Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1129/07.0TBAGH-A.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
REPRESENTAÇÃO LEGAL
INCAPACIDADE
TRIBUNAL COMPETENTE
MINISTÉRIO PÚBLICO
COMPETÊNCIA MATERIAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / INCAPACIDADES - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO (EFEITOS) - DIREITO DAS SUCESSÕES / PETIÇÃO DA HERANÇA / ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAIS / COMPETÊNCIA INTERNA EM RAZÃO DA MATÉRIA - PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA / AUTORIZAÇÃO JUDICIAL .
Doutrina:
- Alberto Reis, Comentário, 1º, 110.
- Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 1980, pp. 80, 90.
- Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pp. 231/235.
- Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, 2ª ed., p. 540, em anotação ao Dec. Lei n.º 272/2001.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 91; Teoria Geral da Relação Jurídica, 1966, vol. I, pp. 225/226.
- Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, p. 258.
- Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 1981, pp. 477, 478.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. III, 2ª ed., pp. 347/348 e vol. VI, 1998, pp. 195/196 e 203.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 124.º, 139.º, 145.º, 1404.º, 1412.º, 1413.º, 1889.º, N.º 1, AL.A), 1938.º, N.º 1, AL. A), 2074.º, N.º1, 2091.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 581.º, N.º4, 1014.º, N.ºS1 E 4.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 202.º.
D.L. Nº 272/2001, DE 13-10: - ARTIGOS 2.º, 21.º, AL. B).
Sumário :
I - Para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

II - Compete ao tribunal judicial e não ao MP a competência para decidir da autorização a dar ao representante legal de incapaz para praticar acto que legalmente dependa dessa autorização, desde que corra por apenso ao processo que decreta a incapacidade, mesmo estando este findo.
Decisão Texto Integral:

       Recurso de Revista nº 1129/07.0TBAGH-A.L1.S1[1]



    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



        I— RELATÓRIO       

            AA, residente na Rua …, Angra do Heroísmo, na qualidade de tutor da interdita BB, requereu ao Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Angra do Heroísmo, autorização da venda do prédio identificado na petição inicial, na medida em que interdita e o tutor são donos em comum e sem determinação de parte ou direito de 1/14 avos e 3/28 avos do mesmo.

Para tanto, alega, em síntese, que o imóvel foi prometido vender pelos anteriores proprietários, já falecidos, que receberam parte do preço acordado, faltando o pagamento de uma parcela restante que será efectuado no acto da outorga da escritura de compra e venda, que só agora é possível realizar após reunir toda a documentação necessária.

O Ministério Público ordenou a remessa dos autos para serem apensos ao processo de interdição que correu termos sob o nº 1129/07.0TBAGH, do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, de acordo com o disposto no art. 2.º, nº 2, al. b) do DL nº 272/2001, de 13 de Outubro.

Porém, o Mmo Juiz declinou essa competência, proferindo despacho liminar no qual declarou o Tribunal recorrido incompetente em razão da matéria, com devolução dos autos ao Ministério Público a fim de tramitar o processo, por ser o competente.

Inconformado, apelou o Ministério Público, sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 25/02/14, por maioria, julgou o recurso improcedente confirmando a decisão recorrida.

Deste acórdão traz o recorrente a presente revista, cuja alegação sintetiza nas conclusões que se transcrevem:

1 - O artigo 1889° n° 1 alínea a) do Código Civil, ao estabelecer que os pais só podem alienar bens, com autorização do tribunal, tem de entender-se que se trata de bens concretos e determinados de que o filho menor seja titular.

E o filho menor não é titular do direito real de propriedade desses bens, por não ter sido partilhada a herança, nem se saber qual a sua quota-parte nesses bens.

Isto é, o menor é titular de um quinhão hereditário de toda a herança e não é proprietário ou comproprietário dos bens cuja venda se pretende ver autorizada.

2 - O que acaba de ser referido no que aos menores se refere, aplica-se, igualmente, aos interditos, atento o estatuído no artigo 1938° nº 1 alínea a) do Código Civil que, remete, directamente, para os artigos 1889° n° 1 alínea a) e 1890° n° 4 do aludido diploma legal.

3 - No caso objecto dos autos, o tutor da interdita pretende, por meio deste processo, alienar parte de um bem imóvel, também pertencente à interdita, que esta e aquele adquiriram por via sucessória sem determinação de parte ou direito, isto é, ainda se encontra em compropriedade.

4 - Tem que ser determinada, com exactidão, a parte do imóvel que pertence à interdita BB, e, só depois é que será solicitada a autorização para a venda. Tem de ser afastada a compropriedade.

5 - O artigo 19° do Decreto-Lei n° 272/2001 de 13 de Outubro refere que é subsidiariamente aplicável aos processos previstos neste diploma o Código de Processo Civil.

6 - O artigo 21° do Decreto-Lei n° 272/2001 de 13/10 enumera os artigos do Código de Processo Civil que são revogados. Destes não consta o artigo 1439° de tal Código.

7- O acórdão recorrido bem como a decisão da 1ª instância violaram, por erro de aplicação e de interpretação, as normas dos artigos 1938° n° 1 alínea a) e 1889° nº 1 alínea a), ambos do Código Civil, e ainda o estatuído no artigo 1439° nº 4 do Código de Processo Civil, e, igualmente, os artigos 2° nºs. 1 alinea b) e 2, 19° e 21°, todos do Decreto-Lei n° 272/2001 de 13 de Outubro.

Não foram oferecidas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

          ●

O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, salvo as questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nº 1 do Novo Código de Processo Civil[2], introduzido pela Lei nº 41/2013, de 26/06 – por diante NCPC.

É uma única a questão que importa apreciar e decidir: se não se verifica a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, para conhecer do pedido de autorização da venda de prédio em que interdita e tutor são donos em comum e sem determinação de parte ou direito.



                                       II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Dá-se por reproduzida a factualidade constante do relatório supra, importando ter ainda presente com interesse para a decisão a proferir nesta revista (arts. 607.º, nº 4, 2ª parte, 663.º, nº 2 e 679.º do NCPC) que:

- Na acção especial de interdição por anomalia psíquica, que correu termos sob o nº 1129/07.0TBAGH, no 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, foi proferida sentença em 21/07/08, transitada em julgado, a decretar a interdição de BB;

- Para o cargo de tutor da interdita foi nomeado AA, irmão daquela.

DE DIREITO

A questão essencial decidenda, como se disse, é a de saber se o Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo é o materialmente competente para conhecer do pedido de autorização da venda do prédio identificado no artigo 2.° do requerimento inicial, na medida em que a interdita e o tutor são donos em comum, e sem determinação de parte ou direito, de 1/14 avos e 3/28 avos do mesmo, ou, ao invés, se a apreciação e decisão dessa pretensão compete ao Ministério Público.

A aferição de qual das decisões encerra a solução acertada passa, imperativa e previamente, pela resolução de uma outra questão, qual deva ser o critério ordenador da competência material.

Ora, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou, nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser da lide[3] .

Por sua vez, a causa de pedir é o facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito, e o pedido a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda (art. 581.º, n.º 4, do NCPC).

Como acentua Manuel de Andrade[4] – citando Redenti – a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.

Assim, para determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, tem de se atentar, sobretudo, na alegação do autor e no efeito jurídico pretendido. Entendimento doutrinal que tem vindo a ser aceite pela jurisprudência, assumindo hoje foros de unanimidade[5]. Nesta conformidade, importa, então, passar a caracterizar a relação estabelecida tal como apresentada pelo requerente.

A causa de pedir recortada no requerimento inicial, no que aqui releva, traduz-se na alegação de que foi proferida em 21/07/08, no processo nº 1129/07.0TBAGH, do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, sentença, transitada em julgado, a decretar a interdição, por anomalia psíquica, de BB, pretendendo o tutor da interdita, seu irmão, que lhe seja concedida autorização para alienar parte de um bem imóvel, que ambos adquiriram por via sucessória sem determinação de parte ou direito.

Perante esta estruturação da causa, nomeadamente a natureza da providência solicitada e os factos donde deriva o direito para o qual se pretende a tutela, a decisão proferida na 1ª instância decidiu ser o Ministério Público o competente para apreciar e decidir o pedido de autorização, com suporte em dois fundamentos únicos. Em síntese, porque não está em causa pedido de autorização para “outorga de partilha extrajudicial ”, e por se encontrarem garantidos os interesses da interdita, mostrando-se desnecessária e desprovida de fundamento legal a “instauração de processo de inventário” a favor da mesma.

Censurado pelo recorrente na apelação o facto do Tribunal a quo haver ignorado a existência do processo de interdição, na Relação os Exmos Desembargadores que fizeram vencimento defenderam estar a dependência do pedido de autorização do processo de interdição ultrapassada, uma vez que a interdição já fora anteriormente decretada, e circunscreveram a sua intervenção a sufragar, na íntegra, a fundamentação de incompetência material desenvolvida na decisão da 1ª instância. Assim: “... não podemos deixar de subscrever os fundamentos da decisão objecto de recurso, relevando a intenção do Legislador expressa de modo lapidar no Preâmbulo do DL 272/2001, de 13 de Outubro, de tomar mais célere a justiça concreta pedida pelos cidadãos, desjudicializando casos como o vertente, em que os direitos fundamentais da cidadã interdita ficam suficientemente salvaguardados através da intervenção do MºPº, evitando-se assim, a delonga e custos inerentes a qualquer processo judicial, mesmo que especial.

Tudo visto, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida. “[6].

O recorrente Mº Pº dissente e pretende a revogação desta deliberação argumentando, entre o demais, que “o tutor da interdita pretende, por meio deste processo, alienar parte de um bem imóvel, também pertencente à interdita, que esta e aquele adquiriram por via sucessória sem determinação de parte ou direito, isto é, ainda se encontra em compropriedade.

Tem que ser determinada, com exactidão, a parte do imóvel que pertence à interdita BB, e, só depois é que será solicitada a autorização para a venda. Tem de ser afastada a compropriedade“ (3ª e 4ª conclusões), e para tal é materialmente competente o processo onde foi determinada a interdição.

Acrescenta que também o artigo 1439.° do CPC[7]  não foi revogado pelo art. 21.º do DL nº 272/2001, e, nos termos do seu nº 4, o pedido formulado é dependente do processo de interdição.

Vejamos.

Sustenta o recorrente que o bem imóvel está em compropriedade, daí que a venda da fracção em causa implicaria a prévia partilha da herança, e só depois, se o imóvel ficar a pertencer à interdita na sua totalidade, é que deverá ser solicitada ao tribunal a autorização para a venda. Afirma, inclusive, no corpo das alegações, que “A não ser assim, teria de se entender que a autorização, a ser concedida, destinar-se-ia à venda do seu quinhão hereditário nessa herança, o que é manifestamente ilegal”.

Não lhe assiste razão.

Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos herdeiros o direito a uma quota hereditária. Os herdeiros são titulares apenas de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais bens esse direito ficará a pertencer, se só a alguns ou a um, sendo os demais compensados em tornas. Enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem “direitos sobre bens certos e determinados”, nem “um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota-parte em cada um deles “[8].

Só com a partilha, os direitos dos herdeiros a uma determinada quota do património hereditário se convertem num direito a uma concreta e determinada parcela desse património e, por conseguinte, antes da mesma, os herdeiros não têm direito a uma quota sobre cada um dos bens que constituem o património hereditário. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, “aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte, dispor desses bens, ou onerá-los, no seu todo ou em parte”, e só “A partilha converte os vários direitos a uma simples quota (indeterminada) de um todo (determinado) em direito exclusivo a uma parcela determinada do todo”[9].

Contudo, não se confunde esta comunhão com a compropriedade. A sua massa patrimonial não se reparte entre os seus membros por quotas ideais, como acontece na compropriedade, pertence “à colectividade” por eles formada, e tem como seus traços característicos que a distinguem da compropriedade o facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário, bem como não poder qualquer deles pedir a divisão desse património colectivo enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição, enquanto que na compropriedade podem os consortes dela sair mediante o processo de divisão de coisa comum (arts. 1412.º e 1413.º do Código Civil, por diante CC)[10].

A comunhão é, pois, uma figura mais ampla do que a compropriedade, pelo que desconforme se mostra a qualificação feita pelo recorrente. Coisa diferente é o facto de o artigo 1404.º do CC mandar aplicar as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer direitos.

Portanto, não se está perante um regime de verdadeira compropriedade.

Igualmente, ao invés do que defende o recorrente, não há que proceder à partilha da herança como medida prévia à venda anunciada.

A situação de indivisibilidade do património colectivo impede um co-herdeiro de dispor de bens determinados, impõe, por regra, que os direitos a ela relativos só possam “ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros” (nº 1 do artigo 2091.º do CC), e só cessa com a liquidação e partilha como resulta do art. 2074.º, nº 1 do mesmo Código.

Qualquer dos co-herdeiros pode alienar livremente o seu quinhão hereditário, o que não prejudica a indivisão (cfr. arts. 2124 a 2130.º do CC)[11]. O que não pode é dispor de bens determinados[12].

Mas, estando-se perante a plenitude dos herdeiros, nenhum obstáculo existe que impeça a venda, ainda que avulsa, de um bem dela integrante (cfr. art. 2091.º, nº 1 do CC)[13].

Os direitos relativos à herança têm que ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, e os direitos da interdita, face à sua incapacidade, só podem ser exercidos pela forma que vem indicada nos arts. 124.º, 139.º e 1889.º do CC (cfr. também art. 2091, nº 1 do mesmo diploma).

No caso vertente, a interdita e o tutor são apresentados como os únicos herdeiros da herança indivisa em que se integra o imóvel, razão pela qual não há que proceder à partilha da herança como medida prévia à venda anunciada.



Esclarecidos estes pontos, não tão decisivos para a solução a proferir quanto os apresentou o recorrente, diga-se que estamos perante um processo de autorização a um representante legal de um incapaz para praticar um acto que legalmente depende dessa autorização (cfr. arts. 1938.º, n.º 1, al. a) e 1889.º, n.º 1, al. a), do CC).

Determina o nº 1 do art. 1014.º do NCPC (correspondente ao anterior1439.º do CPC) que: “quando for necessário praticar atos cuja validade dependa de autorização judicial, esta é pedida pelo representante legal do incapaz”.

E estipula o seu n.º 4 que “o pedido é dependência do processo de inventário, quando o haja, ou do processo de interdição”. Como processo de jurisdição voluntária que é, a correr por apenso a um processo judicial, em princípio é da competência de um tribunal judicial (art. 202.º da Constituição da República Portuguesa).

Dá-se o caso de, entretanto, o DL nº 272/2001, de 13/10[14], por razões de celeridade e eficácia das decisões, para o que importava desonerar os tribunais de processos que não consubstanciavam verdadeiros litígios permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial, em determinados processos de jurisdição voluntária, conforme se refere no respectivo preâmbulo, ter vindo proceder "à transferência da competência decisória em processos cujo principal rácio é a tutela dos interesses dos incapazes ou ausentes, do tribunal para o Ministério Público, estatutariamente vocacionado para a tutela deste tipo de interesses, sendo este o caso das acções de suprimento do consentimento dos representantes, de autorização para a prática de actos, bem como a confirmação de actos em caso de inexistência de autorização".

Como consequência deste propósito, passaram assim a ser da competência exclusiva do Ministério Público, por força do disposto no seu art. 2.º, entre outras, na parte que ora nos importa, as decisões relativas a pedidos de:

1 - (...) b) Autorização para a prática de actos pelo representante legal do incapaz, quando legalmente exigida (...)”.

Porém, tal competência não é irrestrita, nem extensiva a todas as situações. O legislador teve o cuidado de logo estabelecer as excepções no nº 2 do mesmo artigo:

2 – O disposto no nº anterior não se aplica:

 (...) b) Às situações previstas na alínea b), quando esteja em causa autorização para outorgarem partilha extrajudicial e o representante legal concorra à sucessão com o seu representado, sendo necessário nomear curador especial, bem como nos casos em que o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário ou de interdição.”.

Esta conexão da competência por dependência de anterior processo de interdição, que é a que agora nos interessa, justifica-se porque nele, mesmo que findo, se encontram elementos que habilitam e permitem ao Tribunal proferir uma decisão escrupulosa nos pedidos de autorização para a prática de acto que com eles esteja relacionado, sem necessidade de repetição na sua recolha. Contributo para o alcance mais alargado que visa este nº 2, a salvaguarda da unidade jurisdicional, assegurar a intervenção de magistrado judicial relativa a situações em que anteriormente já interviera e tomara posição, designadamente no que concerne à definição da incapacidade, à partilha de herança, ou à administração e alienação de bens (cfr. art. 145.º do CC).

Nesta consonância aparenta estar a circunstância de, efectivamente, o art. 21.º, al. b), do citado DL nº 272/2001, ao contrário do que fez relativamente a outros artigos do CPC à data vigente, não haver revogado o disposto no aludido art. 1439.°, mantendo a sua vigência.

Por isso, nada permite que se faça uma interpretação tão restritiva da “dependência” consignada na referida al. b), do nº 2 do art. 2.º do DL nº 272/2001, como o fez a posição que obteve vencimento no acórdão recorrido, pressupondo a sua aplicação apenas para a mera pendência do processo de interdição.

A nosso ver, independentemente do estado em que se encontre o processo de interdição, findo ou pendente, o pedido para a prática do acto que esteja dele dependente ou com ele relacionado, tem de ser sempre decidido pelo tribunal “a quo”.

Neste mesmo sentido se pronunciou já anteriormente este Supremo Tribunal, no seu Acórdão de 18/11/04, Proc. nº 04B3008[15]: “...foi nesta lógica de continuidade de intervenção do juiz da causa (aquele que interviera no processo de inventário ou de interdição), consequentemente de sujeição daqueles casos excepcionais à jurisdição dos tribunais, que o art. 21º al. b), do citado Dec. Lei 272/2001, ao contrário do que fez relativamente aos artigos 1423° e 1446° do Código de Processo Civil, não revogou o disposto no art. 1439°, que assim se mantém em plena vigência.”.

Também aponta para a mesma linha de entendimento o pronunciamento do Conselheiro Lopes do Rego, nos seus Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, 2ª ed., pág. 540, em anotação ao Dec. Lei n.º 272/2001.

Como tal, no caso sub judice existe processo de interdição[16], a que este de autorização se mostra apenso, pelo que compete ao Tribunal Judicial e não ao M.º P.º a competência para decidir da autorização a dar ao representante legal da interdita para praticar o acto da venda do prédio identificado.

Uma última nota, só para referir que mesmo o Acórdão deste Supremo Tribunal de 9/10/03, Proc. 03B1382[17], citado na decisão da 1ª instância em abono da tese contrária porque decidiu pela competência do Ministério Público, não afasta este entendimento perfilhando diferente posição. A sua leitura atenta evidencia que a solução encontrada não é expressão da adopção de tese oposta, mas antes fruto dos termos da pretensão tal como deduzida no requerimento inicial aí sob análise. Como nele não se suscitava autorização para outorga de partilha extrajudicial[18], condição prevista na al. b) do nº 2, daquele art. 2.º do DL nº 272/2001, em paralelo à da dependência de processo de interdição que nos ocupa, mas tão somente um singular pedido de autorização, a solução da competência teria ser encontrada inelutavelmente no âmbito de uma apreciação genérica, e a ser assim, sem dúvida, caberia ao Mº Pº. Nele se afirma, designadamente:

“ (…) basta compulsar o teor do requerimento em apreço, para logo se alcançar que se não encontra em causa um qualquer pedido de «outorga de partilha extrajudicial», situação esta última que, face à eventualidade da existência de interesses contraditórios e até conflituantes, sempre recomendaria, de resto, a respectiva aceitação beneficiária, mediante a instauração do competente processo de inventário por iniciativa do Mº Público, «ex-vi» do disposto no nº. 2 do artº. 2102º do C. Civil.

Vem apenas, e tão singelamente, formulado um pedido de autorização para «alienação» de bens, o que logo reconduz esse pedido ao âmbito da competência «genérica» do Ministério Público instituída na al. b) do nº. 1 do artº. 2 do supra-citado DL 274/01(sublinhado nosso).

E, tal como acontece com a generalidade dos pressupostos processuais, a competência decisória deve aferir-se em função da causa de pedir enunciada e do pedido concretamente deduzido pelo interessado-requerente da providência.”.

Concluindo, independentemente do estado em que se encontrar o processo de interdição, findo ou pendente, o pedido de autorização para a prática de acto que esteja com ele relacionado, tem de ser sempre decidido pelo Tribunal a quo, sendo da sua competência em razão da matéria.

Do exposto resulta, necessariamente, que não podemos acompanhar a decisão recorrida. Procede, portanto, a pretensão do recorrente, e, como tal, as conclusões do recurso.

Sumariando:

I - Para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante;

II - Compete ao Tribunal Judicial e não ao M.º P.º a competência para decidir da autorização a dar ao representante legal de incapaz para praticar acto que legalmente dependa dessa autorização, desde que corra por apenso ao processo que decreta a incapacidade, mesmo estando este findo.



                       III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se julgar o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e, consequentemente, julgar incompetente para conhecer da acção em causa o Mº Pº por ser da competência do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, onde os autos deverão prosseguir.

Sem custas.

                                               

Lisboa, 09/07/14

Gregório Silva Jesus (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

__________________
[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] Aplicável porquanto o pedido deu entrada em 15/03/13 e o acórdão recorrido é de 25/02/14 (cfr. arts 5.º, nº 1 e 7.º, nº 1 da Lei nº 41/2013).
[3] Comentário, 1º, 110.
[4] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 91.
[5] Cfr., por exemplo, os Acs. do STJ de 12/01/94, 22/01/97, 26/06/01, in CJ-STJ, 1994, T1, pág. 38; 1997, T1, pág. 65; e 2001, T2, pág.129, respectivamente; e Ac. do Tribunal de Conflitos de 29/03/11, Proc. nº 025/10, disponível no sítio do IGFEJ, onde se faz uma resenha jurisprudencial do tema.
[6] O voto de vencido foi no sentido de que, atento o disposto no art. 1439.º, nº 4 do CPC de 1961, o facto de ter havido processo de interdição era suficiente para fazer funcionar a ressalva contida na parte final da al. b), do nº 2, do art. 2.º do DL nº 272/2001, de 13/10, pelo que concessão de autorização ao tutor deveria ser obtida em processo judicial e não perante o Mº Pº.

[7] À data vigente, com correspondência no actual nº 4 do art. 1014.º.
[8] Cfr. Acs. do STJ de 26/01/99 no BMJ 483º-211 e de 21/04/09, Proc. nº 09A0635, no IGFEJ; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 1980, pág. 90.
[9] In Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 347/348 e vol. VI, 1998, págs. 195/196 e 203.
[10] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1966, vol. I, págs. 225/226, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. III, 2ª ed., págs. 347/348, Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, págs. 231/235 e Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, pág. 258.
[11] Neste caso, os co-herdeiros gozam do direito de preferência, para evitar a entrada de estranhos (cfr. art. 2130.º, nº 1 do CC).
[12] Cfr. neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 1981, pág. 478.
[13] Capelo de Sousa, ob. cit., pág. 80 e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 477.
[14] Posteriormente alterado pela Declaração de Rectificação n.º 20-AR/2001, de 30/11, DL n.º 324/2007, de 28/09, Lei n.º 61/2008, de 31/10 e DL n.º 122/2013, de 26/08.
[15] Disponível no IGFEJ.
[16] No qual o imóvel em causa teve de ser relacionado (cfr. fls. 61, verba nº 6 - art. 956.º, nº 1, al. a) do CPC à data vigente).
[17] Consultável no IGFEJ.
[18] Hipótese que o requerente tinha por análoga ao caso aí versado.