Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
640/11.2TBCMN-B.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO DA INSOLVÊNCIA
DÍVIDA DA MASSA INSOLVENTE
DIREITO DE RETENÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO A FAVOR DA MASSA
CASO JULGADO
REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: 1
Data do Acordão: 10/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - INSOLVÊNCIA / MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / CASO JULGADO ( EFEITOS ).
Doutrina:
- “Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas” Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129.
- “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, 2.ª edição, 2013, 303/305.
- Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado Em Processo Civil, 109/110.
- Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da Massa Insolvente, 2008, 41.
- José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. 3.º, tomo I, 2.ª edição, 42, 1157/163.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 311/314.
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5.ª edição, 210.
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 2.ª edição, 1997, 408/412, 467.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 433.º, 434.º, N.º1, 442.º, 755º, Nº1, ALÍNEA F).
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 46.º, N.ºS1 E 2, 47.º, N.ºS 1, 2 E 4, ALÍNEA A), 51.º, 120.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 607.º, 619.º, N.º1, 621.º, 635.º, N.º5, 671.º, 674.º, N.ºS 1 E 3, 782.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 2.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 6 DE MAIO DE 2004, 7 DE ABRIL DE 2005, 18 DE MAIO DE 2011, DE 23 DE FEVEREIRO DE 2012, DE 15 DE NOVEMBRO DE 2012, IN WWW.DGSI.PT , E DE 24 DE FEVEREIRO DE 2015, PROCESSO N.º 427/12.5TBCHV.P1.S1, IN SASTJ, SITE DO STJ.
-DE 26 DE OUTUBRO DE 2010 E DE 8 DE OUTUBRO DE 2013, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I Preceitua o artigo 47º, nº1 do CIRE que «Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantido por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.».

II Acrescenta o seu nº2 que «Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.».

III Por seu turno o nº4 enumera-nos as categorias de créditos relevantes nesta sede insolvencial, do seguinte modo, embora sem qualquer ordem de prevalência.

IV No que tange às dívidas da massa insolvente são as mesmas enumeradas no artigo 51º, nº1, nas suas várias alíneas, embora sem carácter taxativo.

V Esta diferenciação é de extrema importância, tendo em atenção o disposto no artigo 46º, nº1 do CIRE, pois «A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.», o que significa que as dividas da massa insolvente são pagas com precipuicidade, de onde se conclui que os créditos sobre a insolvência, seja qual for a respectiva categoria, são preteridos no confronto com aqueles.

VI O crédito reclamado pela Credora provém da declaração de resolução judicial de um contrato promessa havido com a Insolvente, resolução essa que não poderia ser desconsiderada pelo AI, quando usou do expediente aludido no artigo 120º do CIRE, , uma vez que não se pode resolver o que resolvido já se encontra: seria um absurdo jurídico,  sendo o caso julgado um ponto em que o binómio dialéctico justiça-segurança cede em favor da segurança e o caso julgado para além da sua eficácia inter partes, pode atingir terceiros, quer através da sua eficácia reflexa, quer através da sua extensão àqueles.

VII A quantia reclamada constitui um crédito privilegiado da insolvência, de harmonia com o disposto no artigo 47º, nºs 1, 2 e 4, alínea a) do CIRE, por o mesmo gozar de direito de retenção, nos termos do preceituado no artigo 755º, nº1, alínea f) do CCivil, nos precisos termos em que tal lhe foi reconhecido pela sentença judicial que operou a resolução do contrato promessa pelo que deveria, no rigor das coisas, obter pagamento pelo valor dos bens objecto daquele privilégio, logo após o pagamento das dividas da massa insolvente, as quais sairão precípuas de harmonia com o preceituado no artigo 51º do CIRE.

VIII Todavia, não se poderá dar total cumprimento ao que decidido ficou naquela decisão judicial que decidiu a resolução do contrato promessa, por a tal se opor o instituto da proibição da reformatio in pejus consagrado no artigo 635º, nº5 do NCPCivil, o qual impede que se venha a condenar a parte em montante superior ao que havia sido condenada pois na espécie a Reclamante não se insurgiu quanto ao montante do crédito que veio a ser reconhecido, correspondente apenas ao sinal em singelo de € 1.075.000,00.

IX Tal crédito deverá ser graduado como privilegiado, dando-se-lhe pagamento pelo valor dos bens objecto daquele privilégio, logo após o pagamento das dividas da massa insolvente, as quais sairão precípuas nos termos do artigo 51º do CIRE.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I Nos autos de Insolvência de L, SA, o Sr. Administrador da Insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o artigo 129º do CIRE, tendo a credora V, SA deduzido impugnação à mesma.

 

Esta credora, V, SA, impugnou a lista definitiva da relação de créditos reconhecidos com fundamento, não no valor do crédito, mas na sua incorrecta qualificação, alegando que o mesmo não tem a natureza de subordinado, tratando-se antes de crédito garantido, tendo por base o direito de retenção que lhe foi reconhecido por sentença transitada em julgado e assim qualificado como tal, pelo A.I., na lista provisória da relação de créditos.

Na resposta, o Sr. Administrador manteve o reconhecimento do crédito da impugnante como subordinado, considerando não poder classificá-lo como garantido, com fundamento em ser seu entendimento ter existido má-fé na celebração do contrato-promessa que esteve na origem do dito crédito porque:

- Não se verificou qualquer transacção financeira; não terem a impugnante, a insolvente, nem o ROC enviado ao A.I., a certificação de contas relativas aos anos em que terá ocorrido a transacção;

- E baseando-se nas especiais relações entre as duas empresas efectuou resolução de tal contrato em benefício da massa insolvente, que considera não poder ser invalidado pelo facto do contrato–promessa ter sido anteriormente resolvido por sentença judicial;

- Não reconhece a existência de direito de retenção em benefício da impugnante.

A credora C, com a actual denominação de Banco…, também respondeu à impugnação deduzida, na qualidade de presidente da comissão de credores.

Alegou assistir razão ao A.I., por ter qualificado o crédito da impugnante como “subordinado”, na lista definitiva da relação de créditos reconhecidos. Alega ainda, em síntese, considerar que o A.I. chegou ao conhecimento de factos que implicavam uma alteração da dita qualificação do crédito, entre eles: ter o entendimento de que a credora V, SA não podia desconhecer a situação económica e financeira da insolvente à data da celebração do contrato-promessa, desde logo por terem insolvente e impugnante, sede no mesmo local nessa data; não ter a impugnante V, SA demonstrado ter sido efectivamente realizado o pagamento do montante do sinal (do contrato-promessa) ou se se tratou de negócio simulado.

Posteriormente foi proferida sentença que julgando improcedente a impugnação deduzida pela credora V, SA, qualificou o seu crédito como crédito comum.  

Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso as credoras Banco… e V, SA, tendo a final sido proferido Acórdão a julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Recorrente Banco… e procedente a apelação interposta pela Recorrente V e, em consequência, anular a decisão recorrida, quanto à qualificação e graduação do crédito desta Recorrente, determinando-se que tal crédito, enquanto dívida da massa insolvente, enumerada no artigo 5.º, do CIRE, fosse paga com prioridade sobre os demais créditos graduados, mantendo-se no mais o decidido.

Deste Aresto recorreu Banco…, apresentando as seguintes conclusões:

- O Acórdão em recurso não só desatendeu a pretensão da recorrente no que respeita à qualificação do crédito da recorrida como subordinado, como alterou a decisão de primeira instância, considerando o referido crédito como dívida da massa insolvente e não como um crédito sobre a insolvência, de natureza comum.

- Ora, reconstituindo sumariamente o histórico do processo, constata-se que foram dados como provados em primeira instância os seguintes factos:

- Em 10 de Janeiro de 2010 foi celebrado entre a recorrida V, SA, e a sociedade L um contrato-promessa de compra e venda com tradição da posse da promitente vendedora para a promitente compradora;

- Tal contrato foi objecto de acção judicial onde era alegado o incumprimento do contrato por parte da L e foi declarada, por sentença transitada em julgado em 11 de Julho de 2011, o reconhecimento da resolução do referido contrato, condenando-se a Ré à restituição do sinal em dobro e ao valor da cláusula penal estipulada de € 500,00 diários até ao pagamento dos valores devidos e sendo ainda declarado o direito de retenção sobre os prédios prometidos vender;

- A referida acção não foi contestada pela L;

- A recorrida V, SA entregou à L o pagamento do valor do sinal, no montante de € 1.075.000,00;

- A sociedade L foi declarada insolvente por sentença de 04 de Janeiro de 2012;

- O Administrador de Insolvência efectuou a resolução do contrato-promessa supra referido por carta datada de 24 de Fevereiro de 2012 fundamentando a sua decisão nos artigos 120º nºs 1, 2, 4 e 5 alíneas a) e b) e 121º alíneas a) e b}, do CIRE.

- Contrariamente à posição defendida pelo Sr. Administrador de Insolvência, que havia considerado o acto gratuito por constatar que o valor do sinal previsto no contrato-promessa não estava reflectido nos movimentos financeiros da Insolvente L, considerou a sentença recorrida que o mesmo foi efectivamente pago, na quantia de € 22.000,00 em cheque sacado sobre conta do Banco X titulada pela A SA, anterior designação da V, sendo o restante valor do sinal (€ 1.053.000,00) sido satisfeito por encontro de contas, em conta corrente entre as contraentes, sustentado em contratos de cessão de créditos, um celebrado em 07 de Julho de 2009 com a empresa F, e outro celebrado com a N em 03 de Novembro de 2009.

- Não obstante a prova produzida em audiência de discussão e julgamento no sentido de não haver convergência entre os valores contratualmente plasmados e os referenciados na contabilidade da L, considerou o acórdão em recurso não ser possível concluir pela inexistência de tais créditos, sendo dado como provado que a credora V realizou a “efectiva entrega à Insolvente, do pagamento do valor do sinal acordado no dito contrato, no montante de € 1075.000,00.”.

- Veio então a recorrida sustentar que ao graduar o referido crédito como comum por não integrar nenhuma das restantes classes de créditos, a sentença recorrida enferma de nulidade por aplicação do artigo 126º do CIRE, constituindo o mencionado montante dívida da massa insolvente e não dívida sobre a insolvente, o que teria como consequência o seu pagamento com prioridade sobre os demais créditos graduados.

- Na verdade, determina o artigo 126º do CIRE que a resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação anterior à prática do ato resolvido, impondo-se a obrigação de restituir, mas com as limitações decorrentes dos números subsequentes.

- Conclui o Acórdão em recurso que assiste à recorrida o direito a que a massa insolvente lhe restitua a quantia paga a título de sinal em decorrência do contrato-promessa em referencia supra, constituindo o direito traduzido no reembolso do que pagou à insolvente, face ao consagrado nos

nºs 4 e 5 do artigo 126º do CIRE, uma dívida da massa insolvente.

- A questão que se pretende ver decidida por esse Venerando Tribunal consubstancia-se precisamente na interpretação dos referidos preceitos legais, no sentido de determinar se é possível a identificação e separação da prestação, bem como a determinação do real enriquecimento da massa insolvente.

- Na realidade, os nºs 4 e 5 do artigo 126º do CIRE estabelecem o regime da obrigação de restituição a cargo da massa insolvente em termos distintos consoante o objecto da prestação do credor possa ou não ser identificado e separado dos bens da massa.

- Se a identificação e separação forem possíveis deve o objecto ser restituído ao terceiro e, em caso contrário, deve ser restituído o valor correspondente, seguindo esta restituição regimes diferentes consoante haja ou não enriquecimento da massa.

- Constitui dívida da massa insolvente a parte do valor que represente enriquecimento da massa, constituindo o remanescente, caso exista, dívida da insolvência.

- A preocupação do legislador traduz-se em proteger o terceiro quanto ao que constitua enriquecimento da massa, respondendo esta só na medida em que tenha enriquecido. - Concretizando o caso em apreço, temos que o Sr, Administrador de Insolvência resolveu o contrato-promessa identificado supra, importando determinar se e em que medida, de tal resolução, adveio enriquecimento para a massa insolvente da L.

- Na verdade, resulta da matéria provada em primeira instancia e inexplicavelmente acolhida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que não obstante reconhecer como evidente e manifesta a “promiscuidade” existente entre as empresas envolvidas, valida como assente que a recorrida pagou o valor do sinal estipulado no contrato-promessa de compra e venda, no valor de € 1,075,000,00.

- Sendo tal sinal pago através de um cheque de € 22,000,00, depositado na conta da L no dia 1 de Julho de 2010, acrescido do valor de € 1,053,000,00 por encontro de contas, em conta corrente entre as contraentes, designadamente pelo crédito que a V alegadamente possuía sobre a L.

- O alegado crédito da V sobre a L resultou de contratos de cessão de créditos supostamente celebrados por aquela sociedade com a N e a F, em que estas terão cedido àquela os respectivos créditos sobre a ora insolvente.

- A resolução, operada pelo Sr Administrador da Insolvência, do contrato-promessa de compra e venda, tendo efeitos retroactivos e obrigando à reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, determina então a restituição à V do valor de € 22000,00 recebido pela L através de cheque, mas igualmente determina a anulação do encontro de contas efectuado no âmbito do referido contrato-promessa, reconstituindo-se, dessa forma, o alegado crédito no valor de € 1.053.000,00 da V sobre a L.

- Admitindo-se que o valor relativo ao cheque de € 22.000,00, pela sua natureza fungível e não obstante ter sido depositado a favor da L apenas seis meses após a respectiva emissão, tenha integrado o património da insolvente e, indirectamente, o património da massa, constituindo, dessa forma, enriquecimento desta, já não se pode admitir a utilização de igual raciocínio quanto ao encontro de contas entre a V e a L resultante da celebração do contrato-promessa resolvido e que, alegadamente, terá concorrido para satisfazer o pagamento do sinal a ser devolvido em singelo.

- Um encontro de contas não pode, de forma alguma, consubstanciar enriquecimento para qualquer das partes nele envolvidas, uma vez que, literalmente, com o encontro de contas pretende-se saldar, por via da compensação, dívidas iguais e recíprocas entre duas entidades, pelo que a anulação do encontro de contas operado em resultado da resolução do contrato-promessa de compra e venda - reconstituindo o alegado crédito da V sobre a ora insolvente - não pode representar um enriquecimento da insolvente e, por maioria de razão, muito menos um enriquecimento da massa.

- Renascendo no âmbito da insolvência o crédito que alegadamente a V passou a deter sobre a Larinfesta em virtude dos contratos de cessão de créditos que celebrou com a N e a F, aquele crédito - mesmo sendo evidente a “promiscuidade” entre essas empresas - não poderá nunca ser uma dívida da massa insolvente e, como tal, não poderá ser pago com prioridade sobre os demais créditos graduados.

- Efectivamente, se assim não fosse, com a celebração de um contrato-promessa de compra e venda considerado prejudicial à massa insolvente por sentença transitada em julgado, a V lograria transformar, por via da resolução desse contrato - pasme-se - em benefício da massa, um alegado crédito sobre a insolvente sem quaisquer perspectivas de recuperação (atente-se no preço supostamente pago pela cedência dos créditos da N e da F) num crédito recuperável com prioridade sobre os demais créditos graduados.

- O que estaria em clara contradição com o espírito do legislador que, com o referido instituto jurídico, pretendeu assegurar que tudo aquilo que representasse subtracção de activos à massa insolvente a ratear por todos os credores do insolvente àquela regressasse de forma a ser atacada de forma concursal entre estes.

- De facto, a intenção do legislador é que o terceiro retome a posição em que se encontrava antes da celebração do negócio que é resolvido e não a de beneficiá-lo com a entrega de valores que ele próprio não realizou, razão porque se privilegia a restituição in natura apenas a afastando quando a segregação do património da massa não é possível por o bem em causa nele se ter confundido.

- No caso em apreço é inequívoco que o encontro de contas não traduz qualquer enriquecimento da massa insolvente à data da declaração de insolvência, não podendo integrar o conceito de dívida da massa insolvente previsto no nº 5 do artigo 126º do CIRE.

- A interpretação desta norma nos termos em que é feita pelo Tribunal da Relação de Guimarães contraria a ratio do instituto da resolução previsto nos artigos 120º e 121º do CIRE.

- Violou, assim, o acórdão recorrido os artigos 47º alínea c), 51º, 120º, 126º, nºs 4 e 5 e 176º do CIRE

Nas contra alegações a Recorrida pugna pela manutenção do julgado.

II A questão suscitada em sede recursiva é a de saber se o crédito reclamado pela Credora Reclamante V SA, se se trata de um crédito da insolvência – e a consequente divida que lhe corresponde - ou de uma dívida da massa insolvente.

As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

1. Datado de 10/01/2010 foi celebrado o denominado “contrato promessa de compra e venda de imóveis”, entre a credora “V, SA” e a “L, SA”, relativa a 9 prédios pertencentes à “L”, identificados em tal contrato. (alínea a) dos factos assentes)

2. A sociedade “L, SA.”, apresentou-se à insolvência em 30.12.2011 e a sentença da declaração de insolvência foi proferida em 04.01.2012, transitada em julgado em 24.01.2012.

3. Relativamente a tal contrato correu termos o processo nº. …, do 1.º Juízo da comarca de …, que a insolvente “L” não contestou, na qual foi proferida sentença em 11.07.2011, transitada em julgado em 30.09.2011, que declarou tal contrato promessa resolvido, determinando que os prédios em questão se mantivessem na titularidade da promitente compradora “V”, tal como condenou a “L, SA”, a restituir à “Vista Vertical Serviços SA”, “o valor € 2.150.000,00 (dois milhões, cento e cinquenta mil euros) a título de sinal em dobro”. (alínea b) dos factos assentes)

4. A credora V entregou à insolvente o pagamento do valor do sinal acordado no dito contrato, de € 1.075.000,00.

5. Por carta datada de 24.02.2012, o AI efectuou a resolução a favor da massa insolvente, do contrato promessa datado de 10.01.2010, celebrado entre a aqui impugnante “V, SA” e a insolvente “L, SA”, tal como apreendeu para a massa insolvente os prédios, objecto de tal contrato, conforme auto de arrolamento datado de 10.05.2012. (alínea c) dos factos assentes)

6. O AI fundamentou o acto de resolução no disposto nos artigos 120º nºs 1, 2, 4 e 5 al) b) e 121º al) b) do CIRE, alegando, essencialmente:

a) Tratar-se de um contrato gratuito "dissimulado" inexistindo movimento financeiro nas contas bancárias da insolvente; b) Haver má-fé da Autora (impugnante), que conhecia, aquando da negócio, que a promitente vendedora se encontrava em situação de insolvência ou de insolvência iminente;

c) Que a ora Autora (impugnante), conhecia que, com o negócio, prejudicava terceiros, o qual punha em causa a satisfação dos credores da insolvência;

d) Haver ou ter havido relação especial, de grupo ou de domínio, entre as duas sociedades (Autora e insolvente). (alínea d) dos factos assentes)

7. Até 19.06.2008, as duas sociedades, tiveram um administrador comum, Manuel Joaquim da Silva Alves. (artigo 3.º da base instrutória)

8. O administrador único da credora, Serafim Lopes, foi nomeado em 2008, acto registado na Conservatória do Registo Comercial de … desde 19.06.2008. (artigo 8.º da base instrutória)

9. Sendo pessoa estranha à sociedade insolvente. (artigo 9.º da base instrutória)

10. Os órgãos sociais de uma e de outra sociedade, nomeadamente a administração, são totalmente distintos. (artigo 7.º da base instrutória)

11. Foi alterada a sede social da credora “V, S.A.”, por unanimidade, em deliberação de assembleia de sócios, pela “acta numero catorze”, datada de 7.04.2009, para a Av. …. (corrigida na “acta numero vinte” datada de 2.03.2012, para o n.º 88). (artigo 2.º da base instrutória)

12. Foi registada em 27.05.2010, a sede social da V, que se situa na Av. …. (artigo 2.º e 10.º da base instrutória)

13. Foi registada em 26.05.2010, a alteração da sede social da sociedade “L SA”, da Avenida …, para a Rua ….

14. À data da celebração do aludido “contrato promessa de compra e venda” - 10 de Janeiro de 2010 –a identificada credora “V, SA” tinha Sede registada, na Rua …, e a “L, SA”, tinha Sede registada na Avenida ….

15. A “L, SA”, foi constituída e registada em 29.01.1996, com o objecto social de “compra, venda e revenda de propriedades e promoção de empreendimentos turísticos e imobiliários”.

16. A “V, SA” foi constituída e registada em 17.06.2008, com o objecto social de “compra, venda e aluguer de equipamentos para a construção, engenharia civil e obras públicas. Comercialização, fornecimento, montagem, manutenção e reparações gerais de equipamentos. Compra e venda de materiais para a construção civil. Compra, venda e revenda de propriedades e promoção de empreendimentos turísticos e imobiliários. Gestão e administração de imóveis, aquisição de terrenos, construção e constituição de loteamentos, urbanizações e propriedades horizontais e a sua revenda no todo ou em parte. Actividades e serviços de contabilidade, gestão e apoio administrativo a empresas e particulares e serviços conexos. Consultoria para os negócios e gestão.”, tendo ocorrido alteração da firma que desde 06.07.2006 existia como “A, S.A.”, com o objecto social de “Captação, tratamento e distribuição de águas; recolha e tratamento de águas residuais”.

17. A “V, SA” celebrou em 30.12.2009, com R N, o denominado “contrato de compra e venda” de imóvel, destinado a revenda.

Factos não provados

a) Que à data da celebração do aludido “contrato promessa de compra e venda” -10 de Janeiro de 2010 – a identificada credora V e a Insolvente tinham Sede no mesmo local, isto é, na Rua …. (artigo 1.º da base instrutória).

b) Que a credora V jamais fez à insolvente o pagamento do valor do sinal acordado no dito contrato, isto é, €1.075.000,00. (artigo 4.º da base instrutória)

c) Que, relativamente às duas sociedades, nenhuma delas foi criada com capital de que qualquer delas fosse ou seja directa ou indirectamente a única titular. (artigo 5.º da base instrutória)

d) Que nenhuma das sociedades tem na outra participação maioritária de capital ou mais de metade dos votos ou qualquer direito ou possibilidade de designar órgãos de administração ou de fiscalização. (artigo 6.º da base instrutória)

e) Que a V liquidou, pagou ou obteve o reconhecimento da isenção de IMT, previamente à invocada tradição dos imóveis objecto do contrato promessa de compra e venda alegadamente celebrado com a insolvente e resolvido pelo Senhor AI. (artigo 11.º da base instrutória - reclamação).

Vejamos.

Insurge-se o Recorrente contra o Acórdão impugnado, porquanto contrariamente à posição defendida pelo Sr. Administrador de Insolvência, que havia considerado o acto gratuito por constatar que o valor do sinal previsto no contrato-promessa não estava reflectido nos movimentos financeiros da Insolvente L, considerou a sentença recorrida que o mesmo foi efectivamente pago, na quantia de € 22.000,00 em cheque sacado sobre conta do Banco BPI titulada pela A, SA, anterior designação da V, sendo o restante valor do sinal (€ 1.053.000,00) sido satisfeito por encontro de contas, em conta corrente entre as contraentes, sustentado em contratos de cessão de créditos, um celebrado em 07 de Julho de 2009 com a empresa F, e outro celebrado com a N em 03 de Novembro de 2009 e não obstante a prova produzida em audiência de discussão e julgamento no sentido de não haver convergência entre os valores contratualmente plasmados e os referenciados na contabilidade da L, considerou o acórdão em recurso não ser possível concluir pela inexistência de tais créditos, sendo dado como provado que a credora V realizou a “efectiva entrega à Insolvente, do pagamento do valor do sinal acordado no dito contrato, no montante de € 1075.000,00.”.

Em primeiro lugar, parece resultar das conclusões de recurso que o Recorrente pretende «desmontar», no seu alegatório, a construção factual apurada em primeiro grau e confirmada em sede de recurso sobre a matéria de facto, que oportunamente interpôs para a Relação, por forma a alterar a subsunção jurídica efectuada, reconduzindo a qualificação do crédito da Recorrida V, a um mero encontro de contas, pretendendo, desta sorte, qualificá-lo como crédito subordinado, na senda do preconizado pelo AI, na lista definitiva da relação de créditos impugnada, na oportunidade, pela aqui Recorrida.

 

Nesta sequência, somos forçados a relembrar que este Supremo Tribunal é um Tribunal de Revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias, nº1 do artigo 674º do NCPCivil, sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este Tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no nº3 do artigo 674º do CPCivil, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, cfr José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, tomo I, 2ª edição, 162/163; inter alia os Ac STJ de 6 de Maio de 2004 (Relator Araújo de Barros), 7 de Abril de 2005 (Relator Salvador da Costa), 18 de Maio de 2011 (Relator Pereira Rodrigues), de 23 de Fevereiro de 2012 (Távora Victor), de 15 de Novembro de 2012 da ora Relatora, in www.dgsi.pt e de 24 de Fevereiro de 2015, deste mesmo colectivo, proferido no PROC 427/12.5TBCHV.P1.S1, in SASTJ, site do STJ.

 A Revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objecto, em termos genéricos situações excepcionais, ou seja quando o Tribunal recorrido tenha dado como provado determinado facto sem que se tenha realizado a prova que, segundo a Lei, seja indispensável para demonstrar a sua existência; o Tribunal recorrido tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no sistema jurídico; e ainda, quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada ou ocorram contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no artigo 782º, nº3 do NCPCivil.

Decorre do disposto no artigo 607º do NCPCivil que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do mesmo, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada, pelo contrário, os poderes correctivos que competem ao Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão da matéria de facto, circunscrevem-se em verificar se estes princípios legais foram, ou não, no caso concreto violados.

Daí que a parte que pretenda, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, censurar a decisão da matéria de facto feita nas instâncias só poderá fazê-lo – no rigor dos princípios - por referência à violação de tais regras e não também em relação à apreciação livre da prova, que não é sindicável por via de recurso para este Órgão Jurisdicional.

Ora, como deflui da matéria dada como provada e que não pode ser censurada por este Supremo Tribunal de Justiça, por não terem sido violados quaisquer normativos em sede de direito material probatório, foi celebrado um contrato promessa havido entre a Recorrida V, SA e a Insolvente L, SA, relativo a nove prédios pertencentes a esta, o qual veio a ser resolvido por sentença datada de 11 de Julho de 2011, transitada em julgado, ali se tendo determinado que os prédios em questão se mantivessem na titularidade da promitente compradora V e condenou a L, SA, aqui Insolvente, a restituir àquela “o valor € 2.150.000,00 (dois milhões, cento e cinquenta mil euros) a título de sinal em dobro”, uma vez que a credora V, SA, aqui Recorrente entregou o sinal acordado aquando da efectivação do aludido contrato promessa, no montante de € 1.075.000,00, cfr pontos 1., 3. e 4. dos factos assentes.

Apurou-se ainda, no que à economia da questão decidenda diz respeito, que o AI invocando o disposto nos artigos 120º nºs 1, 2, 4 e 5 alínea b) e 121º alínea b) do CIRE, por carta datada de 24 de Fevereiro de 2012, efectuou a resolução a favor da massa insolvente, do aludido contrato promessa, celebrado entre a Recorrida V, SA e a Insolvente, tal como apreendeu para a massa insolvente os prédios, objecto de tal contrato, conforme auto de arrolamento datado de 10 de Maio de 2012, cfr pontos 6. e 5. da matéria de facto assente.

Daqui decorre, com mediana clareza que não se poderá sufragar a pretensão do Recorrente quando enquadra a situação dos autos como um simples «acerto de contas», já que a divida de que se cura aqui é a decorrente da resolução de um contrato promessa em que houve entrega do pagamento do sinal acordado.

 

Saber se se trata de um crédito da insolvência – e a consequente divida que lhe corresponde - ou de uma dívida da massa insolvente, dependerá da qualificação jurídica do crédito reclamado nos autos pela Recorrida, tendo em atenção os respectivos conceitos que defluem nos normativos insertos nos artigos 47º e 51º do CIRE.

Analisemos então.

Preceitua o artigo 47º, nº1 do CIRE que «Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantido por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.».

Acrescenta o seu nº2 que «Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.».

Por seu turno o nº4 enumera-nos as categorias de créditos relevantes nesta sede insolvencial, do seguinte modo, embora sem qualquer ordem de prevalência «Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são: a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes; b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência; c) ‘Comuns’ os demais créditos.».

No que tange às dívidas da massa insolvente, são as mesmas enumeradas no artigo 51º, nº1, nas suas várias alíneas, embora sem carácter taxativo, como deflui inequivocamente da sua redacção, porquanto aí se lê o seguinte:

«Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código:

a) As custas do processo de insolvência;

b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores;

c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;

d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;

e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência;

f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração;

g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório;

h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes;

i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente;

j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93.º.»

Esta diferenciação é de extrema importância, já que como decorre do disposto no artigo 46º, nº1 do CIRE «A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.», o que significa que as dividas da massa insolvente são pagas como precipuicidade, de onde se conclui que os créditos sobre a insolvência, seja qual for a respectiva categoria, são preteridos no confronto com aqueles.

Daí não ser indiferente a qualificação do crédito reclamado pela Recorrida, o qual foi tido no Aresto sob censura como dívida da massa insolvente, enumerado no art. 51.º, do CIRE, aí se tendo ordenado o seu pagamento como prioridade sobre os demais créditos graduados, saindo o mesmo precípuo do produto da venda dos bens apreendidos, considerando-se que o mesmo estaria abrangido pelas alíneas c) e i) daquele normativo, pois proveio da resolução incondicional do contrato promessa havido entre a Recorrida V, SA e a Insolvente L, SA efectivada pelo AI, constituindo o sinal pago por aquela um enriquecimento sem causa da massa.

A fundamentação do Acórdão impugnado, neste conspectu, assentou na seguinte argumentação:

«(…)

B- Recurso de apelação interposto pela Recorrente V, S.A..

Invoca o Recorrente que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no art.º 615.º n.º 1 al. c), do Código de Processo Civil.

De acordo com esta disposição legal a sentença é nula quando os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou seja, entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.

Contudo, não deve confundir-se tal nulidade com o erro na de subsunção dos factos à norma jurídica: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade. 

Como fundamento e, em síntese, alega que no que diz respeito à qualificação do seu crédito, como crédito comum, por não integrar nenhuma das restantes classes de créditos, e assim deve ser graduado, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 47. ° e artigo 176.°, ambos do CIRE., não pode conformar-se com a decisão recorrida, pois que, conforme consta expressamente do art. 126°, nºs 4 e 5, do CIRE, “A restituição do objecto prestado pelo terceiro só tem lugar se o mesmo puder ser identificado e separado dos que pertencem à parte restante da massa” e, “caso a circunstância prevista no número anterior não se verifique, a obrigação de restituir o valor correspondente constitui divida da massa insolvente na medida do respectivo enriquecimento à data da declaração da insolvência, e divida da insolvência quanto ao eventual remanescente”. Assim sendo, em seu entender, o montante de 1.075.000,00 €, constitui dívida da massa insolvente e não dívida sobre a insolvente, devendo ser reconhecida nesses mesmos termos com as demais consequências legais.

Aliás, a própria decisão recorrida reconhece expressamente esse facto e, no entanto, quando toda a argumentação aí plasmada levaria a concluir forçosamente pelo reconhecimento do crédito da aqui recorrente como dívida sobre a massa insolvente, essa decisão, contrariando a sua própria fundamentação, decidiu de forma diversa, enfermando, assim, a decisão recorrida de uma causa de nulidade, decorrente da existência de uma contradição entre os seus fundamentos e a própria decisão, em conformidade com o que se dispõe no artigo 615, nº 1, al. c), do C.P.C..

De qualquer forma, e ainda que assim se não entenda, na sequência da resolução do negócio, inicia-se uma relação de liquidação, que visa uma liquidação adequada à própria finalidade normal do direito: o regresso ao estado económico jurídico anterior à frustração ou à alteração contratual e numa base quanto possível igualitária entre ambas as partes, remetendo o Código Civil para o regime da nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, razão pela qual, “deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, nos termos desse preceito”. 

E, assim sendo, sempre terá a Recorrente direito a que a Massa Insolvente lhe restitua a quantia paga a título de sinal, constituindo esse mesmo crédito, nos termos do disposto no art. 126° e 51 ° nº 1, alíneas c) e i), do CIRE, um crédito sobre a massa insolvente.

Ora, a propósito da questão suscitada refere-se na decisão recorrida o seguinte:

(…)

Uma vez que foi efectuada a resolução do contrato-promessa, importa atender nas consequências da mesma, uma vez que no caso concreto em particular, salvo melhor opinião, tais consequências vão contender com a extensão do crédito reconhecido.

Dispõe o artigo 126.º n.º1 do CIRE, que “A resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso.”

Em consequência, nas palavras de Maria do Rosário Epifânio “deve ser restituído o que houver sido prestado (em concordância aliás, com o regime geral da resolução previsto no Código Civil, no seu artigo 434.º), com as limitações do artigo 126.º” (do CIRE). Por seu lado, L. Carvalho Fernandes e João Labareda referem “Em face do que se consagra (…) no caso de o direito do terceiro se traduzir no reembolso do que pagou ao insolvente, estaremos, decerto, perante um crédito sobre a massa.” E mais á frente “Assim, sendo a aquisição a título oneroso, o terceiro tem de restituir tudo o que lhe tenha sido prestado pela insolvente, por força do regime geral de efeitos da insolvência contido no n.º 1 do artigo 126.º”. No caso concreto em análise, uma vez que se provou no ponto 4. dos factos provados, que a credora Vista Vertical realizou a efectiva entrega à insolvente, do pagamento do valor do sinal acordado no dito contrato, no montante de € 1.075.000,00, a resolução deste contrato-promessa em beneficio da massa insolvente, importa a reconstituição da situação que existiria se o contrato-promessa não tivesse sido celebrado ou seja importa a devolução em singelo, pela insolvente, do valor que lhe foi efectivamente entregue pela credora, por causa da celebração daquele contrato-promessa, que foi objecto da resolução em benefício da massa.

O mesmo raciocínio se aplicaria, caso não tivesse já ocorrido nos autos da insolvência, o auto de arrolamento operado pelo A.I. sobre os imóveis objecto mediato do contrato-promessa, de que tivesse havido traditio, se a credora tivesse ficado com os imóveis em seu poder, atentos os efeitos retroactivos da resolução em benefício da massa, deveria agora proceder à sua entrega, à insolvente.

Do que se trata, entenda-se, é da destruição dos efeitos do contrato-promessa, em obediência à verificação de qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, como se considera que no caso concreto ocorreu face à resolução incondicional levada a cabo pelo A.I. - embora se considere que com diferente fundamento do invocado, ocorreu antes a constituição pelo devedor de garantia real nos termos da alínea c), pois no caso o incumprimento do contrato-promessa que apenas á insolvente se deveu, levou ao reconhecimento pela sentença transitada, do direito de retenção a favor da credora impugnante -, independentemente do contrato-promessa encontrar-se resolvido por sentença transitada em julgado, como se provou no ponto 3. Assim é, uma vez que os efeitos da resolução em benefício da massa insolvente não ficam prejudicados pela existência daquela resolução transitada em julgado, operada de acordo com o regime de resolução do artigo 434.º do Código Civil, tendo em conta o regime especial da resolução em benefício da massa previsto para as insolvências, e desde logo face à maior abrangência desta resolução, equiparada inclusive aos efeitos da impugnação pauliana, (veja-se para tanto, o disposto no artigo 127.º do CIRE).

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda “Com efeito, no caso de resolução de actos onerosos do insolvente, resulta que a contraparte fica investida no direito de repetir o que prestou, estando, evidentemente, vinculada a devolver o que recebeu”, entendimento este, com o qual se concorda inteiramente.

Como tal, a retroactividade da resolução operada em benefício da massa restringe o crédito da credora impugnante ao montante de €1.075.000,00, que foi o valor efectivamente entregue pela credora “V, S.A.”, à insolvente, como resultou provado, e que deverá pois, ser devolvido (em singelo, sublinhe-se) pela insolvente, restituindo-o àquela credora, repondo-se deste modo a situação que existiria se não tivesse sido celebrado o contrato-promessa de compra e venda dos imóveis, entre aquelas sociedades.

Pelo exposto, verificando-se a existência de erro no valor do crédito da credora V reconhecido pelo A.I., deve corrigir-se o mesmo, passando a reconhecer-se o crédito da “V, S.A.” no valor de €1.075.000,00”.

(…)

“Concordando-se com o ensinamento explanado, e verificando-se, atentos os factos provados, que não estão preenchidos os requisitos previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 49.º, e do artigo 48.º do CIRE, não pode atribuir-se razão ao Sr. Administrador da Insolvência na qualificação do crédito reconhecido à credora impugnante V, S.A., como subordinado, considera-se pois que não tem tal qualificação.

Todavia, e porque o acto de resolução destruiu ab initio os efeitos do contrato-promessa de compra e venda, devendo repor-se a situação existente como se o mesmo não tivesse sido celebrado, consequentemente não pode reconhecer-se a existência do direito de retenção - que resultaria da sentença proferida no processo comum, mas que, bem se entenda, não produz efeitos no apenso da reclamação de créditos no processo de insolvência, desde logo, porque os credores da insolvência não foram partes naquele processo comum, e como tal sempre estariam impossibilitados de discordar daquela, vendo diminuídos desse modo, os direitos de defesa dos respectivos créditos – o que traz em consequência, improceder a pretensão da credora V no reconhecimento do seu crédito como garantido, como provisoriamente assim havia sido qualificado na lista provisória de créditos reconhecidos, atenta a noção de créditos garantidos que nos é dada pela alínea a) do n.º 4 do artigo 47.º do CIRE.

Como tal, o crédito da V apenas pode ser qualificado como crédito comum, por não integrar nenhuma das restantes classes de créditos, e assim deve ser graduado, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 47.º e artigo 176.º, ambos do CIRE”.

(…)

Aqui chegados, desde logo e com linear clareza se impõe sejam extraídas as seguintes conclusões: - Em primeiro lugar, como óbvia flui a conclusão de que a decisão recorrida enferma, efectivamente, da arguida nulidade, por existência de contradição entre os seus fundamentos e a própria decisão, ou seja, a decisão proferida não surge como decorrência lógica ou conclusão legítima decorrente das premissas contidas na sua fundamentação; 

- E, por outro lado, parece-nos também incontroverso, que crédito da Recorrente, como de resto assim se reconhece na decisão recorrida, constitui, de facto, uma dívida da massa insolvente e não, como aí se decidiu, um crédito sobre a insolvência.

Na verdade, e como referem L. Carvalho Fernandes e João Labareda, “se a identificação e a separação do objecto não forem possíveis, determina o nº 5 – do artigo 126, do CIRE – que deve ser restituído o valor correspondente. Todavia, a restituição desse valor segue dois regimes diferentes.

Assim a parte desse valor que represente enriquecimento da massa insolvente à data da declaração de insolvência constitui dívida da massa insolvente; a parte restante, se a houver, constitui dívida da insolvente.

Se tivermos presente o regime destas duas modalidades de pagamento destas duas modalidades de dívidas, facilmente se compreende que a preocupação do legislador foi a de assegurar o regime mais favorável ao terceiro quanto ao que, na prestação por ele feita e que deva ser restituída, constituir enriquecimento sem causa”. Destarte, concluem estes Autores que “Em face do que se consagra nos nºs 4 e 5 deste artigo 126, e mau grado a sua omissão, a propósito desta matéria, no caso de o direito do terceiro se traduzir no reembolso do que pagou ao insolvente, estaremos, decerto, perante um crédito sobre a massa”, ou seja, e reportando à presente situação, o crédito da Recorrente, constitui ou integra uma “dívida da massa insolvente” e não um “crédito sobre a insolvência”, como se concluiu na decisão recorrida.

De tudo o acabado de expender à evidência resulta que, efectivamente, assistindo ao Recorrente o direito a que a Massa Insolvente lhe restitua a quantia paga a título de sinal em decorrência do contrato promessa em referência nos autos, tal crédito constitui uma dívida da massa insolvente, nos termos do disposto no art. 126° e 51 ° nº 1, alíneas c) e i) do CIRE, o que, contudo, já assim não sucederia se se estivesse perante uma indemnização da contraparte, decorrente da resolução de contrato, situação em que se constituiria um crédito sobre a insolvência.

Isto assente, como é consabido, as mais comuns “dívidas da massa da herança” aparecem enumeradas no artigo 51, do CIRE, sendo que, a identificação desta categoria de dívidas revela-se de basilar importância dado o especial regime de pagamento de que beneficiam, em confronto com a generalidade das dívidas da insolvência que, com elas, concorram aos bens do insolvente, pois que, em conformidade com o disposto no nº 1), do artigo 46, do CIRE, tais dívidas da massa insolvente são pagas com precipuicidade, significando isto que os créditos sobre a insolvência, independentemente da sua categoria, são preteridos no confronto sobre os créditos sobre a massa. 

Assim, dada a manifesta nulidade da decisão recorrida quanto à qualificação e graduação do crédito da Recorrente V, e tendo em consideração o que se dispõe no artigo 665, nº 1, do C.P.C., que vai no sentido de que, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, deverá o tribunal conhecer do objecto da acção, decide-se determinar que o crédito da Recorrente V, enquanto dívida da massa insolvente, enumerado no art. 51.º, do C.I.R.E., seja paga com prioridade sobre os demais créditos graduados.» (…)».

Sempre s.d.r.o.c., não se pode concordar com a fundamentação aduzida pelo segundo grau.

Prima facie, parece confundir créditos sobre a insolvência e dívidas da massa insolvente.

Secundo, quer ao primeiro grau, quer o segundo grau, fizeram tábua rasa da resolução do contrato promessa operada por sentença proferida em 11 de Julho de 2011 transitada em julgado, proferida no processo …, do 1.º Juízo da comarca de …, que a insolvente L não contestou, na qual foi determinado que os prédios em questão se mantivessem na titularidade da promitente compradora V, SA, tal como condenou a L, SA, aqui Insolvente - mas não naquela data, veja-se que a declaração de insolvência foi havida em 4 de Janeiro de 2012, tendo a sentença transitado em julgado em 24 de Janeiro de 2012 - a restituir àquela o valor € 2.150.000,00 (dois milhões, cento e cinquenta mil euros) a título de sinal em dobro, pontos 2. e 3. da matéria assente.

A resolução do contrato promessa declarada por sentença judicial transitada em julgado, veio a ser, em termos absolutos, desconsiderada a favor da resolução incondicional formulada pelo AI através da carta datada de 24 de Fevereiro de 2012, do sobredito contrato promessa datado de 10 de Janeiro de 2010, tendo apreendido para a massa insolvente os prédios, objecto de tal contrato, conforme auto de arrolamento datado de 10 de Maio de 2012, como decorre do ponto 5. da matéria dada como provada, tendo aí fundamentado o seu acto no disposto nos artigos 120º nºs 1, 2, 4 e 5 alínea b) e 121º alínea b) do CIRE, alegando, essencialmente: a) Tratar-se de um contrato gratuito “dissimulado” inexistindo movimento financeiro nas contas bancárias da insolvente; b) Haver má-fé da Autora (impugnante), que conhecia, aquando da negócio, que a promitente vendedora se encontrava em situação de insolvência ou de insolvência iminente; c) Que a ora Autora (impugnante), conhecia que, com o negócio, prejudicava terceiros, o qual punha em causa a satisfação dos credores da insolvência; d) Haver ou ter havido relação especial, de grupo ou de domínio, entre as duas sociedades (Autora e insolvente), ponto 6. da matéria assente.

Contudo, a desconsideração da resolução do contrato promessa anteriormente havida e declarada, não encontra qualquer expressão no disposto no nº1 do artigo 120º do CIRE, onde se predispõe que «Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.», uma vez que não se pode resolver o que resolvido já se encontra: seria um absurdo jurídico.

O processo de Insolvência constitui um procedimento universal e concursal, cujo objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores: concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a nele intervirem, seja qual for a natureza do respectivo crédito e, por outro lado, verificada que seja a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional por todos os credores as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum); é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, nºs1 e 2 do CIRE, supra enunciado, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente.

A massa abrange, desta feita, a totalidade do património do devedor insolvente, susceptível de penhora, que não esteja excluído por qualquer disposição especial em contrário, bem como aqueles bens que sejam relativamente impenhoráveis, mas que sejam por aqueles apresentados voluntariamente (exceptuam-se apenas os bens que sejam absolutamente impenhoráveis), e que existam no momento da declaração da insolvência ou que venham a ser adquiridos subsequentemente pelo devedor na pendência do processo, cfr Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013, 303/305.

Conforme se abarca do preâmbulo do CIRE, a resolução em beneficio da massa insolvente a que se alude no normativo inserto no artigo 120º, visa a «(…)reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto especifico – a “resolução em beneficio da massa insolvente” –que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património(…)» destinando-se tal expediente a «(…)apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostrem prejudiciais para a massa.(…)», cfr Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da Massa Insolvente, 2008, 41; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5ª edição, 210; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004.

Se o contrato promessa havido entre a Recorrida e a Insolvente foi objecto de uma resolução judicial, acobertada por uma sentença transitada em julgado, dúvidas não podem subsistir que o AI nada tinha para resolver, pelo menos no que tange àquele específico contrato promessa de compra e venda, pois nos termos do normativo inserto no artigo 433º do CCivil, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos à nulidade ou anulabilidade dos negócios jurídicos, tendo efeitos retroactivos, artigo 434º, nº1 do mesmo diploma, fazendo operar a destruição da relação negocial existente, fazendo regressar as partes à situação em que as mesmas se encontrariam, se aquele mesmo contrato não tivesse sido celebrado, com as consequências específicas decorrentes do preceituado no artigo 442º, este também do CCivil.

Resulta do artigo 619º, nº 1 do NCPCivil que «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.», dispondo o normativo inserto no artigo 621º, do mesmo diploma, além do mais, que «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga; (…)».

Constituindo uma das tarefas primordiais do Estado de direito democrático, a garantia dos direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos seus princípios, o princípio da segurança jurídica e da protecção da segurança dos cidadãos aparece-nos como uma das traves mestras da manutenção da ordem jurídica.

Tal princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2º da CRPortuguesa e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte, assumindo-se como princípio classificador do Estado de Direito Democrático, o que implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.

Dentro de tal princípio destaca-se, além do mais, o caso julgado, como seu postulado máximo.

Sendo o caso julgado um ponto em que o binómio dialéctico justiça-segurança cede em favor da segurança, poderá concluir-se que uma limitação ao alcance do instituto será sempre favorável à justiça, «(…) Se uma sentença injusta pode aequare quadrata rotundis ou facere de albo nigrum, valha-nos a ideia de que esta quadratura do círculo ou este escurecimento do branco só é irremediável quanto à decisão; as decisões futuras, prejudiciais ou finais, continuarão a poder ser livre e justamente quadradas e brancas.(…)», apud Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado Em Processo Civil, 109/110.

Deste modo, quando o crédito da Recorrida foi configurado como «crédito comum» pelo primeiro grau, e como «dívida da massa insolvente» pelo segundo grau, integrada no disposto no artigo 51º, alíneas c) e i) do CIRE, fazendo-a, assim, ser paga com prioridade em relação aos restantes créditos sobre a massa, de acordo com o preceituado no artigo 46º, nº1, do mesmo diploma, tendo-se assentado as aludidas subsunções, na prevalência da resolução efectuada pelo AI pela carta de 24 de Fevereiro de 2012, gerou-se um erro de julgamento, nas duas modalidades possíveis, quer na subsunção, quer na qualificação, ao desconsiderar-se a materialidade apurada quanto á resolução judicial operada pela sentença transitada em julgado em 30 de Setembro de 2011, antes da apresentação da promitente vendedora à Insolvência e respectiva declaração, quando, repetimos, naquela data nada havia a resolver, porque resolvido já estava, a sobredita configuração creditícia não poderá subsistir, além do mais, por violar o caso julgado formado por aqueloutra decisão judicial.

Torna-se absolutamente irrelevante o argumento invocado pelo primeiro grau, acolhido implicitamente pela segunda instância, de que «(…) os efeitos da resolução em benefício da massa insolvente não ficam prejudicados pela existência daquela resolução transitada em julgado, operada de acordo com o regime de resolução do artigo 434.º do Código Civil, tendo em conta o regime especial da resolução em benefício da massa previsto para as insolvências, e desde logo face à maior abrangência desta resolução, equiparada inclusive aos efeitos da impugnação pauliana, (veja-se para tanto, o disposto no artigo 127.º do CIRE).(…) Todavia, e porque o acto de resolução destruiu ab initio os efeitos do contrato-promessa de compra e venda, devendo repor-se a situação existente como se o mesmo não tivesse sido celebrado, consequentemente não pode reconhecer-se a existência do direito de retenção - que resultaria da sentença proferida no processo comum, mas que, bem se entenda, não produz efeitos no apenso da reclamação de créditos no processo de insolvência, desde logo, porque os credores da insolvência não foram partes naquele processo comum, e como tal sempre estariam impossibilitados de discordar daquela, vendo diminuídos desse modo, os direitos de defesa dos respectivos créditos – o que traz em consequência, improceder a pretensão da credora V no reconhecimento do seu crédito como garantido, como provisoriamente assim havia sido qualificado na lista provisória de créditos reconhecidos, atenta a noção de créditos garantidos que nos é dada pela alínea a) do n.º 4 do artigo 47.º do CIRE.(…)».

Esta asserção constitui uma visão redutora da eficácia do caso julgado, pois o caso julgado para além da sua eficácia inter partes, pode atingir terceiros, quer através da sua eficácia reflexa, quer através da sua extensão àqueles, cfr a propósito Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 311/314.

A primeira situação acontece sempre que a acção correu entre os interessados directos, quer do lado activo, quer do lado passivo, tendo-se esgotado neles a legitimidade para discutir uma determinada situação jurídica; a segunda situação, ocorre, mesmo quando a presença de todos os interessados permite a produção daquele efeito reflexo, importará ainda abranger pelo efeito do caso julgado os terceiros para os quais esse instituto implica a constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica.

A extensão do caso julgado a terceiros caracteriza-se pela vinculação directa destes: foi o caso da resolução judicial efectuada entre a Recorrida e a Insolvente (na data ainda não insolvente), a qual se irá e terá de impor, nesta sede insolvencial e no âmbito da graduação de créditos, com todas as consequências daí advenientes, maxime, no que tange à classificação do crédito da Recorrida, não como subordinado, como o qualificou inicialmente o AI, nos termos do artigo 48º, alínea e) do CIRE, tão pouco como comum, como vem assente de primeira instância, nem como dívida da massa insolvente, nos termos em que assim se concluiu no Acórdão recorrido, assistindo aqui razão à Recorrente, embora por razões completamente distintas das por si aventadas.

Aqui chegados, cumpre-nos reafirmar o que havíamos alinhado há pouco, aquando das considerações sobre as competências deste Supremo Tribunal, o qual, no que tange aos aspectos jurídicos relativos à decisão do pleito, é livre de eleger as normas que considere melhor se adaptarem ao caso, estando, como está, vocacionado para a apreciação do direito corrigindo, a propósito os eventuais erros na determinação da norma aplicável, cfr artigo 671º do NCPCivil, cfr José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, ibidem, 157/162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, 408/412.

A quantia reclamada pela Recorrida, constitui um crédito da insolvência privilegiado, de harmonia com o disposto no artigo 47º, nºs 1, 2 e 4, alínea a) do CIRE, por o mesmo gozar de direito de retenção, nos termos do preceituado no artigo 755º, nº1, alínea f) do CCivil, nos precisos termos em que tal lhe foi reconhecido pela sentença judicial que operou a resolução do contrato promessa, dando-se pagamento pelo valor dos bens objecto daquele privilégio, logo após o pagamento das dividas da massa insolvente, as quais sairão precípuas, cfr artigo 51º.

Todavia, não queremos com isto significar que iremos dar total cumprimento ao que decidido ficou naquela decisão judicial, por a tal se opor o instituto da proibição da reformatio in pejus consagrado no artigo 635º, nº5 do NCPCivil, o qual impede que se venha a condenar a parte em montante superior ao que havia sido condenada pois na espécie a Recorrida não se insurgiu quanto ao montante do crédito que veio a ser reconhecido, correspondente apenas ao sinal em singelo de € 1.075.000,00, cfr Miguel Teixeira de Sousa, l.c., 467; Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, ibidem, 42; Ac STJ de 26 de Outubro de 2010 (Relator Sebastião Póvoas) e 8 de Outubro de 2013 da ora Relatora, in www.dgsi.pt.

Soçobram assim, parcialmente as conclusões de recurso, embora com uma divergente sustentação.

III Destarte, concede-se parcialmente a Revista, embora com uma fundamentação jurídica substancialmente diversa, revoga-se a decisão plasmada no Aresto impugnado, no que tange à qualificação do crédito da Recorrida, o qual deverá ser graduado como privilegiado, pelo montante de € 1.075.000, 00 correspondente ao sinal em singelo que foi entregue, dando-se pagamento pelo valor dos bens objecto daquele privilégio, logo após o pagamento das dividas da massa insolvente, as quais sairão precípuas nos termos do artigo 51º do CIRE, mantendo-se no mais o decidido.

Custas na Revista e na Apelação pela Recorrida Vista Vertical, SA (no que ao seu recurso diz respeito) e pela Recorrente em partes iguais; quanto à verificação do passivo, pela massa insolvente, artigos 303º e 304º do CIRE.

Lisboa, 20 de Outubro de 2015

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Júlio Manuel Vieira Gomes)