Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
029589
Nº Convencional: JSTJ00002681
Relator: PIEDADE REBELO
Descritores: OFENSAS CORPORAIS VOLUNTARIAS
INABILITAÇÃO
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195805090295891
Data do Acordão: 05/09/1958
Votação: MAIORIA COM 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DR IºS 23-05-1958 ; BMJ 77 , 299
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 2/1958
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/ PESSOAS.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 84 ARTIGO 91 N2 ARTIGO 94 ARTIGO 360 N5 ARTIGO 361 PARUNICO.
CP852 ARTIGO 361.
CPC39 ARTIGO 767 PARUNICO.
CPP29 ARTIGO 668.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1955/11/23 IN BMJ N52 PAG444.
ACÓRDÃO STJ DE 1956/06/14 IN BMJ N58 PAG475.
ACÓRDÃO STJ DE 1957/01/23 IN BMJ N63 PAG447.
Sumário :
O artigo 360, n. 5, do Codigo Penal abrange a inabilitação parcial, desde que determine uma redução consideravel e relevante da função normal do membro ou orgão do corpo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferencia, no Supremo Tribunal de Justiça:

Tendo o reu A ofendido voluntaria e corporalmente o queixoso B, causando-lhe fractura exposta do terço inferior da tibia e peronio esquerdos com larga destruição muscular e tendinosa, uma ferida incisa na parte interior e terço inferior da mesma perna e outra na face interna, terço inferior, desse membro e, em sua consequencia, 334 dias de doença e impossibilidade de trabalho, e incapacidade funcional de quinze por cento do membro inferior esquerdo, foi esta sua conduta classificada pelo acordão de folhas 283, como crime previsto e punido no artigo 360, n. 5, do Codigo Penal, e o mesmo reu condenado, nos termos do artigo 94, n. 2, do mesmo diploma, na pena de 18 meses de prisão.
Deste acordão interpos o reu recurso para o Tribunal Pleno, alegando que a questão de direito nele decidida esta em oposição com a julgada nos acordãos deste Tribunal de 23 de Novembro de 1955 (Boletim, n. 52, pagina 444) e de 14 de Junho de 1956 (Processo n. 29491 e sumariado no Boletim, n. 58, pagina 475) e sustentando: a inabilitação prevista no n. 5 do artigo 360 do Codigo Penal tem de entender-se total ou, pelo menos, grave e profunda, superior a cinquenta por cento da capacidade funcional; a sua conduta não se enquadra nesse numero, mas sim no n. 4 do mesmo artigo; deve, por isso, alterar-se a classificação do crime e, consequentemente, baixar-se a pena e, em virtude das atenuantes que militam a seu favor, substituir-se a prisão por multa e declarar-se a pena suspensa.
O excelentissimo Ajudante do Procurador-Geral da Republica junto da Secção Criminal pronuncia-se doutamente, mantendo o seu ponto de vista manifestado apos a admissão do recurso, no sentido de que não se verifica a alegada oposição, com os seguintes fundamentos: as consequencias medico-legais apreciadas no acordão recorrido e no de 23 de Novembro são diversas e foram, por isso, diferentes as respectivas qualificações juridicas, mas em ambos os acordãos são coincidentes os conceitos de deformidade, aleijão e inabilitação; os mesmos conceitos foram adoptados pelo acordão de 14 de Junho, que difere do anterior quando declara precisa a doutrina do Professor Doutor Eduardo Correia, apelidada de vaga e imprecisa, embora brilhante e sujestiva, no acordão recorrido; o pressuposto do recurso para o Tribunal Pleno e a oposição nos julgados e não nos fundamentos.
E fazendo judiciosas considerações, acrescenta que, a conhecer-se do recurso, se lhe deve negar provimento, proferindo-se assento no sentido de que o artigo 360, n. 5, do Codigo Penal abrange o aleijão e a inabilitação, total ou parcial, ou de que o mesmo preceito abrange o aleijão e a inabilitação, total ou parcial, mas neste caso a diminuição funcional deve ser sensivel, apreciavel, relevante da função normal do membro ou orgão do corpo, segundo se entender que o ambito do recurso se limita ou não a materia da primeira conclusão da alegação do recorrente.
Tudo visto:
Decidiu a Secção Criminal a folhas 317 que existe a oposição invocada pelo recorrente. Isso não impede, porem, que o Tribunal Pleno decida em sentido contrario (Codigo de Processo Civil, paragrafo unico do artigo 767).
Examinar-se-a, por isso, novamente se o acordão recorrido e os dois acordãos opostos julgaram em sentido diverso a mesma questão de direito.
Como ficou relatado, decidiu o acordão recorrido que a ofensa corporal voluntaria de que resulte incapacidade funcional de quinze por cento do membro inferior esquerdo constitui crime descrito no artigo 360, n. 5, do Codigo Penal.
Para assim julgar, invocou os seguintes fundamentos:
Os termos deformidade, aleijão e inabilitação empregados na lei penal correspondem a conceitos diversos; a deformidade caracteriza-se por uma afecção estetica, aparente, a inabilitação por uma perturbação funcional e o aleijão pelo conjunto, em grau maior ou menor, destes resultados; não importa que a inabilitação seja total ou parcial, mais ou menos profunda, pois a lei não faz qualquer distinção; o ofendido foi atingido na perna esquerda, que e sem duvida um membro do corpo, importante, valioso e relevante para o efeito de locomoção; a doutrina do Professor Doutor Eduardo Correia, embora brilhante e sugestiva, tem o defeito de não caracterizar o campo de aplicação do citado artigo 360, n. 5, referindo-se em termos vagos e imprecisos a uma parte do corpo ou função, cuja perda ou inabilitação seja importante, valiosa e relevante, o que, decerto, originaria os mais desconcertantes criterios; a lei não contempla nem autoriza a esse respeito distinção alguma; a pena maior de 2 a 8 anos, abrangendo todos os casos, mais ou menos graves, justifica-se, visto na aplicação das penas haver sempre que ter em atenção a gravidade do facto criminoso e os seus resultados.
Decidiram os acordãos opostos; o aleijão, como define o Professor Doutor Asdrubal de Aguiar, consiste no defeito fisico ou deformação dum membro ou orgão em que ha alteração da sua forma normal ou da posição com diminuição da potencia funcional; nem toda a diminuição da capacidade funcional, acompanhada de deformidade, importa, porem, aleijão referido no artigo 360, n. 5, do Codigo Penal, mas somente a que influi de forma apreciavel na função normal do membro ou orgão. E no de 14 de Junho, depois de se ter feito referencia a doutrina do de 23 de Novembro, acrescentou-se: "No mesmo sentido, mas em termos mais precisos, se pronuncia o distinto Professor Doutor Eduardo Correia".
Assim, enquanto para o acordão recorrido existem aleijão e inabilitação qualquer que seja o grau da incapacidade, quer esta seja total ou parcial, mais ou menos profunda, para os acordãos opostos so existem quando a incapacidade influa de forma apreciavel na função normal do membro ou orgão.
Verifica-se, portanto, a oposição exigida pelo artigo 668 do Codigo de Processo Penal como fundamento de recurso para o Pleno.
E como os acordãos foram proferidos no dominio da mesma legislação e em processos diferentes, e se presume o transito dos opostos, o recurso e de conhecer.
E conhecendo:
O Codigo Penal atribui no artigo 360 aos defeitos organicos resultantes das ofensas corporais, entre outras, as seguintes denominações: deformidade, aleijão de membro ou orgão e inabilitação de membro ou orgão.
Mas não as define.
Iguais expressões encontravam-se no artigo 361 do Codigo Penal de 1852, mas tambem sem definição, o que levou Silva Ferrão a escrever: "Finalmente todo o artigo merece ser concordado, distinguido e esclarecido" (Teoria do Direito Penal, volume 7, pagina 101).
Tem-se geralmente entendido que a deformidade e a alteração no organismo de que resulta prejuizo estetico; que a inabilitação se caracteriza pela alteração das funções de um membro ou orgão sem modificação da forma fisica; e que o aleijão consiste na deformação de um membro ou orgão acompanhado de diminuição da sua potencia funcional.
Mas grandes duvidas se levantam sobre se toda e qualquer diminuição da capacidade funcional do membro ou orgão importa inabilitação e, quando acompanhada de deformidade, aleijão.
Entende o acordão recorrido que toda a redução da capacidade funcional, total ou parcial, mais ou menos profunda, importa inabilitação, não fazendo a lei a esse respeito nenhuma distinção.
Em sentido diferente se pronunciaram, porem, os acordãos invocados em oposição, exigindo para a existencia desse defeito organico uma diminuição que influa de forma apreciavel na função normal do membro ou orgão.
E este o conflito de jurisprudencia a resolver.
Se a lei devesse ser interpretada literalmente, e manifesto que, qualquer que fosse o grau de inabilitação do membro ou orgão, a ofensa que o tivesse provocado se integraria no n. 5 do citado artigo 360. Mas, como e sabido, a letra e o ponto da partida e o pensamento o ponto da chegada. A interpretação da lei deve ser simultaneamente literal e logica.
O Codigo Penal pune as ofensas corporais, com maior ou menor severidade, tendo em atenção a gravidade dos seus resultados.
A pena de prisão maior de 2 a 8 anos e aplicavel a ofensa corporal de que resulte curtamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou orgão (artigo 360, n. 5) e a ofensa em cuja consequencia o ofendido fique privado do uso da razão ou impossibilitado por toda a vida de trabalhar (artigo 361) e ainda, mas agravada, a ofensa que ocasione a morte (paragrafo unico do artigo 361).
Foi, deste modo, a referida pena estabelecida para casos de muita gravidade, como são as ofensas corporais de que resulta como consequencia necessaria a morte, a privação da razão, a impossibilidade de trabalhar por toda a vida, a perda de um braço, de uma perna ou de um olho.
Sendo assim, não pode ter estado no pensamento do legislador punir com pena maior toda e qualquer inabilitação, mas somente a inabilitação grave, de efeitos parecidos com os resultantes do cortamento ou privação de um orgão ou membro.
Forçoso e, por isso, restringir o sentido da expressão inabilitação e incluir nela apenas os casos em que a incapacidade influa de forma consideravel na função normal do membro ou orgão, sob pena de se punir com penas graves faltas leves.
As leis devem ser interpretadas de forma a evitar iniquidades.
E preferivel uma norma vaga, que permita fazer justiça, a uma norma precisa, de que resulte a aplicação de penas injustas.
E certo que a pena do citado n. 5 do artigo 360 pode ser aplicada no seu minimo e ate mesmo substituida pela de prisão. Mas como na determinação da medida da pena se tem de atender aos preceitos dos artigos 84, 91, n. 2, e 94, n. 2 do mesmo Codigo e a substituição da pena maior pela correccional, em face dessas disposições so se faz em casos excepcionais, poderão verificar-se hipoteses, como, por exemplo, concorrendo a circunstancia agravante da reincidencia, em que não se possa fazer tal substituição e se tenha ate de agravar a pena maior.
Não e, por isso, de manter a doutrina do acordão recorrido.

Dessa circunstancia não resulta, porem, o provimento do recurso.
Foi muito grave o resultado da ofensa. O queixoso foi atingido numa parte do corpo de grande importancia, num membro indispensavel a locomoção, tendo sofrido um relevante prejuizo nessa função. Tanto basta para que a conduta do recorrente possa ser integrada no preceito legal em que foi incriminada.
Não e forçoso que a incapacidade seja superior a cinquenta por cento para a existencia da inabilitação.
Esta verifica-se não so segundo o grau da incapacidade, mas tambem da importancia do orgão ou membro afectado, isto e, segundo o prejuizo sofrido pelo ofendido na sua actividade fisica.
Na formulação do assento não ha a considerar as conclusões da minuta, cumprindo ao Tribunal definir o conceito da expressão inabilitação, sem quaisquer limites.
Pelo exposto, negando provimento ao recurso, condenam o recorrente no minimo do imposto de justiça e formulam o seguinte assento:
O artigo 360, n. 5, do Codigo Penal abrange a inabilitação parcial, desde que determine uma redução consideravel e relevante da função normal do membro ou orgão do corpo.


Lisboa, 09 de Maio de 1958

Piedade Rebelo (Relator) - Agostinho Fontes - Mario Cardoso - A. Gonçalves Pereira - Carlos Saavedra - Lopes Cardoso - Morais Cabral - Campos de Carvalho - Simões Figueirinhas - Sousa Monteiro - Lencastre da Veiga
- Julio M. de Lemos (Vencido; no preceituado no n. 5 do artigo 360 do Codigo Penal não se faz qualquer distinção, pelo que abrange tanto a inabilitação total como a parcial; os inconvenientes que se apontam para as incriminações neste sentido, do mesmo modo surgem para definir inabilitação parcial, não sendo por consequencia aceitavel, qualquer distinção, tanto mais fornecendo a lei os necessarios elementos para se aplicar a punição adequada, conforme a gravidade da inabilitação, dada a individualização da pena).
- Eduardo Coimbra (Vencido pelos mesmos fundamentos).