Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3901/15.8T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2º SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: SIMULAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
BOA -FÉ
TERCEIRO
ÓNUS DA PROVA
INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
ARGUIÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
MATÉRIA DE FACTO
CONHECIMENTO OFICIOSO
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 56;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 460-461.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 640.º E 662.º, N.º 2, ALÍNEA C).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 243.º, N.º 1, 289.º, N.º 1 E 342.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-03-2014, PROCESSO N.º 207/2001.G1.S1, IN SASTJ, WWW.STJ.PT;
- DE 23-06-2016, PROCESSO N.º 5968/13, IN SASTJ, WWW.STJ.PT;
- DE 07-09-2017, PROCESSO N.º 4363/04.0TBSTS.P1.S1, IN DGSI.PT.
Sumário :
I - As patologias da sentença previstas no artigo 662º, n.º 2 al. c), do CPC, apenas dão lugar à anulação da decisão proferida quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários ao seu suprimento pelo Tribunal da Relação; Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder, enquanto tribunal de substituição, à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas.

II - A intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto, pelo que não são aplicáveis os ónus previstos no art.º 640 do CPC.

III - Os simuladores podem entre si, em determinadas condições, invocar valida e eficazmente a nulidade do negócio simulado em que outorgaram, com os efeitos previstos no artigo 289º, n.º 1, do Cód. Civil.

IV - Todavia, existindo um negócio posterior, à luz do preceituado no artigo 243º, n.º 1, do Cód. Civil, a simulação do primeiro negócio não pode afectar a validade do segundo negócio se o terceiro estiver de boa-fé.

V - O conceito normativo da boa fé consiste na «ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos», isto é, no desconhecimento, à data da celebração do segundo negócio, do vício de simulação que afectava o primeiro.

VI - Incumbe ao terceiro demandado demonstrar que, à data da celebração do segundo negócio, estava de boa-fé, em conformidade com a regra que emerge do preceituado no artigo 342º, n.º 2, do Cód. Civil, conjugada com a regra que emerge do n.º 1 do artigo 243º, do mesmo Código.

Decisão Texto Integral:
Relatório[1]



1. AA e BB, instauraram a presente acção contra CC e DD, pedindo a final:

a) Seja declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda, melhor identificado no artigo 1º da petição inicial, celebrado entre os autores e o 1º réu;

b) Seja declarado nulo e de nenhum efeito o contrato celebrado entre os réus, descrito no artigo 6º da petição inicial;

c) Os réus sejam condenados a reconhecer a nulidade de tais contratos;

d) Seja ordenado o cancelamento das inscrições prediais, lavradas a favor dos réus, referentes ao imóvel que foi objecto dos contratos referidos em a) e b).

Para sustentar as pretensões formuladas, alegaram, em resumo, o seguinte:

- Por escritura pública de compra e venda datada de 19 de Junho de 2009, os autores venderam ao 1.º réu CC, pelo preço de 60.000,00 €, o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão, na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 2…4, negócio esse que foi simulado com o propósito de evitar que uma instituição bancária pudesse penhorar o imóvel em apreço, no âmbito de uma execução movida contra os autores.

- Em 1 de Setembro de 2015, o 1º vendeu à 2ª ré DD o referido imóvel, sendo que a mesma tinha conhecimento dos contornos inerentes ao negócio celebrado em 19/6/2009, o que significa que a nulidade de tal negócio simulado lhe é oponível.


*


2. O 1º réu CC contestou, impugnando parcialmente a matéria alegada pelos autores e peticionando, a título reconvencional, que os autores/reconvindos sejam condenados a:

a) Reconhecer a doação ao réu/reconvinte do prédio dos autos, operada pela escritura de 19/06/2009;

b) Indemnizar o réu/reconvinte dos prejuízos que os mesmos lhe causaram, computados por ora no montante de 68.979,39 €, acrescido dos juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, sem embargo da sua quantificação em sede de liquidação de sentença.


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3. A 2ª ré DD deduziu contestação, impugnando parte da factualidade alegada pelos autores e peticionando, em sede reconvencional, com fundamento na ocupação indevida, por parte do autor marido, do imóvel a que os autos se reportam, que os autores/reconvindos sejam:

a) Solidariamente condenados a reconhecer a validade da compra do prédio dos autos efectuada pela ré/reconvinte;

b) Solidariamente condenados a entregar à ré/reconvinte, livre de pessoas e bens, o prédio dos autos;

c) Solidariamente condenados ao pagamento da quantia de 2.500,00 € à ré/reconvinte, a título de danos não patrimoniais, como compensação dos incómodos e angústias inerentes à inibição do uso e fruição do prédio dos autos;

d) Condenados ao pagamento de sanção pecuniária compulsória, no montante de 2.500,00 € mensais, por cada mês de atraso no cumprimento da sentença condenatória que vier a ser proferida.


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4. Foi proferido despacho saneador, que não admitiu o pedido indemnizatório formulado pelo 1º réu a título reconvencional, prosseguindo os autos com fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.

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5. Realizou-se audiência final, sendo proferida sentença que decidiu a causa nos seguintes termos:

a). Julgar totalmente improcedentes os pedidos formulados pelos autores, absolvendo os réus dos mesmos;

b). Julgar improcedente o pedido reconvencional de reconhecimento da doação formulado pelo réu CC;

c). Reconhecer que a ré/reconvinte DD é proprietária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2…4;

d). Condenar o autor/reconvindo AA a desocupar tal imóvel e a restituí-lo à ré/reconvinte, livre de pessoas e bens.


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6. Inconformados com a sentença, os AA., dela interpuseram recurso de apelação para a Relação do Porto.

7. Em acórdão preliminar a Relação considerou que a 1ª instância não se tinha pronunciado sobre factos essenciais, alegados pela 2ª R., sobre os quais houve produção de prova e entendeu que deveria haver lugar à ampliação da decisão de facto, tendo disso notificado as partes para se pronunciarem sobre tal ampliação pelo Tribunal da Relação. As partes responderam, não se opondo a tal propósito, tendo porém os AA/recorrentes suscitado a questão de que não deveria conhecer-se da matéria em causa porque a Ré, que a alegara, não indicou as provas nos termos impostos pelo art.º 640 do CPC.  

8. Apreciando o recurso o Tribunal veio a « julgar parcialmente procedente a apelação, declarando nulo o contrato de compra e venda celebrado a 19.06.2009 entre o Réu CC e os AA., AA e BB, por simulação absoluta, condenando o Réu CC a tal reconhecer, mas mantendo, em tudo o mais, a sentença recorrida».


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Mais uma vez irresignados vieram interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes


Conclusões:


i) O artigo 640º, nº 1, do CPC, dispõe que: “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”, ao passo que, no seu nº 2, se afirma que “no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. Assim sendo, no âmbito da impugnação sobre a matéria de facto, enquanto que “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”, devem ser, obrigatoriamente, especificadas pelo recorrente, sob pena de rejeição, já quanto aos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar, com exactidão, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, sob pena de imediata rejeição do recurso, na respetiva parte.

ii)  Não tendo sido cumprido tal ónus deveria a douta decisão recorrida ter rejeitado o requerimento de ampliação da matéria de facto e, consequentemente julgar como não provados os pontos 7º e 8º da contestação da R. DD.

iii)  Da matéria de facto dada como provada nada consta quanto ao estado subjectivo da adquirente, aqui recorrida, não tendo sido provado nem que a adquirente conhecia nem que desconhecia o vício de que padecia negócio jurídico anulado, não pode dar-se como provado o requisito da boa fé, uma vez que a lei exige a prova, pela positiva, do desconhecimento, sem culpa, do referido vício.

iv)   A dificuldade da prova dos factos negativos não afasta a regra geral relativa à distribuição do ónus da prova, segundo a qual àquele que invoca um direito – aqui a adquirente/Recorrida que invoca o regime tutelar do art. 291º do CC – cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art. 342º, nº 1, do CC).

v)   Não tendo sido alegados nem provados factos suficientes para integrar o requisito da boa fé, tal como formulado no nº 3 do art. 291º do CC, conclui-se não poder a recorrida beneficiar da especial tutela dos terceiros adquirentes prevista no nº 1 do mesmo artigo.

vi)    Foram desrespeitadas as seguintes normas: 291º e 342º do CC e 640º, n.º 1 do CPC. 

Termos em que e nos demais de Direito devem V. Exas. julgando o presente recurso procedente, substituir a douta decisão recorrida por outra que declare totalmente procedente a Acção, com todas as legais consequências.


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Não houve resposta da parte contrária.

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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que está em causa saber :

- se decidindo o Tribunal da Relação haver necessidade de ampliação da decisão de facto, por terem sido alegados factos com interesse para a decisão e sobre os quais a 1ª instância se não pronunciou, é exigível à parte que os alegou o cumprimento dos ónus impostos ao recorrente que pretende impugnar a decisão de facto (art.º 640º do CPC);

- Se os factos provados são suficientes para que fosse reconhecida a inoponibilidade à R., da nulidade do negócio simulado, celebrado entre AA., e 1º Réu.


Dos factos



Mostra-se consolidada a seguinte factualidade:

«1. Por escritura pública de compra e venda datada de 19 de Junho de 2009, os autores declararam vender ao 1.º réu, pelo preço de 60.000,00 €, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, destinada a habitação, sito no Lugar …, freguesia da …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 2…4 e inscrito, à data, na matriz predial urbana sob o artigo 165.

2. Nem os autores quiseram vender, nem o 1º réu quis comprar o imóvel supra identificado (aditado pela Relação)

3. O 1º Réu não entregou aos autores qualquer quantia (aditado pela Relação)

4. Os autores temendo que o Banco pudesse penhorar e vender o imóvel descrito em 1., acordaram com o réu CC em efectuar o referido negócio de compra e venda, todos bem sabendo que o mesmo era simulado, porquanto nem os autores quiseram vender, nem o réu quis comprar (aditado pela Relação)

5. Por escritura pública lavrada no dia 1 de Setembro de 2015, o 1º réu declarou vender à 2ª ré, pelo preço de 60.000,00 €, já recebido, o imóvel descrito em 1.

6. Pela Ap. 924 de 1/9/2015, foi inscrita a favor da 2ª ré a aquisição do imóvel descrito em 1.

7. A 2.ª ré não visitou a casa antes de a comprar.

8. O imóvel é a residência habitual do autor marido.

9. A 2ª ré enviou uma carta ao 1º réu, solicitando a entrega das chaves.

10. Durante o Verão de 2015, a 2ª ré tomou conhecimento da intenção do 1º réu vender o prédio supra identificado.

11. O 1º réu publicitou a venda do imóvel dos autos em sociedade de mediação imobiliária.

12. Aquando da negociação com o 1º réu do preço de compra, a 2ª ré ficou a saber que o prédio em causa se encontrava ocupado por um irmão do vendedor.

13. A visita ao interior da habitação de madeira que integra o imóvel dos autos não relevou para a decisão de compra e venda à 2ª ré a qual, na ocasião, foi informada que o autor marido a ocupava por mera tolerância do aqui réu.

14. Uma vez que bem conhecia o imóvel e dele não necessita para habitação, resolveu comprá-lo, atenta a sua localização na zona balnear da …, com o fito de o restaurar e o revender.

15. Pagou a totalidade do preço ao 1º réu no acto da escritura de compra e venda.

16. A Ré DD não conhece os AA. e nada sabe sobre a sua vida ou negócios entre eles havidos e o 1º Réu (aditado pela Relação)

17. A Ré confiou que estava a comprar o prédio em causa e que nada obstava a que o mesmo fosse vendido pelo 1º Réu (aditado pela Relação)

18. O reconvindo/marido ainda permanece, contra a vontade da reconvinte, no imóvel dos autos.

19. A sociedade EE, S.A., celebrou, em 9/3/1999, com Banco FF um contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada, alterado em 24/11/1999, 30/12/1999, 4/12/2002 e 28/7/2008, através do qual aquele Banco concedeu àquela sociedade um crédito no montante de 500.000,00 €.

20. Para caução e garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela referida sociedade no âmbito do mencionado contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada, foram constituídas, a favor do Banco, hipotecas sobre as fracções autónomas designadas pelas letras “C”, “A-24” e “A-23” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 2…/19851106, e sobre o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2…7/19910213 da CRP de …, tendo ainda sido subscrita uma livrança em branco pela referida sociedade, avalizada pelos autores.

21. A sociedade EE, S.A., solicitou, em 4/9/1997, junto Banco FF, a abertura de um crédito documentário à importação, sob a forma de stand-by letter, no montante de 35.000,000$00 (trinta e cinco milhões de escudos).

22. Para garantia da operação de crédito concedida à sociedade, sob a forma de stand-by letter, esta subscreveu uma livrança que foi avalizada pelos autores, acompanhada de pacto de preenchimento.

23. Em consequência do incumprimento pela EE, S.A., do contrato de abertura de crédito, sob a forma de conta corrente caucionada, celebrado em 28/7/2008, o FF procedeu, em 11/12/2008 à resolução do mesmo, tendo a sociedade sido informada da resolução operada, bem como do preenchimento da livrança existente, dada em garantia, sendo que a dívida, à data, ascendia a 515. 211,98 €.

24. Os autores foram informados, através de carta de 11/12/2008, da resolução contratual operada e do preenchimento da livrança existente, dada em garantia.

25. O FF, em consequência do incumprimento pela EE, S.A., do contrato de abertura de crédito documentário à importação, sob a forma de stand-by letter, celebrado a 28/7/2008, procedeu à resolução do mesmo, por carta de 11/12/2008, tendo a sociedade sido informada da resolução operada, bem como do preenchimento da livrança existente, dada em garantia, sendo que à data a dívida ascendia a 324. 510,68 €.

26. Os autores foram informados, através de carta de 11/12/2008, da resolução contratual referida em 20 e do preenchimento da livrança existente, dada em garantia.

27. A sociedade EE, S.A., da qual a demandante BB foi administradora, foi declarada insolvente por sentença de 12/6/2009.

28. O Banco GG, S.A., instaurou uma execução contra os ora autores, que correu os seus termos sob o nº 5689/09.T2AGD, no Tribunal da Comarca de Aveiro, Instância Central – … Juízo de Execução (…) – J… .


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Do Direito




O acórdão recorrido apreciou e decidiu a 1ª questão no sentido de que tratando-se de matéria do conhecimento oficioso do Tribunal, as partes ou parte a quem aproveita não estão sujeitas aos ónus impostos, aos recorrentes pelo art.º 640º do CPC. E assim é de facto. Na verdade e como bem se observa no acórdão recorrido, citando o aqui 2º adjunto «a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento.

Com efeito, o conteúdo da decisão de facto pode apresentar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais ou complementares e concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no artigo 5º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

Pode, ainda, o conteúdo da mesma decisão traduzir-se na integração nos factos provados ou não provados de pura e inequívoca matéria de direito.

Para além disso, podem, ainda, “ outras decisões revelarem-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladoras de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso. “ (sublinhados nossos) [[4]]

Verificado qualquer um dos ditos vícios ou patologias da decisão de facto, os poderes conferidos ao Tribunal da Relação como verdadeiro tribunal de instância – tendo em vista o cumprimento do desiderato de um segundo nível de jurisdição em matéria de facto em idênticas condições e sujeito às mesmas regras de direito probatório que vinculam o tribunal de 1ª instância -, conferem-lhe o dever, por um lado, de deles conhecer oficiosamente (independentemente, pois, da existência ou não de impulso da parte interessada) e, por outro, de os poder suprir imediatamente, desde que, naturalmente, constem do processo (ou da gravação) os elementos probatórios indispensáveis para esse suprimento.

Na verdade, como se expôs, além do mais, pode a decisão de facto com que é confrontado o Tribunal da Relação revelar-se deficiente, exigindo a sua ampliação, por terem sido desconsiderados nos temas de prova factos alegados pelas partes e essenciais para a resolução do litígio ou, ainda, como ora sucede, por terem sido desconsiderados na decisão factos que se revelem essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem um enquadramento ou fundamentação jurídica diverso do que foi suposto pelo Tribunal a quo.

Em tal hipótese, como resulta do preceituado no artigo 662º, n.º 2, al. c), do CPC, “ A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Todavia, como resulta do citado inciso legal, se à partida a consequência deverá ser, pois, a anulação da sentença, essa medida deve ser uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que essa anulação determina ao nível da celeridade e da eficácia.

De facto, como salienta ainda A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 251, “ a anulação da decisão de 1ª instância apenas deve ser decretada se do processo não constarem todos os elementos probatórios relevantes. Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas. “ (sublinhado nosso)

Ainda neste sentido, refere o mesmo Autor, op. cit., pág. 255, que “ Deparando-se a Relação com respostas que sejam de reputar deficientes, obscuras ou contraditórias, se a reapreciação dos meios de prova permitir sanar a deficiência, obscuridade ou a contradição, a Relação fá-lo-á sem necessidade de reenviar o processo ao tribunal recorrido, após o que prosseguirá com a apreciação das demais questões que o recurso suscite. No caso inverso, cabe-lhe assinalar as referidas nulidades, determinar a anulação (parcial) do julgamento e ordenar que o tribunal a quo as supere. “».

No caso dos autos a Relação entendeu que a sentença era deficiente, por omissa quanto a factos essenciais que tinham sido alegados, designadamente atinentes à boa fé da 2ª R., e que que por isso importava apurar. Constatou que tinha sido produzida prova sobre tal matéria e que os autos continham elementos suficientes para dela conhecer. Neste contexto, isto é, de actuação oficiosa da Relação, em conformidade no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662º nº 1 e n.º 2, al. c), do CPC, não releva que a apelada, na sequência da notificação para se pronunciar sobre a ampliação da decisão de facto no tocante às referidas matérias, não tenha indicado as passagens exactas da gravação dos depoimentos que, na sua perspectiva, deverão conduzir à demonstração de tal factualidade. Na verdade tal ónus é apenas imposto ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto. Aliás mal se compreenderia que, estando o Tribunal em condições de poder conhecer oficiosamente de determinada questão, o não fizesse, só porque a parte a quem eventualmente aproveita a decisão não deu uma colaboração perfeita.

Bem andou o Tribunal da Relação ao fazer uso dos poderes conferidos pelo art.º 662º nº 1 e nº 2 al.c) do CPC, para em sede de reapreciação da decisão de facto, além dos pontos de facto impugnados, conhecer da matéria alegada pela Ré nos artigos 7º e 8º da sua contestação, conhecendo da sua demonstração ou não, em função da análise crítica de todos os meios de prova disponíveis (os mesmos que já antes estavam ao dispor do Tribunal de 1ª instância e que foram produzidos em audiência sujeita ao legal contraditório das várias partes do processo). O Tribunal não violou qualquer regra de direito probatório nem desrespeitou os ónus impostos aos recorrentes pelo art.º 640º do CPC, pela simples e singela razão de que apreciou questão cujo conhecimento, na circunstância, lhe é legalmente imposto.



Deste modo e sem necessidade de mais considerações, nesta parte improcede a revista.


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Quanto à segunda questão - a de saber se os factos provados são suficientes para que fosse reconhecida a inoponibilidade à R., da nulidade do negócio simulado, celebrado entre AA., e 1º Réu – sustenta o recorrente que «da matéria de facto dada como provada nada consta quanto ao estado subjectivo da adquirente, aqui recorrida, não tendo sido provado nem que a adquirente conhecia nem que desconhecia o vício de que padecia negócio jurídico anulado, não pode dar-se como provado o requisito da boa fé, uma vez que a lei exige a prova, pela positiva, do desconhecimento, sem culpa, do referido vício», pelo que deveria proceder o pedido contra a 2ª ré.

O acórdão recorrido revogou a sentença da primeira instância por considerar que nos termos do disposto no nº 2 do art.º 243º do CC, relativamente à 2ª ré a nulidade proveniente da simulação do primitivo negócio e invocada pelo simulador, no caso os AA, não lhe é oponível, por ser terceira de boa fé (art.º 243º nº 2 do CC).

O recorrente tanto nas suas alegações como nas conclusões que delimitam o objecto do recurso, não impugna esta decisão jurídica, mas sim uma outra que ficciona existir, mas que na realidade não existe. Com efeito o recorrente vem alegar violação pelo tribunal “ a quo” do disposto no art.º 291º nº 3 do CC, quando tal disposição nunca foi aplicada, nem sequer invocada para fundamentar a decisão que revogou a sentença da 1ª instância. O fundamento desta decisão revogatória é a inoponibilidade pelo simulador, da nulidade proveniente do negócio simulado ao terceiro de boa fé, sendo que o Tribunal recorrido considerou verificado o requisito da boa fé por parte da 2º ré, que indiscutivelmente é terceira em relação aos negócios simulados.

Como se disse supra o objecto do recurso está delimitado objectivamente pela decisão, não sendo lícito às partes impugnar decisão que não tenha sido proferida nem suscitar questões que não hajam sido submetidas à apreciação do tribunal recorrido, porquanto os recursos visam a reapreciação de questões que as partes tenham colocado à apreciação do Tribunal “ a quo” ou que este devesse apreciar oficiosamente e não a apreciação de questões novas que não foram apreciadas nem decididas pelo Tribunal “ a quo” nem eram do seu conhecimento oficioso. A questão suscitada pelo recorrente para além de visar uma decisão inexistente, que nunca foi colocada nem apreciada pelo Tribunal recorrido e nessa medida é uma questão nova insusceptível de apreciação pelo Tribunal de recurso, pelo que não pode ser apreciada.

Em todo o caso, sempre se dirá que a decisão proferida sobre a inoponibilidade à 2ª ré, da nulidade proveniente da simulação feita pelos AA e pelo 1º réu é irrepreensível.

Com efeito dispõe o artigo 243º, do Cód. Civil que “ A nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé. “ (n.º 1), sendo que “ A boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos. “ (n.º 2).

É este o critério normativo da boa fé para os efeitos do art.º 243 do CC. Tratando-se de matéria de excepção o ónus de alegação e prova dos pertinentes factos, incide sobre o terceiro que pretende beneficiar da inoponibilidade do vício original e fazer prevalecer o direito adquirido. A prova do pressuposto da boa fé - do desconhecimento do vício- deve ser feita, pela positiva[5] pois trata-se de uma questão de facto»[6].

No caso, como bem se demonstra no acórdão recorrido e ficou bem patente na alteração da decisão de facto operada pelo Tribunal da Relação, a 2ª ré não só alegou factos demonstrativos do seu desconhecimento relativamente aos negócios simulados, como conseguiu provar que «desconhecia os negócios antes havidos entre os AA. e o Réu CC (nomeadamente o negócio simulado de 19.06.2009) e que confiou, pois, em razão desse desconhecimento do anterior negócio e da natureza simulada do mesmo, que o Réu CC (vendedor na escritura de compra e venda consigo outorgada em Setembro de 2015) podia, como intitulado proprietário do imóvel em causa, proceder à sua transmissão através da compra e venda acordada entre ambos – cfr. pontos 16. e 17. do elenco dos factos julgados provados». Assim, demonstrada a boa fé da reconvinte/2ª ré, a nulidade proveniente do negócio simulado que precedeu a transmissão do imóvel para a sua esfera jurídica, não poderia afectar a validade deste último. Foi o que se decidiu e bem.

Improcede assim in totum a revista.


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Em síntese:

I - As patologias da sentença previstas no artigo 662º, n.º 2 al. c), do CPC, apenas dão lugar à anulação da decisão proferida quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários ao seu suprimento pelo Tribunal da Relação; Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder, enquanto tribunal de substituição, à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas.

II - A intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto, pelo que não são aplicáveis os ónus previstos no art.º 640 do CPC.

III - Os simuladores podem entre si, em determinadas condições, invocar valida e eficazmente a nulidade do negócio simulado em que outorgaram, com os efeitos previstos no artigo 289º, n.º 1, do Cód. Civil.

IV - Todavia, existindo um negócio posterior, à luz do preceituado no artigo 243º, n.º 1, do Cód. Civil, a simulação do primeiro negócio não pode afectar a validade do segundo negócio se o terceiro estiver de boa-fé.

V - O conceito normativo da boa fé consiste na «ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos», isto é, no desconhecimento, à data da celebração do segundo negócio, do vício de simulação que afectava o primeiro.

VI - Incumbe ao terceiro demandado demonstrar que, à data da celebração do segundo negócio, estava de boa-fé, em conformidade com a regra que emerge do preceituado no artigo 342º, n.º 2, do Cód. Civil, conjugada com a regra que emerge do n.º 1 do artigo 243º, do mesmo Código.



Concluindo



Pelo exposto, acorda-se na improcedência da revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Notifique.


Lisboa, em 17 de outubro de 2019.


José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

António Abrantes Geraldes

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[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
([4]) A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 249-250.
[5] Cfr. Ac. do STJ  de 20/03/2014, proc. nº 207/2001.G1.S1, e de 23/06/2016, proc. nº 5968/13, consultável em sumários da jurisprudência cível, in www.stj.pt
[6] Vide neste sentido ac. do STJ de 7709/2017, processo nº 4363/04.0TBSTS.P1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo e também subscrito pelo aqui 1º adjunto.