Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
508/11.2TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: ABUSO DO DIREITO
CONTA BANCÁRIA
DÉBITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 04/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA E CONFIRMADO O ACÓRDÃO RECORRIDO.
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-11-2013, PROCESSO N.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

Constitui abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprio (art. 334.º, n.º 1 do CC), a conduta das rés que, ao fazerem crer ao autor que o valor em questão jamais seria debitado na conta “escrow”, acabaram, contudo, por debitar o mesmo na conta referida.


Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou ação declarativa contra Banco BB, S.A e CC, S.A. pedindo:

1. Que as RR. sejam condenadas a reconhecer que o movimento contabilístico realizado pelas RR. no Balanço da FMP SGPS SA, posteriormente à celebração do Contrato de Compra e Venda junto aos autos, seja decretado nulo e como tal não afete e consequentemente diminua o preço estabelecido no referido Contrato pelo montante de € 80.887,74

2. Que em consequência as Rés sejam condenadas a creditar a “Conta Escrow”' pelo mesmo montante de € 80.887,74, na parte da conta relativa ao Autor,

3. E a reconhecer que o Autor pode livremente dar o destino que entender ao montante de € 80.887,74.

Alegou para o efeito e no essencial (transcrevendo-se nesta parte o que consta do relatório do acórdão recorrido) o seguinte:

O autor era acionista da AA, SGPS, S.A., ali detendo 913.371 ações, representativas de 90.001 % do capital e que as restantes ações, representativas de 9,999% do capital social da mesma sociedade eram detidas pela própria sociedade, pelo que o A. era o seu único acionista.

Por sua vez, a FMP, SGPS, S.A. era titular de um total de 1.152.026 ações, representativas de 58,69% da DD, S.A., sendo que o A. era ainda, individualmente e em seu nome pessoal, titular de 16.099 ações, representativas de 0,82% do capital social desta sociedade.

As RR. tiveram interesse em adquirir 0,82% do capital da DD, diretamente, através da aquisição das ações LB ao A. e em adquirir 58,69% daquele capital, indiretamente, através da aquisição da totalidade do capital social da FMP, SGPS, S.A.

O A. e o Banco BB celebraram no dia 17.09.2009 um acordo pelo qual o autor manifestou interesse em vender a participação que detém indiretamente na DD, através da venda da participação social por si detida na SGPS e o Banco BB manifestou interesse em comprar essa mesma participação, diretamente ou através de uma terceira entidade, a ser indicada por si para o efeito, verificadas que fossem as condições prévias previstas no referido acordo (entre as quais se incluíam processos de auditoria jurídica, contabilística e fiscal, nos termos que o Banco BB tenha por convenientes).

Tendo o Banco BB terminado os referidos processos, este concluiu pela verificação de parte das condições prévias estabelecidas e comunicou ao A. aqueles aspetos e/ou documentos que deveriam ser regularizados/alterados ou obtidos, no momento anterior à celebração do Contrato de Compra e Venda de Ações, considerando que os demais elementos tidos por não satisfatórios não prejudicavam o seu efetivo interesse na aquisição das ações e das ações LB, nos termos e condições constantes do contrato.

Em 25 de fevereiro de 2010, o A. vendeu às RR. 913 371 ações que detinha na FMP, SGPSA, que por sua vez detinha 58,69% da DD, acrescido de cessão de um crédito de suprimentos.

Vendeu ainda 16.099 ações que detinha, individualmente e em seu nome, na DD, representativas de 0,82% do capital social.

O preço total acordado para a venda das referidas ações e para a cessão dos suprimentos foi de € 219.037,22.

O preço da compra e venda de ações teve por base o balanço de 31.12.2009 relativo à FMP SGPS, S.A.

Desse montante foi pago ao A., com a celebração do Contrato de Compra e Venda e Cessão de Crédito por Suprimentos, a importância de € 52.129,22, sendo que o valor de € 44.344,09 foi pago pela R. Banco BB e a importância de € 7.785,13 foi paga pela R. CC.

O remanescente do preço, no valor de € 166.908,00, foi depositado em nome do vendedor, ora A, em conta aberta junto do Banco BB, ficando a referida conta empenhada a favor das RR.

Por carta datada de 31 de março de 2011 e anexos, a R. Banco BB vem informar o A da realização de movimentos a débito da referida "conta escrow", pelo valor total de € 190.414,93, correspondendo à parte do A o montante de € 154.402,52. Desse montante, € 96.350,73 referem-se a contingências invocadas pela R. relativas à DD.

Nessa mesma carta, a R. alude também a existência de contingências na FMP SGPS S.A, que deram origem aos movimentos a débito na "conta escrow", pelo valor de € 94.064,20.

Deste montante, o valor de € 80.887,74 foi debitado na conta com base na anulação de imobilizado - obras em imóveis, constante no Balanço integrante do Contrato de Compra e Venda e com base no qual foi estabelecido o preço.

Os movimentos na "conta escrow" referentes às contingências da FMP SGPS, S.A, indiciam, na parte referente à anulação de imobilizado, no montante de € 80.887,74, urna clara violação do espírito e da letra do Contrato de Compra e Venda, especificamente no que se refere às implicações no preço acordado, conforme amplamente aduzido, que as RR. tentam assim ilegitimamente alterar, violando consequentemente o disposto nesse contrato, especificamente o preço de venda, última consequência desse movimento.

Por carta de 18 de abril de 2011, o A, entre outros pedidos, solicitou a anulação do movimento na "conta escrow" subjacente à anulação de imobilizado da FMP SGPS S.A, no montante supra referido de € 80.887,74, referindo ainda a existência de divergências dos valores totais dos documentos, relativamente aos valores parcelares aí constantes.

Em 6 de maio de 2011, por carta já referida, a R. informou o A que recusava anular o movimento na "conta escrow", resultante da anulação do imobilizado no Balanço da FMP SGPS S.A, - sendo que esse facto traduz em última instância a alteração ilegítima do preço de venda da FMP SGPS, S.A., daí decorrente, porque, os movimentos realizados na "conta escrow", com base na anulação de imobilizado constante do Balanço da FMP SGPS, S.A, base para o cálculo do preço do Contrato de Compra e Venda, refletem-se diretamente na esfera patrimonial do A.

A R. alegou contingências no montante total € 190.414,93, dos quais € 96.350,73 se referem à DD e € 94.064,20 são relativos à FMP SGPS S.A

No que se refere à parte correspondente ao Requerente na "conta escrow", a R. apresenta contingências no valor total € 151.402.52, que debitou, correspondendo € 57.338,32 à LB e € 94.064,20 relativos à FMP, do qual € 80.887,74 são relativos à anulação de imobilizado. No caso de não se creditar a "conta escrow" na parte correspondente ao A. pelo referido montante de € 80.887,74, o que por mera hipótese se admite, haverá uma variação negativa no seu património por valor equivalente por contingências invocadas pelas RR., pela qual o A não é responsável.

           Na sua contestação, as RR. defenderam-se por impugnação, negando que o preço da compra e venda de ações das duas sociedades tivesse por base o balanço de 31.12.2009.

 

Dando cumprimento ao despacho de aperfeiçoamento de 08.11.2011, o A. apresentou nova petição inicial, relativamente aos artigos 60 e 70º da petição, referentes à referida rubrica do balanço contra a qual as RR. se insurgiram,

Realizada que foi a audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, na qual, julgando-se parcialmente procedente a ação:                                                                           

- As RR. foram condenadas a creditarem a "Conta Escrow" pelo montante de € 80.887,74, na parte da conta relativa ao Autor, e a reconhecer que o Autor pode livremente dar o destino que entender ao montante de € 80.887,74

- E foram absolvidas do 1º pedido.

Na sequência e no âmbito de apelação da R., Banco BB, S.A. A Relação do Porto veio a confirmara decisão recorrida – ainda que com o voto de vencido de um dos elementos do coletivo de Juízes Desembargadores (que tomou posição no sentido da procedência do recurso e da absolvição das rés).

Inconformada, interpôs a R., Banco BB, S.A o presente recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:

 1ª - Ficou provado que o Banco Recorrente pagou o preço convencionado pelas ações da FMP SGPS, no contrato, independentemente da forma pelo qual foi acertado entre as partes.

2ª - O vendedor aceitou que parte do preço ficasse em depósito escrow com o destino de assegurar... "o pagamento das compensações devidas pela falsidade, incorreção ou omissão de qualquer declaração e garantia assumida pelo VENDEDOR nos termos da Cláusula Quarta, o que, claramente, nada tem a ver com a fixação do preço.

3ª - A conta em garantia fiduciária foi um mecanismo convencionado entre as partes para acautelar esta eventualidade que se veio a revelar um facto: a inverdade de declarações proferidas, e em nos documentos apresentados. Foi provado que as obras de beneficiação feitas na casa do Autor não foram entregues, nem recebidas pelo Recorrente comprador, e não ficou provado - antes o contrário - que o Recorrente tenha aceite a ilegalidade, a omissão e a falsidade das contas.

4ª - Ficou provado que o Banco Recorrente pagou o preço convencionado pelas ações no contrato, independentemente da forma pelo qual foi acertado entre as partes.

5ª - A Sentença decidiu que a conduta do Banco Recorrente se traduz num verdadeiro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o que o Acórdão proferido secundou, por maioria e não por unanimidade.

6ª - O Recorrente entende que não se encontram preenchidos nenhuns dos fundamentos de que a Lei faz depender o Instituto do abuso de direito com no previsão do artigo 334º do Cod. Civil. O abuso de direito significa o exercício de um direito, de forma inesperada ou contraditória, com base nos princípios da boa-fé e da Verdade.

7ª - Por um lado, o exercício dos direitos está limitado pela boa-fé e pelos bons costumes, e, por outro lado, pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito.

8ª - Na modalidade em causa significa que aquele que vem exercer o direito praticou anteriormente um facto que torna contrário à boa-fé aquele exercício. Nada disso acontece nos autos. Tudo foi ponderado, previsto, aceite e por isso constituída a conta escrow. O débito respetivo da conta é uma consequência i) da estipulação contratual e ii) da falsidade do Balanço.

9ª - O Código Civil vigente consagrou a conceção objetivista do abuso de direito, em que não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objetivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave - cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 5.5.2015, Proco 3820/07.1 TVLSB.L2IS1, in www.dgsi.pt.

10ª - Consagra-se, como se afirma no Ac. de 9.9.2015, Pº nº 499/12.2TTVCT. G1.S1, neste dispositivo um princípio fundamental da ordem jurídica, qual seja o de que o exercício dos direitos 'tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício.

11ª - O direito a que o Recorrente se arroga - o de debitar a conta garantia, nos termos dos pressupostos contratuais fixados, no caso falsidade das declarações ou contas - foi estabelecido por acordo com a outra parte, em contrato celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual.

12ª - Segundo o artigo 334º do C. Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito», o que de modo algum acontece nos autos.

Termos em que se requer que seja julgado procedente o presente recurso, revogando-se o Acórdão proferido, em conformidade com o alegado, pois só assim se fará justiça.                                         

O autor contra-alegou, pugnando pela improcedência da revista.

Colhidos os vistos, cumpre decidir:

Em face do teor das conclusões recursórias, enquanto delimitadoras do objeto da revista, a única questão de que cumpre conhecer tem a ver com a existência ou não de abuso de direito.

É a seguinte a factualidade dada como provada pelas instâncias:

1 - A DD SA foi fundada em Julho de 1999 e em 25-02-2010 tinha como principal acionista AA SGPS SA.

2 - Esta sociedade detinha na DD SA 1152 026 Ações, com o valor nominal de 0,65 €, cada, representativas de 58,69% do capital social da LB, participação esta também sujeita autorização prévia do BP e com consolidação integral.

3 - Por seu turno o A. era ainda, individualmente e em seu nome pessoal, titular de 16 099 Ações, com o valor nominal de 0,65 € cada uma, representativas de 0,82% do capital social da DD.

4 - Em 25 de Fevereiro de 2010, o Banco BB SA e a CC­SA, compraram as Ações representativas de 100% do capital social da DD, SA, aos seus acionistas.

5 - AA era acionista da sociedade AA SGPS.

6 - O A. AA detinha nesta última sociedade (AA SGPS, S 913 371 Ações com o valor nominal de €l, cada uma.

7 - As restantes 101 485 Ações, representativas de 9,999% do capital social da FMP SGPS SA, eram detidas pela própria sociedade, pelo que o aqui A., AA era seu único acionista e Presidente do CA, devidamente autorizado pelo Banco de Portugal e previamente registado junto do mesmo.

8 - Desde a constituição da FMP, SGPS, S.A., em 12.07.1999. que esta sociedade teve o Autor, como Presidente do Conselho de Administração, composto por três membros, integrando-o dois outros vogais, ... e ....

9 - Mais tarde, à data da venda das ações, existiam dois outros administradores, ... e ... (testemunha indicada nestes autos, pelo A.),

10 - Este último, aliás, reconduzido no cargo após a venda das ações, já em 30.03.2010.,

11 - A sede na Rua ... e como órgão de Fiscalização, EE, SROC, representado pelo Dr. FF, que, também se manteve em funções, no caso até Março de 2011, bem após a mudança de titularidade das ações constitutivas do capital social, da FMP, SGPS.

12 - Assim, desde o nascimento até à data da venda da totalidade do seu capital social na FMP, SGPS, SA, à exceção da composição do seu Conselho de Administração, somente a sede foi alterada, para a morada do local onde funcionavam as instalações e também a sede da DD S.A. - a Rua ...

13 - Ato este deliberado em Assembleia Geral do dia 10.11.2009 e registado no dia 19.11.2009.

14 - AA SGPS SA era titular de 1 152 026 Ações, com o valor nominal, de 0,65 € cada, representativas de 58,69% do capital social da sociedade "DD SA".

15 - Em 17 de Setembro de 2009, foi celebrado um acordo entre A. e Rés, com vista à celebração posterior do Contrato de Compra e Venda das Ações, que se junta sob o doc n° 1 e se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual as Rés se propuseram comprar a FMP SGPS SA bem como as 16 099 Ações que o A. detinha individualmente e a título pessoal na DD.

16 - Por carta de 23-11-2009 o Banco BB informou o Banco de Portugal da sua intenção de adquirir para si e para terceiro que indique, ações representativas da totalidade do capital social da DD - Soc. Corretora, SA, conforme doc. nº 1/ A junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por reproduzido, informando ainda que, a solicitação do Dr AA, o Banco BB anuiu à sugestão de eleição do Dr ... como administrador da DD.

17 - Em 25 de Fevereiro de 2010, entre o Autor e as sociedades Rés, foi celebrado um Contrato de Compra e Venda de Ações e de Cessão de Crédito por Suprimentos, cujo teor consta do doc n° 2 junto à petição inicial e que se dá por inteiramente reproduzido.

18 - Através desse contrato o A. vendeu à sociedade Ré Banco L. J. BB 776 365 Ações tituladas nominativas, representativas de 76,50% do capital social da FMP SGPS SA, tendo ainda cedido suprimentos no montante 2.747,25 €.

19 - Bem como 16 099 Ações (sendo 13 500 ordinárias e 2599 Ações preferenciais sem voto) tituladas nominativas representativas de 0,82% que o A. a título individual detinha no capital da DD.

20 - Por sua vez a sociedade Ré CC, comprou 137 006 Ações representativas de 13,50% do capital da FMP SGPS SA, tendo ainda adquirido Suprimentos no montante de 484,81 €.

21 - O preço total de compra e venda das Ações da FMP SGPS SA e das Ações da LB detidas individualmente pelo A foi respetivamente de 213 269,28 € e de 2 535,88 €,

22 - O preço dos suprimentos foi o do respetivo valor nominal, i.e., 3 232,06 €.

23 - O montante de 219.037,22 € (conjunta e globalmente designado por preço que incluía o preço das ações e ainda o valor da cessão de suprimentos) foi pago pelas compradoras Rés ao A. nos seguintes termos:

24 - O Banco BB pagou ao vendedor o montante total de 186 561,94 €

sendo:

- O valor de 181.278,81 €, pela aquisição de 776. 365 Ações representativas do capital social da FMP SGPS SA.

- O montante de 2 535,88 €, pela aquisição de 16 099 Ações representativas do capital social da DD.

- A importância de 2 747,25 €, pelos suprimentos.

25 - Por sua vez a Ré CC, pagou ao vendedor, ora A., o montante

total de 32.475,29 € sendo:

- A importância de 31 990,47 €, pela aquisição 137 006 Ações representativas do capital social da FMP SGPS SA

- O valor de 484,81 pelo montante dos suprimentos.

26 - Parte do preço total, no montante de 52 129,22 €, foi pago com a celebração do contrato de compra e venda em apreço.

27 - Tendo sido o montante de 44.344,09 € pago pelo Banco BB e 7 785,13 € pago pela CC.

28 - Nos termos contratuais, o remanescente do preço acordado pagar ao A., no valor de 166 908. 00, € não foi pago com a celebração do Contrato de Compra e Venda, valor remanescente esse resultante da diferença entre o valor pago por ambas as Rés na celebração do Contrato (44. 344,09 €+7785,13€= € 52.129,22) menos o preço total acordado pagar ao A, por ambas as compradoras, no aludido montante de 219 037,22 €.

29 - As partes acordaram que o referido montante de 166. 908.00 €l fosse depositado em conta aberta junto do Banco BB em nome do vendedor, ficando a referida conta empenhada a favor dos Compradores ("Conta Escrow")

30 - A regulamentação da referida "Conta Escrow," no que se refere à assunção das garantias a assegurar, bem como as respetivas condições de movimentação estão previstas na cláusula terceira do Contrato de Compra e Venda em apreço.

31 - "A conta escrow apenas poderá ser movimentada nos seguintes termos:

Al. a) "salvo o disposto na alínea c), o VENDEDOR não poderá proceder à movimentação a débito da referida conta;

Al. b) os COMPRADORES ficam expressa e irrevogavelmente autorizados a dar instruções no sentido da movimentação a débito da referida conta, para efeito de efetivação das responsabilidades do VENDEDOR, definidas nos termos do n° 1 desta cláusula".

32 - O n° 1 da Cláusula Terceira, estipula que "A Conta Escrow referida no nº 5 da Cláusula Segunda, aberta em nome do VENDEDOR junto do BANCO BB, na qual é depositado o montante de € 166.908,00, fica empenhada a favor dos COMPRADORES e destina-se a assegurar:

a) o pagamento das coimas que venham a ser aplicadas no âmbito de processos contraordenacionais instaurados pela CMVM à DD, nos termos em que os COMPRADORES venham a aceitar a sua conclusão, na forma e no momento que tenham por mais convenientes segundo o seu exclusivo critério;

b) o pagamento das compensações devidas em efetivação da responsabilidade do VENDEDOR pela não revelação de qualquer facto potencialmente gerador de responsabilidades para os COMPRADORES, a SGPS ou a DD ou pela falsidade, incorreção ou omissão de qualquer declaração e garantia assumida pelo VENDEDOR nos termos da Cláusula Quarta";

33 - Na Clausula Quarta do Contrato de Compra e Venda de 25 de Fevereiro de 2010, elencam-se os factos expressamente assumidos pelo vendedor ora A. como verídicos, relativamente à FMP SGPS SA, aos Suprimentos, às Ações da LB e à DD, com referência à data da celebração do Contrato de Compra e Venda em apreço factos esses que no que respeitam à parte das Declarações Financeira, parte relevante para apreciação dos factos ora em apreço, aqui se reproduzem:

"Declarações Financeiras

a. Todos os documentos de prestação de contas da SGPS e DD desde a sua constituição, foram aprovados pelos competentes órgãos sociais, tendo sido aprovados elaborados com respeito das regras e princípios contabilísticos aplicáveis, e refletem de forma adequada, completa e rigorosa, por referência à presente data, a situação patrimonial e financeira das sociedades.

b. A FMP SGPS SA e a DD, na presente data, têm a situação líquida constante dos balanços anexos (Anexos 6 e 7), respetivamente), que foram elaborados com respeito das regras e princípios contabilísticos aplicáveis e refletem de forma adequada, completa e rigorosa, por referência à presente data, a situação patrimonial e financeira das Sociedades."

34 - Por carta datada de 31 de Março de 2011 (Doc. nº 3 que se junta e se dá por inteiramente reproduzido), as Rés informaram o A. sobre a existência, na sua opinião, de várias contingências verificadas na DD e na FMP SGPS SA, que deram origem ao movimento a débito na "Conta Escrow" no montante de 190.419,93 €, em resultado de instruções dos compradores Rés ao abrigo das disposições que regem a movimentação a débito da referida "Conta", já reproduzidas.

35 - A Sociedade Ré Banco BB informou por essa via o A. de movimentos realizados a débito na "Conta Escrow, pelo montante de 190.414,93 €, conforme Nota de Débito que se junta sob o doc. nº 4, que se dá por inteiramente reproduzido, agrupando esses movimentos em dois grupos, no seu dizer:

- uma parte referente à FMP SGPS SA no valor de 94 064 .20 €,

- outra parte relativa à DD no montante de 94 350.73 €

36 - Um desses grupos de contingências referem-se à DD e constam do anexo junto sob o doc. nº 5.

37 - O outro grupo de contingências refere-se à FMP SGPS SA e consta do anexo, junto sob o doc. nº 6, sendo esse documento e em particular o montante de 80 887,74 €, aí constante, relativo a anulação do imobilizado obras em imóveis e o consequente débito na "Conta Escrow",

38 - No referido documento n° 6, sob o título "FMP SGPS SA," Custos Reconhecidos Após a Compra Referentes a Períodos Anteriores", apresentado sob a forma de nota discriminativa dos débitos efetuados na "Conta Escrow", apresentam-se ali três movimentos, que se reproduzem:

- Dividas à Segurança Social que deu origem a um débito de 5. 020. 88 €

- Regularização saldo antigo de fornecedores que deu origem a crédito de €1

886.18

- Anulação de Imobilizado - Obras em Imóveis, que por sua vez deu origem a um movimento a débito pelo montante de 80 887.74 €,

39 - O resultado dos movimentos acima referidos, pode verificar-se no documento junto sob o número 7, (documento referente aos movimentos e saldos da "conta Escrow", segregada pelos diversos vendedores e que se dá por inteiramente reproduzido) que na parte depositada nessa conta em nome do requerente, no montante de 163 675.94 €, foi debitado nessa mesma parte o valor de 151 402,52.

40 - Na parte da conta relativa ao A., a importância de 94 064,20 € é referente a movimentos a débito por contingências da FMP SGPS SA, onde está incluído o montante de 80.887.74 €, referente à anulação de obras em imóveis.

41 - Por carta datada de 18 de Abril de 2011, o A. contestou os factos referentes às contingências mencionadas, conforme teor do doc. n° 8 junto à petição, o qual, aqui se dá por integralmente reproduzido.

42 - No Balanço da FMP SGPS SA existe uma rubrica no ativo denominada Outros Ativos Tangíveis, apresentada na forma que descrita no gráfico do art 10 da petição inicial aperfeiçoada, contabilizada pelo valor líquido de 80 888,00 Euros.

43 - A sede da FMP, SGPS, era também a casa, a residência e domicílio do A., seu Presidente do Conselho de Administração.

44 - E era também a sede da sociedade FJV, Lda, cuja gerência incumbia em exclusivo e desde sempre ao A.

45- No Balanço da FMP SGPS SA relativo a 31 de Dezembro de 2009 consta uma rubrica no ativo, denominada Outros Ativos Tangíveis, contabilizada pelo valor líquido de 80 888,00€, referente no caso concreto a imobilizado de Obras em Imóveis, que esse Balanço (Doe. n° 9 junto á petição inicial) encontra-se como anexo ao Contrato de Compra e Venda dos autos. dele fazendo parte integrante, nos termos Clausula Quarta alínea D, apartado b, do referido contrato, estabelecendo essa Clausula Quarta:

" O Vendedor expressamente garante a veracidade, relativamente à SGPS, .... , por referência à presente data, os seguintes factos:

D. "Declarações Financeiras

a. Todos os documentos de prestação de contas da SGPS e DD desde a sua constituição, foram aprovados pelos competentes órgãos sociais, tendo sido aprovados elaborados com respeito das regras e princípios contabilísticos aplicáveis, e refletem de forma adequada, completa e rigorosa, por referência à presente data, a situação patrimonial e financeira das sociedades.

b. A FMP SGPS SA e a DD, na presente data, têm a situação líquida constante dos balanços anexos (Anexos 6 e 7), respetivamente), que foram elaborados com respeito das regras e princípios contabilísticos aplicáveis e refletem de forma adequada, completa e rigorosa, por referência à presente data, a situação patrimonial e financeira das Sociedades." Factos Controvertidos nºs 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º.

46 - Provado apenas o que consta na Clausula Quarta alínea D, apartado b, do referido contrato e provado que os compradores auditaram o Balanço relativo a 31-12-2009 em Outubro de 2009, antes da mudança de sede da FMP SGPS SA. Facto Controvertido n° 7.

47 - As Rés unilateralmente movimentaram a débito a denominada " conta Escrow" nos termos referidos nos itens 35° a 40° da matéria assente e que o movimento a débito pelo montante de € 80 887,74 foi feito com base no fundamento alegado desse valor se referir a custos de obras feitas na casa do Autor, a qual, era também a sede da FMP SGPS SA até Novembro de 2009, obras que eram insuscetíveis de serem levantadas. Facto Controvertido n° 8.

48 - A mudança de sede da FMP SGPS SA ocorreu a Novembro de 2009, antes do contrato de compra e venda dos autos, foi pedida pelas Rés e era do conhecimento destas antes da celebração do contrato de compra e venda. Factos Controvertidos nºs 9°, 10° e 11 °

49- Provado apenas que a compra e venda dos autos foi celebrada sem que antes tenha sido retirado do Balanço da FMP SGPS SA a rubrica denominada Outros Ativos Tangíveis, contabilizada pelo valor líquido de € 80 887,74. Factos Controvertidos nºs 12° e 13°.

50 - Na data da celebração do contrato de compra e venda as Rés já sabiam que já ocorrera, a seu pedido, em Novembro de 2009 a mudança de sede da FMP SGPS SA e que essa mudança de sede impunha a anulação do valor contabilizado no imobilizado e referente às obras na sede. Factos Controvertidos nºs 14°, 15°, 16° e 17°

51 - Provado apenas que as partes procederam à determinação do preço da compra e venda de ações através de critérios não apurados. Facto Controvertido nº 18.

52 - Provado que desde Setembro de 2009 em diante, nenhuma decisão foi tomada sem a concordância do representante do Banco BB na Administração da DD, incluindo a mudança da sede social da FMP SGPS SA- . Factos Controvertidos n° 19° e n° 20.

53 - Provado apenas, que o valor total do investimento realizado pela FMP SGPS SA à data de 31-12-2009 era de € 97 970,48, do qual, € 69 922,14 respeita a obras em imóveis e € 28 048,34 respeita a outros ativos tangíveis designadamente mobiliário e equipamento de segurança e provado que as Rés antes da celebração da compra e venda de ações dos autos tomaram conhecimento que a 30 de Junho de 2009 o valor líquido dos outros ativos tangíveis que ascendia a € 82 699,73, corresponde a obras na sede e instalações interiores, algumas das quais realizadas em 2009. Factos Controvertidos nºs 21°,22°,24° e 2SO

54 - Provado que, regra geral, este tipo de investimentos sugere obras de adaptação/decoração, tendo em vista a criação de funcionalidades adequadas ao exercício da atividade de cada empresa. Facto Controvertido n° 23 0.

55 - Provado que nenhum contrato de arrendamento foi celebrado entre o A. enquanto pessoa física e individual e o A. como acionista e Administrador Presidente da sociedade e provado que em nenhum arquivo documental se encontrou uma deliberação deste jaez, coadjuvado pelo Parecer favorável do Órgão de Fiscalização, nem um comodato. Factos Controvertidos n° 26°, n° 27° e n ° 28°

56 - Facto Controvertido n° 29 - Provado que nos relatórios anuais do Revisor Oficial de Contas, relativos ao exercício de 2009 não se encontre nenhuma reserva expressa à natureza deste tipo de investimento, nem ao seu díspar diferimento. Facto Controvertido n" 29.

57 - Provado que pela natureza do investimento, este Ativo Líquido, à data da mudança da Sede Social da Empresa (2009), não se encontrava disponível e, como tal, não representava qualquer benefício económico para a Empresa não representava qualquer benefício económico para a Empresa. Factos Controvertidos n° 31 e n° 32°

58 - Provado apenas o que consta da resposta dada ao facto controvertido n° 8. Facto Controvertido n" 34

59 - Provado que as obras de beneficiação feitas na casa do Autor descritas no documento n° 4 junto à contestação não foram entregues, nem recebidas pelas Rés. Facto Controvertido n° 37.

Apreciando:

Face aos termos em que foi configurada a ação, esta teve por objeto a utilização alegadamente abusiva, por parte das rés, de uma conta “escrow” constituída junto da ré Banco BB S.A., ora recorrente, como garantia do cumprimento do contrato de venda (pelo autor às rés) de ações (das sociedades FMP SGPS S.A. e DD S.A.) e de cedência de crédito relativo a suprimentos (contrato este a que se alude nos nºs 17 e seguintes dos factos provados) – conta essa na qual foi depositado o montante de € 166.908,00 (nº 29 dos factos provados), correspondente à parte do preço que faltava pagar ao autor, que serviria de garantia do bom cumprimento do contrato e que apenas poderia ser movimentada nos termos constantes dos nºs 31 a 33 dos factos provados.

Isto sendo certo que, dessa quantia global, apenas está em causa a utilização pelas rés da quantia parcelar de € 80.887,74, relativa a “anulação de imobilizado – obras em imóveis” (que deu origem a que tal valor fosse debitado ao autor, conforme referido no nº 38 e 47 dos factos provados).

Tal quantia é referente a obras realizadas na casa do autor (e que não eram suscetíveis de serem levantadas), na qual funcionava a sede da FMP SGPS SA, sendo que a mudança da sede ocorreu em Novembro de 2009, antes da celebração do contrato de compra e venda de ações em causa nos autos (vide nºs 47 e 48 do factos provados).

Nos termos da factualidade dada como provada (sob os nºs 31 a 33), a referida conta “escrow” foi aberta em nome do autor (vendedor) para efeitos de efetivação das responsabilidades deste, sendo que o montante ali depositado ficou empenhado a favor das rés (compradoras) com vista a assegurar (para além do mais, ora sem interesse), as compensações resultantes de “falsidade, incorreção ou omissão” das declarações assumidas pelo vendedor, e mais concretamente das seguintes declarações financeiras:

“a. Todos os documentos de prestação de contas da SGPS e DD desde a sua constituição, foram aprovados pelos competentes órgãos sociais, tendo sido aprovados elaborados com respeito das regras e princípios contabilísticos aplicáveis, e refletem de forma adequada, completa e rigorosa, por referência à presente data, a situação patrimonial e financeira das sociedades.

b. A FMP SGPS SA e a DD, na presente data, têm a situação líquida constante dos balanços anexos (Anexos 6 e 7), respetivamente), que foram elaborados com respeito das regras e princípios contabilísticos aplicáveis e refletem de forma adequada, completa e rigorosa, por referência à presente data, a situação patrimonial e financeira das Sociedades.”

E foi à luz de tal clausulado contratual que as rés procederam ao débito da quantia em questão, face à circunstância de aquele valor, descrito no balanço da sociedade FMP de dezembro de 2009 como “outros ativos tangíveis” não corresponder (face ao que supra se expôs) a um verdadeiro ativo desta sociedade.

A 1ª instância veio a considerar que as rés agiram com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, ao debitar a referida quantia de € 80.887,74 na contra “escrow” – e daí que, com base nisso, tenha julgado parcialmente procedente a ação, nos termos supra mencionados.

E, da mesma forma, foi esse também o entendimento da Relação – entendimento esse que levou (ainda que sem unanimidade, conforme já supra referido) à improcedência da apelação da ré Banco L. J. BB, SA e à confirmação do decidido na sentença recorrida.

É contra tal entendimento que a recorrente se manifesta, nos termos das conclusões supra transcritas.

As instâncias consideraram que o autor, ora recorrido, não logrou provar se o preço acordado entre as partes incluía o valor das obras em questão, realizadas na sede da sociedade FMP, desconhecendo-se se a determinação do preço constante do contrato teve ou não em conta o referido valor daquele imobilizado corpóreo (€ 80.997,74)             E daí a improcedência do primeiro dos pedidos formulados pelo autor (condenação das rés a reconhecer que o movimento contabilístico realizado pelas RR. no Balanço da FMP SGPS SA, posteriormente à celebração do Contrato de Compra e Venda junto aos autos, seja decretado nulo e como tal não afete e consequentemente diminua o preço estabelecido no referido Contrato pelo montante de € 80.887,74).

Todavia, conforme se alcança do acórdão recorrido, a Relação, na esteira do entendimento da 1ª instância, veio a considerar que, ao debitarem tal valor na conta “escrow”, as rés agiram com abuso de direito.

E, dizendo que, para se chegar a tal entendimento, se colocava a questão de saber se o autor “logrou demonstrar que, não obstante aquele clausulado e a utilização do referido documento anexo ao contrato (balanço individual de dezembro de 2009 onde consta um ativo irreal'"), as RR. sabiam, aquando da celebração do negócio (25.2.2010), que aquele ponto do balanço, nele descrito como "outros ativos tangíveis" não era um ativo verdadeiro”, pelo que “se as RR. tivessem esse conhecimento estariam agora a violar o princípio da boa fé que deve orientar todos os contratos desde a sua preparação e formação até ao seu integral cumprimento (art.Ps 227°, n° 1 e 7620 do Código Civil) e a exercer um direito de forma ilegítima e abusiva, excedendo manifestamente os limites impostos pelo referido princípio, designadamente por via de uma conduta contraditória que passaria pela aceitação do negócio sabendo da devida desconsideração do referido ativo corpóreo para posteriormente invocar a sua anulação como se, inadvertidamente ou por desconhecimento, tivessem considerado aquele valor na formação do preço da compra e venda das ações da FMP (art." 3340 do Código Civil).”, a Relação veio a considerar para o efeito como relevantes, os seguintes elementos factuais:

i. O facto de a compra das ações e do crédito por suprimentos não ter sido um ato precipitado das rés, na medida em que o mesmo “foi preparado com a devida antecedência, mesmo através de um acordo prévio escrito, datado de 17.92009 (fls. 13 a 17 dos autos).”

ii. O facto de a mudança da sede ter ocorrido a pedido das RR. em novembro de 2009 e era do conhecimento delas, depois de terem realizado, em outubro, uma auditoria ao balanço relativo a 31.12.2009.

iii. A circunstância de a perícia referir que “as boas práticas de avaliação apontam para que não sejam considerados para efeitos de avaliação de um sociedade os ativos que não gerem fluxos de caixa futuros. Tais ativos, ainda que reconhecidos nas demonstrações financeiras de uma sociedade, deverão ser desconsiderados no processo de avaliação da mesma. Assim, as obras em propriedade alheia, uma vez que não geram fluxos de caixa futuros, deverão ser deduzidos para efeitos de determinação do valor da empresa”.

iv. A circunstância de ser suposto que sociedades como as RR., pelo seu objeto social, são pessoas coletivas preparadas para os negócios, em especial para celebrar contratos financeiros do tipo do que aqui está em causa.

v. A circunstância de estar provado que “as Rés antes da celebração da compra e venda de ações dos autos tomaram conhecimento que a 30 de Junho de 2009 o valor líquido dos outros ativos tangíveis que ascendia a € 82 699,73, corresponde a obras na sede e instalações interiores, algumas das quais realizadas em 2009”.

vi. E bem assim a circunstância de estar demonstrado que “na data da celebração do contrato de compra e venda as RR. já sabiam que já ocorrera, a seu pedido, em Novembro de 2009 a mudança de sede da FMP SGPS SA e que essa mudança de sede impunha a anulação do valor contabilizado no imobilizado e referente às obras na sede.”

Assim, a Relação, perante tais factos (e considerações doutrinárias antecedentes - constantes do acórdão, sobre a questão do abuso de direito) considerou que ao debitar no depósito “escrow” a quantia em questão, de € 80.887,74 a 1ª ré, ora recorrente, abusou de direito.

Desde já se diga que não podemos deixar de concordar com o entendimento da Relação expresso no acórdão recorrido sobre a existência de  abuso de direito.

De resto, analisadas as conclusões recursórias, supra transcritas, verificamos que, em boa verdade, a recorrente acaba por não infirmar validamente os fundamentos expressos no acórdão recorrido, limitando-se a tecer considerações de ordem genérica sobre a falta de preenchimento dos requisitos de que a lei faz depender o abuso de direito, previsto no artigo 334º do C. Civil.

É certo que, conforme diz a recorrente e já supra se expôs, se mostra assente que a conta “escrow” tinha em vista acautelar a inverdade das declarações proferidas nos documentos apresentados.

Ou seja, destinava-se a acautelar situações, (de que resultasse prejuízo ou desvalorização para as sociedades cujas ações as rés adquiriram ao autor), que à data da celebração do negócio celebrado não fossem do conhecimento das rés e com as quais as mesmas se viesse a deparar.

E, da mesma forma, é certo que no Balanço da FMP SGPS, S.A. relativo a dezembro de 2009 foi contabilizado, na rubrica do ativo, o valor de € 80.888,00 referente a imobilizado de obras em imóveis, sendo que as obras em causa foram levadas a cabo na casa do autor que vinha sendo também a sede daquela sociedade, não sendo as mesmas passíveis de serem levantadas (vide nºs 42 e sgs dos factos provados), pelo que com a mudança da sede da empresa, em 2009, esse “ativo” não representava qualquer benefício económico para a sociedade (nº 57).

Todavia, da matéria de facto dada como provada nos autos, também resulta que as rés auditaram o balanço em questão antes da mudança da sede (facto nº 46) e que tal mudança, em novembro de 2009, ocorreu antes da celebração do contrato de compra e venda em questão nos autos e a pedido das próprias rés (vide nºs e 17 e 48).                                   E ainda se mostra provado que “na data da celebração do contrato de compra e venda as Rés já sabiam que já ocorrera, a seu pedido, em Novembro de 2009 a mudança de sede da FMP SGPS SA e que essa mudança de sede impunha a anulação do valor contabilizado no imobilizado e referente às obras na sede (facto nº 50) e ainda que “desde Setembro de 2009 em diante, nenhuma decisão foi tomada sem a concordância do representante do Banco BB na Administração da DD, incluindo a mudança da sede social da FMP SGPS SA” .

Resulta assim que, à data da celebração do negócio, as rés já tinham conhecimento da inclusão no Balanço da FMP SGPS da quantia em questão e da razão de ser da mesma.

Desta forma, e muito embora não tivessem sido apurados os critérios que levaram à determinação do preço acordado entre as partes (nº 51 dos factos provados), não faz sentido que, em face desse conhecimento, as rés, sendo caso disso, não tivessem exigido a redução do preço até ao momento da celebração do negócio – apenas o vindo a fazer posteriormente e com recurso à conta “escrow”, nos termos dados como provados e já supra mencionados.

Tal conhecimento e comportamento (não obstante o não apuramento nos autos dos critérios que levam à determinação do preço) sempre poderiam levar a que, com recurso às regras da interpretação dos negócios jurídicos contantes dos artigos 236º e seguintes do C. Civil – se pudesse considerar que na fixação do preço, as partes já tiveram em consideração o valor das obras em questão.                                                                 Trata-se de um entendimento que não nos repugnaria aceitar mas que, é certo, é relativo a questão que está fora do âmbito da revista.

           

Mas, não sendo assim, certamente que ao agirem da forma supra descrita as rés fizeram crer ao autor que o valor em questão jamais seria debitado na conta “escrow”, a qual, conforme supra dissemos, visava acautelar as situações (de desvalorização do ativo da sociedade) com que as rés viessem a ser surpreendidas – o que não é o caso.

           De resto, nada nos diz que, sabendo da intenção das rés de virem a debitar na conta o valor em questão, o autor tivesse acedido a realizar o negócio pelo preço acordado.

           

Em face do que se acaba de expor, impõe-se considerar que, efetivamente, a conduta das rés, ao debitar na referida conta o valor em questão, constitui abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do C. Civil, na modalidade de venire contra factum proprium.

           Trata-se de modalidade de abuso de direito que assenta na violação do princípio da confiança e que, conforme bem se salienta no acórdão do STJ de 12.11.2013 (proc. nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, in www.dgsi.pt) tem como pressupostos: “a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; a boa-fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou” – pressupostos estes que, in casu, se verificam.

           

            Estamos assim inteiramente de acordo com o acórdão recorrido quando ali se diz, a respeito da conduta da 1ª ré em debitar na conta “escrow” a quantia de € 80.887,74:

            “Ofende clamorosamente o sentimento de justiça dominante a invocação pelas RR. do direito contratualmente previsto a debitar na conta escrow o valor de um ativo corpóreo por elas efetivamente não recebido no âmbito do contrato compra e venda de ações, quando sabiam, desde o momento da sua celebração e por motivos já delas anteriormente conhecidos, que se impunha a anulação desse valor contabilizado, portanto, que esse valor não iria ser recebido por não estar abrangido pelo referido negócio de ações, com a inerente conformação do respetivo preço.

Não é aceitável à luz do princípio da boa-fé que as RR., sabendo que a compra e venda não poderia incluir o imobilizado corpóreo referente às obras na sede (localizada em prédio alheio, sem poderem ser levantadas), de onde a sociedade se mudou com conhecimento e por vontade das mesmas compradoras, celebrem o negócio e depois se aproveitem do estatuído nas cláusulas terceira e quarta do contrato para obterem uma compensação pelo valor daquelas obras, como se o imobilizado lhes devesse ter sido entregue como efeito do contrato ou não soubessem desde data anterior ao contrato que não estavam a comprar aquele imobilizado.

Sabendo as RR. compradoras que a mudança da sede impunha a anulação do valor contabilizado no imobilizado nessa sede, referente às obras, jamais pagariam o respetivo preço, ou melhor, não incluiriam no preço pago pelas ações o valor contabilizado de € 80.887,74 que sabiam que nunca lhes seria entregue, por dever ser anulado, ainda que não tivesse ocorrido ainda uma anulação formal.

O facto de, posteriormente, a FMP ter formalizado aquela anulação (por não o ter sido anteriormente) não dá às RR. o direito a debitar o valor do imobilizado corpóreo que nunca saiu nem podia sair da antiga sede da FMP SGPS, SA., sem que lograssem provar que o preço que pagaram incluiu aquele imobilizado, pois que este facto constitui uma exceção à exceção do abuso de direito, sendo a sua prova do interesse das RR.”.

Improcedem assim as conclusões da recorrente, impondo-se negar a revista.

Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

                                   Lisboa, 09 de abril de 2019

                                   Acácio das Neves

                                   Fernando Samões

                                   Maria João Vaz Tomé