Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2449/15.5T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 364-365.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 02-04-2019, PROCESSO 5293/15.6T8VNG.P1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações irrelevantes e sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

II. A alteração de um único ponto da decisão sobre a matéria de facto que visa precisar ou explicitar o teor de um facto provado e não tem reflexo na decisão não é apta a descaracterizar a dupla conformidade, verificando-se, da mesma forma, este bloqueio recursório.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


AA e BB intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum contra a CC Seguros, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhes as quantias de:

- 106.800,00 (cento e seis mil e oitocentos euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa legal de 4%, até ao efectivo e integral pagamento; e

- € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de danos extra patrimoniais e respectivos juros de mora, à mesma taxa legal, a contar da data da decisão proferida em 1.ª instância e até efectivo e integral pagamento.

Para fundarem a sua pretensão invocaram, em síntese, a ocorrência de um acidente por culpa exclusiva do condutor da viatura segurada na ré, do qual resultou a morte do filho, de quem são únicos herdeiros, o que lhes determinou os danos cujo ressarcimento peticionam.

Regularmente citada, a ré contestou excepcionando a ilegitimidade dos autores, por não terem apresentado documento que demonstre que são únicos herdeiros do filho decesso, e impugnando, no mais, os factos e os montantes peticionados.

Realizou-se a audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador, no âmbito do qual foi relegado para final o conhecimento da excepção da ilegitimidade, se determinou o objecto do litígio e se identificaram os temas de prova, sem reclamações.

Invocando processo de fusão, veio a ré CC Seguros, S.A., requerer que, nos autos, passasse a ser designada DD, S.A., o que foi deferido.

Procedeu-se a julgamento, vindo a final a ser proferida decisão que julgou improcedente a acção e, consequentemente, absolveu a ré dos pedidos.

Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Apreciando as questões suscitadas no recurso de apelação, os Exmos. Juízes do Tribunal da Relação do Porto decidiram alterar o teor de um dos pontos da matéria de facto provada e julgar, no mais, improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Inconformado com este aresto, vêm agora os autores AA e BB interpor o presente recurso de revista, pretendendo a sua revogação e a sua substituição por outro que julgue a acção procedente e, em consequência, condenada a recorrida ao pagamento da quantia inicialmente peticionada, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos após a citação e vincendos, até integral pagamento, ou, assim não sendo entendido, fixada uma concorrência de culpa entre vitima e lesado, na proporção de 25% e 75% condenando­‐se a apelada nas quantias inicialmente peticionadas nessa proporção de 75%.

São as seguintes as conclusões das alegações formuladas pelos autores / ora recorrentes no recurso de revista:

1 ­  A douta Apelação recorrida desresponsabilizou o condutor/segurado pela verificação do evento danoso imputando à infeliz vitima a violação das regras estradais no atravessamento da via, por um lado, e por outro, o facto daquele condutor não ter excedido a velocidade legalmente permitida no local do acidente.

2 ­ Com o devido respeito pela opinião contrária, em particular a expressa na douta Apelação recorrida, no capitulo da velocidade vs. responsabilização pela verificação do acidente, o elemento a apurar não é o de velocidade lealmente admissível mas, isso sim, o conceito de velocidade adequada.

3 ­  Significa isto escrever que, hipoteticamente, um condutor poderá conduzir dentro dos limites admissíveis para o local do acidente mas, em concreto, a velocidade por ele imprimida ser desadequada e consequencial do acidente.

4 ­  E, neste particular que a noção de “velocidade legalmente admitida“ funciona como presunção ilidível dessa mesma responsabilização/desresponsabilização

5 ­  No caso sub judice o veículo do condutor/segurado circulava dentro da fronteira ­ 10 a 15% ­ dos limites de velocidade (80km/h) determinados pela sinalização existente;

6 ­  Porém, para além desta circulação no limiar do admissível legalmente, circulava com uma carga pela sua natureza instável e perigosa (bilhas de leite com um peso unitário de 50Kg) e que exigiam um cuidado redobrado;

7 -  Cabendo, sublinhar que a douta Apelação ignorou ­ ou aparentemente parece ignorar na forma como redige a matéria fáctica dada por aprovada nesta parte substituindo a adversativa ( mas ) provinda da primeira instância por uma conjuntiva (e) no artigo 9 da matéria fáctica assente ­ essa natureza perigosa e instável da carga transportada e suas consequências na condução.

8 -  Mais, o veículo ­ ligeiro de mercadorias ­ envolvido tinha quase 20 anos de idade ( em rigor 18 anos e dez meses );

9 -  Estas concretas circunstâncias, aliadas ao facto do condutor ter visto a infeliz vitima a mais de 300 metros, ter­se consciencializado da manobra da vítima num amplo espaço visível à sua frente obrigava este a redobrar o mencionado cuidado na condução;

10 -  Mormente porquanto, quando se aproximou da vitima, optou por ultrapassar e não reduzir a velocidade como se impunha;

11 -  A morte do jovem ocorreu em resultado de uma conjugação de factores: o segurado não iniciou a manobra de travagem logo que avistou o jovem na faixa de rodagem (a 47 ­ 52 metros); optou por tentar rodear / ultrapassar a vitima ao invés de travar / reduzir a velocidade; transportava uma carga de natureza instável e perigosa; conduzia um veículo com quase 20 anos de idade e, por último e principalmente, circulava em velocidade inadequada (na fronteira do legalmente admissível para o local) e consequentemente excessiva e isto porquanto,

12 -  Enquadra o conceito de velocidade excessiva a impossibilidade de imobilizar o veiculo no espaço visível à sua frente de forma a evitar o acidente pelo que,

13 -  Deverá a responsabilidade exclusiva do acidente, por força do disposto no artigo 24º do Código de Estrada ­ norma em concreto erroneamente interpretada pelo Tribunal recorrido ­ ser assacada ao segurado e, concomitantemente e por força da apólice de seguro contratado, à recorrida .

14 -  A douta sentença apurou os elementos bastantes para a fixação aos apelantes duma indemnização correspondente ao inicialmente peticionado.

15 -  Na verdade, e resulta suficientemente provada: o EE era um jovem de 21 anos, solteiro, saudável, sem prespectiva de casamento, respeitado na comunidade, trabalhador esforçado, apenas do seu ordenado de 762,24€ reservava 100 € para as suas despesas e destinando o remanescente aos autores para ajuda nas despesas familiares entre eles duas irmãs estudantes.

16 -  A sua morte provocou dores profundas aos autores e depressão não tendo estes ultrapassado, ainda, a perda do jovem.

17 - Destarte é justo, adequado e equitativo o montante inicialmente peticionado de 106.800€ a titulo de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento bem como, 150.000€ a titulo de danos extra­ patrimoniais, acrescidos de juros de mora de 4% desde a decisão condenatória devendo, consequentemente, a decisão recorrida ser revogada.

18 - Assim não se entendendo, o que não se espera, por referência ao disposto no artigo 570º do C. Civil, deverá ser ponderada uma concorrência de culpa entre vitima e segurado na verificação o do evento danoso e, por essa via, fixada respectivamente em 20% e 80% a culpa da vitima e do segurado, condenando­se a apelada ao pagamento das quantias inicialmente peticionadas nessa proporção de 80%”.


A ré / recorrida DD, S.A., apresentou as suas contra-alegações. Pugna, essencialmente, pela inadmissibilidade da revista com fundamento na verificação da dupla conforme.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se, em face da procedência de uma das questões suscitadas pelos autores / apelantes no que respeita à decisão sobre a matéria de facto, deveria ter sido diversa a decisão do Tribunal a quo.


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II. APRECIAÇÃO DO RECURSO


A questão da admissibilidade do recurso

Como acontece sempre, antes de se conhecer do objecto do recurso, deve o Relator apreciar a sua admissibilidade.

No caso em apreço é particularmente visível a necessidade desta apreciação. Não é por acaso que ambas as partes suscitaram (e trataram) a questão da admissibilidade do recurso: os recorrentes alegam que, apesar das aparências, a dupla conforme não existe e por isso o recurso é admissível; a recorrida alega exactamente o contrário,

Mais precisamente, entendem os recorrentes que o Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente a apelação e é por isso que não se verifica o bloqueio recursivo da dupla conforme.

Mas, com o devido respeito, não lhes assiste razão.

Foi a seguinte a decisão dos Exmos. Juízes Desembargadores do Tribunal a quo: “[e]m face do exposto, acordam em alterar a matéria de facto nos termos expostos e em julgar, no mais, improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida”.

A alteração da matéria de facto esgotou-se na alteração (rectius: precisão) de um – um único – dos pontos da factualidade provada, mais precisamente, o ponto 9.

Inicialmente constava deste ponto 9 da matéria de facto:

- “O veículo ...-...-DL circulava a reduzida velocidade mas encontrava-se carregado de bilhas de leite

Depois da alteração passou a constar deste mesmo ponto 9:

- “O veículo ...-...-DL circulava, no início dos rastos de travagem, a uma velocidade não inferior a 61 Km/h e não superior a 75 Km/h e no ponto de impacto a uma velocidade não inferior a 42 Km/h e não superior a 52 Km/h, e encontrava-se carregado de bilhas de leite”.

Para os presentes efeitos, interessa averiguar a natureza e, principalmente, o contributo desta alteração para decisão do julgador, ou seja, a susceptibilidade de ela funcionar como elemento determinante ou fundamento da decisão.

Como se assinalou em anterior Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça[1], para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode, compreensivelmente, atribuir-se significado a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

 Ora, aquilo que pode verificar-se, no caso em apreço, é, em primeiro lugar, que a questão procedente se prende com a mera alteração de teor de um único ponto da matéria de facto.

Aquilo que pode verificar-se, em segundo lugar, é que a alteração em causa, ou seja, a precisão de que a velocidade reduzida do veículo se fixava em certa velocidade estimada máxima e mínima estimada, foi absolutamente irrelevante para a decisão do Tribunal recorrido.

Diz, a propósito, Abrantes Geraldes, que “[a] expressão 'fundamentação essencialmente diferente' pode porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da matéria de facto empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662.º. Todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia. Uma modificação da matéria de facto provada ou não provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respetiva motivação[2].

Quer dizer: apesar da alteração factual, o Tribunal a quo confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (a alteração do ponto 9 da matéria de facto não prejudica a identidade da fundamentação em que se apoiou a decisão de ambas as instâncias).

Configura-se, assim, o bloqueio recursório do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, tornando-se, consequentemente, inadmissível o presente recurso de revista.


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III. DECISÃO


Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.


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Custas pelos recorrentes.


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LISBOA, 7 de Novembro de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.04.2019, Proc. 5293/15. 6T8VNG.P1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 364-365 (sublinhados do autor).