Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2170/13.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: TESTAMENTO
NULIDADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
ÓNUS DA PROVA
FACTO CONSTITUTIVO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS AUTÊNTICOS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / PENHOR / PENHOR DE COISAS.
Doutrina:
-Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 371.º, 1 E 674.º, 3.
Sumário :
I - Pedindo os autores que se declare nulo um testamento por, no momento da sua outorga (25-05-2011), se verificar incapacidade acidental da testadora, considera-se terem os mesmos feito prova dos factos constitutivos do direito alegado, tal como lhes competia de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (art. 342.º, n.º 1, do CC), quando a Relação, alterando a matéria de facto, deu como provado que “Em 25MAI2011, a A não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou”.

II - Não cabe ao STJ sindicar o erro na livre apreciação das provas, “salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (art. 674.º, n.º 3, do CPC) ou ainda quando, naquela apreciação, o tribunal recorrido tenha incorrido em manifesta ilogicidade no uso das presunções judiciais.

III - A circunstância de constar do testamento, lavrado por notária, que “foi feita a sua leitura e a explicação do seu conteúdo à testadora” não faz com que a capacidade desta esteja abrangida pela força probatória plena daquele documento autêntico, tanto porque apenas ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora ou que nele são atestados com base nas suas percepções, mas já não os meros juízos pessoais do documentador (art.  371.º, n.º 1, do CC); como, porque, no caso concreto, tal atestação não integra sequer o documento autêntico.

IV - Não se divisando, face ao teor da fundamentação constante do acórdão recorrido, que o raciocínio desenvolvido pela Relação no sentido de dar como provado o facto referido em I revele ilogicidade manifesta, não é permitida a sua censura pelo STJ.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, BB, CC, DD, EE e FF instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra GG e mulher, HH, II, JJ e KK, pedindo que se declare nulo o testamento datado de 25 de Maio de 2011, cuja assinatura é atribuída a LL no Cartório Notarial de MM, sito em …, na Rua …, nº 119, lavrado a fls. 129 e 129 verso do livro de notas para testamentos públicos número um daquele Cartório, de que são beneficiários os RR., alegando que quando o fez a testadora se encontrava incapacitada de entender o sentido das suas declarações, sendo que, na ausência desse testamento, seriam eles, AA., os herdeiros da testadora.

Os RR. contestaram por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.

A fls. 620 foi proferida sentença que, considerando não só não terem os AA. logrado provar factos integradores da invocada incapacidade acidental (ainda que considerando que eles lograram provar padecer a testadora de doença incapacitante ela não se mostrou em estádio capaz de pôr em causa a capacidade da testadora) como poder ter-se por segura a capacidade da testadora em função da qualificada garantia conferida pela intervenção notarial na outorga do testamento, julgou a acção improcedente, não declarando a invalidade do testamento.

Inconformados, os AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de …, começando por invocar a falta de independência e imparcialidade do juiz a quo, e pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 743 foi proferida a seguinte decisão:

“Termos em que se decide:

- julgar improcedente a invocação de falta de imparcialidade por parte da Mm.a juiz a quo;

- alterar a matéria de facto nos termos acima indicados;

- na procedência da apelação, revogar a sentença recorrida e, em substituição, declarar inválido, por anulabilidade, o testamento de LL, lavrado no Cartório Notarial de MM em 25MA12011, a fls. 129 e 129v. do livro de notas para testamentos públicos número um daquele Cartório.”


2. Vêm os RR. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

A. Os ora Recorrentes vêm apresentar recurso do Acórdão da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de … que, ao contrário da decisão do tribunal de 1.ª instância que negou provimento à pretensão dos Autores, ora Recorridos, veio revogar tal decisão, referindo, assim, que deve ser considerado inválido, por anulabilidade, o testamento de LL;

B. Consideram os ora Recorrentes que a questão que importa tomar em consideração no presente recurso - e que importará para uma correcta decisão da causa pelo Supremo Tribunal de Justiça - é, fundamentalmente, uma questão de direito que parece, de facto, ter sido "esquecida" pelo Tribunal a quo. Vejamos:

C. Dispõe o Código Civil, como princípio geral, no artigo 2188.°, a capacidade testamentária, considerando-se, no artigo seguinte, que não são capazes, para este efeito, quer os menores não emancipados, quer os interditos por anomalia psíquica;

D. Ora, face ao supra exposto, à data da outorga do testamento, LL (a testadora) não era nem menor, nem estava interdita por anomalia psíquica, pelo que terá de se concluir que, à data de 25 de Maio de 2011 (data da outorga do testamento), a mesma tinha plena capacidade testamentária (ou seja, "cabia" na regra geral);

E. Os Recorridos intentaram o presente processo porque, segundo eles, na data em causa, a testadora estava incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade, isto é, estava incapacitada acidentalmente, de acordo com o disposto no artigo 2199.° do Código Civil;

F. Nos termos do n.° 1, do artigo 342.° do Código Civil, "àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado", significando, assim, que, no presente processo, era aos Autores, aqui Recorridos, que competia provar a totalidade dos factos demonstrativos da eventual incapacidade acidental;

G. Ou seja, sobre os Recorridos recaía o ónus de provar, não apenas genericamente, mas de forma detalhada e com a segurança e certeza exigidas, que, no exacto momento da outorga do testamento, LL encontrava-se totalmente desprovida das suas capacidades cognitivas e volitivas (conforme, aliás, é jurisprudência unânime, referindo-se, a título de exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 14/10/2008, Processo n.° 0823266, disponível para consulta em www.dgsi.pt, bem como o Acórdão da Relação do Porto, de 8/05/2000, BMJ, 497.°- 444, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 24/05/2011, Processo n.° 4936/04.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt);

H. E não se diga que incumbe aos Recorridos "apenas" fazer prova da incapacidade; na verdade, o ónus da prova dos factos demonstrativos de tal incapacidade deverá recair sobre o momento da feitura do testamento, ou seja, a pretensão dos Recorridos só deveria ser julgada procedente se se viesse a demonstrar que, no exacto momento da outorga do acto notarial, não se encontrava verificado o requisito da capacidade, o que não se fez;

I. Os ora Recorridos limitaram-se a procurar fazer prova da incapacidade "geral" da testadora, por causa da sua alegada doença, sem, contudo, fazerem qualquer referência ao momento da outorga do testamento, conforme exigência legal e entendimento unânime da jurisprudência, não resultando, pela análise de toda a prova produzida, a prova de qualquer vício de vontade no exacto momento do acto notarial em análise;

J. Concluindo, sem prejuízo do supra exposto, deve o Acórdão do Tribunal a quo ser revogado por, entre outros aspectos, não ter tomado em consideração as regras referentes ao ónus da prova;

K. Os Autores do presente processo quiseram, de facto, "construir" a ideia que a testadora, padecendo da doença de Alzheimer, estava num estado de permanente incapacidade, razão pela qual, teria necessariamente que se concluir que, na data da outorga do testamento, estaria também verificado o tal requisito de incapacidade;

L. No entanto, bem se sabe que o facto da testadora padecer de Alzheimer (ou até mesmo de demência, em razão da referida doença) não poderá implicar, sem mais, uma incapacidade constante e profunda (até porque, no caso concreto, o diagnóstico médico refere uma doença provável);

M. Ou seja, jamais poderá existir um nexo de causalidade entre a referida doença e a conclusão que, à data da outorga do testamento, a testadora não estivesse dotada das suas plenas capacidades mentais a fim de compreender e querer o conteúdo das suas declarações;

N. Neste sentido, saliente-se, para além do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 31/1/1991, que é também entendimento da jurisprudência que, por exemplo, uma sentença que decrete a interdição não é, por si só, suficiente para se considerar que o testamento é anulável: é, de facto imprescindível que se prove que, no exacto momento da outorga, o/a testador/a não tinha capacidade para testar;

O. Pela análise dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo a única conclusão que, de facto, se poderá retirar, é que, no dia da outorga do testamento, LL tinha, de facto, algumas limitações físicas, não se podendo, porém, concluir que, atendendo à doença de que padecia (cujo diagnóstico foi apenas apresentado como provável, relembre-se) a mesma não se encontrava capaz de exprimir a sua vontade;

P. E não se aceite que a decisão do Tribunal a quo foi sustentada com base na "demência moderada" (diagnóstico que foi apresentado); é que, sendo tal conceito de demência bastante relativo, importará então concretizar em que termos é que se manifestou, in casu, essa patologia na referida LL, concluindo-se pois que, na data da outorga do testamento, os sintomas eram maioritariamente (ou até mesmo exclusivamente) físicos, de acordo com os factos provados pelo já referido Tribunal a quo;

Q. Assim, mais uma vez se refira que não foi feita qualquer prova de que LL não estivesse em condições de entender o que estava a fazer, quando respondeu à Notária, perante as duas testemunhas e quando outorgou e assinou o testamento;

R. Mais, tendo o testamento sido exarado perante notário - como foi - existe uma forte presunção de que a testadora tinha, à data, aptidão para entender o que declarara;

S. É que, de facto, tem vindo a ser entendido pela nossa Jurisprudência e Doutrina, que a simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art.67°, n°s 1, al. a) e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o acto, é uma primeira e qualificada garantia de que a testadora gozava, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade;

T. Cumpre ao notário, além do mais, verificar se os declarantes (in casu, a testadora) reúnem ou não as condições físicas e psíquicas que lhes permitam entender o seu conteúdo, o que foi feito no caso concreto; ou seja, mantendo-se o aspecto formal de todos os testamentos, não se pode, "de ânimo leve", passar despercebida a certificação, que também neste, que o testamento "foi lido em voz alta à testadora e à mesma foi explicado o seu conteúdo na presença simultânea de todos os intervenientes";

U. A confirmação do discernimento de LL, encontrando-se incluída no testamento em apreço, adquire força probatória plena, nos termos conjugados dos artigos 377.° e 371.°, ambos do Código Civil;

V. Ora, não tendo os Recorridos impugnado tal força probatória, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 372.° do Código Civil e com fundamento na sua falsidade (hipótese que presentemente se encontra precludida em função das regras processuais que se impõem), não poderá consequentemente colocar-se em crise a veracidade de tal asserção e, em particular, o efectivo e atestado carácter livre, autónomo, consciente e intencional das declarações que prestou;

W. Tal como bem se sabe, a notária, se tivesse tido dúvidas sobre a capacidade da testadora de entender e de querer, a mesma não teria lavrado o testamento, podendo, aliás, em caso de dúvida, fazer intervir no acto um perito médico que abonasse a sanidade mental da outorgante (cfr. o art.67°, n°4, daquele código), o que não aconteceu precisamente porque não houve qualquer dúvida quanto à capacidade da testadora.

X. Face a todos os dados e factos constantes do processo, entendem os ora Recorrentes, não poder concluir-se o facto essencial constante do ponto 23.° do Acórdão do Tribunal da Relação, isto é, que LL, no dia em que outorgou o testamento (25.05.2011), não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou. Muito pelo contrário...

Y. É que, novamente se saliente que o alegado estado de demência (moderada, relembre-se!), sem mais caracterização, não implica perda da faculdade de entender, nem afasta a possibilidade de, em determinados momentos, se verificar uma situação de lucidez;

Z. Daí que a conclusão retirada pelo Tribunal a quo constitua um salto lógico, na medida em que não é suportada por outros elementos probatórios, designadamente, de carácter objectivo, que permitam o recurso a presunções judiciais, assentes, nomeadamente, em juízos correntes de probabilidade.


    Os Recorridos contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões:

I. Os Recorrentes alegam, em resumo, que o Tribunal da Relação não considerou as regras relativas ao ónus da prova, porque os Recorridos não fizeram a prova que nos termos da lei lhes competia, e ainda que o tribunal a quo descurou o valor probatório pleno do testamento lavrado no dia 25/5/2011.

II. O julgamento da matéria de facto comporta apenas dois graus de jurisdição, donde, sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, em princípio não julga sobre matéria de facto, mas apenas sobre matéria de direito.

III. A regra geral de acordo com a qual o STJ, como tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito, sendo da competência exclusiva das instâncias a apreciação e fixação da matéria de facto, comporta as excepções que decorrem do nº 3 do artº 674º do CP.Civil, (anterior artº 722º do CPCivil) por remissão do artº 682º nº 2 do CP.Civil (anterior artº 729º do CP.Civil) e do artº 682º nº 3 do mesmo Código.

IV. Determina o artº 674º nº 3 do CP.Civil que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

V. Tem vindo a ser entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que da competência residual, em matéria de sindicância da decisão de facto, resulta que ao Supremo tribunal está vedada a possibilidade de sindicar a decisão de facto quando o tribunal inferior toma como referente decisional prova não vinculada ou não ofenda regras de produção de prova que a lei prescreva.

VI. No mesmo sentido Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, pág. 406, segundo o qual "... considerou-se que o Supremo não deveria ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a respectiva força probatória. Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competências do Supremo".

VII. Mesmo nos casos de eventual erro na apreciação das provas (que manifestamente não se verifica no caso concreto), considerando o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do qual o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, excepto os casos de prova vinculada, cfr. arte 607º nº 5 do C.P.Civil,

VIII. O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a decisão da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido em duas situações: (i) quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova, que segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência, ou (ii) quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico português.

IX. A lei não exige qualquer formalidade especial para a prova da falta de capacidade do testador para entender o sentido da sua declaração no momento da outorga do testamento.

X. O Tribunal da Relação começou por analisar os depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento, designadamente da notária Dra. MM e das testemunhas do testamento, NN e OO e concluiu que os seus depoimentos, não permitem formular qualquer juízo sério quanto à capacidade intelectual da testadora.

XI. A este respeito diz o Tribunal da Relação que, "Com efeito a notária não teve qualquer outro contacto com a testadora que não o ocorrido no momento da outorga do testamento; quer o seu agendamento quer o seu conteúdo foram tratados com o escritório de advogados com quem habitualmente trabalha  . O que se retira desse depoimento é que a intervenção da notária se limitou à formalidade do acto onde ocorreu uma conversação formatada' e, dada a simplicidade da disposição testamentária, a um nível muito básico, insusceptível de fundamentar qualquer juízo sério sobre a capacidade intelectual da testadora. Ideia que, aliás, é reiterada pelos depoimentos das testemunhas do acto",

XII. E acrescentou, na nota de rodapé 17 do acórdão proferido, a propósito da relevante circunstância de o único contacto da notária com a testadora ter ocorrido no momento da outorga do testamento, que, "sendo certo que foi dado como provado que o testamento foi elaborado pela notária de acordo com os dados transmitidos pela advogada da testadora não é menos certo que não se encontra na prova produzida qualquer evidência de tal mandato; nem ele se pode deduzir da (alegada pelas testemunhas mas não afirmada no respectivo documento notarial) presença da referida advogada no acto da outorga do testamento uma vez que dadas as circunstâncias sempre fica a incerteza sobre por conta de que interesse agia, o do testador ou o dos beneficiários." (destaque nosso).

XIII. Razão pela qual no ponto 17. dos factos provados consta que o texto do testamento foi redigido pela notária de acordo com os dados que lhe foram transmitidos por advogada de escritório com quem habitualmente trabalhava.

XIV. A alegada pelos Recorrentes, forte presunção de que a testadora tinha à data do testamento aptidão para entender o que declarara devido ao facto do testamento ter sido lavrado perante notário, não se verifica no caso concreto, porquanto claramente a testadora foi substituída pela advogada (dos beneficiários do testamento), tendo sido esta última quem transmitiu à notária os termos do testamento, tendo-se certificado que o mesmo tinha sido redigido de acordo com as suas (dela, advogada) instruções através da presença na sala, apesar de não ser testemunha do acto.

XV. Da análise dos depoimentos das testemunhas do testamento constante do acórdão do Tribunal da Relação resulta que NN manifestou a sua intencionalidade de mais do que descrever o que viera ao seu conhecimento afirmar que a testadora estava lúcida e sabia o que estava a assinar, isto é foi 'directo ao que interessava' e viu ferida a sua credibilidade quando nas instâncias foi obrigado a reconhecer que afinal não se lembrava de situação que anteriormente afirmara peremptoriamente ter-se verificado de determinada forma.

XVI. E que OO, cujo depoimento o Tribunal da Relação considerou imprestável, anunciou-se como testemunha de um sobrinho da testadora, beneficiário do testamento, e não da testadora, a que acresce o facto de se ter limitado a descrever o acto da outorga do testamento, sem qualquer referência concreta e sustentada sobre a sua decorrência da qual surge absolutamente alheado, tendo afirmado que a testadora apesar de pessoa idosa estava bem porquanto 'não batia com a cabeça na secretária'.

XVII. Da análise do Tribunal da Relação aos depoimentos da notária e das testemunhas do testamento, resulta que no caso concreto a presença do notário e das testemunhas não se traduziu em qualquer garantia, muito menos qualificada, de que a testadora gozava de um mínimo de capacidade anímica para querer e entender o que a advogada afirmou ser a vontade da testadora.

XVIII. Por outro lado o Tribunal da Relação entendeu (e bem) que (i) os exames neuropsicológicos da testadora realizados antes e depois da data do testamento na medida em que "caracterizam o estado das suas funções intelectuais e a sua evolução ao longo do tempo....", cfr. § 2 da pág. 11 do acórdão, (ii) o testemunho daquela que foi a médica assistente da testadora, segundo a qual "...pelo que acompanhou da evolução do estado de saúde da testadora, não deixou de afirmar achar improvável a mesma estar na posse de capacidades para querer e entender o testamento", cfr. 2ª parte do § 4 da pág. 11 do acórdão recorrido, (iii) os restantes depoimentos, de familiares próximos, cuidadores, procurador, e bem assim (iv) os restantes documentos dos autos (relatórios elaborados pelas cuidadoras e DVD),

XIX. Confirmam a falta de capacidade da testadora para no momento da outorga do testamento de 25/5/2011, querer e entender o testamento.

XX. Acresce ainda que, tratando-se de uma doença relativamente à qual está clínica e cientificamente comprovada a degenerescência evolutiva e paulatina das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão das actividades de vida diária, aptidões de pensamento abstracto e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais,

XXI. À luz da ciência e da experiência comum (e do depoimento da médica assistente da testadora) não poderá deixar de se concluir, como concluiu o Tribunal da Relação, que, em 25/5/2011 LL não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou.

XXII. Conclusão à qual o Tribunal da Relação chegou mediante ponderação de todos os factos circunstanciais apurados e da absoluta falta de referência a uma causa da alteração de vontade testamentária, segundo os padrões da experiência comum de vida.

XXIII. Remata-se pois dizendo que no caso concreto, o Tribunal da Relação não ofendeu qualquer disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, tão-pouco as regras relativas ao ónus da prova, porquanto os ora Recorridos fizeram a prova que se lhes impunha.

XXIV. Mais alegam os Recorrentes, ainda que sem razão, que o Tribunal da Relação desrespeitou as normas que regulam a força probatória dos documentos autênticos.

XXV.   Tratando-se de um acto jurídico, a validade do testamento depende de no momento da sua outorga o testador ter consciência do seu acto e dos efeitos, consequências e alcance deste.

XXVI. Sendo certo que o testamento é um documento autêntico, cfr. artº 363º do C.Civil, ao qual a lei atribui força probatória plena, nos termos do artº 371º do C.Civil.

XXVII. O facto de não constar de um testamento que a testadora estava incapaz de entender ou de querer, não impede que essa prova se faça ulteriormente (se assim não fosse nenhum testamento seria impugnável e/ou anulável) evidentemente sem necessidade de alegar a falsidade do documento. Nem se vê que o documento seja falso!

XXVIII. Em relação aos factos não cobertos pela força probatória plena do documento, a sua impugnação pode fazer-se independentemente da arguição da sua falsidade, pelos meios gerais, cfr. Ac. STJ 24/3/2011 relator Orlando Afonso, www.dgsi.pt

XXIX. Na verdade, é jurisprudência e doutrina unânime (não encontraram os Recorridos jurisprudência nem doutrina em sentido contrário) que a força probatória plena dos documentos autênticos circunscreve-se apenas às percepções neles afirmadas pela autoridade ou oficial público, já não à sinceridade, genuinidade ou verdade das declarações dos intervenientes, ou a factos que não possam ser por eles comprovados cientificamente, cfr., de entre muitos, Acórdão do STJ de 24/3/2011 e Acórdão do STJ de 27/3/2014.

XXX.   Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, anotação ao artº 371º, Vol I, 4ª ed, pág. 327/328, "O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (ex. procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado (cfr. acórdão do S.T.J., de 29 de Março de 1976, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 111, pág. 297 e anot. De Vaz Serra, a pág. 302)".

XXXI. A afirmação feita pela notária no testamento de que este foi lido em voz alta, na presença simultânea de todos intervenientes, não fornece qualquer prova de que a testadora se encontrava em condições de testar,

XXXII. Aliás, mesmo que a notária tivesse feito constar do testamento que a testadora parecia estar em condições de testar (o que efectivamente não sucedeu) isso constituiria simples juízo pessoal da notária e como tal sujeito à livre apreciação do julgador, cfr. 2ª parte do nº 1 do artº 371º do C.Civil, cfr. Acórdão STJ de 13/1/2004, consultável em www.dgsi.pt

XXXIII. No que se refere à força probatória plena dos documentos autênticos Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, anotação ao artº 393º, Vol 1, 43 ed, pág. 342, ensinam que é necessário interpretar nos seus justos termos, a doutrina do nº 2, cingindo-nos aos factos cobertos pela força probatória plena do documento, pelo que nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada. No mesmo sentido Ac. STJ de 11/4/2013 - Proc. nº 1565/10.4.

     Terminam concluindo que o acórdão do Tribunal da Relação, não merece censura devendo manter-se nos exactos termos em que foi proferido e consequentemente ser negada a revista.


       Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção da Relação):

1. No dia 25/05/2011, no Cartório Notarial de MM foi lavrado o testamento cuja cópia se encontra a fls. 70-1 dos autos, e do qual consta, além do mais, que, como testadora, LL disse: - Que revoga qualquer testamento anteriormente feito, nomeadamente o lavrado no Cartório Notarial de … de PP em vinte e quatro de junho de dois mil e dez. — Que não tem ascendentes vivos nem descendentes. — Que faz pelo presente testamento as disposições de sua última vontade do seguinte modo: Institui seus únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, seus sobrinhos por afinidade: GG (...); QQ (...); II (...). Nomeia testamenteiro QQ (...).

2. No dia 24/06/2010, em Cartório Notarial, perante PP tinha sido lavrado o testamento cuja cópia se encontra a fls. 74-6 dos autos, e do qual consta, além do mais, que, como testadora, LL declarou: Que não tem ascendentes vivos nem descendentes e pelo presente: a) caso a testadora não sobreviva ao seu referido marido, institui herdeiros da sua quota disponível, os seus dois primos RR, residente em …, Argentina, e SS, residente em …, Argentina. b) caso a testadora sobreviva ao seu referido marido, institui seus únicos e universais herdeiros: b.1) de metade da sua herança aos mencionados os seus dois primos RR, (...) e SS, (...); b.2) da outra metade da sua herança: 1. Um de oito avos para cada um dos irmãos do marido da autora da herança: a.1 — BB; a.2- AA; a.3 — TT; a.4 - CC; Que em caso algum dos supra referidos irmãos do marido da autora da herança venham a falecer antes da testadora o seu direito passará aos respetivos filhos. 2. Um de oito avos para os filhos de cada um dos pré-falecidos dos irmãos do autor da herança: a.5 - UU; a.6 - VV; a.7 — XX; a.8 — ZZ: (...).

3. Na mesma data (24/06/2010) e Cartório Notarial (de PP), AAA fez testamento pelo qual instituiu herdeiros da sua quota disponível, um de oito avos para cada um dos seus irmãos — BB, AA, TT, e CC — e um de oito avos, para os filhos de cada um dos pré-falecidos irmãos do autor da herança — UU, VV, BBB, e ZZ.

4. No dia 27/03/2011, faleceu AAA, com a idade de 88 anos, no estado de casado com LL, sem convenção antenupcial.

5. No dia 31/12/2012, faleceu LL, com a idade de 88 anos (nascida em 12.08.1924), no estado de viúva de AAA, sem ascendentes nem descendentes.

6. LL foi sujeita, em 27MAI2010, a exame neuropsicológico no qual se constatou que a mesma apresentava

- no discurso espontâneo, défice ligeiro;

- na atenção sustentada, défice moderado;

- a capacidade mnésica sem alterações;

- na memória imediata, défice moderado;

- na memória de trabalho, défice moderado;

- na capacidade de evocação, défice grave;

- na capacidade de aprendizagem associativa, défice grave;

- na capacidade de evocação espontânea de informação recente, défice grave;

- na capacidade de evocação espontânea de informação a 30 minutos, défice

grave;

- na memória remota, défice ligeiro;

- na capacidade de nomeação de objectos, défice ligeiro;

a capacidade de compreensão de ordens verbais simples sem alterações; na capacidade de compreensão de ordens verbais complexas, défice ligeiro; na leitura e escrita, défice grave; na orientação espacial, défice grave; a orientação pessoal sem alterações;

- na fluência verbal, défice grave; na iniciativa motora, défice grave;

- na iniciativa grafo-motora, défice grave;

- no cálculo elementar, défice grave;

- na abstracção verbal, défice grave;

- na abstracção não verbal, défice grave;

concluindo-se pela existência de um defeito generalizado nas funções nervosas superiores, alterações marcadas nas actividades de vida diária e desorientação temporo-espacial compatíveis com um quadro de demência de gravidade moderada (Doença de Alzheimer provável).

6-A. Em 8JUN2010 LL teve alta hospitalar com demência moderada com necessidade de apoio de terceiros nas actividades de vida diária, encontrando-se orientada na pessoa e não orientada no tempo, espaço e acontecimentos e incapaz para gerir regime medicamentoso.

7. Depois de ter alta do Hospital … em 08/06/2010, a testadora e seu marido passaram a ter assistência de empregadas/cuidadoras, no domicílio, 24 horas por dia, sendo ajudados na gestão dos seus bens e das empregadas, até setembro de 2010, pelo A. AA.

8. A partir de setembro de 2010, a testadora passou a ser auxiliada na gestão da sua pessoa e bens pelos sobrinhos GG e CC, aqui réus, e QQ, entretanto falecido.

9. A testadora também era auxiliada na gestão dos seus bens por CCC, pessoa da sua confiança desde há décadas, a quem outorgou procuração para tratar de assuntos vários, em 25/05/2011, como já antes tinha feito em 18/06/2010, em conjunto com o seu marido.

10. Em 30/09/2010, os RR. GG e CC, e o falecido GG, a pedido da testadora, transferiram o casal AAA e LL do Clube de Repouso Casa dos … para o seu apartamento da Av.ª dos ….

11. No dia 25 de maio de 2011, o sobrinho QQ foi buscar a tia LL e DDD a casa, e transportou-as até às imediações da Rua ….

12. Em 25/05/2011, a testadora tinha dificuldades em caminhar.

13. Na mesma altura, a testadora não se deslocava à rua sozinha, era ajudada na sua higiene pessoal, no seu vestuário, e na confeção dos alimentos.

14. No mesmo dia 25/05/2011, LL esteve no cartório notarial de MM, tendo sido acompanhada, até à porta do mesmo, pelos seus sobrinhos QQ, GG e II.

15. Aí, fez o testamento melhor descrito no facto 1, no qual foram testemunhas NN e OO.

16. A testemunha NN era pessoa das relações da testadora e dos RR. GG e HH, tendo sido contactado por estes; a testemunha OO era conhecida do falecido QQ, tendo sido contactada por este.

17. O texto do testamento foi redigido pela notária de acordo com os dados que lhe foram transmitidos por advogada de escritório com quem habitualmente trabalhava.

18. No dia 25/05/2011, a notária leu o testamento em voz alta, na presença das já referidas testemunhas, à testadora, trocou com esta algumas frases indagando se o testamento correspondia à sua vontade, não se lhe tendo levantado, em face da coerência e concordância das respostas, quaisquer dúvidas quanto à capacidade da testadora para o acto, tendo a testadora assinado o testamento pelo seu próprio punho.

19. LL foi sujeita, em 26 OUT2011, a uma reavaliação do seu estado neuropsicológico no qual se constatou que a mesma apresentava, relativamente ao exame anterior

- na atenção sustentada, um agravamento ligeiro;

- a capacidade mnésica sem alterações;

- na memória imediata, um agravamento ligeiro;

- na memória de trabalho, um agravamento ligeiro;

- na capacidade de evocação, um agravamento acentuado;

- na capacidade de aprendizagem associativa, um agravamento acentuado;

- na capacidade de evocação espontânea de informação recente, um

agravamento acentuado;

- na capacidade de evocação espontânea de informação a 30 minutos, um agravamento acentuado;

- na memória remota, um agravamento ligeiro;

- a capacidade de nomeação de objectos sem alterações;

- a capacidade de compreensão de ordens verbais simples sem alterações;

- na capacidade de compreensão de ordens verbais complexas, um

agravamento ligeiro;

- na orientação espacial, um agravamento ligeiro;

- na orientação pessoal, um défice ligeiro;

- na fluência verbal, um agravamento acentuado;

- na iniciativa motora, um agravamento acentuado;

- na iniciativa grafo-motora, um agravamento ligeiro;

- no cálculo elementar, um agravamento ligeiro;

- na abstracção verbal, um agravamento acentuado;

- na abstracção não verbal, um agravamento acentuado;

concluindo-se pela existência de um declínio generalizado das funções nervosas em relação ao exame anterior, mantendo-se o diagnóstico de Doença de Alzheimer provável.

20. No decurso de 2011 e 2012, a testadora era levada várias vezes por mês ao cabeleireiro e almoçar num restaurante, e lanchava numa pastelaria quase diariamente, saídas que fazia acompanhada de uma empregada ou, no caso dos almoços, de cunhadas.

21. Em dezembro de 2011, foi proporcionada à testadora uma viagem a …, acompanhada de uma cuidadora e de um sobrinho, onde visitou velhas amigas; e em 2012, foi-lhe proporcionada viajem até ao Algarve, onde ficou alguns dias alojada num hotel, bem como a Fátima, em ambos os casos acompanhada, pelo menos, por uma empregada.

22. Em 10SET2012 a médica assistente de LL declarou que esta manteve desde JUN2012 a evolução clínica expectável face ao diagnóstico de demência, patologia que é crónica, progressiva e irreversível, apresentando-se incapaz de reger a sua pessoa e bens.

23. Em 25MAI2011 LL não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou. [a rectificação da data por despacho de fls. 862 foi, por lapso incorrectamente averbada, o que aqui se corrigiu]


Factos não provados:

A) [eliminado]

B) que, no dia anterior a dia 25/05/2011, os sobrinhos de LL, QQ e CC a tivessem fechado numa sala e a tivessem obrigado a treinar a sua assinatura e rubrica;

C) [eliminado]

D) que, em 25/05/2011, LL tivesse medo do sobrinho CC, bastando que este lhe falasse para ela entrar em crise;

E) [eliminado]

F) [eliminado]

G) [eliminado]

H) [eliminado]

1) [eliminado]


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do CPC, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo. Assim, no presente recurso estão em causa as seguintes questões:

- Desrespeito das regras de distribuição do ónus da prova quanto à prova da incapacidade acidental da testadora no momento da outorga do testamento;

- Força probatória plena de testamento lavrado por notário quanto à capacidade da testadora;

- Ilogicidade manifesta no uso de presunções judiciais para dar como provado o facto 23) Em 25MAI2011 LL não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou.


5. Quanto à questão do alegado desrespeito das regras de distribuição do ónus da prova quanto à prova da incapacidade acidental da testadora no momento da outorga do testamento, não assiste razão aos Recorrentes. Tendo a Relação alterado a decisão relativa à matéria de facto, dando como provado que “Em 25MAI2011 LL não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou”, considera-se terem os AA. feito prova dos factos constitutivos do direito alegado como lhes competia de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (art. 342º, nº 1, do Código Civil).

    Verifica-se sim que os Recorrentes não se conformam com a alteração da matéria de facto operada pelo acórdão recorrido. Contudo, ao Supremo Tribunal de Justiça não cabe sindicar o erro na livre apreciação das provas, “salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (art. 674º, nº 3, do CPC) ou ainda, de acordo com a orientação (ainda que não unânime) da jurisprudência deste Supremo Tribunal, se aquela apreciação tiver incorrido em manifesta ilogicidade no uso das presunções judiciais. Fundamentos de recurso que passamos a apreciar.


6. Relativamente à questão da alegada força probatória plena do testamento quanto à capacidade da testadora no momento da sua outorga por ter sido lavrado por notária, dispõe o nº 1 do art. 371º do CC: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.

Interpretando esta regra, é entendimento pacífico que “Não é sempre a mesma a força material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…), ou que nele são atestados com base nas suas percepções (por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador.” (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371º, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).

       Vejamos.

      No caso dos autos, do testamento de fls. 70-71, consta tão só que “Foi feita a leitura deste testamento e a explicação do seu conteúdo à testadora”. Assim, não apenas uma eventual atestação da capacidade da testadora não teria força probatória plena como, no caso concreto, tal atestação não integra sequer o documento autêntico.

      Ter-se dado como provado o facto 18, com base no depoimento testemunhal da notária“(No dia 25/05/2011, a notária leu o testamento em voz alta, na presença das já referidas testemunhas, à testadora, trocou com esta algumas frases indagando se o testamento correspondia à sua vontade, não se lhe tendo levantado, em face da coerência e concordância das respostas, quaisquer dúvidas quanto à capacidade da testadora para o acto, tendo a testadora assinado o testamento pelo seu próprio punho”), corresponde à prova de um facto instrumental cuja relevância se encontra abrangida pelo princípio da livre apreciação da prova.


7. Quanto à questão da alegada ilogicidade manifesta no uso de presunções judiciais para dar como provado o facto 23 (“Em 25MAI2011 LL não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou”), consideremos os termos em que o acórdão recorrido fundamentou a decisão:

Está em causa nos autos saber se a testadora, no momento em que exarou o testamento cuja anulação se pretende ver decretada, estava incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade (cf. art.° 2199° do CCiv).

(…)

No caso concreto dos presentes autos a prova directa da alegada incapacidade da testadora só poderia resultar dos depoimentos de quem teve intervenção no acto, no caso a notária perante a qual foi lavrado o testamento e as testemunhas de tal acto.

Os seus depoimentos no entanto não permitem formular qualquer juízo quanto à capacidade da testadora.

Com efeito a notária não teve qualquer outro contacto com a testadora que não o ocorrido no momento da outorga do testamento; quer o seu agendamento quer o seu conteúdo foram tratados com o escritório de advogados com quem habitualmente trabalha''. Afirmou não se recordar em concreto do diálogo que encetou com a testadora mas que este terá obedecido ao habitual nos casos idênticos: que após a leitura do testamento seja perguntado se o que acabou de ser lido corresponde à vontade do testador, se é o que quer e se disso tem a certeza; sendo certo que da interacção que teve com a testadora não se lhe afigurou que a mesma tivesse qualquer dificuldade de entendimento. O que se retira desse depoimento é que a intervenção da notária se limitou à formalidade do acto onde ocorreu uma conversação 'formatada' e, dada a simplicidade da disposição testamentária, a um nível muito básico, insusceptível de fundamentar qualquer juízo sério sobre a capacidade intelectual da testadora.

Ideia que, aliás, é reiterada pelos depoimentos das testemunhas do acto.

NN diminuiu a credibilidade do seu depoimento pela forma como manifestou a sua intencionalidade de mais do que descrever o que viera ao seu conhecimento afirmar que a testadora "estava lúcida" e 'sabia o que estava a assinar"; foi, como se usa dizer, 'directo ao que interessava'. Essa credibilidade mais comprometida ficou quando nas instâncias foi obrigado a reconhecer que afinal não se lembrava de situação que anteriormente afirmara peremptoriamente ter-se verificado de determinada forma. Uma circunstância, no entanto, afirmou e que se afirma digna de registo e de credibilidade: ser vizinho de longa data do casal da testadora na … e que esta ao chegar ao cartório o reconheceu, cumprimentando-o e perguntando pelos seus familiares próximos.

OO desde logo se anuncia como testemunha não da testadora mas de um seu sobrinho que foi quem lhe pediu para assumir essa posição, limitando-se depois a descrever o acto da outorga do testamento sem qualquer referência concreta e sustentada sobre a sua decorrência, da qual surge como absolutamente alheado, e a afirmar que a testadora apesar de pessoa idosa estava bem porquanto "não batia com a cabeça na secretária". Depoimento imprestável.

Resta, pois, aferir se do acervo probatório resultam demonstrados factos circunstanciais que permitam ajuizar sobre a capacidade da testadora no momento em que outorgou o testamento.

Nesse campo logo assumem particular importância os exames neuropsicológicos da testadora (cf. fls. 580, 127, 582 e 290) realizados antes e depois da data do testamento na medida em que caracterizam o estado das suas funções intelectuais e a sua evolução ao longo do tempo, sendo de levar ao elenco factual essa caracterização e não apenas uma síntese conclusiva dos mesmos; e também o testemunho daquela que foi a sua médica assistente.

Segundo esses exames a testadora apresentava um defeito generalizado nas funções nervosas superiores" que se caracterizava em JUN2010, entre outros, por défice grave nas capacidades de evocação, aprendizagem e abstracção, na leitura e escrita, na fluência verbal e no cálculo elementar; verificando-se em 10SET2012, e por referência à situação anterior, um agravamento acentuado de quase todos os referidos défices.

A sua médica assistente prestou depoimento caracterizando o comportamento da testadora ao longo do tempo e afirmando o carácter oscilante da demência naquele tipo de doença; não obstante, pelo que acompanhou da evolução do estado de saúde da testadora, não deixou de afirmar achar improvável a mesma estar na posse de capacidades para querer e entender o testamento.

Os restantes depoimentos (familiares próximos, cuidadores, procurador) e documentos confirmam esse quadro clínico.

Ao nível do diálogo este limita-se a questões banais do quotidiano, sem fluência, não espontâneo; muitas vezes ligado a ideias fixas e repetitivas (falar com amiga na Argentina, preocupação se tinha dinheiro para se sustentar); mas sem qualquer referência a conversas sobre temas mais 'sérios' como a administração dos seus bens, o seu conhecimento ou opinião sobre eventos da actualidade, os seus sentimentos e planos (designadamente a disposição dos seus bens).

Nenhuma referência igualmente a qualquer actividade intelectual, pois apenas foi referido que na televisão assistia à novela e que lia (mais propriamente, manuseava) o jornal Expresso (que usava repetidamente durante a semana) e a Hola.

Absoluta ausência de iniciativa e total dependência, sendo que toda a sua vida era programada por terceiros; eram os seus cuidadores, os seus familiares e os seus sobrinhos que tudo organizavam e decidiam: o que comer, as actividades (flores, gato, passeios), o cabeleiro, os almoços com as cunhadas à 5ª feira, os lanches na pastelaria do bairro.

Mesmo a viagem à Argentina (que na fundamentação da sentença recorrida é tida como significante demonstração da capacidade da testadora) se integra nesse quadro de falta de iniciativa e dependência. Com efeito ela apenas se nos afigura como uma (louvável) iniciativa de aceder a uma manifestada invocação da testadora do seu desejo de voltar às suas origens e nada mais; ela não foi uma iniciativa ou organização da testadora, que se limitou a ser levada à Argentina (ademais são diminutas as referências ao que aí ocorreu, uma vez que a única pessoa que a isso se referiu foi a testemunha DDD, mas não lhe foi permitido sequer particularizar o que referiu). Como muito impressivamente referiu a testemunha EEE, "proporcionaram-lhe" ir à Argentina.

Todas as referidas circunstâncias porque relevantes enquanto factos instrumentais devem ser adequadamente expressas no elenco factual da acção, justificando-se as alterações que abaixo se introduzirão.

Por outro lado, se é certo que qualquer pessoa tem a faculdade de mudar de ideias quanto às suas disposições de última vontade não é menos certo que tal mudança se fica normalmente a dever a uma alteração das circunstâncias ou a um objectivo específico e não a um mero capricho. No caso concreto resulta do depoimento do notário perante o qual foi elaborado o primeiro testamento que havia por parte da testadora um plano muito concreto e plenamente assumido de disposição de bens, sendo que se verifica uma absoluta ausência de qualquer referência aos eventuais motivos ou causas que terão levado à alteração do anterior testamento e justifiquem o abandono do inicialmente planeado.

Ponderando a globalidade dos factos circunstanciais apurados, entre os quais os acima expressamente referidos, e a absoluta falta de referência a uma causa da alteração de vontade testamentária, segundo os padrões da experiência comum de vida, afigura-se-nos como provável (e até num grau elevado, que se considera adequado ser exigível no caso) que a testadora não estivesse, no momento em que outorgou o testamento de 25MAI2011, em condições de manifestar uma vontade livre e esclarecida bem como de entender o significado do acto (e, concomitantemente, como improvável que no dia 25MA12011 tivesse ocorrido ocasional remição dos efeitos da doença de que padecia) concluindo terem-se os Autores desincumbido do ónus de demonstração de tais factos.” (negrito nosso).


Do teor da fundamentação (incluindo o conteúdo das notas) não se divisa que o raciocínio desenvolvido pela Relação no sentido de dar como provado o facto 23 revele ilogiciadade, e muito menos ilogicidade manifesta, em termos de permitir a sua censura por este tribunal de revista.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 08 de Março de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho