Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
373/11.0TBLLE.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: USUCAPIÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
POSSE
TRANSMISSÃO DA POSSE
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
MANUTENÇÃO DE POSSE
RECONVENÇÃO
Data do Acordão: 03/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL / EFEITOS DO REGISTO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 350.º, N.º 2, 1263.º, AL. B).
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGOS 1.º, 5.º, N.ºS 1 E 2, 7.º.
Sumário :
I - Tendo o tribunal de 1.ª instância julgado improcedente o pedido reconvencional de aquisição, por usucapião, de um prédio, sem que os réus tenham apelado dessa decisão, não podem os mesmos, em sede de revista, pretender ver apreciada essa questão.

II - Constitui jurisprudência pacífica que, no nosso ordenamento jurídico, o registo predial tem natureza declarativa e não constitutiva – por não dar nem tirar direitos –, destinando-se o mesmo a dar publicidade à situação jurídica dos prédios tendo em vista a segurança do comércio imobiliário – art. 1.º do CRgP.

III - A presunção constante do art. 7.º do CRgP – de que o direito existe e pertence ao titular inscrito – é uma presunção iuris tantum, ilidível por prova em contrário nos termos do art. 350.º, n.º 2, do CC.

IV - Valendo a usucapião por si, como forma de aquisição originária que é, não pode a mesma ser prejudicada pelas eventuais inscrições registais e daí que não impeça o reconhecimento da propriedade da autora, com fundamento na usucapião, sobre o imóvel em litígio o facto de os réus o terem registado – art. 5.º, n.os 1 e 2, do CRgP.

V - Tendo ficado provado que os antecessores da autora exerceram a posse sobre o mencionado prédio, comportando-se como seus proprietários, durante mais de vinte anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, a sucessão per universitatem da autora (transmitida por testamento) não é causa de aquisição de uma nova posse, mas sim um modo de transmissão da posse dos seus antecessores.

VI - Pelo que, já se tendo verificado a usucapião do prédio em questão à data da morte dos referidos antecessores, é irrelevante, para esse efeito, o decurso temporal posterior.

VII - A tal conclusão não obsta o facto de a autora não residir no imóvel já que a posse não obriga o possuidor a permanecer ininterruptamente no imóvel possuído, bastando que continue a deter o corpus e o animus caracterizadores daquela figura.

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:




A) Relatório:


AA, identificada nos autos,

intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário contra:

BB; CC; DD, e marido EE; FF e marido, GG, todos identificados nos autos.

Pedem que:

A) Se declare a A., como possuidora e comproprietária do prédio identificado nos artigos lº, 2º, e 3º, ao qual corresponde o actual artigo matricial n.º 3925 e parte do n.º 10.426 (respeitando este artigo matricial ao prédio dos RR) da freguesia de S. Clemente;

B) Se declare que o prédio descrito sob n.º 9656 da freguesia de S. Clemente, é misto e é composto: por uma parte urbana com área total de 258m2, correspondendo a área coberta a área a 158m2 formada por uma morada de casas térreas, com sete compartimentos, cavalariça e logradouro com pocilgo, tendo o logradouro a área de l00 m2, e a parte rústica com área de 1042m2, composta por terras de cultura e árvores de fruto, O prédio confronta a norte com HH, a sul com II e RR., a nascente com os RR., e a poente com estrada;

C) Se declare que se rectifique a composição do prédio descrito no Registo Predial de Loulé, com a ficha n.º 08483 da Freguesia de S. Clemente, no sentido de dela passar a constar que o prédio pertencente aos RR., tem apenas a área total de 843 m2, sendo composto por parte urbana com área de 152m2, correspondendo a 52m2 de área coberta e l00m2 ao logradouro e o remanescente à parte rústica, confrontando a norte com a A., e HH, a sul com II, a nascente com HH e a poente com II.

D) Se ordene a rectificação dos registos existentes de acordo com as definições anteriores.

E) Se condenem os RR, a absterem-se da prática de qualquer acto, que impeça ou diminua a utilização por parte da A., do seu prédio, já melhor identificado em A e B, sob pena de pagarem à A., uma multa de €50 (cinquenta euros) por cada dia de violação da cominação.

Alega, para tanto, que a autora é comproprietária do prédio rustico descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º 9656 da Freguesia de São Clemente e inscrito na matriz sob o nº 3925.

Tal prédio encontrava-se inscrito inicialmente na matriz predial com o n.º 2017 e constituído por uma courela de terra de semear, com arvores porém não tinha averbado a casas para habitação do caseiro e recolha de alfaiais agrícolas, com vários compartimentos, cavalariça, palheiro, pocilgo e pequenos logradouros por incúria dos antecessores da autora que não lhe deram importância.

No entanto, a autora e os seus antecessores sempre cultivaram o prédio referido pelo menos até 1986, altura em que JJ – marido da tia da autora – faleceu.

Também sempre utilizaram o prédio existente pelo menos um dia por semana, o que sucedia há muito mais de 50 anos, à vista de toda a agente e de forma interrupta, na convicção que lhes pertencia e lhes pertence, pelo que, se outro titulo não tivessem, sempre o teriam adquirido por usucapião.

Sucede porém que quando a autora tentou registar tal prédio verificou que o mesmo já estava registado pelos ora réus conjuntamente com o prédio contiguo propriedade dos réus, fazendo com que este último passasse de uma área coberta de 52 m2, para uma área coberta de 210m2 e uma área descoberta de 100 m2 para uma área descoberta (logradouro) de 1933 m2. Ou seja, os réus sabendo que o prédio da autora estava omisso, registaram em nome deles conjuntamente com o seu e atribuindo-lhe o numero 08483 da freguesia de São Clemente e passaram a dizer que tal terra lhes pertencia, inclusivamente impedindo a autora de aceder à parcela em causa.

Citados, os réus apresentaram contestação, arguido a ilegitimidade da autora para estar sozinha na acção e impugnaram os factos, referindo que apenas incluíram na descrição predial do imóvel o que lhes pertence e sempre pertenceu e não quaisquer outros prédios pertencentes à autora ou a terceiros, deduzindo por sua vez, reconvenção considerando possuir tais prédios há mais de 50 anos ou de 21 anos, pelo que são donos e legítimos possuidores do prédio que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º 8483, por o terem adquirido por usucapião.

Os autores replicaram a matéria de excepção e mantiveram a sua posição.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo sido proferida sentença onde se decidiu julgar tanto a acção como a reconvenção improcedentes por não provadas.

Inconformada veio a A., interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação julgado a acção parcialmente procedente por provada e em consequência declarado:

A) A A., como possuidora e comproprietária do prédio identificado nos números lº, 2º, e 3º dos factos provados., ao qual corresponde o actual artigo matricial n.º 3925 da freguesia de S. Clemente;

B) Que o prédio descrito sob n.º 9656 da freguesia de S. Clemente, é misto e é composto: por uma parte urbana com área total de 258m2, correspondendo a área coberta a área a 158m2 formada por uma morada de casas térreas, com sete compartimentos, cavalariça e logradouro com pocilgo, tendo o logradouro a área de l00 m2, e a parte rústica com área de 1042m2, composta por terras de cultura e árvores de fruto, O prédio confronta a norte com HH, a sul com II e RR., a nascente com os RR., e a poente com estrada;

E Ordenado:

C) Que se rectifique a composição do prédio descrito no Registo Predial de Loulé, com a ficha n.º 08483 da Freguesia de S. Clemente, em conformidade com o supra decidido em A) e B) ou seja no sentido de dela passar a constar que o prédio pertencente aos RR., tem apenas a área total de 843 m2, sendo composto por parte urbana com área de 152m2, correspondendo a 52m2 de área coberta e l00m2 ao logradouro e o remanescente à parte rústica, confrontando a norte com a A., e HH, a sul com II, a nascente com HH e a poente com II.

E condenado:

E) Os RR, a absterem-se da prática de qualquer acto, que impeça ou diminua a utilização por parte da A., do seu prédio, já melhor identificado em A e B, sob pena de, decorridos que sejam trinta dias sobre o transito em julgado do acórdão, pagarem à A., uma sanção pecuniária compulsória no montante diário de €25,00, aplicando-se na repartição de tal montante o disposto no nº 3 do art.º 829-A do CC.


Deste acórdão recorrem os RR para o STJ alegando, em conclusão, o seguinte:


A) Os R.R. não se conformam com o douto Acórdão da Relação que considerou que "o prédio reivindicado pela A. enquanto comproprietária do mesmo, lhes pertence por ter sido adquirido por usucapião, pelos antecessores da A. e mantido na posse destes e, posteriormente, da A. e seus compartes, pelo menos até 2006,..."

B) Ora, entendem os ora recorrentes que existiu por parte do douto Tribunal da Relação, salvo melhor opinião, um incorrecto entendimento do ónus da alegação e prova nesta acção de reivindicação, porquanto,

C) Por força do disposto no artigo 342°, n.° 2 e 1311° do C.C. cabia à A. alegar e demonstrar factos referentes ao seu direito de propriedade até ao momento de interposição da acção, e bem assim cabia à A. demonstrar que os R.R. eram apenas meros detentores sem qualquer título que impedisse a restituição do imóvel.

D) Contrariamente ao decidido pelo Tribunal da Relação, o Tribunal de primeira instância considerou quanto aos actos de posse por parte da A. que " tal posse teria necessariamente que ser continua e actual, o que manifestamente não ficou demonstrado Tenha-se em atenção que o Tribunal só prova tal posse até 1986 e não até aos dias presentes."

E) Salvo douta opinião, no entender dos ora recorrentes dos factos dados como provados resulta apenas que a A. fez prova do seu direito de propriedade até 1986,ou seja, entre 1966 -1986, (pontos 1º a 11° dos factos provados), e apenas veio intentar a presente acção de reivindicação em 1-02-2011, ou seja, volvidos 25 anos após o último acto de posse praticado pelos seus antecessores sobre o prédio objecto do litígio nos presentes autos, pois, e quanto a actos de posse da própria A. em si, nada ficou demonstrado, pois não ficou sequer provado qualquer acto de posse posterior a essa data (1986).

F) Não logrou assim, a A. cumprir com os requisitos da usucapião, isto porquanto os R.R. se apropriaram do prédio objecto da reivindicação, e pelo menos desde a morte dos seus ascendentes KK (…) e LL, falecidos respectivamente em 20/06/1987 e em 03/02/1959, e assim decorreram mais de 20 anos sem que a A. tivesse recorrido ajuízo e alegado ou conseguido demonstrar em juízo qualquer acto de posse sobre o prédio objecto da reivindicação posteriormente ao ano de 1986.

G) Atenta a dificuldade de prova em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o artigo 1252°, n.°2 do C.C., uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa.

H) Aliás, e ainda por outro lado, para que a acção fosse procedente teria sempre a A. que demonstrar que a sua posse era melhor que a das R.R. à data da propositura da acção, cfr. artigo 1278, n.°2 do C.C., ónus que não foi cumprido pela A..- Aliás os antecessores da A. apenas tiveram a posse até ao ano de 1986.

I) Acontece que em 2006 os R.R. não deixaram a A. e o seu marido visitar as casas alegando que tudo aquilo lhes pertencia, ponto 23 dos factos dados como provados.

J) E tendo a A. apenas demonstrado de forma restritiva a propriedade sobre o aludido prédio até 1986, dessa forma não conseguiu ilidir a presunção registral a favor dos R.R. à data da instauração da acção em 01-02-2011.

K) Pelo que têm os R.R. título de aquisição da posse, pois presume-se que há posse desde a data do título, cfr. artigo 1254°, n.°2 do C.C., pelo que desde o ano de 2006, que os R.R. têm a posse do prédio objecto do litigio, pois os ora R.R. registaram o prédio a seu favor pela descrição n.°8483 em 25/09/2006.

L) Acresce que estipula o artigo 1268° do C.C., que: "o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse", que no presente caso não existe, pois o registo da A. sob a descrição n.° 9656 é de 12-07-2010.

M) É certo que essa presunção pode ser ilidida por prova em contrário, contudo como supra se disse, a A. somente fez prova do seu direito de propriedade de forma restritiva e até ao ano de 1986.

N) Prevalece pois por isso a presunção derivada do registo a favor das R.R., cfr. artigo T do CR. Predial e artigo 1254°, n.°2 parte final do C.C..

O) Violou o douto Acórdão do Tribunal da Relação as normas dos artigos 342°, n.°l, 1254, n.°2, 1259°, 1268°, 1311° todos do C.C. e artigo 1º do CR. Predial, devendo ser declarado improcedente a usucapião invocada pela A., como bem ficou decidido pela primeira Instância do Tribunal Judicial de Loulé.


Contra-alegou a A pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.



***



Tudo visto,

Cumpre decidir:



B) Os Factos:


As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. A Autora, é com outros interessados, comproprietária do prédio rústico (com direito e acção a metade do mesmo), descrito na Conservatória do Registo Predial desta comarca, sob a ficha 9656 da Freguesia de S. Clemente, inscrito na Matriz respectiva sob o n.º 3925, (fls.15 – Certidão do Registo Predial)

2. O prédio identificado em 1º, era inicialmente constituído: por terra de semear, com árvores e casas para habitação de caseiro e recolha de alfaias agrícolas, com vários compartimentos, cavalariça, palheiro, pocilgo e pequeno logradouro, no sítio de Alfarrobeira, confrontando do norte com MM, do sul com KK e NN, do nascente com o mesmo KK e do poente com a Estrada Nacional, inscrito na respectiva matriz predial rústica, sob o artigo número 2017.

3. O prédio identificado em 1º, encontrava-se então inscrito na matriz sob aquele artigo como uma courela de terra de semear, com 12 amendoeiras e 1 figueira, com a área de 1370 m2, confrontando do norte com MM, do nascente com KK, do sul NN e do poente com Estrada Nacional, dele não constando as casas para habitação de caseiro e recolha de alfaias agrícolas, com vários compartimentos, cavalariça, pocilgo e logradouro.

4. Os antecessores da autora e os seus rendeiros, cultivavam o prédio referido, semeando e colhendo favas, tratando os frutos das amendoeiras, alfarrobeiras e figueiras, recolhendo-os numa das casas de habitação, pelo menos até 1986, ou seja, até ao falecimento do JJ, marido da tia da A.

5. Tal actividade era feita de forma regular, sendo mais intensa na altura da recolha dos frutos secos, tendo em conta que os antecessores da autora não habitavam lá em permanência, pois residiam na vila de Loulé.

6. Os antecessores da autora e seus arrendatários, utilizavam as casas no prédio existente, nelas habitando, pelo menos um dia por semana.

7. Desfrutavam-nos como coisa sua, exercendo sobre todo o prédio, os poderes próprios de proprietários.

8. O que sucedia há pelo menos 20 anos.

9. Á vista de todas as pessoas.

10. Sem oposição de quem quer que fosse.

11. De forma ininterrupta até 1986.

12. Na intenção e convicção de que as casas para habitação de caseiro e recolha de alfaias agrícolas, do prédio descrito em 1º, 2º e 3º, lhes pertencia e lhes pertence,

13. Esse seu direito sempre foi respeitado por todas as pessoas,

14. A Autora e seus familiares, deixaram de ir com assiduidade ao prédio descrito em 1º, 2º e 3º, só o fazendo, quando se deslocavam ao Algarve, no mês de Agosto e por alturas do carnaval, Páscoa e Natal e na festa da Nª Senhora da Piedade Padroeira da cidade, que acontece duas semanas depois da Páscoa.

15. A autora verificou que o prédio atrás identificado, não se encontrava descrito na respectiva conservatória, pelo que, diligenciou nesse sentido, ou seja, em proceder á descrição na conservatória, o que efectivamente fez.

16. O prédio identificado nos artigos 1º e seguintes, era confinante com o prédio a seguir identificado: urbano térreo, destinado a habitação, composto com três compartimentos, dependência para cozinha, pátio com cisterna, regressismo e pocilga, com a área total de 152 m2, correspondendo 52 m2 á superfície coberta e 100 m2 á área descoberta, confrontando do norte terras do proprietário, do sul e nascente do proprietário e do poente de herdeiros de OO e proprietário, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º 6079, de que eram possuidores KK e LL.

17. Falecidos os identificados KK e mulher, fizeram-se habilitar como herdeiros destes, os RR.,

18. E uma vez habilitados, mediante entrega na respectiva repartição de finanças, fizeram os mesmos RR., inscrever na matriz os prédios identificados nos artigos 1º, 2º, 3º e 16º dos factos acima, como sendo um prédio urbano com a área coberta de 210 m2 e logradouro de 1933 m2 num total de 2143 m2, artigo matricial 10426.

19. Posteriormente promoveram a descrição do imóvel, como um prédio melhor identificado nos factos anteriores, então não descrito na respectiva conservatória, tendo-lhe sido atribuída a ficha 08483 da freguesia de S. Clemente

20. No imóvel agora descrito sob a ficha n.º 08483 da freguesia de S. Clemente, incluíram os RR., como sendo sua toda a área do prédio de que a Autora, é comproprietária, mediante a apresentação da planta constante nos documentos 8 e 9.

21. E passaram as RR, a dizerem genericamente, que a parcela da A, lhes pertencia.

22. Bem como impediram a A, de aceder á parcela em causa, e de exercer sobre elas os seus direitos, tendo até as RR, manifestado expressamente pelo menos por uma vez a vontade de impedir tal exercício.

23. Vez essa ocorrida em 2006, quando a A e seu marido, pretenderam visitar o prédio dos autos e respectivas habitações, e foram impedidos pela R, DD, que lhes disse que ali nada tinham que ver ou visitar, que o prédio só lhes pertencia a elas.

24. KK (também conhecido por KK) e mulher LL, casados em comunhão geral de bens, residiram no sítio da …, S. Clemente, Loulé, e aí faleceram, respectivamente ele em 20/06/1987 e ela em 03/02/1989,

25. E, pelo menos desde meados do ano de 1952 e até à data da sua morte ocorrida respectivamente em 20/06/1987 e em 03/02/1989 os referidos KK e mulher LL, moraram e residiram permanentemente no prédio urbano térreo, destinado a habitação, composto com três compartimentos, dependência para cozinha, pátio com cisterna, regressismo e pocilga, com a área total de 152 m2, correspondendo 52 m2 à superfície coberta e 100 m2 á área descoberta, confrontando do norte terras do proprietário, do sul e nascente do proprietário e do poente de herdeiros de OO e proprietário, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º 6079, de que eram possuidores KK e LL.

26. Tendo os referidos KK e mulher LL desde meados do ano de 1950 e até 20/06/1987 e 03/02/1989 respectivamente, morado no referido prédio urbano, nele dormindo, nele tomando as suas refeições, nele recebendo as visitas e os seus amigos, nele criando as suas filhas e ora Rés BB, CC, DD, e o seu filho PP, pré-falecido e pai da Ré FF, nele criando os seus animais domésticos, nele guardando os seus animais de trabalho, nele guardando as suas alfaias agrícolas, nele guardando os seus móveis e bens do quotidiano e do seu dia a dia, nele guardando os frutos das suas colheitas agrícolas, das suas árvores e das suas sementeiras, e bem assim usando e cultivando todo o logradouro desse prédio, semeando e colhendo no mesmo.

27. E fazendo tudo o referido em termos idênticos aos usados e praticados pelos donos e proprietários plenos, e fazendo-o à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, (de qualquer pessoa), de forma ininterrupta e continuadamente, tanto de dia como de noite, e na convicção de serem os seus únicos e exclusivos donos e possuidores.

28. E, após a morte dos referidos KK e LL, e de forma contínua, primeiro a dita LL e os ora R. R. BB, CC, DD e marido EE e FF, e, após a morte da LL, (só) os ora R. R. BB, CC, DD e marido EE, e FF, continuaram, de forma pública, pacífica, contínua, e de boa – fé, a possuírem, em termos de propriedade plena

29. Utilizando-o frequentemente, nele guardando alguns utensílios, nele mantendo instalado uma cozinha pronta a funcionar, nele iniciando obras para construção de uma casa de banho, e bem assim tratando do logradouro desse prédio e respectivas árvores de fruto, lavrando por vezes o terreno desse logradouro e nele instalando uma pequena estufa que actualmente já está danificada, e bem assim procedendo à limpeza e cortes de várias das árvores existentes nesse logradouro

30. E tudo o referido no artigo antecedente deste articulado é feito de forma contínua e sem interrupções, quer de dia, quer de noite, com o conhecimento e à vista de todos, sem oposição e sem contrariedade de ninguém e de boa-fé e sem violência de qualquer espécie e com a convicção por parte dos R. R. de estes serem os donos e proprietários do prédio referido.



C) O Direito:


Delimitando o “thema decidendum” no presente recurso de revista está em causa a posse dos RR do prédio descrito em sede de facto com o nº1; a existência a seu favor de registo; a não verificação da usucapião por parte da A.

Relativamente à usucapião dos RR quanto ao prédio descrito em 1 e 2 da matéria de facto diz o Tribunal da 1ª instância que “os RR são possuidores do prédio urbano térreo, destinado a habitação…com a área total de 152 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 6079 de que eram possuidores KK e LL, sendo que é apenas isso que se prova. Não ficou provado que também sejam possuidores do demais terreno e prédio urbano em causa nos autos, pelo menos antes de 2006, data em que uma das rés o afirma ao marido da autora e à própria autora. Até essa data a posse das rés relativa ao terreno rústico e urbano em causa é precária de mera detentora, porquanto sabiam perfeitamente que o mesmo não lhes pertencia”

Assim, continua a mesma sentença “a partir de 2006 ainda não se perfez o requisito do decurso do tempo para qualquer usucapião dos réus”

Com este fundamento entendeu o Tribunal da 1ª instância julgar improcedente o pedido reconvencional.

Os RR não apelaram desta decisão pelo que não podem em sede de revista pretender ver apreciada a usucapião deles relativamente ao prédio em apreço. Resta apenas apreciar a questão da existência de um registo a favor dos ditos RR.

Constitui jurisprudência pacífica que o Registo Predial, no nosso ordenamento jurídico, tem natureza declarativa e não constitutiva – o registo não dá nem tira direitos – pois decorre do art.1º do Código do Registo Predial (CRP) que o mesmo se destina a dar publicidade à situação jurídica dos prédios tendo em vista a segurança do comércio imobiliário.

De acordo com o art. 7º do CRP decorre a presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito. Trata-se, contudo, de uma presunção legal “iuris tantum” ilidível por prova em contrário nos termos do art.350ºnº2 do Código Civil (CC).

Assim, embora o nº 1 do art.5º do CRP estabeleça a regra da eficácia contra terceiros dos factos sujeitos a registo depois da data da sua inscrição, o nº2 do mesmo artigo exceptua da regra anterior a aquisição por usucapião no que diz respeito aos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão.

A usucapião vale por si, como forma de aquisição originária que é, não podendo ser prejudicada pelas eventuais inscrições registais.

O facto de os RR terem registado o imóvel em litígio não impede o reconhecimento da propriedade da A com fundamento na usucapião.

Resulta provado nos autos a usucapião dos antecessores da A sobre o prédio em apreço que o mantiveram na sua posse. Reconhece-se também, em ambos os arestos (sentença da 1ª instância e acórdão da Relação) que os antecessores da A (tios desta) exerceram a posse comportando-se como proprietários, durante mais de vinte anos, à vista de toda agente e sem oposição de ninguém e que, por testamento, transmitiram à A a posse que detinham sobre o dito prédio.

Nos termos do art. 1263º b) do CC a posse adquire-se pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor. A sucessão “per universitatem”, relativamente à A, não é causa de aquisição de uma nova posse, mas sim um modo de transmissão da posse dos seus antecessores. À data da morte destes já a usucapião do prédio em causa se havia verificado, sendo irrelevante para o efeito o decurso temporal posterior.

A A herdou um prédio pertencente aos seus antecessores transmitindo-se-lhe a posse que estes tinham sobre o mesmo.

O facto de a A não residir no imóvel não perturba a posse que esta adquiriu sobre ele. A posse não obriga o possuidor a permanecer ininterruptamente no imóvel possuído. É preciso que este continue a deter o “corpus” e o “animus” caracterizadores daquela figura. E isso, resulta da matéria provada pois a A e seus familiares embora não se deslocassem ao prédio com assiduidade, contudo, faziam-no quando se deslocavam ao Algarve, no mês de Agosto e por alturas do carnaval, Páscoa e Natal e na festa da Nª Senhora da Piedade Padroeira da cidade, que acontece duas semanas depois da Páscoa.

Assim, nenhum reparo nos merce o acórdão recorrido, não tendo sido violadas as normas invocadas pelos recorrentes.



Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em negar revista confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 3 de Março de 2016


Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

António da Silva Gonçalves