Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
982/07.1TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
CONVENÇÃO CMR
INCUMPRIMENTO
NEGLIGÊNCIA
DOLO EVENTUAL
DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.47
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I) - O cumprimento dos contratos deve ser pontual – art. 405º do Código Civil – no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto, não se satisfaz, em tempo de cada vez maior eticização das condutas negociais segundo os deveres do tráfego inerentes a cada tipo contratual, com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa-fé) entre credor e devedor, sobretudo, no domínio das relações intersubjectivas, mormente nos negócios jurídicos, avultando o dever de cooperação, de entre os deveres acessórios de conduta.

II) – Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762º, nº2, do Código Civil – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.

III) – Impende sobre o transportador, como devedor da prestação do transporte – uma obrigação de resultado, [a deslocação incólume das mercadorias desde a sua recepção até à entrega ao destinatário] e, também, a adopção de deveres acessórios de conduta.

IV) - Na Convenção CMR, sobre o transportador e seus auxiliares, quando os houver, impende uma presunção de culpa que, se não for ilidida, implica em caso de demora na entrega – provando o interessado a existência de prejuízo – uma indemnização que não excede o preço do transporte; estamos perante uma indemnização forfetária.
Já assim não é, se o dano emergente da demora ou da perda da mercadoria resultarem de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que, segundo a jurisdição do país julgador, seja considerada equivalente ao dolo.

V) - Sendo a culpa um juízo de censura ético-jurídico, em função da actuação efectiva do agente, nas concretas circunstâncias em que agiu, e aquela que teria alguém razoavelmente prudente, avisado e cumpridor nesse mesmo quadro factual – o padrão do bonus pater famílias – desde logo, não pode abstrair-se das obrigações emergentes do tipo contratual, dos direitos e deveres implicados nas prestações recíprocas, das regras da boa-fé, bem como do padrão de conduta postulado por uma actuação que respeite os interesses da contraparte, visando a não frustração das expectativas do credor (princípio da confiança), para aferir se uma certa actuação culposa exprime negligência consciente ou dolo, ainda que indirecto ou eventual.

VI) – Próxima da figura do dolo, a negligência consciente consiste no facto do agente ter previsto a falta de cumprimento como efeito provável da sua conduta, mas, ainda aí, se demitir, voluntariamente, de adoptar uma actuação que evitaria o dano, ficando indiferente ou desconsiderando os efeitos dessa actuação, que representou como consequência do modo como, in concreto, agiu.

VII) – A negligência consciente coabita, paredes meias, com o dolo indirecto, razão pela qual se nos afigura de distintiva relevância convocar o tipo de contrato em causa, os deveres implicados na prestação do devedor, o padrão da sua actuação como profissional no contexto de uma actividade de maior ou menor relevância social e económica, tudo de par com a expectativa do credor na prestação e focados na maior ou menor complexidade da relação obrigacional.

VIII) – Se for de considerar que a concreta relação contratual exige uma actuação mais prudente e diligente do devedor que não cumpre, podendo cumprir, sobretudo num quadro factual que não dirime a sua culpa, ao ponto de não se poder afirmar que não previu, nem podia prever que a sua actuação iria causar danos, então deve considerar-se que a sua actuação se elevou do patamar mais benigno da negligência consciente, para considerar que agiu com dolo indirecto ou necessário.

IX) A Ré transportadora agiu com dolo eventual ao não responder durante cerca de dois meses às solicitações da Autora, quanto ao destino dos bens transportados para a Alemanha, que deveriam ser entregues num prazo determinado, assim inviabilizando a entrega atempada da mercadoria, sabendo que o prazo era um elemento deveras essencial do interesse do credor e que não sendo observado causava prejuízos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA-Distribuição de Calçado, Lda.”, intentou em 25.6.2007, pelas Varas Cíveis da Comarca do Porto – 3ª Vara – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

BB e Transitários, Lda.”

Alegando, no essencial que, tendo celebrado com ela um contrato de transporte internacional de mercadorias (para calçado), da Arrifana para dois determinados clientes, na Alemanha, a demandada não cumpriu esse negócio no prazo previsto, e quando fez o transporte a mercadoria foi recusada e não foi paga, por não ser já susceptível de comercialização.

Como consequência desse incumprimento, a Autora pretende que a Ré a indemnize pelo valor da mercadoria objecto do transporte (e de duas facturas) e pela perda de novas encomendas daqueles e de outros clientes.

Assim, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) A título de indemnização pelos prejuízos por ela sofridos, a quantia de Eur. 19.189,98, à qual deve acrescer os juros à taxa de 5%, desde a data da reclamação escrita endereçada à Ré, ou seja 11/07/2006, que até à data de 25/06/2007 se computam em Eur. 917,43, nos termos dos art. 17°, nºs 1 e 3, 23°, n.° 5, 29° e 27° da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada celebrada em Genebra em 19/5/1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei 46.235, de 18/03/65, e alterada pelo Protocolo de Genebra de 05/07/78, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei 28/88, de 06/09;
b) Além dos lucros cessantes que vierem a apurar-se em execução de sentença, com juros, contados desde a citação até integral pagamento;
c) Bem como as custas e condigna procuradoria.”

Regularmente citada, a Ré contestou, impugnando parcialmente os factos e deduzindo reconvenção.

Na contestação, a Ré negou a existência de um prazo para a entrega da mercadoria, recorrendo ao que chamou de prazo normal de 15 a 20 dias que cumpriu, através do seu agente, acrescentando que foram os clientes da Autora que não aceitaram os sapatos.

E quando, posteriormente, a Autora autorizou a entrega livre da mercadoria ao seu agente na Alemanha, com novas condições, também não foi possível fazê-la por o seu agente ter então invocado que os clientes finais já não estariam interessados em tais produtos.

Acrescentou que agiu com a diligência e o zelo que lhe eram exigíveis, sem qualquer falha operacional e que a situação teve origem em falha do próprio interessado (recusa inicial de recebimento por parte dos destinatários) ou em circunstâncias que o transportador não poderia evitar e a cujas consequências não dominava.

Invocou ainda a prescrição do crédito da Autora nos termos do art. 32º da CMR.

Por via da reconvenção, pediu a condenação da Autora a pagar-lhe determinados serviços de transportes anteriores e facturados que discriminou, pelo montante total de € 10.047,89 sobre o qual incidem juros de mora, num total, à data da reconvenção, de € 11.888,96 (€ 10.047,89 + € 1.841,47).

Caso a Ré, por mera hipótese, venha a ser condenada em alguma quantia, deve operar-se a compensação com o crédito que tem sobre a demandante, acrescentou.

E terminou:

a) A excepção de prescrição invocada ser declarada procedente, e a Ré absolvida do pedido, a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a Ré absolvida do pedido;
b) Se assim não se entender, deverá a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a Ré absolvida do pedido;
c) Se assim não se entender deve ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional e, consequentemente, ser a Autora condenada a pagar à Ré a quantia de € 11.888,96.”

Notificada, a Autora reconvinda replicou, opondo-se à excepção da prescrição.

Quanto à matéria da reconvenção, embora reconhecendo o valor pretendido, entende que não o tinha que pagar porque a Autora pretendia ser indemnizada pelos prejuízos por ela sofridos, objecto da presente acção.

Como tal invocou a excepção do não cumprimento do contrato.

Defendeu a improcedência da excepção e a inadmissibilidade da reconvenção, mantendo a versão da petição inicial.


A final foi proferida sentença que julgou:

- Parcialmente procedente a acção e condenou a Ré a pagar à Autora a quantia, a liquidar em execução de sentença, equivalente ao preço acordado no âmbito do contrato de transporte a que se reportam os autos, acrescida de juros de mora, à taxa de 5%, ao ano, desde a decisão definitiva de liquidação do crédito da Autora até integral pagamento.

- Parcialmente procedente a reconvenção e condenou a Autora “AA, Lda.” a pagar à Ré “BB, Lda.” a quantia de € 11.888,96.

- Mais determinou que a compensação entre os referidos créditos da Ré e da Autora, deverá ser efectuada em posterior liquidação de sentença, atenta a natureza ilíquida do crédito desta última.


Inconformada, recorreu a Autora, para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 29.10.2009 – fls. 495 a 514 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.


A Autora, de novo irresignada, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

I. Perante a necessidade de aplicação de uma lei internacional que, para obviar a um aproveitamento injusto de uma situação de favor que ela própria contem, dela faz excluir os actos praticados com dolo ou falta que seja imputável ao seu autor e que, “segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo, não pode o intérprete quedar-se por uma aparente “falta” do nosso sistema jurídico para sancionar a injustiça que a paralisação dos efeitos correctivos da aludida exclusão propícia, injustiça que aliás perpetuará, por via da decisão.

i) Mostra-se violado o art. 29.° da C.M.R., cuja correcta interpretação impunha, ainda que para o efeito excepcional da sua aplicação, exactamente como equiparação do dolo à negligência, quando ela assume a gravidade que os factos provados espelham, ainda que a letra da lei não o diga expressamente.

II. Os princípios que se contem no art. 342° do C. Civil integram o critério da normalidade e apelam, na sua aplicação, à sensibilidade do intérprete, o qual não poderá deixar de ter em conta o caso sub judice e a posição relativa das partes, bem como a inerente dificuldade, ou, quiçá, impossibilidade de prova directa de determinados factos, na consideração do direito como um conjunto de normas coesas pelos valores ético-jurídicos
Perante um contrato de transporte, aquela consideração implicará o alijamento da carga probatória da parte mais fraca, o expedidor, pequena empresa que comercializa calçado e pretende exportar 117 e 447 pares de sapatos, perante uma empresa parte de um grupo económico internacional de transporte de passageiros e de mercadorias, sobretudo quando a prova a fazer se reporta a processos intelectuais de pessoas que não conhece nem tem a possibilidade conhecer.

i) Mostram-se incorrectamente interpretadas as normas que se contêm no nº1 do art. 17° da CMR e no nº1 do art. 342° do Código Civil, cuja correcta interpretação impunha considerar-se a prova feita pela recorrente de que a mercadoria não foi atempadamente entregue suficiente para despoletar a responsabilidade da transportadora.

ii) Mostram-se incorrectamente interpretadas as normas que se contem no n.° 2 do art. 17° da CMR e no nº2 do art. 342° do C.C., cuja correcta interpretação impunha considerar-se caber a prova dos factos impeditivos desta responsabilidade, nomeadamente de que existiam “circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar” à recorrida, prova esta que não logrou fazer.

iii) Mostram-se, ainda e por último, incorrectamente interpretadas as normas que se contém nos nºs 1 e 2 do art. 342° e o n.°1 do art. 799°, ambos do Código Civil, bem como o espírito de responsabilização da transportadora em caso de não entrega constante da Convenção C.M.R. (arts. 17°, n.°1, e 29º, nº1) e o princípio de protecção da parte mais fraca, cuja correcta interpretação impunha a solução defendida no corpo desta conclusão.

III. A dinâmica do direito, movida pelas exigências de ordem social que a imprimem e a levou a consagrar o princípio geral da boa-fé, por imposição ao servilismo que nas legislações liberais pretéritas dedicavam ao “pacta sunt servanda”, impõe agora uma concepção menos espartilhada daquele princípio, acolhendo-o de forma mais aberta, atenta a complexidade social em que se vive e a necessária protecção do parte mais fraca, visando em especial, neste acolhimento jurídico e jurisdicional, a natureza das obrigações em causa e as partes coenvolvidas em qualquer tipo ou fase do contrato.

i) A consagração destes deveres permite, aliás, demanda a intervenção do poder jurisdicional, para, fiscalizando as relações contratuais, nomeadamente ao nível da reciprocidade das prestações, as redistribuir de uma forma mais justa e equitativa, mas sempre com base legal, nomeadamente através da repartição do risco e do contorno das dificuldades de prova para a parte que se antolha mais débil neste particular, assim realizando as intenções normativas mais profundas do jurídico.

ii) Infringe de forma grave os seus deveres acessórios de diligência, de cuidado, de informação, a transportadora que face à notícia da falta de entrega da mercadoria e às várias solicitações da expedidora, não responde, nada diz sobre a localização da mercadoria e nada informa sobre o prazo previsto para a sua entrega; postura de arrogância e ignorância que mantém durante mais de três meses, assim violando o princípio geral de boa-fé, ínsito no n.° 2 do art. 762° do C. Civil, tendo impedido a recorrente de cumprir com a sua obrigação, logo de receber o preço contra a entrega da mercadoria, impondo assim, a correcta interpretação deste normativo, se outro motivo não houvesse, a condenação da recorrida nos termos pedidos.

IV. O valor último e a ratio da legitimidade que o Povo hodiernamente confere aos Tribunais, ao poder judicial, nos termos do nº1 do art. 13º, nº1, e do nº1 do art. 202º ambos da Constituição da República Portuguesa, é a realização da Justiça efectiva, real, através de uma decisão justa no resultado, Justiça essa que se pretende defensora dos interesses de todos, mas também dos interesses e da confiança da sociedade, de todos os intervenientes na acção da Justiça e nos Tribunais em geral.
i) Mostram-se incorrectamente interpretadas as normas constantes do art. 23°, n.° 5 e do art. 29°, n.° 1, ambos da C.M.R., pois constam dos autos elementos que comprovam, à saciedade, ter a recorrida agido, no mínimo, com negligência consciente, logo grave, na execução do transporte em causa, pelo que não pode a recorrida beneficiar da limitação de responsabilidade prevista na primeira destas normas.

ii) Mostra-se violado o nº3 do art. 9° do Código Civil em cujos termos uma decisão injusta no resultado não pode ser entendida como vontade da lei.

Termos em que deve julgar-se o presente recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que condene a recorrida nos termos peticionados.

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) - A Autora é uma empresa que se dedica ao comércio de calçado (alínea A).

2) - A Ré é uma empresa comercial que se dedica ao transporte de mercadorias (alínea B).

3) - No exercício da sua actividade, a Autora vendeu 117 pares de sapatos à “S....... S... G... & Co KG”, pelo preço de € 4.302, 45 – cfr. factura n.º 1416 junta sob doc. n.º 1 – e 447 pares de sapatos à “S..... K....n G....”, pela quantia de € 14. 887, 63 – cfr. factura n.º 1417 junta sob o doc. n.º2 (alínea C).

4) - Para concretizar tal fornecimento e entrega, a Autora encarregou a Ré de efectuar o transporte daquela mercadoria, por via terrestre, das suas instalações, localizadas em Arrifana, até às clientes destinatárias, ambas sitas na Alemanha, conforme moradas constantes das facturas supra identificadas (alínea D).

5) - Assim, após emitir as facturas n.ºs 1416 e 1417, indispensáveis ao transporte além fronteiras da mercadoria, entregou-as à Ré no dia 10.03.2006, data em que a mercadoria foi recolhida nas instalações da Autora e carregada num camião para, supostamente, seguir para a Alemanha (alínea E).

6) - Tratando-se de mercadoria da colecção Primavera/Verão 2006, esta deveria ser entregue de Janeiro a finais de Março do ano a que respeita (alínea F).

7) - No dia 3.04.2006, às 13 h e 41 m, a Ré comunicou à Autora a recusa da mercadoria devido à falta de encomenda por parte dos clientes destinatários e que o representante da Autora na Alemanha, Exmº Sr. CC, pediu que a mercadoria lhe fosse entregue na condição de entrega livre, para a sua morada e sem qualquer pagamento, o que lhe permitiria negociar e convencer os clientes destinatários a aceitarem os sapatos – cfr. fax da Ré junto sob o doc. n.º 5 (alínea G).

8) - Confrontada com o sucedido e dada a urgência na sua resolução, a Autora não só acedeu ao pedido, como o fez no próprio dia, passados menos de 40 minutos, às 14 h e 31 m, autorizando a entrega livre da mercadoria, designadamente os sapatos objecto das facturas n.ºs 1416 e 1417, conforme fax da Autora e comprovativo de envio juntos sob o doc. n.º 6 (alínea H).

9) - Assim, a mercadoria não deveria ser entregue às clientes destinatárias, antes ao representante da Autora na Alemanha, com as reservas supra expostas (alínea I).

10) - Tal não aconteceu, pois não só em Abril, mas também em Maio, o Exmº Sr. CC comunicou à Autora não ter recebido as mercadorias referentes às facturas n.ºs 1416 e 1417 (alínea J).

11) - A Ré, através de fax enviado à Autora a 14.09.2006 e reiterando o teor de comunicações anteriores, declinou qualquer responsabilidade no pagamento da indemnização de € 19. 189, 98 (alínea K).

12) - No exercício da sua actividade comercial, a Ré prestou à Autora, a pedido desta, diversos serviços de transporte, tendo, para o efeito, emitido as facturas constantes sob os n.ºs 1 a 90 da contestação, cujo teor se dá por reproduzido (alínea L).

13) - As aludidas facturas totalizam o montante de € 10. 047, 89 (alínea M).

14) - Os valores ora reclamados pela Ré só não foram pagos porque a Autora pretendia ser indemnizada pelos prejuízos por ela sofridos, objecto da presente acção (alínea N).

15) - A mercadoria entregue pela Autora à Ré foi por esta transportada para o Porto, sem o acordo ou o conhecimento da Autora, onde permaneceu até ao dia 16.03.2006 (art. 1).

16) - Em condições de normalidade, o transporte, por via terrestre, de mercadorias de Portugal para a Alemanha demora, no máximo, entre 7 a 10 dias (art. 2).

17) - Por via dos factos referidos na alínea J) dos factos assentes, a funcionária da Autora, DD, efectuou vários telefonemas para a Ré, solicitando o comprovativo da entrega da mercadoria, pedido este que, em face da ausência de respostas, formulou, depois, por escrito e através do fax de 26.05.2006, constante de fls. 26 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (art. 4).

18) - Na falta de resposta, a Autora reenviou o fax, anteriormente destinado à Ex.ª Sr.ª Dª Marisa, a outra funcionária da Ré, à atenção da Exmª Srª Dª GG em 6.06.2006, conforme documento n.º 7 – junto com a p.i – (art. 5).

19) - Assim, no dia seguinte, aquela funcionária da Ré não só reconheceu perante o sócio da Autora, Exmº Sr. Dr. EE, como confirmou à Autora que a carga referente à factura n.º 1417 ainda se encontrava no agente da Ré na Alemanha e a mercadoria referente à factura n.º 1416 em Paris, conforme doc. n.ºs 8 e 9 juntos com a p.i. (art. 6).

20) - O representante da Autora, Sr. CC, veio a ser contactado posteriormente pelo agente da aqui Ré, em data não exactamente apurada, mas sempre posterior a 7.06.2006, para receber as mercadorias em apreço (art. 7).

21) - A 8.07.2006, por fax recebido pela Autora a 10.07.2006, o aludido agente da Autora na Alemanha deu conta a esta que os clientes destinatários da mercadoria a tinham recusado e que não lhe era a ele já possível vender as mesmas mercadorias a outros clientes, conforme fax de fls. 31 e 32 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (art. 8).

22) - Por via do atraso na entrega da mercadoria, os iniciais destinatários da mercadoria já não tinham interesse, nesta altura – Junho ou Julho de 2006 – na sua aquisição, nem era já possível ao representante da Autora efectuar a sua venda a outros clientes (art. 9)

23) - Tendo a Autora, logo no dia 11.07.2006, comunicado à Ré a recusa dos clientes destinatárias em receber a mercadoria objecto das facturas n.ºs 1416 e 1417, em virtude do atraso observado (art. 10).

24) - Além de responsabilizar a Ré pelos prejuízos por ela sofridos, no valor dos sapatos por ela fabricados e não pagos no valor de € 14. 887, 63 e € 4. 302, 35 (art. 11).

25) - Por via do sucedido, a Autora não vendeu as mercadorias em apreço, sendo certo que auferiria ela, com essa venda, uma margem de lucro de cerca de 15 a 20% do seu valor (art. 13).

26) - Após os factos acima narrados, os clientes destinatários não voltaram a ter negócios com a aqui Autora (art. 14).

27) - A Autora tinha a expectativa de vir a ter outros negócios com as empresas destinatárias da mercadoria em apreço (arts. 16 e 17).

28) - A mercadoria em apreço foi entregue à Ré para ser transportada e entregue aos seus destinatários, com sede na Alemanha, contra o pagamento imediato das mesmas através de cheque pré-datado a 10 dias, condições que o transportador deveria cumprir (arts. 18 e 19).

29) - A Ré trabalha, em regime de agenciamento, com a “Zieglergroup”, empresa sedeada em Paris – França (art. 20).

30) - Na Alemanha, os destinatários da mercadoria, inicialmente, recusaram recebê-la contra o imediato pagamento por cheque pré-datado a 10 dias (art. 23).

31) - Por via dessa recusa, uma parte da mercadoria (atinente à factura 1416) regressou a Paris, ao agente da Ré, e outra parte (atinente à factura 1417) ficou na Alemanha no agente da aqui Ré (art. 24).

32) - A mercadoria chegou à Alemanha em meados ou finais de Março, mas sempre após o dia 17.03.1006 (art. 25).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber qual a extensão e medida da responsabilidade da Ré face à relação jurídico-contratual estabelecida com a Autora.

As partes não discordam da qualificação do contrato que pactuaram.

Foi celebrado entre a Autora, como expedidora/vendedora e a Ré, como transportadora, um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada a que se aplica a comummente designada Convenção CMR ou CMR.

Cunha Gonçalves – in “Comentário ao Código Comercial”, II, 394 – definia o contrato de transporte “como sendo o que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas cousas de um lugar para o outro e aquele que, por um determinado preço, se encarregue dessa condução”.

Tal Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada – CMR –, de 19 de Maio de 1956, inserida no direito interno português pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, foi aprovada em Portugal para adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro, aplica-se segundo o seu art. 1º, a – “Todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes”.

A Autora entende que a Ré cumpriu esse contrato defeituosamente, do ponto em que entregou as mercadorias transportadas de Portugal para a Alemanha – sapatos – fora do prazo que seria razoável, além de ter violado deveres que reputa integrados na prestação de transporte e entrega convencionados no contrato.

As mercadorias com destino à Alemanha foram carregadas num camião da Ré, no dia 10.3.2006, eram sapatos vendidos pela Autora à compradora/destinatária alemã, para a colecção Primavera/Verão de 2006, pelo que deveriam ser entregues de Janeiro a finais de Março desse ano.

Como resulta do item 6) dos factos provados, no dia 3.4.2006, já as mercadorias estavam em condições de ser entregues ao comprador, ou seja, o camião estava na Alemanha.

Todavia, as mercadorias não foram recebidas pelo comprador, tendo a Ré de pronto informado a Autora que deu autorização para que fossem entregues livres de pagamento ao seu (da Autora) agente CC.

Como se acha provado – “Tal aconteceu, pois não só em Abril, mas também em Maio, o Sr. CC comunicou à Autora não ter recebido as mercadorias referentes às facturas n.°s 1416 e 1417 (alínea J).
A Ré, através de fax enviado à Autora a 14.09.2006 e reiterando o teor de comunicações anteriores, declinou qualquer responsabilidade no pagamento da indemnização de € 19. 189, 98 (alínea).
Por via dos factos referidos na alínea J) dos factos assentes, a funcionária da Autora, DD, efectuou vários telefonemas para a Ré, solicitando o comprovativo da entrega da mercadoria, pedido este que, em face da ausência de respostas, formulou, depois, por escrito e mercadoria, através do fax de 26.05.2006, constante de fls. 26 dos autos […] (art. 4).
Na falta de resposta, a Autora reenviou o fax, anteriormente destinado à Ex.ª Sr.ª D.ª FF, a outra funcionária da Ré, em 6.06.2006 – (art. 5). Assim, no dia seguinte, aquela funcionária da Ré não só reconheceu perante o sócio da Autora, como confirmou à Autora que a carga referente à factura n.° 1417 ainda se encontrava no agente da Ré na Alemanha e a mercadoria referente à factura n.° 1416 em Paris […].
O representante da Autora, Sr. CC, veio a ser contactado posteriormente pelo agente da aqui Ré, em data não exactamente apurada, mas sempre posterior a 7.06.2006, para receber as mercadorias em apreço (art. 7).
A 8.07.2006, por fax recebido pela Autora a 10.07.2006, o aludido agente da Autora na Alemanha deu conta a esta que os clientes destinatários da mercadoria a tinham recusado e que não lhe era a ela, já possível vender as mesmas mercadorias a outros clientes, conforme fax de fls. 31 e 32 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (art. 8).
Por via do atraso na entrega da mercadoria, os iniciais destinatários da mercadoria já não tinham interesse, nesta altura – Junho ou Julho de 2006 – na sua aquisição, nem era já possível ao representante da Autora efectuar a sua venda a outros clientes (art. 9).
Tendo a Autora, logo no dia 11.07.2006, comunicado à Ré a recusa dos clientes destinatárias em receber a mercadoria objecto das facturas n.°s 1416 e 1417, em virtude do atraso observado (art. 10).
Por via do sucedido, a Autora não vendeu as mercadorias em apreço, sendo certo que auferiria ela, com essa venda, uma margem de lucro de cerca de 15 a 20% do seu valor.
Por via dessa recusa, uma parte da mercadoria (atinente à factura 1416) regressou a Paris, ao agente da Ré, e outra parte (atinente à factura 1417) ficou na Alemanha no agente da aqui Ré (art. 24).”

Sustenta a Autora, que se deveu a incumprimento da Ré o facto das mercadorias não terem sido recebidas pelo comprador, por não terem sido entregues atempadamente, após as vicissitudes relatadas.

Apenas o foram em Julho de 2006, quando como resulta provado, se destinavam à colecção Primavera/Verão não sendo vendáveis em Julho desse ano, nem interessando a nenhum comprador.

Não discutem as partes que o contrato não foi cumprido, o que, desde logo, implica consenso sobre o objecto da actuação da Ré, que não se quedava meramente pelo transporte, mas também por deveres acessórios inerentes à prossecução de um resultado – a entrega dos bens transportados ao destinatário – bem sabendo que se não o fossem dentro de prazo compatível com a disponibilidade de comercialização para a estação de moda Primavera /Verão os fins prosseguidos pela transacção não seriam alcançáveis.

Daí que a Ré, ante a impossibilidade inicial de entrega a si não imputável, tivesse agido com acerto ao comunicar de imediato à Autora que o destinatário não recebeu as mercadorias.

Mas a conduta posterior da Autora, como a Relação concluiu, foi censurável do ponto em que, não dando pronta resposta aos insistentes pedidos da Autora acerca do paradeiro dos sapatos e das facturas, isso acabou por frustrar qualquer actuação da Autora em tempo útil, sendo que, quando finalmente a Ré quis entregar as mercadorias, já se estava no final de Julho e não foram aceitas.

O cumprimento do contrato deve ser pontual – art. 405º do Código Civil – no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto, não se satisfaz, em tempo de cada vez maior eticização das condutas negociais segundo os deveres do tráfego inerentes a cada tipo contratual, com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa-fé) entre credor e devedor, sobretudo, no domínio das relações intersubjectivas, mormente nos negócios jurídicos, avultando o dever de cooperação, de entre os deveres acessórios de conduta.

As partes sabendo do interesse económico do contrato reflectido na natureza das prestações que lhes incumbem não podem limitar-se, diríamos a uma actuação formal, automatizada, que desconsidere os interesses da parte contrária.

Estamos confrontados com os deveres acessórios de conduta, implicando a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, avultando o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada.

Deveres acessórios de conduta que, na definição de José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”-1986, 42, nota 8:

“São os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, págs. 124/125, depois de referir que, além dos deveres principais ou típicos da prestação nos contratos nominados, existem outros a que se pode chamar deveres secundários ou acidentais, define os deveres de conduta como aqueles que:

“ Não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cfr. art. 817º e segs.) são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”.

Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762º, nº2, do Código Civil – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.

O Professor Menezes Cordeiro na recente obra – “Tratado de Direito Civil Português – II – Direito das Obrigações – 2010 – pág. 365 e segs. – antes de abordar a problemática do cumprimento e do incumprimento do contrato-promessa, alude aos conceitos de cumprimento e do incumprimento, escrevendo acerca daquele:

“Diz-se cumprimento a realização da prestação devida. Pela natureza das coisas, estamos perante uma realidade nodal, no seio das obrigações: a concretização, pelo devedor ou por terceiro, do programa previsto pela obrigação em causa.
Podemos simplificar fazendo corresponder, ao cumprimento, quatro princípios:
-princípio da correspondência: a actuação adimplente deve reproduzir, qualitativamente, o figurino abstracto prefixado pela obrigação;
-princípio da integralidade: a prestação não deve ser efectuada por partes (763 °/1) prevalecendo uma indivisibilidade de raiz:
-princípio da concretização: a conduta devida deve realizar, no terreno, o interesse do credor;
-princípio da boa fé: na execução do vínculo, há que acatar a medida de esforço exigível e os deveres acessórios existentes, de modo a acautelar os valores fundamentais do ordenamento, através da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente (1) (762° /2).
O princípio da concretização – traz-nos dados novos, que não se continham, necessariamente, na obrigação: eles dependem do terreno em que o cumprimento tenha lugar”.

A Ré, com a sua actuação, violou o princípio da concretização, ao não realizar “no terreno” os interesses que sabia serem os do credor, a Autora, e infringiu o dever de actuar de boa-fé ao não acautelar a confiança que a Autora depositou na sua prestação, violando deveres acessórios de conduta que, se observados, lhe impunham uma pronta resposta às solicitações da Autora, por não poder ignorar que as mercadorias tinham um timing, negocialmente inultrapassável relativo à entrega da mercadoria, sabido que se destinava a ser comercializada como artigos de moda para a estação Primavera/Verão.

Impendendo sobre o transportador, como devedor da prestação do transporte – uma obrigação de resultado, [a deslocação incólume das mercadorias desde a sua recepção até à entrega ao destinatário] e, também, como vimos, a adopção de deveres acessórios de conduta, importa saber se, nas concretas circunstâncias do caso, a Ré agiu com culpa, ou seja, saber se nas circunstâncias referidas agiu com a diligência exigível segundo o padrão de um profissional experiente, conhecedor e responsável – a diligência do bonus pater famílias – art. 487º, nº2, do Código Civil.

A Relação concluiu que a Ré actuou com negligência quanto à entrega da mercadoria, sendo-lhe imputável a demora.

A Convenção CMR estabelece um regime especial, em relação ao critério de relevância da culpa e suas consequências no plano ressarcitório, em caso de incumprimento do contrato de transporte.

Dispõe o seu art. 17º

“1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.
2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.”

O art. 19º define o conceito de “demora”.

Há demora na entrega quando a mercadoria não foi entregue no prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, quando a duração efectiva do transporte, tendo em conta as circunstâncias, e em especial, no caso de um carregamento parcial, o tempo necessário para juntar um carregamento completo em condições normais, ultrapassar o tempo que é razoável atribuir a transportadores diligentes”.

O art. 20º:

“1. O interessado, sem ter de apresentar outras provas, poderá considerar a mercadoria como perdida quando esta não tiver sido entregue dentro dos 30 dias seguintes ao termo do prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, dentro dos 60 dias seguintes à entrega da mercadoria ao cuidado do transportador.”

O art. 23º, nº5, estatui:

“ No caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte.

O art. 29º, nº1:

“ O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”.

Podemos assim concluir, que na Convenção CMR, sobre o transportador e seus auxiliares quando os houver, impende uma presunção de culpa que, se não for ilidida, implica em caso de demora na entrega – provando o interessado a existência de prejuízo – uma indemnização que não excede o preço do transporte; estamos perante uma indemnização forfetária.

Já assim não é se o dano emergente da demora ou da perda da mercadoria, resultarem de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que segundo a jurisdição do país julgador seja considerada equivalente ao dolo.

Aqui a questão nuclear do recurso.

A actuação da Ré deveu-se a mera negligência, ou deve ser, antes, considerada dolosa, ou equivalente a uma tal conduta?

Na primeira hipótese, a indemnização equivale ao valor do preço do transporte; na segunda, a indemnização deve reparar integralmente os danos (teoria da diferença).

A Relação, depois de abordar os conceitos de dolo e negligência – escreveu:

Para o efeito de aplicação do referido n°1 do art. 29°, [CMR] o sistema jurídico privado português não equipara nenhuma situação de negligência ao dolo, ainda que de negligência grave ou grosseira se trate e, por maioria de razão, quando o grau de culpa não vai além da negligência consciente”.

Assim, tendo considerado que a actuação da Ré não integra dolo eventual, concluiu que actuou com “uma negligência média/alta”, mas não com “culpa grosseira ou grave.”

Mais defendeu que sobre a Autora impendia o ónus da prova da conduta dolosa.

A Autora/recorrente sustenta que o comportamento da Ré deve ser considerado doloso e, como tal, a indemnização não deve ser a do nº5 do art. 23º da CMR.

Importa analisar, sumariamente, os conceitos de culpa nas várias modalidades, e saber se a actuação da Ré integra mera culpa ou dolo.

Sendo a culpa um juízo de censura ético-jurídico, em função da actuação efectiva do agente, nas concretas circunstâncias em que agiu, e aquela que teria alguém razoavelmente prudente, avisado e cumpridor nesse mesmo quadro factual – o padrão do bonus pater famílias – desde logo, não podemos abstrair das obrigações emergentes do contrato, dos direitos e deveres implicados nas prestações recíprocas, das regras da boa-fé, bem como do padrão de conduta postulado por uma actuação que respeite os interesses da contraparte, visando a não frustração das expectativas do credor (princípio da confiança).

Que a Ré actuou culposamente é inquestionável, ela mesmo o admite.

O busílis está em saber se, como considerou o Acórdão da Relação, se trata de negligência apenas, ainda que grau elevado – “média/alta”.

Dispõe o art. 483º do Código Civil:

“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”

A regra geral é a de que, para se possa responsabilizar outrem pelos prejuízos causados, se exige um nexo de imputação causal de um facto ilícito ao agente, cometido culposamente, com dolo ou negligência, gerador de danos.

Condição primordial para que haja obrigação de indemnizar é a prática culposa de um facto ilícito, gerador de danos – citado art. 483º, nº1, do Código Civil.

A culpa exprime um juízo de censura ético-jurídica ao agente, pelo facto de no caso concreto, poder e dever ter agido de outro modo, comportamento e actuação que deviam pautar-se pela diligência que uma pessoa, medianamente prudente e cautelosa teria adoptado.

A culpa, em sentido lato, abrange o dolo (directo, necessário ou eventual), a culpa propriamente dita (culpa consciente e inconsciente), e a negligência.

Segundo Pessoa Jorge, in “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil” – pág. 322:

Há “dolo directo”, quando o agente actua para atingir o fim ilícito, ou seja, com a intenção de omitir o comportamento devido; dolo necessário quando, num acto de duplo efeito, o agente pretende atingir o fim lícito, mas sabe que a sua acção determinará inevitavelmente o resultado ilícito; c) dolo eventual, se o agente actuou em vista de um fim lícito, mas com a consciência de que pode eventualmente advir do seu acto um resultado ilícito, e quer aquele mesmo que este se produza”.

Mais adiante – págs. 325-326 – pondera no item – “A culpa em sentido amplo reporta-se à lesão do direito e não aos prejuízos”.

“ […] Sem dúvida, a previsibilidade dos danos pode influir na determinação do comportamento devido em termos de diligência, constituindo uma das circunstâncias eventualmente atendíveis…É, pois, indispensável manter a distinção entre o nexo de imputação, como elemento integrante do acto ilícito, e o nexo de causalidade, a considerar nos requisitos da reparabilidade dos prejuízos, como critério delimitador destes.
E é por isso que a lei trata do nexo de causalidade a propósito da obrigação de indemnizar e não a propósito da responsabilidade. A questão acabada de referir é quase sempre posta com referência à culpa inconsciente. Mas pode colocar-se também a respeito do dolo: para que este surja, basta o conhecimento de que a conduta projectada envolve omissão de outra devida, ou exige-se no agente a consciência de resultarem prejuízos, ou mesmo a intenção de os provocar?
A nosso ver, a solução correcta é a primeira: se o devedor não cumpre, com a consciência de faltar ao seu dever, mas na convicção de não advirem para o credor quaisquer prejuízos, que afinal se produzem, é responsável por não cumprimento doloso”. (destaque e sublinhados nossos)

Almeida Costa, in “Direito das Obrigações” – 11ª edição – pág. 554 – ensina:

“Os factos ilícitos classificam-se em intencionais e meramente culposos: os primeiros são praticados com o intuito (directo ou indirecto) de causar dano (dolo), ao passo que, nos segundos, há apenas imprudência ou negligência do seu autor (culpa em sentido estrito)”.

Nas págs. 582 e 583 – depois de referir que são duas as modalidades de culpa – mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência) e dolo, escreve:

“Aquela consiste no simples desleixo, imprudência ou inaptidão. Portanto, o resultado ilícito deve-se somente a falta de cuidado, imprevidência ou imperícia.
No dolo, ao invés, o agente tem a representação do resultado danoso, sendo o acto praticado com a intenção malévola de produzi-lo, ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito. As diversas ordens de situações que integram o dolo recebem o mesmo tratamento jurídico.
Configuram, porém, três categorias.
A que corresponde à ideia clássica do instituto é a de dolo directo: o autor do facto age com o intuito de atingir o resultado ilícito da sua conduta, que de antemão representou e quis. […].
[…] Desenvolve-se psicologicamente de modo diverso o dolo indirecto ou necessário.
Ocorre quando o agente não tem intenção de causar o resultado ilícito, mas bem sabe que este constituirá uma consequência necessária e inevitável do efeito imediato que a sua conduta visa […].
Também na terceira modalidade, a de dolo eventual, o agente representa o resultado ilícito, mas o dano surge apenas como consequência meramente possível — e não necessária — da sua conduta, actuando ele sem confiar que o mesmo não se produza.
Existe, portanto, do ponto de vista objectivo, uma relação causal entre a conduta do agente e o evento danoso, mais ténue do que a verificada no caso de dolo necessário, como, aliás, se depreende da própria designação de dolo eventual […]” (destaque e sublinhados nossos)

Sendo o dolo, em qualquer das modalidades referidas, uma forma muito mais severa de ligação do facto ao agente, em termos de reprovabilidade da sua conduta, mas não deixando de ser uma forma de culpa, tal com o é a negligência, temos de convir que à luz do Código Civil, estabelecendo o art. 799º, nº2, a presunção de culpa do devedor no contexto da responsabilidade contratual, é despicienda a modalidade de culpa para efeitos de responsabilização, mas já não para efeitos de indemnização dos danos.

Mas, na Convenção CMR, a qualificação da culpa lato sensu tem a maior relevância, pois que, apenas em caso de dolo, ou equiparação no direito nacional, de uma falta grave ao dolo, é que a indemnização deixa de ser a do art. 23º, nº5, da Convenção (o preço do transporte), para ter como critério a reparação integral dos danos segundo a teoria da diferença – arts. 562º e 566º do Código Civil.

Próxima da figura do dolo, a negligência consciente consiste no facto do agente ter previsto a falta de cumprimento como efeito provável da sua conduta, mas, ainda aí, se demitir voluntariamente de adoptar uma actuação que evitaria o dano, ficando indiferente ou desconsiderando os efeitos dessa actuação, que representou como consequência do modo como in concreto agiu.

A negligência consciente coabita, paredes meias, com o dolo indirecto, razão pela qual se nos afigura de distintiva relevância convocar o tipo de contrato em causa, os deveres implicados na prestação do devedor, o padrão da sua actuação como profissional no contexto de uma actividade de maior ou menor relevância social e económica.

Tudo de par com a expectativa do credor na prestação e focados na maior ou menor complexidade da relação obrigacional.

Se for de considerar que a concreta relação contratual exige uma actuação mais prudente e diligente do devedor que não cumpre, podendo cumprir, sobretudo, num quadro factual que não dirime a sua culpa, ao ponto de não se poder afirmar que não previu, nem podia prever que a sua actuação iria causar danos, então deve considerar-se que a sua actuação não se enquadra no patamar mais benigno da negligência consciente, devendo considerar-se que agiu com dolo indirecto ou necessário.

Ora, no caso em apreço, consideramos que a Ré agiu com dolo indirecto pois que descurou com manifesto prejuízo para a Autora, já que não devia, como profissional da actividade de transportes, ignorar que não dando resposta a solicitações do seu cliente, inviabilizou a entrega atempada da mercadoria, sabendo que tal prazo, era um elemento deveras essencial do interesse do credor.

Assim sendo, consideramos que, por ter agido com dolo indirecto, é aplicável não a indemnização prevista no art. 23º, nº5, da Convenção, mas a prevista no seu art. 23º, nº1, ou seja, a indemnização correspondente ao valor da mercadoria objecto do transporte € 14.887,63 – al. C) dos Factos Assentes.

Sobre esta quantia incidem juros de mora, à taxa anual de 5% desde 11.7.2006, data em que a Autora, por escrito, reclamou da Ré o pagamento daquela quantia – arts. 27º, nº1, da Convenção.

Considerando o incumprimento da Ré, a Autora peticionou a condenação da demandada a pagar-lhe os danos cessantes que se vierem a apurar em execução de sentença, pelo facto de se ter frustrado o negócio em causa e outros que tinha a expectativa de celebrar.

A propósito provou-se:

“Por via do sucedido, a Autora não vendeu as mercadorias em apreço, sendo certo que auferiria ela, com essa venda, uma margem de lucro de cerca de 15 a 20% do seu valor (art. 13); após os factos acima narrados, os clientes destinatários não voltaram a ter negócios com a aqui Autora (art. 14); a Autora tinha a expectativa de vir a ter outros negócios com as empresas destinatárias da mercadoria em apreço (arts. 16 e 17)”.

Constituem pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e 487º, nº2, do Código Civil, a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano e a imputação do acto ao agente em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto.

O facto de a Autora não ter vendido as mercadorias em causa, causou-lhe um dano, do ponto em que poderia ter auferido uma margem de lucro de cerca de 15% a 20% do valor das mercadorias objecto do transporte; deixou de ter o comprador como cliente, e perdeu a expectativa de celebrar outros negócios.

De concreto, apenas se provou um dano – a perda da margem de lucro sobre o valor das vendas dos sapatos – valor que se não pode liquidar agora, por ser incerta a margem de lucro que a Autora auferiria, o que implica que o concreto valor em dívida a esse respeito, haja de ser relegado para liquidação em execução de sentença – arts. 564º, nº2, e 661º, nº2, do Código de Processo Civil.

Já não se pode considerar ser dano indemnizável, a existência de prejuízo advindo do incumprimento do contrato o facto da Autora não celebrar outros negócios com o comprador, e ter perdido a expectativa de celebrar outros negócios.

Os factos são insuficientes para caracterizar dano futuro e, sobretudo previsível, já que nada se provou acerca das reais oportunidades de ulteriores negócios.

Destarte, o recurso merece provimento parcial e, assim, a Ré vai condenada, ainda, a pagar à Autora a quantia de € 14.887,63, sobre que incidem juros de mora à taxa anual de 5% desde 11.7.2006 até efectivo reembolso.

Pagará, ainda, à Autora a quantia que se liquidar em execução de sentença, no que respeita à margem de lucro entre 20% e 25% sobre aquele valor, acrescida de juros de mora à taxa legal desde essa liquidação.

Decisão:

Nestes termos, concede-se parcialmente a revista, revogando-se o Acórdão, apenas na parte em que não condenou a Ré nos termos decretados, condenando-a, agora, a pagar à Autora a quantia de € 14.887,63, sobre que incidem juros de mora à taxa anual de 5%, desde 11.7.2006, até efectivo reembolso, nos termos da CMR.

Pagará, ainda, a Ré à Autora a quantia que se liquidar em execução de sentença, no que respeita à margem de lucro, entre 20% e 25% sobre aquele valor, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a liquidação incidental.

No mais mantém-se o Acórdão recorrido.

Custas neste Supremo Tribunal e nas Instâncias, provisoriamente, na proporção de metade, valor que se apurará, em definitivo, após a liquidação em execução de sentença, atendendo-se ao decaimento.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Janeiro de 2010




Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso de Albuquerque
Salazar Casanova

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(1) Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. I, 8ª edição, págs. 58/59 – “Quanto à primazia da materialidade subjacente, ela consiste em avaliar as condutas não apenas pela conformidade com os comandos jurídicos, mas também de acordo com as suas consequências materiais para efeitos de adequada tutela dos valores em jogo. Este princípio realiza-se de acordo com os seguintes vectores: - a conformidade material das condutasa idoneidade valorativao equilíbrio no exercício das posições – cfr. Menezes Cordeiro, Tratado, I-1, p. 416.
A boa fé constitui assim um importante princípio geral de Direito cuja aplicação no Direito das Obrigações se reconduz à imposição de comportamentos às partes, em ordem a possibilitar o adequado funcionamento do vínculo obrigacional, em termos de pleno aproveitamento da prestação, e evitar a ocorrência de danos para as partes”.