Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
34279/15.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
EMPRESA PÚBLICA
EMPRESA PRIVADA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Estando unicamente em causa uma questão de competência material, o presente recurso é admissível ao abrigo da previsão do art. 629.º, n.º 2, alínea, a), do CPC.

II. Deve entender-se que a norma do n.º 2 do art. 4.º do ETAF, ao atribuir competência à jurisdição administrativa para julgar litígios nos quais “devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade (…)”, impõe ao autor (que proponha a acção nos tribunais administrativos) ou ao réu (que deduza excepção de incompetência material quando a acção é proposta nos tribunais comuns) o ónus de alegar factos concretos que traduzam a existência de um vínculo ou relação jurídica de solidariedade que apenas tem por fonte a lei ou a vontade das partes (cfr. art. 513.º do CC).

III. Alegar, como faz o autor que a obrigação entre os réus é solidária constitui uma conclusão ou objectivo jurídico, insuficiente por si só, para fixar, a montante, a competência dos tribunais administrativos, pelo que, tal como entendeu a Relação, deve o litígio contra os réus privados, incluindo o aqui recorrente, ser resolvido pelos tribunais judiciais, por ser a ordem jurisdicional residualmente competente (cfr. art. 64.º do CPC).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA instaurou, em 13 de Dezembro de 2015, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Banco Espírito Santo, S.A. (1.º R.), Novo Banco, S.A. (2.º R.), Banco de Portugal (3.º R.), BB (4.º R.), CC (5.º R.), DD (6.º R.), EE (7.º R.), FF (8.º R.), GG (9.º R.), HH (10.º R.), II (11.º R.), JJ (12.º R.), LL (13.º R.) e MM (14.º R.).

Alegou, em síntese, que:

 - Em 1993, a S…, Lda., sociedade de que o A. era sócio-gerente, era titular de conta caucionada “Facilidades de Crédito em Conta Corrente”, sedeada no 1.º R. (BES), no montante máximo de 50.000.000$00, movimentável com assinaturas dos dois sócios-gerentes e somente para outra conta daquela sociedade;

 - No dia 15 de Junho de 1993, o 1.º R. transferiu todo o montante da conta caucionada, sendo 22.000.000$00 para uma conta da sociedade A…, Lda., com base em documento falso por si elaborado;

 - Embora agindo contra o convencionado, nunca o 1.º R. retornou à conta caucionada ou a conta titulada pelo A. o montante daquela transferência;

 - O 1.º R. (BES) violou dolosamente os deveres contratuais existentes e, na sequência, preencheu e accionou livrança em branco avalizada pelo A., bem como accionou as hipotecas que recaíam sobre dois imóveis do A., causando a ruptura financeira tanto da S…, Lda. como do A.;

 - Os demais RR. são solidariamente responsáveis com o 1.º R. (BES): o 3. R. (Banco de Portugal) por ter criado o Novo Banco sem acautelar todos os créditos que os clientes do BES detinham; a Comissão Executiva do 1.º R. (BES) e respectivos membros (4.º a 12.º RR.) porquanto, sendo o 1.º R. uma pessoa colectiva, responde por todos os actos praticados pelos seus gerentes ou empregados.

Pediu a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe uma indemnização no montante de €124.000,00, juros vencidos que ascendem a €120.000,00 e, ainda, a pagarem €50.000,00 a título de compensação pelos danos morais sofridos pelo A..

Os RR. contestaram por excepção e por impugnação.

Por despacho de 26 de Novembro de 2019, a 1.ª instância proferiu a seguinte decisão:

«O Tribunal declara procedente a excepção da incompetência absoluta e, consequentemente, absolve todos os réus da instância».

Inconformado, o A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, aceitando a decisão de absolvição da instância do Banco de Portugal, mas pedindo a revogação da decisão de absolvição da instância dos demais RR. e, consequentemente, pedindo o prosseguimento dos autos contra estes.

Por acórdão de 18 de Junho de 2020 foi decidido:

«Julgar procedente a apelação, mantendo a decisão recorrida quanto à absolvição da instância do réu Banco de Portugal e revogando-a no que concerne à absolvição da instância dos demais réus, com o consequente prosseguimento dos autos relativamente a estes».

2. Vem o R. GG (9.º R.) interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«(1) O Venerando Tribunal a quo, através do Acórdão Recorrido, revogou parcialmente a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância – a qual declarou procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais judiciais para dirimirem o presente litígio -, no que concerne à absolvição da instância do Recorrente, determinando o prosseguimento dos autos relativamente a este.

(2) O Tribunal a quo considerou que os Tribunais Judiciais são competentes para apreciar o mérito da causa no que respeita aos Réus, com exceção do Réu Banco de Portugal, pessoa coletiva de direito público sujeita às leis do contencioso administrativo.

(3) Inconformado com o teor do Acórdão Recorrido, o Recorrente vem interpor Recurso para este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o qual é, desde logo, admissível, porque estão verificados todos os requisitos para a interposição do presente Recurso exigidos pelos artigos 629.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC, uma vez que:

a. A presente causa tem valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada é desfavorável ao Recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal; e

b. O Acórdão Recorrido constitui uma decisão que põe parcialmente termo ao processo, absolvendo da instância um dos réus (o Réu Banco de Portugal).

(4) Para efeitos de aplicação do artigo 671.º, n.º 1, última parte do CPC, esclareça-se que basta que estejamos perante uma decisão que extinga parcialmente a instância, não se exigindo a extinção total do processo, que é o que acontece no caso sub judice – vd. doutrina de ABRANTES GERALDES, citado supra.

(5) Assim, como bem se vê, deverá ter-se por admitido o presente Recurso, de acordo com o disposto no artigo 671.º, n.º 1, última parte do CPC.

(6) Subsidiariamente, ainda que se entendesse que ao presente caso não se aplicaria o disposto no artigo 671.º, n.º 1 do CPC, o que não se aceita, a verdade é que o presente Recurso sempre será legalmente admissível por estarmos perante situações em que o recurso é sempre admissível – vd. artigos 671.º, n.º 2, alínea a) e 629.º, n.º 2 do CPC.

(7) Em primeiro lugar, estamos perante um caso de aplicação do disposto nos artigos 629.º, n.º 2, alínea a) (em conjugação com a alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC), de acordo com os quais, cabe revista para o Supremo Tribunal Justiça dos acórdãos da Relação que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, violem as regras de competência em razão da matéria.

(8) Ora, dúvidas não existem que o tema central em causa versa sobre as regras de aferição da competência em razão da matéria dos tribunais para se pronunciarem sob o presente litígio.

(9) Em segundo lugar, o presente Recurso também será admissível com fundamento na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC (em conjugação com a alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC), porquanto a decisão adotada pelo Tribunal a quo e o seu entendimento sobre a aplicação do artigo 4.º, n.º 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”) não é, de todo, pacífica e assente na jurisprudência dos Tribunais Superiores.

(10) É manifesto que nos encontramos na presença de contradição jurisprudencial entre o Acórdão Recorrido e outros acórdãos dos Tribunais da Relação (incluindo do próprio Venerando Tribunal a quo), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito(determinação da competência dos tribunais em razão da matéria em função do artigo 4.º, n.º 2 do ETAF) - vd. jurisprudência do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA e da RELAÇÃO DO PORTO, de 17.05.2018 e 23.11.2017, respetivamente, citadas supra.

(11) Deste modo, o presente Recurso é plenamente admissível, seja nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC, seja nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alíneas a) ou d) conjugada com a alínea a) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC.

(12) O Recorrente entende que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo incorreu num lapso jurídico ao não aplicar o disposto no artigo 4.º, n.º 2 do ETAF, o qual deverá ser corrigido pelo Venerando Tribunal ad quem, pois estamos perante uma decisão que retira qualquer conteúdo ao artigo 4.º, n.º 2 do ETAF, contrariando várias decisões jurisprudenciais em sentido contrário, nomeadamente pelo próprio Tribunal a quo.

(13) A verdade é que o Tribunal a quo não poderia ter desconsiderado o facto de o Recorrido ter instaurado a presente ação de indemnização contra todos os Réus na forma de responsabilidade solidária. Nem poderia o Tribunal a quo ter feito uma avaliação sobre a existência ou não dessa solidariedade, pois isso seria aprofundar a análise sobre o mérito da causa quando está em causa a discussão sobre o preenchimento dos mais elementares pressupostos processuais.

(14) Ademais, em litígios nos quais sejam conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade, os tribunais judiciais não têm competência para apreciar o mérito da causa, pois a competência em razão da matéria pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais - vd. n.º 2 do artigo 4.º do ETAF, n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário e doutrina de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, citados supra.

(15) A lei é absolutamente clara: à luz do disposto no artigo 4.º, n.º 2 do ETAF, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento do presente litígio, relativamente ao Recorrente, visto que:

a. É um litígio no qual está em causa a determinação da responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa coletiva de direito público (o Réu Banco de Portugal), matéria que é regulada pelo Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas;

b. É um litígio onde foi demandada uma entidade pública (o Réu Banco de Portugal) conjuntamente com entidades particulares (restantes Réus demandados, incluindo o Recorrente); e

c. As entidades privadas e a entidade pública foram conjuntamente demandadas através de um vínculo jurídico de solidariedade, porquanto o Recorrido, na sua Petição Inicial, formulou um pedido de condenação solidária de todos os Réus – vd. artigos 89.º e 93.º da PETIÇÃO INICIAL.

(16) Assim, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, os tribunais judiciais não são apenas incompetentes em razão da matéria para conhecer do pedido relativamente ao Réu Banco de Portugal, como também relativamente ao Recorrente (pessoa singular).

(17) Tanto a doutrina como a jurisprudência são claras no sentido em que a competência pertence aos tribunais administrativos e fiscais aquando da demanda conjunta de entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos de solidariedade – vd. jurisprudência do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO e SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, e doutrina de MIGUEL ASSIS RAIMUNDO e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, citados supra.

(18) Além disso, foi esta a intenção do legislador ao introduzir o artigo 4.º, n.º 2 do ETAF: trazer para a esfera dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de relações entre entes particulares, quando os demandados particulares o devam ser conjuntamente com entidades públicas no âmbito de vínculos de solidariedade – vd. Anteprojeto de revisão do CPTA e do ETAF da autoria de CARLA AMADO GOMES /ANA F.NEVES /TIAGO SERRÃO citado supra.

(19) Visando igualmente o legislador ao inserir o n.º 2 do artigo 4.º do ETAF acautelar as situações de duplicação de ações judiciais, que resultariam da interposição de uma ação contra o particular lesante nos tribunais judiciais e outra nos tribunais administrativos contra a entidade pública, bem como as potenciais decisões conflituantes que delas pudessem advir – vd. doutrina de Miguel Assis Raimundo citada supra.

(20) Assim, considerando que a ratio do n.º 2 do artigo 4.º do ETAF assenta no evitar da duplicação de ações judiciais, não pode o ora Recorrente deixar de censurar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, pois esta desconsidera manifestamente aquela que tinha sido a intenção do legislador aquando da sua introdução no sistema jurídico.

(21) Mais: a não subsunção do caso em apreço a este preceito, não só implica um esvaziamento do teor da norma, bem como é atentatório da segurança jurídica, porquanto incentiva a duplicação de processos e suas eventuais decisões contraditórias.

(22) Deste modo, a decisão de revogação de absolvição da instância do Recorrente, proferida no Acórdão Recorrido, bem como a jurisprudência do Tribunal de Conflitos citada na decisão, desvirtuam manifestamente a apreciação unitária dos litígios, sendo notoriamente atentatórias da ratio subjacente ao n.º 2 do artigo 4.º do ETAF.

(23) No mais, importa ainda salientar que o requisito do “vínculo de solidariedade” entre as entidades públicas e privadas também se encontra preenchido para efeitos de aplicação do artigo 4.º, n.º 2 do ETAF.

(24) Pois o ora Recorrido procedeu à demanda conjunta de todos os Réus no que respeita ao pedido de condenação solidária, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 512.º e seguintes do CC – vd. artigo 93.º da PETIÇÃO INICIAL.

(25) A intenção do Recorrido é clara: obter a condenação solidária dos Réus. Foi com este intuito que intentou a presente ação. Foi esta a sua pretensão.

(26) O que o Tribunal a quo fez foi: ir além da mera aferição da competência dos tribunais (questão processual) e fazer uma análise de mérito da petição inicial valorando os factos alegados ou não alegados pelo Recorrido para concluir sobre a inexistência de solidariedade (questão substantiva).

(27) Ademais, o Tribunal a quo pronuncia-se muito além da aferição da competência em razão da matéria, extrapolando para uma aferição acerca dos fundamentos que enformam o pedido de condenação solidária quanto ao Réu Banco de Portugal, perfilhando o entendimento de que quanto a este não foram alegados factos que demonstrem a solidariedade.

(28) Igualmente, o Tribunal a quo assenta e fundamenta a sua mudança de posição numa jurisprudência recente do Tribunal de Conflitos, a qual parte da errada premissa de que para se aplicar o artigo 4.º, n.º 2 do ETAF não basta a alegação da existência de vínculos jurídicos de solidariedade entre ente particular e uma pessoa coletiva de direito público.

(29) A jurisprudência do Tribunal de Conflitos, citada na decisão, ao condicionar a aferição da competência em razão da matéria à realização prévia de um juízo de prognose acerca da efetiva existência de solidariedade entre os sujeitos demandados está, pelo menos, a antecipar parte do conhecimento acerca do mérito da causa e está igualmente em completa contradição com outras decisões do próprio tribunal – vd. jurisprudência do TRIBUNAL DE CONFLITOS de 01.10.2015 e doutrina de MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, citadas supra.

(30) Deste modo, atendendo à forma como o Recorrido configurou a ação (i.e., tendo peticionado a condenação solidária de todos os Réus), o Douto Tribunal a quo não poderia ter absolvido da instância apenas um dos Réus (o Banco de Portugal) e prosseguido com o processo relativamente aos restantes, porquanto isso representa uma violação grave do disposto no artigo 4.º, n.º 2 do ETAF.

(31) Realce-se o efeito perverso que poderá originar demandar réus que concorrem para a prática dos mesmos factos em tribunais diversos, como preconiza a decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto tal oportunidade de escolha quanto aos tribunais onde efetuar a propositura da ação poderá originar uma perversa forma de forum shopping, permitindo ao autor a tentativa de obter decisão que mais lhe convenha – vd. a doutrina de MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, citada supra.

(32) Algo que desvirtua, por completo, o tratamento unitário das questões, ratio subjacente ao surgimento do artigo 4.º, n.º 2 do ETAF.

(33) Face ao exposto, constando o Banco de Portugal entre as entidades demandadas, conjuntamente com os demais Réus, e sendo este uma pessoa coletiva de direito público, os tribunais materialmente competentes para dirimir o presente litígio quanto a todos os Réus serão, naturalmente, os tribunais administrativos e fiscais, em cumprimento do disposto no artigo 4.º, n.º 2 do ETAF.

(34) Em suma, considera o Recorrente que deverá este Venerando Supremo Tribunal de Justiça revogar a decisão do Tribunal a quo - de não absolvição da instância do Recorrente -, e considerar os tribunais judiciais incompetentes para dirimir o presente litígio, com a consequência da absolvição do Recorrente da instância.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 15.10.2020, tendo os autos sido remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça por ofício de 30.10.2020.

3. Com relevância para a decisão da questão da competência material para apreciar a pretensão do A. contra o R., ora Recorrente, única questão objecto do presente recurso, encontra-se provado o que consta do relatório supra.

4. Relativamente ao fundamento de admissibilidade do presente recurso, esclareça-se que, como também resulta do relatório supra, a decisão de absolvição da instância do Banco de Portugal não foi impugnada em sede de apelação pelo que, ainda que a Relação tenha conhecido da excepção de incompetência também quanto ao R. Banco de Portugal, confirmando quanto a este a decisão recorrida, em rigor a decisão de absolver da instância o Banco de Portugal transitou em julgado com a decisão da 1.ª instância e não com o acórdão da Relação.

Assim sendo, e diversamente do alegado pelo Recorrente, estando em causa acórdão que – na parte em que a decisão de absolvição da instância foi, efectivamente, impugnada – revogou tal decisão e determinou o prosseguimento dos autos contra os demais RR., não tem aplicação ao caso dos autos o n.º 1 do art. 671.º do CPC, segundo o qual «cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos».

Tampouco é aplicável a previsão do n.º 2 do art. 671.º do CPC, uma vez que o acórdão recorrido não é um acórdão da Relação que aprecie decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, mas antes um acórdão da Relação que aprecia uma decisão final da 1.ª instância.

Contudo, na medida em que, no presente recurso, está em causa unicamente uma questão de competência material, é o mesmo admissível ao abrigo da previsão do art. 629.º, n.º 2, alínea, a), do CPC.

Cumpre apreciar e decidir.

5. Na 1.ª instância, a excepção de incompetência absoluta dos tribunais judiciais foi julgada procedente com a seguinte fundamentação:

«O Banco de Portugal trata-se de uma pessoa colectiva de direito público (…).

Estando em causa a determinação da responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público trata-se de matéria regulada no “Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, aprovado pela Lei 67/2007, de 31-12. (…)

Assim sendo, nos termos da alínea f) do art.º 4.º/1 do ETAF - na redacção em vigor à data da propositura da presente acção, a do DL n.º 214-G/2015, de 02-10 - é da competência exclusiva dos tribunais administrativos “a apreciação dos litígios que tenham por objecto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”(…)

Há outros réus demandados, mas o pedido de condenação solidária dos réus foi opção do Autor. O art.º 4.º/2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”), (…), é claro.

A demanda conjunta dos réus assinalados juntamente com o Banco de Portugal acarreta, por si só, a absolvição da totalidade dos réus da instância. Atendendo à forma como a acção foi configurada, formulando-se um pedido de condenação solidária de todos os réus, este tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido relativamente a todos eles».

No acórdão da Relação, e no que se refere aos RR. que não o Banco de Portugal, ajuizou-se em termos distintos:

«Relativamente ao réu «Banco de Portugal», não havendo sido instituída qualquer relação contratual entre ele e o autor, fundamentar-se-á o autor na responsabilidade extracontratual por omissão dos deveres que lhe incumbiam, no âmbito das funções que a lei estabelecia. Os danos invocados pelo autor, no que concerne a este réu, não resultariam de quaisquer actos ou omissões no âmbito de uma gestão privada. (…)

(...) Os demais réus não são, obviamente, pessoas colectivas de direito público.

Tendo em conta a regra da competência residual plasmada no art. 64.º do CPC e no n.º 1 do art. 40.º da LOSJ a causa, nesta parte, deveria ser julgada no tribunal em que foi proposta.

O Tribunal de 1.ª instância entendeu, todavia, que havendo o autor pedido a condenação solidária de todos os réus a incompetência material se estendia a estes réus, atento o disposto no n.º 2 do art. 4.º do ETAF.

O Tribunal de Conflitos tem-se pronunciado repetidamente sobre esta matéria em acórdãos recentes que recaíam sobre situações análogas à que se desenha nos presentes autos - o que levou a relatora a adoptar posição divergente da anteriormente por si considerada.

Assim, no acórdão de 5-3-2020 (5) Tribunal de Conflitos ponderou:

«A questão que se coloca no presente processo não é nova e foi recentemente decidida por este Tribunal, como destaca o douto Parecer do Ministério Público, já referido, em vários processos, de tal maneira que se pode já afirmar a existência de uma jurisprudência pacífica e consolidada. Ora, e como se pode ler no Acórdão proferido no Conflito n.° 46/18, "não pode deixar de ser aqui convocada essa orientação uniforme, sob pena de se pôr em causa a relativa previsibilidade e segurança na aplicação do direito, bem como o princípio da igualdade, consagrado no art. 13.° da CRP - que exige que se tenha em consideração "todos os casos que mereçam tratamento análogo" (artigo 8.°, n.° 3 do Código Civil)".

Este Tribunal, partindo da premissa de que a competência se afere em função do pedido (mormente do pedido principal) e dos seus fundamentos, tal como configurados pelo Autor, atendendo, pois, ao momento em que a ação é proposta, tem destacado que em ações como a dos presentes autos há que distinguir:

Por um lado, os pedidos de responsabilidade civil extracontratual dirigidos contra pessoas coletivas de direito público. Com efeito, os pedidos dirigidos contra o Banco de Portugal e a CMVM são pedidos dirigidos contra pessoas de direito público - como resulta, respetivamente, do artigo 1.° da Lei Orgânica do Banco de Portugal, Lei n.° 5/98 de 31 de janeiro e do artigo 1.° dos Estatutos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Decreto-Lei n.° 5/2015 de 8 de janeiro - fundados em um alegado facto ilícito praticado por tais entidades e respeitante à falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso dos deveres de supervisão que lhes são confiados por lei. Trata-se de responsabilidade extracontratual, aquiliana ou extranegocial porquanto não existe qualquer relação contratual que haja sido invocada entre a Autora e estes 2.° e 5.° RR, nem, em rigor, entre os 2.° R e o 5.° R e os 1.°, 3.° e 6.° RR.

Ora, o artigo 4.° n.° 1 alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais atribui à Jurisdição Administrativa e Fiscal a competência para conhecer dos pedidos indemnizatórios contra pessoas coletivas de direito público, mais precisamente da "responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.° 4 do presente artigo". E como o Acórdão proferido no Conflito n.° 31/18 a 14 de fevereiro de 2019 decidiu, deve ter-se por tacitamente revogado pelo ETAF, aprovado pela Lei n.° 13/2002 de 19 de fevereiro, o artigo 62.° da Lei Orgânica do Banco de Portugal que atribuía aos Tribunais Judiciais competência para julgar todos os litígios em que aquele fosse parte.

Destarte, serão os Tribunais Administrativos os competentes para conhecer de pedidos de responsabilidade civil dirigidos contra o Banco de Portugal e a CMVM.

(—)

... caberá à jurisdição comum a competência para conhecer dos pedidos de responsabilidade civil dirigidos contra pessoas de direito privado, como são o 3.° e o 6.° RR».

Referindo-se no acórdão do mesmo Tribunal de 6-2-2020 (6):

«... no que respeita à apreciação do pedido dirigido contra os Réus B...., S.A., C..., S.A. e D.... é de dizer que a sua responsabilização não emerge de qualquer relação jurídica administrativa, nem tais Réus são pessoas coletivas de direito público. Pelo contrário, trata-se de pessoas de direito privado e a base da sua responsabilização funda-se numa relação puramente civilística. Consequentemente, a competência cabe inequivocamente aos tribunais judiciais

(—)

Aqui chegados, é de dizer que, apesar de vir pedida a condenação solidária dos Réus, não é caso de aplicar o disposto no n.° 2 do art. 4.° do ETAF (competência por conexão ou atração), de modo a estender à jurisdição administrativa e fiscal a competência relativamente aos Réus Fundo de Resolução, B..., S.A., C..., S.A. e D... .

É esta também a orientação que tem sido seguida neste Tribunal em casos iguais ao vertente.

Assim, pondera-se no acórdão acima aludido proferido no processo n.° 46/18 que «É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respetivos juros, bem, como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado n° 2 do art. 4° do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3' ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».

E no acórdão de 16 de junho de 2019, proferido no processo n.° 2/19 (disponível em www.dgsi.pt) observa-se que «(...) a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513° do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária».

No mesmo sentido vai o acórdão também de 16 de junho de 2019, proferido no processo n.° 5/19 (disponível em www.dgsi.pt).

Sendo assim, como se afigura que é, não é a simples circunstância do autor pedir a condenação solidária dos réus que implica a extensão da competência dos tribunais administrativos à apreciação da pretensão dirigida contra os Réus B...., S.A., C...., S.A., Fundo de Resolução e D..., na certeza de que o autor nada alegou factualmente que indique a existência de solidariedade emergente da vontade das partes. E da lei também não resulta qualquer solidariedade entre esses réus e o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários».

Tendo em consideração o entendimento enunciado, constante nos vários acórdãos ultimamente proferidos pelo Tribunal de Conflitos, concluiu-se que o conhecimento do pedido no que concerne aos vários réus. que não o 3.º réu, «Banco de Portugal», incidindo sobre relações indubitavelmente privatísticas, competia à jurisdição comum. Já assim não é quanto ao 3.º réu., pessoa colectiva de direito público, uma vez que dada a configuração da acção se suscita a responsabilidade civil extracontratual do mesmo, estando na origem dos danos alegadamente sofridos pelo A. e que fundam o pedido por ele formulado actos cometidos por aquele R. no exercício de funções públicas». [negritos nossos]

Insurge-se o Recorrente contra esta decisão, concluindo, em síntese, o seguinte:

«A lei é absolutamente clara: à luz do disposto no artigo 4.º, n.º 2 do ETAF, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento do presente litígio, relativamente ao Recorrente, visto que:

a. É um litígio no qual está em causa a determinação da responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa coletiva de direito público (o Réu Banco de Portugal), matéria que é regulada pelo Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas;

b. É um litígio onde foi demandada uma entidade pública (o Réu Banco de Portugal) conjuntamente com entidades particulares (restantes Réus demandados, incluindo o Recorrente); e

c. As entidades privadas e a entidade pública foram conjuntamente demandadas através de um vínculo jurídico de solidariedade, porquanto o Recorrido, na sua Petição Inicial, formulou um pedido de condenação solidária de todos os Réus – vd. artigos 89.º e 93.º da PETIÇÃO INICIAL».

Quid iuris?

Na fixação da competência do tribunal em razão da matéria atende-se ao momento da propositura da acção, nos termos do art. 38.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, alterada posteriormente por diversos diplomas) e ainda – de acordo com a jurisprudência consolidada, designadamente, do Tribunal dos Conflitos (cfr., a título exemplificativo, o acórdão de 18.02.2019 (proc. n.º 12/19) in www.dgsi.pt, e o acórdão de 27.02.2020, proc. n.º 1393/18.9T8PNF.S1, a publicar), – à natureza da relação jurídica configurada pelo autor, seja quanto aos elementos subjectivos (identidade das partes), seja quanto aos elementos objectivos (natureza do direito para o qual se reclama a tutela judiciária).

Assim, temos que, na presente acção, o A. demandou, entre outros, o Banco de Portugal, pessoa colectiva de direito público, imputando-lhe responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito cometido no exercício das suas funções.

O art. 4.º, n.º 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais dispõe (à semelhança do que dispunha já à data de propositura da presente acção – 13.12.2015), que:

 “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

(…)

 f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público (…)”.

Pelo que se decidiu, com força de caso julgado, que os tribunais administrativos são competentes, em razão da matéria, para conhecer e julgar este concreto litígio contra o Banco de Portugal.  

Falta apurar se a competência dos tribunais administrativos se estende ou não ao 9.º R., pessoa singular e aqui Recorrente, tendo em conta que o regime do n.º 2 do art. 4.º do ETAF dispõe, à semelhança do que dispunha já à data da propositura da presente acção, o seguinte:

«Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade».

Para o efeito importa atentar no seguinte:

 - O A. imputou ao 1.º R. (BES) responsabilidade contratual (artigos 1.º e seguintes da petição inicial) e imputou também responsabilidade ao 9.º R., aqui Recorrente, alegando simplesmente que “A Comissão Executiva, e respetivos membros, porquanto, sendo o 1º Réu, uma pessoa colectiva, é quem responde por todos os atos praticados, pelos seus gerentes ou empregados” (artigo 91.º da petição inicial);

- O A. afirmou, no que concerne a uma eventual solidariedade passiva, que “Todos os Réus, são solidariamente responsáveis, com o 1º Réu, pelos danos que este causou” (artigo 89.º da petição inicial).

Perante este quadro, entendeu a 1.ª instância que bastava ter o A. alegado a solidariedade entre RR., entidade pública e particulares, para a competência dos tribunais administrativos abranger uma e outros. Enquanto a Relação entendeu que, para o efeito, deveria o A. ter alegado factos que estruturem, do ponto de vista jurídico, a solidariedade entre RR.. Não o tendo feito, mantém-se a competência residual dos tribunais comuns para julgar o litígio na parte que opõe particulares.

Afigura-se ser esta última a orientação correcta.

Com efeito, deve entender-se que a norma do n.º 2 do art. 4.º do ETAF, ao atribuir competência à jurisdição administrativa para julgar litígios nos quais “devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade (…)” impõe ao autor (que proponha a acção nos tribunais administrativos) ou ao réu (que deduza excepção de incompetência material quando a acção é proposta nos tribunais comuns) o ónus de alegar factos concretos que traduzam a existência de um vínculo ou relação jurídica de solidariedade que apenas tem por fonte a lei ou a vontade das partes (cfr. art. 513.º do Código Civil).

Alegar, como faz o A., que a obrigação entre os RR. é solidária constitui assim uma conclusão ou objectivo jurídico, insuficiente por si só, para fixar, a montante, a competência dos tribunais administrativos. Também por isso a lei refere que as entidades públicas e os particulares devam, e não possam, ser conjuntamente demandas, em face de um vínculo jurídico de solidariedade que se há-de deduzir de factos concretos, oportunamente alegados.

Ora, na presente acção, porque a responsabilidade imputada ao Banco de Portugal tem natureza extracontratual e decorre da alegação do facto de que tal entidade pública “criou o Novo Banco, SA, sem acautelar todos os créditos que os clientes do BES detinham” (artigo 90.º da petição inicial), enquanto a responsabilidade imputada ao 1.º R. (BES) tem natureza contratual - que segundo o A., se estenderá aos administradores, entre os quais se encontra o 9.º R., aqui Recorrente (artigos 89.º e 93.º da petição inicial) - e se funda na transferência de montante existente em conta caucionada de uma para outra sociedade em violação do convencionado,  há a extrair as seguintes conclusões:

(i) O A. não responsabiliza o R. Banco de Portugal e os demais RR. (entre eles o 9.º R., aqui Recorrente) pela prática conjunta de um mesmo facto ilícito, mas antes por factos ilícitos distintos e sem conexão entre si;

(ii) Factos ilícitos que, tal como alegados, se integram, aliás, em diferentes modalidades de responsabilidade civil;

(iii) Nem o A. nem os RR. apontam, e não se vislumbra existir, preceito legal (e, menos, ainda acordo de vontades) que, ante as causas de pedir invocadas, permita vir a responsabilizar solidariamente o R. Banco de Portugal e os demais RR. (entre eles o 9.º R., aqui Recorrente).

Deste modo, a relação material, tal como delineada pelo A., não evidencia existir, ainda que num plano de mera alegação, um qualquer vínculo jurídico de solidariedade que justifique o dever de demanda conjunta da entidade pública e dos particulares, necessária à competência material exclusiva da jurisdição administrativa.

Em face do que não oferece dúvida que, tal como entendeu a Relação, deve o litígio contra os RR. privados, incluindo o 9.º R., aqui Recorrente, ser resolvido pelos tribunais judiciais, por ser a ordem jurisdicional residualmente competente (cfr. art. 64.º do CPC).

Este entendimento encontra-se em conformidade com a jurisprudência consolidada tanto do Tribunal dos Conflitos (cfr. os acórdãos de 14.02.2019 (proc. n.º 046.18, de 16.06.2019 (proc. n.º 002/19 e proc. n.º 005/19), de 06.02.2020 (proc. n.º 022/19) e de 05.03.2020 (proc. n.º 036/19), referidos no acórdão recorrido, assim como os acórdãos de 30.01.2020 (proc. n.º 049/19), de 06.02.2020 (proc. n.º 022/19) e de 05.03.2020 (proc. n.º 040/19, proc. n.º 043/19 e proc. n.º 049/19), todos disponíveis em www.dgsi.pt) , como do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. os acórdãos de 03-03-2020 (proc. n.º 4140/17.9T8LSB.L1-A.S1) e de 10-11-2020 (proc. n.º 22652/17.6T8LSB.L1.S1), in www.dgsi.pt). Ora, de acordo com o princípio normativo consagrado no n.º 3 do art. 8.º do Código Civil, «[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito».

Diversamente do que alega o Recorrente, a referida jurisprudência do Tribunal dos Conflitos e do Supremo Tribunal de Justiça não antecipa o conhecimento do mérito da causa efectuando um juízo de prognose acerca da efectiva existência de um vínculo de solidariedade entre os réus. Reitera-se que a alegação da existência de solidariedade passiva impõe ao autor que proponha a acção nos tribunais administrativos o ónus de alegar factos concretos que traduzam a existência de um vínculo ou relação jurídica de solidariedade; e, concomitantemente, impõe tal ónus ao réu que deduza excepção de incompetência material quando, como no caso dos autos, a acção é proposta nos tribunais comuns.

Assim sendo, o risco invocado pelo Recorrente - ao alegar que “demandar réus que concorrem para a prática dos mesmos factos em tribunais diversos” pode “originar uma perversa forma de forum shopping” - consubstancia-se afinal em sentido oposto, isto é, no sentido de que, instrumentalizando-se a invocação de uma relação de solidariedade passiva entre entidades públicas e particulares (por falta de alegação de factos concretos que sustentem tal relação) se afasta irregularmente da jurisdição comum a apreciação de pretensões dirigidas contra estes últimos.

6. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente


Lisboa, 11 de Fevereiro de 2021


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (relatora)