acórdão de 08/07/2020, julgado improcedente a apelação e confirmado a sentença recorrida.

Ainda irresignado, interpõe agora o R. CC recurso de revista excecional para o STJ, invocando como fundamentos as als. a) e b) do art. 672º do CPC, e arguindo ainda nulidade por violação do princípio do contraditório, visando a declaração de nulidade do acórdão ou a sua revogação e substituição por outro que julgue procedente a reconvenção e confirme o direito de retenção do prédio até que os recorridos paguem a indemnização pedida, assim como julgue improcedentes os pedidos 2. e 3. da petição inicial.

Terminou as suas alegações com as seguintes conclusões (no que aqui interessa):

“(…)

4ª O acórdão recorrido é nulo por violação do princípio do contraditório previsto no nº 3 do art. 3º do CPC, uma vez que a questão de inaplicabilidade das definições do art. 5º do Dec-Lei Nº 294/2009 por não existir lacuna, apenas foi levantada nas contra-alegações dos recorridos, consubstanciando uma questão nova, e a sua aplicação pelo acórdão recorrido, sem que o recorrente pudesse pronunciar-se sobre a mesma, constitui violação ao princípio do contraditório e a prática de um ato que a lei não permite. Nulidade esta que expressamente se invoca parta todos os efeitos legais.

(…)

12ª (…) não existe qualquer direito de indemnização a favor dos recorridos pela privação do uso, uma vez que os mesmos, não alegaram, nem provaram qualquer dano concreto a este título, conforme de resto, consta da própria sentença da primeira instância, confirmada pelo acórdão recorrido.

13ª A presunção efetuada pela sentença da primeira instância, confirmada pelo acórdão recorrido, de que os recorrentes poderiam dar um uso ao prédio sem concretizar qual o uso, é ilegal, pois viola o direito ao contraditório, bem como, o ónus da prova, porque a entender-se de forma diversa o recorrente não estaria apto a contraditar o referido uso e teria que ser ele a fazer a prova de um facto negativo, ou seja, a não existência do dano e do prejuízo.

14ª Estabelecer, como fez a sentença da primeira instância, confirmada pelo acórdão recorrido, o quantum da indemnização na ponderação de dois danos distintos [o uso pela locação do prédio e o uso pela exploração agrícola do prédio], além de ilegal, demonstra mesmo que não foi feita a prova de qualquer dano concreto nem o seu prejuízo e que se viola o direito do contraditório do recorrente, bem como, o ónus da prova.”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Remetidos os autos à Formação a que alude o art. 672º, 3, do CPC, após se considerar verificada a “dupla conforme”, foi, por Acórdão da Formação de 02/03/2021, decidido o seguinte:

“a) Não se admite a revista excecional relativamente ao pedido reconvencional correspondente à indemnização pretendida pelo R. por alegadas benfeitorias realizadas no prédio, por falta de relevo jurídico e de relevo social, exigidos pelo art. 672º, nº 1, als. a) e b), do CPC;

b) Admite-se a revista excecional relativamente à condenação do R. no pagamento aos AA. de indemnização correspondente à privação do uso do prédio, por verificação do relevo jurídico da questão de direito. (…)”

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

Factos Provados

1) Mostra-se inscrita no registo, em nome dos ora autores, a propriedade do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..., na freguesia de ..., com a área de 12.800 m2, composto de campo de cultura arvense e de regadio, a confrontar, do norte com EE e outro, do sul com FF e outro, do nascente com Estrada Nacional e, do poente, com GG e herdeiros.

2) O prédio referido em 1) pertenceu a HH, tendo sido transmitido, por sucessão, a II e JJ.

3) Por escritura pública datada de 15.02.2017, II e JJ declararam vender aos ora autores, que declararam comprar, o prédio referido em 1).

4) Por escrito particular datado de 23 de Abril de 2003, HH, referido em 2), declarou ceder o gozo do prédio referido em 1) ao ora réu CC, pelo prazo de 15 anos contados daquela assinatura, gratuitamente.

5) No escrito referido em 4), as partes acordaram, entre o demais, que “os melhoramentos fundiários, plantações ou construções realizados pelo 2º outorgante [ora réu] (…) ficam autorizados (…)”.

6) Acordaram ainda em prorrogar o acordo automaticamente caso “não fo[sse] denunciado por nenhuma das partes até 6 meses do seu fim”.

7) Por notificação judicial avulsa datada de 09.08.2017 e recebida pelo réu marido em 11.09.2017 e pela ré mulher em 20.09.2017, os ora autores declararam não pretender ver renovado o contrato de comodato e requereram a entrega/restituição do prédio para 22.04.2018.

8) Após o referido em 4), o ora réu CC efetuou terraplanagens, com vista à retirada das silvas que haviam crescido no prédio, bem como procedeu à limpeza do terreno e da charca lá existente, despendendo quantia não concretamente apurada mas não inferior a € 3.999,60 [€ 1999,60 + € 2000,00].

9) Entre 2005 e 2007, em materiais para preparação da produção de kiwis, designadamente com tubagem, arame, esteios, sulfatos e outros produtos, o réu marido despendeu não menos do que € 10.429,57.

10) Para desenvolver o projeto de plantação de kiwis, o réu marido recebeu um subsídio no valor de € 5.062,86 por parte do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, em Maio de 2008.

11) O referido em 9) permitiu que o prédio atualmente produza cerca de 2 toneladas de kiwis por ano, gerando um rendimento médio de € 3.000,00, o que corresponde a € 250,00/mês (3000:12=250).

12) Num contexto de exploração das árvores de fruto existentes no prédio, o mesmo poderia ser arrendado por um valor não concretamente apurado mas nunca inferior a € 100,00/mês.

13) No período decorrido desde 2003 até aos dias de hoje, o ora réu colheu os frutos da produção, destinando-os como entendeu, designadamente vendendo a particulares.

*

III – Fundamentação de Direito

A revista excecional foi tão só admitida, como resulta do Acórdão proferido pela Formação, em relação à indemnização concedida pela “privação do uso” do prédio rústico, porém, com exceção da válida denúncia do contrato de comodato (questão que o R. nunca discutiu), em relação ao demais discutido nos autos, ou seja, em relação à condenação do R. marido a restituir o prédio aos AA. e à improcedência do pedido reconvencional, não se pode ainda dizer que o decidido está consolidado, uma vez que subsiste a invocação da nulidade do Acórdão da Relação.

Temos pois, em síntese, que a presente revista tem como objeto: a questão da nulidade do Acórdão da Relação e a questão da indemnização pela privação do uso.

Quanto à nulidade do Acórdão da Relação:

Invoca o R. que o Acórdão recorrido é nulo por não ter sido cumprido o art. 3.º/3 do CPC, uma vez que não lhe foi oferecida a oportunidade de se pronunciar sobre o alegado pelos AA., em sede de contra alegação, quanto à não aplicação do art. 5º do DL 294/2009, de 13-10 (Regime do Arrendamento Rural), invocação configurável como nulidade de acórdão por “excesso de pronúncia”, nulidade prevista no art. 615º/1/d)/2ª parte do CPC (aplicável ex vi arts. 685º e 666º/1 do CPC).

Sem qualquer razão, desde já se antecipa.

O art. 3.ºdo CPC consagra o princípio do contraditório, estabelecendo no seu n.º 3 – em que se diz que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” – que as partes não podem ser confrontadas com soluções jurídicas (materiais e adjetivas) inesperadas ou surpreendentes, ou seja, estabelece a proibição das decisões-surpresa, impondo ao juiz a obrigação de facultar às partes a possibilidade de aduzirem as suas razões perante uma situação e/ou enquadramento legal com que não tivessem podido razoavelmente contar.

Não é nada disto, como é evidente, que no caso se verifica.

O R., na sua alegação (da apelação), suscitou a aplicação do art. 5.º do RAR – respeitante a várias definições no âmbito do arrendamento rural, como a definição de “benfeitorias necessárias” e “benfeitorias úteis” – ao que se discutia no pedido reconvencional por si deduzido, tendo em vista serem assim considerados os trabalhos por si levados a cabo no prédio comodatado.

Os AA., na sua contra alegação (da apelação), pugnaram pela não aplicação do art.º 5.º do RAR ao caso (“por não estarmos perante uma lacuna legal e porque os contratos são manifestamente diferentes no que respeita às prestações dos contraentes” -conclusão 4.ª).

A Relação recusou ambas as argumentações: julgou improcedente o pedido quanto às benfeitorias por “nenhum dos trabalhos dados como provados nos autos constituir benfeitoria necessária, nem à luz do disposto no art. 216º, n.º 3 do Código Civil, nem à luz do disposto nas normas do Novo Regime do Arrendamento Rural”.

Neste contexto, não se vislumbra onde possa estar a surpresa no decidido pela Relação.

Invocada, pelo próprio R., a aplicação do art. 5.º do RAR (ao que se discutia no pedido reconvencional), tinha apenas a Relação que se pronunciar sobre tal aplicação (ou não), não tendo que ouvir as partes – e que abrir o contraditório – sobre a argumentação que iria expender a favor ou contra a aplicação de tal art. 5.º do RAR ao caso.

Sempre que uma parte suscita a aplicação dum concreto preceito, como foi o caso, não tem o tribunal, para poder “indeferir” a aplicação suscitada, que ouvir a parte que suscita a aplicação.

Não houve pois qualquer incumprimento do art. 3.º/3 do CPC e não se verifica o vício da nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, a que se reporta o art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC.

Quanto à indemnização pela privação do uso:

Assente que não se verifica a invocada nulidade do Acórdão da Relação, podemos agora afirmar que se encontra consolidado o decidido quanto à válida denúncia do contrato de comodato, quanto à condenação do R. marido a restituir o prédio aos AA. e quanto à improcedência do pedido reconvencional (respeitante à indemnização por alegadas benfeitorias realizadas no prédio).

Temos pois que o pedido de indemnização pela privação do uso se funda no incumprimento da obrigação contratual de restituir a coisa findo o contrato de comodato (obrigação constante do art. 1135.º/h) do C. Civil).

Efetivamente, o prédio identificado no ponto 1 dos factos foi, em 23/04/2003 (por anteriores proprietários), dado em comodato ao R., por 15 anos, tendo sido clausulado que o contrato seria prorrogado caso “não fosse denunciado por nenhuma das partes até 6 meses do seu fim”.

E, tendo os AA. adquirido o prédio em 15/02/2017, comunicaram aos RR. – por notificação judicial avulsa datada de 09/08/2017 e recebida pelo réu marido em 11/09/2017 e pela ré mulher em 20/09/2017 – que não pretendiam ver renovado o contrato de comodato e requereram a entrega/restituição do prédio; comunicação esta que, como já foi considerado/decidido, fez cessar validamente o contrato de comodato, sucedendo, como também já foi considerado/decidido, que inexiste qualquer fundamento (designadamente, o direito de retenção) para o R. não cumprir a obrigação de restituição (constante do já referido art. 1135.º/h) do C. Civil) da coisa findo o contrato de comodato.

Acontecendo – é pois a razão do pedido de indemnização pela privação do uso – que, tendo o contrato de comodato cessado em 23/04/2018, o R. ainda não procedeu à restituição do prédio aos AA., invocando os AA. que a privação do uso deve ser considerada um dano e pretendendo/peticionando que a respetiva indemnização corresponda ao seu valor locativo.

Tudo está pois em saber se a privação do uso (no caso, de um prédio rústico: um campo de cultura arvense e de regadio) configura um dano indemnizável e, sendo-o, em que termos.

Vejamos:

Importa começar por precisar que, quando falamos da “privação do uso” – e do “dano da privação do uso” – estamos a falar do prejuízo resultante da falta de utilização de um bem (da impossibilidade temporária de usar um bem, dos inconvenientes da pura e mera impossibilidade de usar um bem) que integra o património do lesado; estamos a falar da privação do uso, só por si, como um dano autónomo e patrimonial suscetível de avaliação; estamos a falar daquelas situações em que a privação do uso não origina uma verdadeira diferença patrimonial[1].

Assim configurado o dano da privação do uso, pode já hoje afirmar-se que é aceite de forma generalizada pela jurisprudência, situando-se as divergências nos exatos contornos que o mesmo deve revestir para ser indemnizável[2].

E o mesmo se passa na doutrina:

Para Menezes Leitão[3], Abrantes Geraldes[4], Júlio Gomes[5], o dano da privação do uso é sempre, só por si, um dano indemnizável, já que o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, uma vez que tem um impacto negativo na esfera do titular do direito.

“(…) Inequívoco é que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afetada pela privação do bem.

Neste contexto, sendo a indisponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excecionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores de justa indemnização.

Sob uma diversa perspetiva ligada à teoria das normas, que serve para determinar como deve processar-se a distribuição do ónus da prova em situações como esta, não deve recusar-se sequer a seguinte proposição: a privação do uso corresponde a um facto constitutivo do direito de indemnização correspondente ao dano imediatamente emergente; constatada a privação do uso determinativa da perda temporária das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da indemnização pressuporá a contraprova de factos atinentes ao inerente prejuízo patrimonial[6].

Para Paulo Mota Pinto[7], ao invés, só a privação de concretas vantagens/utilidades – e não logo a perturbação da faculdade de utilização (do ius utendi et fruendi do proprietário, em que se traduz a faculdade de utilização) que integra o direito de propriedade – é que importará um dano da privação do uso indemnizável, só assim se estará perante um dano autonomizável da ilicitude e da abstrata possibilidade de uso; perante um dano próximo da ideia das vantagens/utilidades que teriam podido ser fruídas depois do evento lesivo e, assim, um “lucro” cessante (e não uma perda ou um dano emergente)[8].

O dano da privação do uso ressarcível é a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem, a qual pode não ser concretizável numa determinada situação”; acrescentando[9] que “(…) a concessão de uma indemnização pela mera privação do uso, independentemente da prova de outros prejuízos patrimoniais, corresponde à posição dominante na generalidade dos países europeus, mas tal não significa que baste a factualidade abstrata de utilização, ignorando-se a concreta vontade ou possibilidade de utilização da coisa, por si próprio ou por interposta pessoa. É neste sentido, também, que deve (tentar) entender-se a posição da jurisprudência alemã, a qual pode ser resumida na máxima “a privação da possibilidade de uso é apenas uma fonte possível de dano, mas não já em si mesmo um dano

Temos pois que, hoje, aceite a ressarcibilidade do dano da privação do uso, se debatem duas posições:

 - a que exige a alegação e prova, pelo lesado, das utilidades/vantagens concretas extraídas do bem de cujo uso se viu privado; e

 - a que aceita que a privação do uso de um bem constitui sem mais uma desvantagem suscetível de avaliação pecuniária, consubstanciando, só por si, um dano patrimonial.

E se é certo que o dano não se confunde com a ilicitude e que o que está em causa é impossibilidade de se satisfazer (pela utilização do bem de que se está privado) uma necessidade concreta, o certo é também que colocar exigências alegatórias/probatórias ao nível das utilidades concretas pretendidas por parte do lesado esvazia o funcionamento e préstimo da figura do “dano de privação do uso”[10].

Ao direito subjetivo absoluto (como é o caso do direito de propriedade dos AA.) é intrínseco um dado conteúdo patrimonial, que se traduz numa nota de utilidade, pelo que sempre que tal utilidade não possa ser realizada, fruto da intervenção de um estranho à esfera de domínio traçado pelo direito (como é, no caso, a intervenção do R.), tem que se considerar que ocorre um dano, que corresponde à utilidade ordinária e normal do bem e que é a consequência (dano consequencial) que a lesão tem na esfera da pessoa lesada.

Só assim não sucederá se, em concreto, se demonstrar que a pessoa lesada não tem qualquer interesse nas faculdades/utilidades ordinárias e normais do bem ou se por circunstâncias estranhas ao âmbito do domínio o lesado não tiver qualquer possibilidade de utilização do bem, hipóteses em que será de concluir não ter existido tal dano consequencial e em que, se fosse outro o entendimento, se poderia falar dum enriquecimento injustificado do lesado (ao conceder-se-lhe uma indemnização em dinheiro por uma vantagem que não iria utilizar).

Mas, em todas as demais hipóteses – ou seja, nada disto se demonstrando – estaremos, com todo o respeito por opinião diversa, perante uma privação do uso que configura um dano indemnizável.

Um tal entendimento – antevê-se a crítica – está a ficcionar o dano, quando, acrescentar-se-á, na responsabilidade civil, o dano tem que ser efetivo.

Ao que se pode contrapor que a atitude contrária, excessivamente formal, se abstrai da justeza do resultado/solução a que chega. Pense-se, por exemplo (uma vez que estamos perante a privação do uso dum prédio), que o comodato era dum apartamento usado como segunda habitação: em tal hipótese, não procedendo o comodatário à restituição do apartamento, não haverá, segundo este entendimento, dano de privação do uso, indemnizável, no período em que o proprietário estiver a utilizar a sua habitação principal.

A responsabilidade civil, gerando obrigação de ressarcir, não pode concretizar-se, é certo, onde não há um dano a reparar, mas a verdade é que o próprio legislador, em situações bastante similares (de que são exemplos o art. 289.º/1 do C. C., sobre a reintegração do “valor correspondente”, e o art. 1045.º do C. C, a propósito da indemnização pelo atraso na restituição do locado), a atribuir ao interessado o direito ao recebimento de uma quantia que pondere o valor de uso dos bens, passando (o legislador) para um plano secundário a consideração do efetivo aproveitamento que deles faria o respetivo titular se acaso a privação se não tivesse verificado, ou seja, o legislador assume, em tais situações, que o reequilíbrio patrimonial pode/deve conseguir-se mediante a restituição do valor correspondente, equivalente, na prática, ao valor de uso atinente ao período de privação.

Mais, é inquestionável que a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui, em termos naturalísticos, uma perda, cuja constatação não é escamoteável; perda essa que é insuscetível de ser “naturalmente” reconstituída.

E sendo inviável a reconstituição natural – sendo incontroverso o direito à reconstituição natural (art. 562.º e 566.º/1 do C. Civil) – tal não pode/deve conduzir à total liberação do responsável.

Ao invés, perante tal constatação, em vez duma resposta formal e algo “artificial”, que exija a alegação e prova das concretas utilidades que o lesado perdeu – da concreta utilização que o lesado teria destinado ao bem de que se viu privado – será mais racional a solução que atribua uma indemnização por equivalente pecuniário que compense o lesado pela perda temporária da fruição; que, na balança dos interesses, restabeleça o equilíbrio patrimonial perdido, tendo como medida a diferença entre a situação presente e a que compreendesse os benefícios que o lesado ficou impedido de poder obter em consequência da privação (cfr art. 566.º/2, 563.º e 564.º/1 do C. Civil), recorrendo-se para tal, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, à equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil).

Impõe-se presumir – concorda-se com Abrantes Geraldes – que foi um legislador, sensato, ponderado e com sentido de justiça que procedeu à regulamentação abstrata das situações da vida real; e estamos – também se concorda – num campo em que se justifica “um maior esforço de esgotamento de todas as potencialidades do sistema normativo, por forma a acolher pretensões que aprioristicamente se revelem substancialmente justas”.

“A realidade social que subjaz às normas vigentes e que sempre deverá estar presente quando se trata de proceder à sua aplicação revela que, em regra, o proprietário de um veículo (em geral, qualquer proprietário) faz do mesmo uma utilização normal, mais ou menos frequente, mais ou menos produtiva, raramente lhe sendo indiferente a situação emergente da sua privação decorrente da prática de um facto ilícito imputado a terceiro.

(…) é essa normalidade a que o juiz deve recorrer quando se trata de dirimir litígios, em vez de partir do pressuposto, que nem a experiência, nem as circunstâncias de facto permitem confirmar, que o veículo representa tão só um elemento do património sem qualquer função regular, extraindo daí, através duma generalização abusiva, a conclusão da ausência de qualquer prejuízo ressarcível.”[11]

Sendo inquestionável que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, verificando-se a indisponibilidade material sobre o bem – no caso, um prédio rústico: um campo de cultura arvense e de regadio – apenas perante um específico quadro factual, será possível afirmar que a privação do seu uso não foi causa adequada de danos merecedores de justa indemnização.

De tal modo que, em termos de distribuição do ónus da prova, não será demasiado temerário afirmar que a privação do uso ao longo do tempo (em que ocorre a privação) preenche um dano consequencial (à lesão do direito de propriedade) emergente, sendo facto constitutivo do direito de indemnização; e que, constatada a privação do uso determinativa da perda temporária das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da indemnização pressuporá a contraprova de factos excludentes dum tal prejuízo patrimonial, isto é, que há um ónus da prova (contraprova) dos factos impeditivos, a cargo do responsável pela privação do uso.

Dano emergente da privação do uso em que, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil) tem um amplo campo de intervenção.

Tudo ponderado – como sempre convém – pelas regras da boa fé (762.º do CC), que vedam ao lesado fazer exigências irrazoáveis reveladoras de um comportamento abusivo e do agravamento de posição do responsável.

Todavia, fora disto – das regras da boa fé – não existe suficiente justificação legal, salvo o devido respeito, para exigir do lesado a comprovação do tipo de concreta utilização a que destinava o bem: se, na ponderação final, não deve admitir-se para o lesado um benefício indevido, também é inadequado que seja o lesante a colher benefícios.

Aqui chegados, revertendo ao caso dos autos, tendo-se provado:

 - que o prédio (de que os AA. estão privados) produz cerca de 2 toneladas de kiwis por ano, gerando um rendimento médio de € 3.000,00/ano,

 - que, num contexto de exploração das árvores de fruto existentes no prédio, o mesmo poderia ser arrendado por um valor não concretamente apurado mas nunca inferior a € 100,00/mês e

- que, até aos dias de hoje (reportado à data do julgamento em 1.ª Instância), o ora R. colheu os frutos da produção, destinando-os como entendeu, designadamente vendendo a particulares,

temos como inteiramente acertado e ajustado fixar a indemnização do dano da privação do uso, com recurso à equidade, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, no valor/montante de € 175,00/mês.

Efetivamente, como vimos de referir, a privação do prédio – desde 23/04/2018 até à data em que ocorrer a efetiva entrega aos AA. – é só por si um prejuízo indemnizável, não sendo pressuposto necessário de tal indemnização a alegação e prova da concreta utilização que os AA. teriam feito do prédio caso o mesmo lhes tivesse sido entregue pelo R.[12].

Tal alegação e prova contenderá, a nosso ver, com o quantum da indemnização, com a possibilidade dos AA. poderem aceder a quantias suplementares, porventura correspondentes a benefícios (lucros cessantes) que teriam obtido e deixado de obter, mas não com o acesso à compensação devida pela mera privação temporária do uso.

Assim, na hipótese dos autos, de falta de prova da concreta utilização a que destinavam o prédio, deve a mera privação do uso ser ressarcida com recurso à equidade, figura que tem na responsabilidade civil um campo de eleição, uma vez que se está recorrentemente perante a indisponibilidade de elementos objetivos ou face à impossibilidade duma determinação exata dos danos (566.º, n.º 3).

E, ponderando os três elementos factuais alinhados, não perdendo de vista as regras da boa fé (762.º do CC) – tomando em conta “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[13] – temos como justo e equilibrado, como compensação do dano de privação do uso, o montante fixado de 175,00 € /mês, montante este equidistante do valor locativo mínimo e do rendimento médio.

É quanto basta para julgar improcedentes “in totum” as alegações do R./recorrente.

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IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista.

Custas pelo R./recorrente.

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Lisboa, 17/11/2021

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ricardo Costa (relator vencido, nos termos da declaração de voto que junta)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Após inversão do Relator por vencimento do projecto de Acórdão, votei Vencido, pelas razões que exponho.

1. Delimitado o objecto do recurso pelo acórdão proferido pela Formação do STJ (art. 672º, 3, do CPC), o cerne da presente revista (sem prejuízo da nulidade arguida, manifestamente improcedente) consiste na averiguação da bondade da condenação feita pelas instâncias quanto à “privação de uso” do prédio rústico em relação aos proprietários, após a extinção do comodato.

A divisão que o tema apresenta na instância decisória do STJ, e a evolução que essa mesma divisão (pelo menos três correntes se podem hoje configurar, incluindo nelas a procura de eclectismo de compromisso) denuncia, justificam que se apresente com algum detalhe as razões do voto de Vencido e a posição a que essas mesmas razões conduzem, vertida na decisão do caso em sede de revista.

2. O dano da “privação de uso” resulta da impossibilidade temporária de usar e fruir de um bem-“coisa”, objecto do direito de propriedade ou de um direito real ou pessoal de gozo, pelo facto de o seu titular ter ficar dele privado (sem substituição por outro, uma vez que não se recorreu a, nem foi fornecido, um sucedâneo) por actuação de outrem e, com isso, ter-se gerado na sua esfera jurídica os inconvenientes dessa impossibilidade de uso e fruição. Esta impossibilidade radica-se na violação de um direito, ou em incumprimento contratual, que se precipita no impedimento de utilização de um bem integrante do património do titular afectado e que foi objecto da ofensa-lesão.

Tendo em conta as prescrições que se devem atender, a saber, os arts. 562º e 564º, 1, do CCiv., teremos que ser restritivos e qualificadores quando pretendemos autonomizar esse prejuízo tendo em vista a sua compensação: o dano só é susceptível de ser indemnizado quando se concretiza em perda das vantagens concretas e determinadas que o gozo da coisa proporciona, ocorrida depois do evento lesivo. Não se basta com a perturbação (ainda que ilícita) das possibilidade(s) abstracta(s) (ou hipotética(s)) de uso ou utilização que resultam para o proprietário, titular de direito ou detentor, enquanto faculdades jurídicas secundárias inerentes ao direito perturbado (no caso paradigmático da propriedade: ius utendi et fruendi, art. 1305º do CCiv.)[1], sem tradução numa determinada situação de perda e/ou ablação numa necessidade específica (neste sentido, um dano abstracto).

Só aquele dano real[2], visualizado na “privação de concretas vantagens de uso” (que se libertam da matriz dos direitos em que se baseiam) e não logo “a perturbação da faculdade de utilização que integra o direito “afectado”, é um dano patrimonial (susceptível de avaliação pecuniária), que, ao emergir com autonomia da ilicitude que se reconhece à ofensa directa do objecto do direito e à consequente subtracção da abstracta possibilidade de uso, se torna ressarcível – a privação em abstracto é fonte possível de dano mas não é ainda dano que se possa ressarcir[3].

Não obstante a controvérsia e a flutuação dos critérios jurisprudenciais – que, aliás, enquadram a divisão neste Colectivo –, os argumentos para esta delimitação – que não foi seguida pelo acórdão recorrido[4] – são deveras ponderosos:

— o dano separa-se e não se confunde com a ilicitude enquanto pressupostos para a indemnização por factos ilícitos (ou por incumprimento contratual, se for o caso);

— o dano, para ser indemnizável, e conduzir à obrigação de ressarcir (tornar indemne o lesado[5]), precisa de ser efectivo e não apenas ficcionado;

— o dano, para ser efectivo nesta situação, ainda que sendo temporário, tem que se consubstanciar em vantagens e/ou ganhos (investimento) que teriam podido ser fruídas e/ou obtidos mediante a disponibilidade material do bem de que se ficou privado – assim, de um “lucro cessante” normal[6] (art. 564º, 1, 2ª parte, CCiv.) – ou, num outro cenário também admissível, resultar da impossibilidade de aplicação do bem na satisfação imediata de necessidades do lesado sem outra alternativa (com diminuição patrimonial em relação ao estado existente no momento pré-evento danoso)  – neste contexto, de um verdadeiro “dano emergente” à luz da 1ª parte desse mesmo preceito do CCiv. (compreensão esta que se sustenta, com acuidade, por ex., nos Acs. do STJ de 27/4/2017[7], 18/9/2018[8], 30/4/2019[9] e, desenvolvidamente, 29/10/2020[10]);

— o princípio da proibição do enriquecimento sem causa do lesado por força do facto lesivo obsta a que se atribua uma indemnização em dinheiro superior aos prejuízos reais (como seria a hipótese de indemnizar quem se vê afectado na utilização mas nunca utilizaria em concreto o bem ou logrou a substituição por outro bem sucedâneo), o que naturalmente suporta a “justiça prática dos resultados”;

— abona, para esta posição, a distinção que, em “lugares paralelos” (de regulação) pertinentes, deve ser feita e defendida entre “possibilidade” ou “faculdade abstracta de fruição”, “autorização de utilização contida no direito temporário de gozo” e “concretas vantagens fácticas de uso”, sendo que relevam para ponderação “as vantagens de uso concretamente percebidas pelo devedor” – por ex., para o CCiv., arts. 289º (obrigação, após invalidação do negócio, de restituição das “vantagens proporcionadas pelo uso efectivamente realizado, e não as que resultariam de uma utilização possível”), 1270º-1271, 1 (em matéria de “frutos” na relação possuidor/proprietário, obrigação de restituição “apenas recai sobre o possuidor de má fé, e ainda assim apenas vai além dos frutos efectivamente percebidos, para abranger o ‘valor daqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido’, não por tal ter sido o ‘valor correspondente’ ao que foi recebido, mas por consideração pelos interesses do proprietário (credor da restituição), que poderia ser prejudicado caso o possuidor (o obrigado à restituição) que sabe que está a lesar o direito de outrem omitisse, por falta de diligência (ou dolo), a fruição da coisa”), e 473º, 1 e 2 (no enriquecimento sem causa, “a não consideração da utilização concreta que o credor da restituição faria resulta (…) de a medida de tal empobrecimento concreto não ser relevante para que o enriquecimento se possa dizer obtido ‘à custa de outrem’”; “olhando, porém, ao devedor da restituição, (…) este apenas fica obrigado na medida das vantagens de uso que obteve, e não da possibilidade de gozo de que dispôs”).[11]

Assim.

3. A indemnização deste dano só é de admitir e reconhecer se houver prova desse prejuízo patrimonial concreto, assente na perda das vantagens efectivas (desvantagens) de utilização (utilidades económicas e físicas do bem enquanto “ganho”), que eram susceptíveis de serem obtidas através de uma mobilização do bem-“coisa” de acordo com a sua função económico-material (no âmbito de um “lucro cessante”), ou da frustração da aplicação do bem na satisfação das necessidades a que se destina e que normalmente proporciona (no âmbito de um “dano emergente”).

Por outras palavras: o lesado terá direito a indemnização desde que alegue e que prove qual a concreta utilidade ou aproveitamento que pretendia extrair do bem e perdeu ou a concreta aplicação que queria retirar do bem e deixou de fazer, especificando e demonstrando o dano sofrido com a impossibilidade de utilização imputável ao evento lesivo e ao seu responsável – ainda, portanto, reconduzido às duas modalidades legais do dano patrimonial (art. 564º, 1, CCiv.).

Além do prejuízo nessa possibilidade concreta de uso, também a prova deve conduzir, nomeadamente quando a conexão seja de convocar no contexto de um “lucro cessante”, a que se demonstre, como momento preliminar, que tal possibilidade se corporizara em vontade real e efectiva para esse uso se concretizar (“vontade de uso”[12], como elemento subjectivo).

4. Mobilizado o acervo factual dado como assente pelas instâncias, tendo em vista aferir as consequências da falta de restituição do prédio comodatado a partir de 23/4/2018 – obrigação do comodatário: arts. 1135º, h), 1137º, CCiv.) –, verifica-se a propriedade dos Autores, a celebração do contrato de comodato e a sua extinção – factos provados 1. a 4. e 7.
Por sua vez, ficou provado que, “[n]um contexto de exploração das árvores de fruto existentes no prédio, o mesmo poderia ser arrendado por um valor não concretamente apurado mas nunca inferior a € 100,00/mês” (facto provado 12.).
No que interessa para o objecto deste recurso, vemos que, na petição inicial, os Autores alegaram que, se não estivessem privados sem justificação do prédio rústico após a extinção(-não renovação) do comodato, o poderiam arrendar a troco de uma certa remuneração mensal. Porém, não alegaram provar que, em primeiro lugar, tinham efectivamente a vontade concreta de arrendar o prédio e, em segundo lugar, tinham uma possibilidade concreta de dar em arrendamento o prédio (como se reconheceu nas sentença de 1.ª instância: “apesar de o autor ter referido, também em sede de declarações, que pretendia obter um rendimento de € 500,00/mês com o arrendamento do prédio, designadamente por pretender destiná-lo a alguma actividade (vg., armazenamento de materiais), o certo é que, apesar dessa afectação não ser inviável (a caracterização do prédio como terreno de cultura arvense de regadio não é necessariamente impeditiva dessa afectação)[,] nenhuma prova juntou nesse sentido (vg., um potencial candidato a esse tipo de arrendamento).” (Sublinhado nosso.)

Logo, de acordo com o sustentado, para o período posterior à extinção do comodato, os Autores não lograram provar os factos que configurassem dano resultante da afectação da possibilidade concreta e específica de uso do prédio após essa data, isto é, durante a mora de entrega do imóvel. Nem sequer se provou, sendo instrumental para a prova do facto complexo, a vontade ou propósito efectivo e real de uso do prédio para dele retirar utilidades ou satisfazer necessidades durante esse período, não obstante a recente aquisição da propriedade do prédio (cfr. facto provado 3.).

Ora, o STJ, na sua actuação judicativa, está vinculado aos factos apurados nas instâncias, sendo sua incumbência aplicar o direito a esses factos e não a quaisquer outros (arts. 674º, 3, 1ª parte, 682º, 1 e 2, CPC).

Não tendo sido feita essa prova, absolutamente crítica para o facto constitutivo do direito (ónus dos Autores: art. 342º, 1, CCiv.), não seria de proceder o pedido indemnizatório fundado na mera impossibilidade ou privação da possibilidade de uso decorrente dessa falta de restituição e numa vontade hipotética ou previsível de utilização do bem privado.

Termos em que seria de se infirmar o juízo das instâncias e dar como procedentes as Conclusões 12.ª a 14.ª e, em consequência, revogar a condenação do Réu no pedido feito sob 3., relativo à indemnização do dano da privação de uso.


É com base em todas estas razões que, salvaguardada a devida consideração, nomeadamente ao particular esforço dialéctico que o acórdão que aqui faz vencimento dirige à argumentação aqui aduzida, julgaria procedente a revista.

O Relator Vencido

(Ricardo Costa)

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[1] Aproveitemos a síntese de PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs. 586-588:

(i) esta possibilidade abstracta (embora referida a uma coisa determinada) “é logo inerente ao licere que constitui o “lado interno” dos direitos de domínio e não tem uma estrita vinculação temporal, na medida em que o direito de usar e fruir uma coisa (não deteriorada) pode ser exercido num momento posterior. Confere ao proprietário um ‘espaço de liberdade’, dependente na sua actualização da possibilidade e opção de uso. Os direitos de gozo fundamentam-se num título (normalmente um contrato) que molda decisivamente o seu âmbito e visa justamente proporcionar uma possibilidade de gozo, e por um período de tempo limitado, distinguindo-se daquela faculdade de utilização do proprietário (como é patente (…) quando está em causa a privação do uso, não pelo proprietário, mas (…) por um titular de um direito de gozo limitado no tempo)”;

(ii) as vantagens concretas do gozo da coisa “não se situam no plano do mero licere inerente à propriedade – como faculdade deôntica –, mas situam-se também no plano fáctico. Como concretizações dependentes de elementos subjectivos e contextuais, (…) autonomizam-se, quer do direito pessoal de gozo, por exemplo, de um locatário, quer daquele ius utendi et fruendi do proprietário em que se traduz a faculdade de utilização”.
[2] Em geral, apresentando-se in natura, o dano “(…) consistente na privação ou diminuição do gozo de bens, materiais ou espirituais, ou na sujeição a encargos ou na frustração da aquisição ou acréscimos de valores”: INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 375.
[3] PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual… cit., págs. 590, 591.
[4] V. o ponto VII. do Sumário: “A simples privação do imóvel reivindicado, dado que consubstancia uma restrição ilegítima do direito de propriedade, é susceptível de gerar o direito à indemnização, pelo que, mesmo não se provando que da ocupação indevida tenha resultado um concreto prejuízo para o seu proprietário, ainda assim este deve ser compensado monetariamente pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição, sendo o montante indemnizatório fixado, em última análise, com recurso à equidade”.
[5] RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações, FDUC, Coimbra, 1983, pág. 271.
[6] Na esteira do proposto por PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual… cit., pág. 590.
[7] Processo n.º 685/03.6TBPRG.G1.S1, Rel. HÉLDER ROQUE, in www.dgsi.pt (“(…) a questão da ressarcibilidade da «privação do uso» não pode ser apreciada e decidida, em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa, porquanto a privação do uso é uma realidade conceitual distinta e não coincide, necessariamente, com a privação da possibilidade do uso, sendo certo que a pessoa só se encontra, de facto, privada do uso de uma coisa, sofrendo, com isso, um prejuízo, se, realmente, a pretender usar e a utilizasse, caso não fosse a impossibilitada de dispor da mesma, enquanto que se não pretender usá-la, ainda que, também, o não possa fazer, já se está perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica no património do titular, e que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável. (…) Quer isto dizer que a mera privação do uso da mencionada parcela de terreno, independentemente da demonstração de factos reveladores de um dano específico emergente ou de um lucro cessante, é insuscetível de fundar a obrigação de indemnização, no quadro da responsabilidade civil.”; sublinhado nosso).
[8] Processo n.º 108/13.2TBPHN.C1.S1, Rel. JOSÉ RAÍNHO, in www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 1226/15.8T8ALM.L1.S1, Rel. OLINDO GERALDES, in www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 515/04.1TBGDM.P1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt (“(…) a privação do uso e fruição de um bem sofrida pelo seu titular ou detentor em consequência de um facto ilícito de outrem exprime o próprio evento danoso concretizável na sua projeção consequencial sobre o património do lesado. Esta privação consistirá, desde logo, na supressão da disponibilidade material do bem e, consequentemente, na frustração do aproveitamento das utilidades económicas do mesmo, por parte do lesado, durante o tempo em que perdurar a privação, o que se traduz numa diminuição temporária do desfrute de um elemento patrimonial. Tal privação assumirá assim, objetivamente, os contornos de um dano primário – dano-evento –, independentemente dos múltiplos danos secundários consequenciais que daquele derivem. O valor económico dessa diminuição corresponderá ao valor dos aproveitamentos que o lesado deixou de ter e que eram suscetíveis de ser obtidos através de uma aplicação do bem segundo a sua função económica normal aferida pelo contexto de vida ou atividade do lesado. É certo que o lesado poderá, na maioria das situações, suprir a falta desses aproveitamentos, recorrendo a bens substitutivos, casos em que o dano corresponderá, em princípio, ao valor das despesas de substituição.  Mas pode bem suceder que o não possa ou não queira fazer, seja porque não possui disponibilidades financeiras para o efeito, seja porque não encontra um bem que satisfaça as necessidades goradas, ou mesmo por qualquer outra razão objetiva ou meramente subjetiva. Em qualquer destes casos, o titular do bem não deixará, por isso, de sofrer a falta do aproveitamento económico na utilização do bem patrimonial objeto da violação durante o período da privação. Esta falta de aproveitamento tanto pode consistir na mera frustração da aplicação direta do bem à satisfação imediata das necessidades goradas, como ainda alcançar os ganhos que poderia obter através da disponibilidade material do bem de que ficou privado, em particular, quando se trate de bens de investimento. Na primeira hipótese, estaremos perante um dano emergente; na segunda, perante a frustração de lucros cessantes.  Nesta perspetiva, o dano ocorrerá logo que à privação corresponda a falta de aproveitamento económico do bem, em qualquer das suas dimensões, por parte do seu titular ou detentor.”; sublinhado nosso).
[11] V. PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual… cit., págs. 568 e ss, em esp. 586 e ss, reproduzido depois em “Dano da privação do uso”, Responsabilidade civil. Cinquenta anos em Portugal, quinze anos no Brasil, Volume II, Coord.: Mafalda Miranda Barbosa/Francisco Muniz, Instituto Jurídico/FDUC, Coimbra, 2018, págs. 213 e ss, nomeadamente 226 e ss – que seguimos, e transcrevemos passagens, no fundamental da argumentação (para os “lugares paralelos”, cfr., respectivamente, nts. 1690-1691 – págs. 588 e ss, e nts. 55-56 – págs. 228 e ss; com posição distinta sobre o reflexo dessas “situações paralelas”: ABRANTES GERALDES, Temas da responsabilidade civil, Vol. I, Indemnização do dano da privação do uso, 2.ª ed., 2005, págs. 18 e ss); concordante: MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de responsabilidade civil, Principia, Cascais, 2017, págs. 338-339.
[12] PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual… cit., págs. 577, 590, 591.

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[1] Não estamos a falar daquelas situações em que, por ex., perante a privação do uso, o lesado recorre a um sucedâneo e em que, então, a privação do uso se reflete no património do lesado: o dano emergente decorrente das despesas com o sucedâneo.
[2] Favoráveis (só no STJ) à indemnização pela privação do uso, com fundamento na simples privação do uso normal do bem: Acórdãos do STJ de 05/07/2007, de 06/05/2008, 08/10/2009, de 24/04/2010, de 12/01/2010, de 28/09/2011, de 11/03/2013, de 08/05/2013, de 05/07/2018 e de 25/09/2018
Favoráveis (só no STJ) à indemnização pela privação do uso, mas exigindo a prova da desvantagem resultante da privação do uso: Acórdãos do STJ de 18/11/2008, de 16/03/2011, de 12/01/2012, de 04/05/2010, de 06/11/2008 e de 27/04/2017.
[3] Direito das Obrigações, pág. 301 e ss..
[4] Temas da responsabilidade civil, I, Indemnização do dano da privação do uso
[5] O dano da privação do uso, in Revista de Direito e Economia.
[6] Abrantes Geraldes, local citado, pág. 57/8.
[7] Direito Civil, Estudos, Dano da Privação de uso, pág. 671 e ss; e Interesse Contratual Negativo, pág. 590 e 594/6.
[8] Em idêntico sentido, Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Ilicitude e o Dano, in Novos Desafios da Responsabilidade Civil, pág. 231 e ss..
[9] Local citado, pág. 707/8.
[10] Como já referimos, não estamos, no “dano da privação do uso”, a falar daquelas situações em que o lesado recorre a um sucedâneo, isto é, se, por exemplo, na sequência de estragos causados num veículo automóvel, o lesado tem despesas com o aluguer dum veículo de substituição, mesmo sem recurso à figura do “dano de privação do uso”, aquele dano subsequente (as despesas com o aluguer dum veículo de substituição) será indemnizável.
[11] “Temas de Responsabilidade Civil”, I Vol., António Abrantes Geraldes, pág. 54.

[12] Embora, como se observa na sentença da 1.ª Instância, estando em causa um terreno que os AA. adquiriram, quando o mesmo estava no final do prazo do contrato de comodato, seja razoável concluir – ou seja, dar como provado por presunção – que “o compraram para, efetivamente, lhe darem uso”.
[13] Pires de lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 4ª ed., Vol. 1º, p. 501.