Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10495/08.9TMSNT.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: LOTEAMENTO
USUCAPIÃO
UNIDADE DE CULTURA
COMPROPRIEDADE
PRÉDIO RÚSTICO
POSSE
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DA PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / COMPROPRIEDADE.
Doutrina:
- Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. III. 2.ª edição, pp. 269, 360.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, 294.º, 1251.º, 1265.º, 1287.º, 1376.º, N.º1, 1377.º, N.º 2, AL. C), 1379.º, 1406.º, N.º 2.
CÓDIGO DE NOTARIADO (1967): - ARTIGO 89.º, ALÍNEA A).
D.L. N.º 46673, DE 29-11-1965: - ARTIGOS 1.º, 10.º, N.º1.
DECRETO-LEI N.º 289/73, DE 6 DE JUNHO: - ARTIGO 1.º.
DECRETO-LEI N.º 32382, DE 7 DE AGOSTO DE 1951.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 27-5-2003, C.J.,3, P. 20.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 19-10-2004, P.º N.º 2988/04 - 6.ª SECÇÃO;
-DE 15-1-2005, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 1-2-2005, P. 4652/2004 TAMBÉM EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 4-2-2014, P.ºN.º 314/2000. P1.S1 .
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ASSENTO DE 21-7-1987, B.M.J. 369, OUTUBRO DE 1987, P. 199.
Sumário :
I - Nos termos do art. 1.º do DL n.º 46673, de 29-11-1965, o loteamento urbano consistia na operação ou resultado da operação que tinha por objecto ou efeito a divisão em lotes de um ou vários prédios fundiários, situados em zonas urbanas ou rurais, para venda ou locação simultânea ou sucessiva, e destinados à construção de habitações ou de estabelecimentos comerciais ou industriais.

II - Assim sendo, na vigência, daquele diploma, adquirido um lote em compropriedade, a sua divisão material acordada entre os comproprietários de modo a que cada um passasse a exercer posse exclusiva sobre uma das parcelas desse lote como seu único proprietário tendo em vista a construção de habitação, não consistia numa operação de loteamento a luz do mencionado DL.

III - A lei não permite a divisão da propriedade de terrenos aptos para cultura em unidades, parcelas ou lotes de área inferior a unidade de cultura (art. 1376.º, n.º 1, do CC) salvo, designadamente, se o fracionamento tiver por fim a desintegração do terreno para construção (art. 1377.º, n.º 2, al. c), do CC).

IV - O acordo, por via do qual as partes acordaram demarcar um prédio rústico em dois lotes de terreno que dividiram por vala, não traduz um acordo que tivesse em vista o fracionamento do terreno para construção nem tão pouco evidencia que as partes quisessem pôr termo à indivisão, dividindo o terreno em áreas inferiores à unidade de cultura, reconduzindo-se esse acordo divisório a um acordo entre consortes de utilização do prédio contemplado no art. 1406.º, n.º 2, do CC.

V - A circunstância de, neste referido contexto, um dos consortes ter ulteriormente construído edificação na aludida parcela sem oposição do outro consorte, não implica inversão do título da posse exigida pelo art. 1406.º, n.º 2, do CC.

VI - Assim sendo, não correspondendo, nem mesmo no plano de facto, o aludido acordo a uma divisão da propriedade para construção, não tem os autores posse de uma parcela de imóvel dividido para construção, não podendo também ser reconhecida a usucapião com base numa divisão material de propriedade rústica em parcelas com área inferior à unidade de cultura tendo em vista pôr termo à indivisão, acordo que, nestes precisos termos, também não se mostra que tenha sido efetivado.

VII - O reconhecimento da usucapião com base em atos possessórios sobre parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura resultante de mera divisão material, conduziria, dada a impossibilidade de ser proposta ação de anulação face a inexistência de negócio constitutivo do fracionamento do prédio que deu origem a essa parcela, a um resultado que a lei possibilita e pretende evitar quando esse ilegal fracionamento resulta de negócio jurídico.

Decisão Texto Integral:
N.º 10495/08.9TMNST.L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA e BB propuseram em 9-10-2008 ação declarativa comum contra CC e DD e EE, ação que veio a prosseguir apenas contra estes últimos também como herdeiros habilitados de sua mãe CC falecida na pendência da ação, pedindo o seguinte:

- Que se declare que o prédio rústico com a área de 5084 m2 sito na Rua ..., lugar de Beja, freguesia de Belas, concelho de Sintra, omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ..., no Livro B-135, a fls. 163, se destacaram por usucapião como terrenos distintos os lotes identificados, a saber:

a) Lote Este (demandantes). Norte - Servidão; Este - FF; Sul - GG; Oeste: demandados

b) Lote Oeste (demandados): Norte - Servidão; Oeste - HH; Sul - GG; este -demandantes.

- Que, por via da usucapião invocada, se operou a divisão do imóvel acima descrito em dois novos prédios, sendo

a) Os demandantes os únicos proprietários do terreno descrito como Lote Este deste pedido por o terem adquirido por usucapião.

b) Os demandantes já não são comproprietários da parte restante do prédio, a que se reporta aquela descrição predial, pois que dela são apenas proprietários os aqui demandados.

- Que sejam canceladas as inscrições prediais que sejam incompatíveis com o que vier a ser decidido nos pedidos precedentes.

2. A ação foi julgada procedente por sentença de 18-3-2013 que declarou que do prédio rústico com a área de 5084m2, sito na Rua ..., lugar da Beja, freguesia de Belas, concelho de Sintra, omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ..., no Livro B-135, a fls. 163, se destacaram por usucapião como terrenos distintos os lotes que passaram a ter as seguintes confrontações: " o Lote Este (autores); Norte - Servidão; Este - FF; Sul - GG; Oeste - réus; o Lote Oeste (réus); Norte - servidão; Oeste - HH; Sul - GG; Este - autores e, por via da usucapião invocada, se operou a divisão do imóvel em dois novos prédios sendo os autores os seus únicos proprietários da parte do imóvel descrito como Lote este por o terem adquirido por usucapião.

3. Os RR CC e DD interpuseram recurso que foi julgado procedente por acórdão da Relação de Lisboa de 15-10-2013 que, revogando a sentença, declarou a ação improcedente por impossibilidade legal da divisão peticionada.

4. Os AA, agora vencidos, concluem a minuta do recurso de revista que interpuseram do acórdão da Relação, referindo o seguinte:

- Os AA adquiriram por usucapião (artigos 1288.º, 1316.º e 1317.º, alínea a) todos do Código Civil) o Lote Este do prédio rústico com a área de 5084 m2 sito na Rua ..., omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ..., do Livro B- 135 a fls. 163 correspondente a metade deste.

- Esta aquisição determina o cancelamento de todas as inscrições registais que se mostrem incompatíveis com a usucapião.

- O lote adquirido por usucapião não constitui um fracionamento que implique a constituição de lotes inferiores à unidade de cultura, pois destina-se à construção ao abrigo da exceção prevista na alínea c) do artigo 1377.º do Código Civil.

- A constituição de lotes por fracionamento de um prédio rústico em virtude da sua aquisição por usucapião não se encontra dependente de prévio alvará de loteamento municipal.

- O recurso aos tribunais para reconhecimento da aquisição por usucapião não constitui um uso anormal do processo pelo que não pode ser sancionado.

5. Factos provados:

1- Por escritura que teve lugar no 15.º Cartório Notarial de Lisboa em 2 de julho de 1968, os AA e a primeira ré adquiriram o título de propriedade de um terreno rústico com a área de 5084m2, sito na Rua ..., lugar de Beja, freguesia de Belas, concelho de Sintra, omissos na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ... no Livro B-135 a fls. 163.

2- No momento imediato à realização da compra do imóvel em apreço foi acordado entre as partes qual a metade que competia a cada um

3- As partes marcaram para o efeito dois novos lotes, sendo que um abrange a metade Oeste (réus) do prédio e a outra a metade Este (autores)

4- Lotes estes que passaram a ter as seguintes confrontações:

- Lote Este (autores):Norte - Servidão; Este -FF; Sul - GG; Oeste - réus

-Lote Oeste (réus):Norte - Servidão; Oeste -HH; Sul - GG; Este - autores

5- Em sequência foi efetuada pelos autores nessa data uma vala que divide claramente ambos os lotes

6 - Após essa divisão, os AA passaram a cultivá-lo e a colher os respetivos frutos, construíram uma casa que chegaram a arrendar, têm pago as respetivas contribuições e solicitaram o loteamento do mesmo, como se tratasse de uma propriedade exclusivamente sua.

7 - Tais atos, excluindo o cultivo do terreno, desenrolam-se continuamente desde o momento imediato posterior à realização da escritura até hoje, sendo que os AA procederam assim porque estão convictos , desde o início, de serem os proprietários exclusivos deste lote de terreno e com os limites supra definidos.

8 - Esta sua atuação decorre à vista e com o conhecimento de todas as pessoas daquele lugar e nunca alguém, em algum momento, pôs em causa esta atuação dos AA

9 - Alguns vizinhos estão certos de que são os AA os donos daquele lote de terreno.

10 - Os RR nada fizeram no seu lote até à data, mantendo-se aquele terreno tal como estava à data da aquisição.

11- Sendo intenção dos AA destacarem o seu lote e procederem ao respetivo licenciamento e loteamento, veem- -se coartados pela indivisão que ainda subsiste.

12 - O autor decidiu construir uma casa na parte do imóvel que acordou ficar sua propriedade.

Apreciando

6. Suscita-se a questão de saber se é passível a aquisição por usucapião com base na posse única e exclusiva de um dos comproprietários de um lote de terreno, iniciada antes de 1969, fundada em acordo verbal que dividiu em dois lotes a indivisa propriedade rústica com a área de 5084m2 que por eles foi adquirida em compropriedade em 1968.

7. Considerou o Tribunal da Relação que a pretendida divisão dos lotes constitui fracionamento ilegal porque dela resultam dois lotes com área necessariamente inferior à unidade de cultura estabelecida pela Portaria n.º 202/70, de 21 de abril.

8. Salienta ainda o acórdão recorrido que o fracionamento pretendido pelos AA tem em vista a desintegração de terrenos para construção, situação contemplada no artigo 1377.º, alínea c) do Código Civil que exceciona a regra contemplada no artigo 1376.º/1 do Código Civil segundo o qual " os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país".

9. Sucede - prossegue o acórdão - que as operações de loteamento estão sujeitas a licença ou autorização camarária, estando vedado ao Tribunal constituir lotes de terreno à revelia de tal licenciamento.

10. Certo ainda que a compra e venda do mencionado lote de terreno não suscita nenhuma questão de validade considerando o assento do Supremo Tribunal de Justiça publicado no DR,I Série de 30-10-1987 segundo o qual " a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos de compra e venda de terrenos, com ou sem construção, compreendida no loteamento.

11. Sucede ainda - prossegue o acórdão - que a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 289/73, de 6 de junho, o fracionamento passou a carecer de alvará de loteamento, conforme resulta do artigo 1.º desse diploma que prescreve:

"A operação que tenha por objecto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença da câmara municipal da situação do prédio ou prédios, nos termos do presente diploma".

12. Igual exigência decorre do Decreto-Lei n.º 400/84, que revogou o Decreto-Lei n.º 289/73 e também do subsequente Decreto-Lei n.º 599/99, de 16 de dezembro.

13. Finaliza o acórdão recorrido, sustentando que " o fracionamento de prédio em lotes depende da verificação de pressupostos por parte da autoridade autárquica competente e, neste contexto, não pode o Tribunal criar à revelia da Câmara Municipal à qual também compete delimitar o perímetro e fixar a modalidade de reconversão das AUGI existentes na respetiva área. A apelação procede com base na impossibilidade de fracionamento intencionado pelos autores, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelos recorrentes".

14. O acórdão considerou que " é irrelevante a afirmação constante da petição de que 'os demandados têm conhecimento dos factos supra alegados e contra eles não deduziram oposição pois tal inércia não configura inversão do título de posse e é compatível com o uso normal de um bem em compropriedade'.

Vejamos estas questões.

15. Resulta dos factos provados que a aquisição do lote se deu no dia 2 de julho de 1968, constituindo terreno para exploração agrícola, lote a destacar do prédio descrito sob o n.º 50302 e que " o vendido terreno não se encontra situado em zona urbanizada nem compreendido em plano de urbanização aprovado" (ver escritura de compra e venda de 2-7-1968).

16. Resulta também dos autos que AA apresentou em 27-10-1970 cálculos de betão armado para construção de uma casa de habitação sita em Serra ..., freguesia de Belas (fls. 263 e 264) para legalização de obra de construção de imóvel, obra essa que terá iniciado anteriormente, visto que em 17-11-1969 foi embargada conforme consta da nota interna da Divisão de Assuntos Jurídicos da Câmara Municipal de Sintra (ver fls. 286 do Vol I).

17. A divisão do aludido lote constitui fracionamento que desrespeita o artigo 1376.º/1 do Código Civil pois da divisão resultam frações inferiores à unidade de cultura, realidade que os recorrentes não põem em causa.

18. Os recorrentes alegam que o fracionamento não é ilegal pois tem por finalidade a construção, verificando-se, assim, o preenchimento da exceção constante do artigo 1377.º, alínea c) do Código Civil que admite o fracionamento se este " tiver por fim a desintegração de terrenos para construção".

19. O fracionamento que os AA pretendem reconhecido por via de usucapião referencia-se a um destaque cujo momento não está determinado, mas que se sabe ter sido efetuado pouco depois da escritura de compra e venda de 2-7-1968 do lote adquirido em compropriedade mas antes da edificação da construção que foi embargada em 1969.

20. O destaque ou divisão de facto do lote adquirido em compropriedade dá-se, portanto, antes da vigência do Decreto-Lei n.º 289/73, de 6 de junho e dos demais que o acórdão menciona, sendo, por conseguinte, à luz da legislação vigente nesse período (1968/1969) que importa considerar se a posse dos autores passou a incidir exclusivamente sobre a coisa comum ou sobre parte dela, posse que apenas é reconhecida se tiver havido inversão do título da posse (artigos 1265º.º e 1406.º/2 do Código Civil).

21. Considerou o acórdão que não houve inversão do título porque não houve oposição por parte dos demandados, o que é certo, só que tal falta de oposição resulta do acordo celebrado entre os comproprietários tendo em vista a marcação no imóvel de duas parcelas (lotes) iguais, demarcadas por uma vala que as divide claramente (factos 2 e 5 supra). Significa isto que houve um acordo de divisão da propriedade comum e não de mera utilização?

22. Salienta-se no Ac. do S.T.J. de 15-1-2005 (rel. Salvador da Costa) in www.dgsi.pt, mencionado pelos AA na petição, que "um exemplo de inversão do título de posse no confronto de dois comproprietários ocorre se eles dividem o prédio comum em duas partes iguais, como se passassem a existir dois prédios distintos, e a partir daí cada um deles passa a comportar-se em relação a cada uma das referidas parcelas como se fosse o seu exclusivo proprietário, assim delimitando mútua e voluntariamente o poder de facto do outro".

23. No entanto, o caso vertente não coincide com a situação exemplificada no mencionado aresto. É que deste texto ressalta que cada um dos consortes passou a agir como proprietário exclusivo da sua parcela, atribuindo-se cada um a propriedade de cada parcela com exclusão do outro, situação de facto que não resulta evidenciada no caso destes autos. Os presentes autos não evidenciam mais do que um acordo de divisão de coisa comum em que houve subsequentemente, por parte dos consortes autores - e apenas destes - atos que correspondem ao exercício da propriedade sobre o lote que resultou dessse acordo divisório (factos 6 e 7 supra). Refira-se também o Ac. do S.T.J. de 1-2-2005 (rel. Lopes Pinto), P. 4652/2004 também em www.dgsi.pt em que se reconhece a inversão do título de posse com base numa divisão em que houve mútua privação de uso sobre a totalidade do prédio durante mais de 20 anos, restringido à metade demarcada, mas salientando-se que essa metade dispunha da área que legalmente permitia a divisão do prédio. Quer dizer: ao acordo recíproco, evidenciado em atos concretos - que aqui só se comprovaram por parte dos autores - acrescia a viabilidade da divisão do imóvel em parcelas cuja área não era inferior à unidade de cultura.

24. Como refere Antunes Varela " não basta, por conseguinte, a prova de quaisquer atos, capazes de destruírem a presunção de que o uso ou a posse do condómino, além do que competiria à sua quota […] se exerce por mera tolerância dos respetivos consortes. É indispensável, para que haja posse suscetível de conduzir à usucapião, que se dê a inversão do título da posse, nos precisos termos do artigo 1265.º" (Código Civil Anotado, Vol III. 2.ª edição, pág. 360). Ora, no caso, tal como salientou o acórdão recorrido, não houve inversão do título da posse.

25. Tal posse, resultante do fracionamento de facto da propriedade, nos termos acordados, resultante de uma divisão de coisa comum, não é titulada, visto que o negócio devia ser celebrado por escritura pública (artigo 89.º, alínea a) do Código de Notariado de 1967), aspeto que releva naturalmente para o decurso do prazo necessário à usucapião.

26. Salientou-se também que o fracionamento desrespeitava o disposto no artigo 1376.º/1 do Código Civil, pois, atenta a área do prédio, a sua divisão em partes iguais importava a constituição de parcela com área inferior à unidade de cultura.

27. No entanto, tal fracionamento não conduz, se o negócio for celebrado, à sua nulidade mas tão somente à sua anulabilidade (artigo 1379.º do Código Civil que, no seu n.º3, prescreve que a ação de anulação caduca no fim de três anos a contar da celebração do ato ou do termo do prazo referido no n.º1).

28. Por isso, tem sido entendido que "o fracionamento de propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à usucapião das frações, mesmo por razões de ordem pública (Ac. do S.T.J. de 4-2-2014, rel. Fernandes do Vale, P. 314/2000. P1. S1, Ac. do S.T.J. 19-10-2004, rel. Azevedo Ramos, revista n.º 2988/04 - 6.ª secção de Ac. da Relação de Coimbra de 27-5-2003, Helder Roque, C.J.,3, pág. 20; ver ainda Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol III, 2.ª edição, pág. 269 que a este propósito referem o seguinte: "embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)".

29. Significa isto que, embora a lei não admita o fracionamento de terrenos em parcelas inferiores à unidade de cultura, o negócio produz efeitos e é tratado como válido enquanto não for julgada procedente a ação de anulação. Este é precisamente um caso em que negócio celebrado contra disposição de caráter imperativo não é nulo por resultar outra solução da lei (artigo 294.º do Código Civil).

30. No entanto, tratando-se de uma divisão de facto, logo nula, não se afigura que se possa reconhecer a usucapião que promane dos atos possessórios sobre a fração com área inferior à unidade de cultura, pois, se assim não fosse, conseguir-se-ia, dada a impossibilidade de intervenção anulatória face à inexistência de negócio constitutivo do fracionamento, um resultado que a lei possibilita evitar quando esse ilegal fracionamento resulta de negócio jurídico.

31. A circunstância de, uma vez celebrado o negócio contra disposição imperativa, este ser anulável, não significa que o Tribunal consinta, por exemplo, em proceder à divisão de prédio rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, tratando como divisível o que a lei prescreve ser indivisível; tão pouco significa que se imponha ao oficial público ou outra entidade com poderes para o efeito a outorga de escritura de divisão de imóvel em que declaradamente se desrespeite o mencionado artigo 1376.º/1 do Código Civil.

32. Sucede, porém, que, no caso vertente, os AA alegaram que era sua intenção "destacarem o seu lote e procederem ao respetivo licenciamento e loteamento", comprovando-se da matéria de facto que solicitaram o loteamento (ver 6 supra da matéria de facto e documentos juntos), reconhecendo o acórdão ser óbvio que essa era a intenção das partes "à semelhança de muitos outros casos similares ocorridos na mesma época e de que veio a nascer uma área urbana de génese ilegal (AUGI) que motivou a sua reconversão urbanística ao abrigo dos pertinentes instrumentos legais criados para o efeito".

33. Com efeito, a proibição de fracionamento a que alude o artigo 1376.º/1 do Código Civil não é aplicável "se o fracionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção ou retificação de estremas" (artigo 1377.º, alínea c) do Código Civil).

34. Entendeu-se a este respeito no acórdão recorrido que, estando as operações de loteamento sujeitas a licença ou autorização camarária, "está vedado ao tribunal constituir lotes de terreno à revelia de tal licenciamento", ocorrendo, por conseguinte, uma "impossibilidade legal de fracionamento".

35. Prescrevia ao tempo o artigo 10.º/1 do Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro de 1965 que " qualquer forma de anúncio de venda e a venda ou promessa de venda de terrenos, com ou sem construção, compreendidas em loteamento só poderão efetuar-se depois de obtida a licença a que se referem os artigos antecedentes e de terem sido observados os condicionalismos nela estabelecidos".

36. Quer isto dizer que os negócios celebrados tendo em vista um loteamento urbano estavam dependentes de licença da câmara municipal, o que possibilitava o entendimento de que tais negócios seriam nulos por ser contrário à lei o seu objeto (artigo 280.º do Código Civil).

37. No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça por assento de 21-7-1987 decidiu que " no domínio da vigência do Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro de 1965, a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos de compra e venda de terrenos com ou sem construção, compreendida no loteamento" (ver B.M.J. 369, Outubro de 1987, pág. 199).

38. A parcela de terreno que AA e RR adquiriram em compropriedade não se encontrava situada em zona urbanizada nem compreendida em plano de urbanização aprovado (ver escritura de compra e venda); no entanto, tal parcela, desanexada como outras do prédio descrito sob o n.º ... da Conservatória do Registo Predial de Queluz, resultou de negócio de compra e venda.

39. Não consta da escritura a menção de que a venda do lote visava a construção de habitação e, por isso, não se pôs a necessidade da comprovação da licença 

40. Se atentarmos na noção de loteamento que decorre do artigo 1.º do mencionado Decreto-Lei n.º 46673 - que diz:  " entende-se por loteamento urbano, para os efeitos deste diploma, a operação ou o resultado da operação que tenha por objeto ou tenha tido por efeito a divisão em lotes de um ou de vários prédios fundiários, situados em zonas urbanas ou rurais, para venda ou locação simultânea ou sucessiva, e destinados à construção  de habitações ou de estabelecimentos comerciais ou industriais" - constatamos que a compra do lote não se inseriu numa operação de loteamento urbano desde logo porque não se vê que a desafetação do lote com área superior à unidade de cultura tenha sido efetuada para a construção de habitação. Ainda que se considerasse que essa operação constituía um loteamento, a falta de licença não implicava a nulidade do negócio nem sequer a sua anulabilidade.

41. De igual modo a divisão material que os comproprietários levaram a cabo no seu lote não corresponde a uma operação de loteamento, visto que esta pressupunha a venda ou locação simultânea ou sucessiva e não a mera edificação e, como se vê, essa divisão, ainda que tivesse por objetivo a construção de um imóvel numa parcela do lote, não correspondia a um loteamento. Já diverso seria o entendimento à luz do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 289/73, de 6 de junho. Diz este preceito: " a operação que tenha por objeto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença camarária municipal da situação do prédio ou prédios, nos termos do presente diploma". Assim sendo, deixando de constar da previsão legal o requisito da "venda ou locação simultânea ou sucessiva", a divisão em causa constituiria um loteamento pressupondo que com ela se visava a construção.

42. Daqui decorre que os comproprietários podiam proceder à divisão do terreno para construção por via de ação de divisão de coisa comum, não constituindo à luz da lei então vigente tal divisão uma operação de loteamento urbano. Assim sendo, a divisão material da propriedade em lotes sobre os quais os AA passaram a exercer atos de posse não constituiria em si e em princípio obstáculo ao reconhecimento da usucapião (artigos 1251.º e 1287.º do Código Civil).

43. Note-se que o pedido de licenciamento para construção era ao tempo imposto pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas (Decreto-Lei n.º 32382, de 7 de agosto de 1951) e foi seguramente por ausência de licenciamento que a construção entretanto edificada veio a ser embargada.

44. A lei permite, como se disse, o fracionamento de um imóvel em parcelas com área inferior à unidade de cultura "se o fracionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção ou retificação de estremas" (artigo 1377.º,alínea c) do Codigo Civil).

45. Importa, porém, para que assim se entenda, demonstrar que as partes tiveram em vista com a divisão do imóvel a construção, não relevando a intenção de que apenas um deles estivesse animado; e, mesmo que haja uma vontade comum, o negócio só seria admissível se essa intenção se evidenciasse num licenciamento que, no caso, nunca existiu nem tão pouco foi pedido na ocasião em que as partes dividiram materialmente o imóvel.

46. Mas esta é questão diversa que se prende com a questão da legalização de obra construída num determinado lote e não com a questão do reconhecimento da aquisição por cada um dos comproprietários por usucapião do lote resultante do fracionamento ou divisão da parcela de terreno adquirida em compropriedade.

47. O acórdão recorrido considerou óbvia a intenção das partes em fracionarem o lote para construção. Dos factos provados resulta que era essa a intenção dos AA, mas, no tocante aos RR, não há nenhum facto que permita considerar que o mencionado acordo de divisão tinha em vista a construção. Nem se demonstra, como se disse, que no momento em que AA e RR acordaram na marcação de lotes, dispusessem os AA de licença para construção ou que a tivessem requerido.

48. Não está, por conseguinte, provado que houve um acordo entre as partes tendo em vista o fracionamento do terreno para construção.

49. Está provado que as partes acordaram dividir o terreno em duas partes iguais, fixando as respetivas confrontações, tendo os AA - e apenas os AA - depois da divisão, cultivado a sua parte, construído uma casa que chegaram a arrendar.

50. Não se pode, assim, considerar no caso verificada a exceção do artigo 1377.º, alínea c) porque a finalidade do acordo de divisão, ainda que visasse o fracionamento da propriedade, não tinha em vista a construção, não se mostrando que essa finalidade resultasse de uma intenção conjunta dos comproprietários.

51. Do exposto resulta o seguinte:

1.º- O acordo divisório que AA e RR celebraram se for considerado fracionamento da propriedade em parcelas com área inferior à unidade de cultura constitui violação da norma imperativa constante do artigo 1376.º/1 do Código Civil.

2.ª- Não sendo celebrado tal acordo por meio de negócio, os AA lograriam pela via de facto - negócio nulo por inobservância da forma legal - o que poderiam não conseguir por via da celebração de negócio jurídico válido, embora sujeito a anulação.

3.ª - Não está sequer provado que, ao acordarem na divisão material da propriedade rústica, as partes o tivessem feito tendo em vista a construção numa das parcelas de um edifício, não estando provado que os AA tivessem pedido licenciamento para construção a efetivar no lote que viesse a resultar da divisão da propriedade.

52. Assim sendo, a usucapião não pode ser reconhecida, pois a referida divisão material da propriedade não pode deixar de se reconduzir a uma mera divisão de utilização do imóvel (artigo 1406.º/2 do Código Civil), não correspondendo, nem mesmo no plano de facto, a uma divisão da propriedade para construção visto que um tal acordo não está provado. Não têm, assim, os AA posse de uma parcela de imóvel dividido para construção, não podendo ser reconhecida a usucapião com base numa divisão material de propriedade rústica em parcelas com área inferior à unidade de cultura, sendo certo que também não está provado que as partes tivesse acordado - com que interesse? - dividir a propriedade, pondo termo à divisão, com o objetivo de, cada uma delas, passar a dispor como proprietário exclusivo de uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura.

Concluindo:

I- Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro de 1965, o loteamento urbano consistia na operação ou resultado da operação que tinha por objeto ou efeito a divisão em lotes de um ou vários prédios fundiários, situados em zonas urbanas ou rurais, para venda ou locação simultânea ou sucessiva, e destinados à construção de habitações ou de estabelecimentos comerciais ou industriais.

II- Assim sendo, na vigência daquele diploma, adquirido um lote em compropriedade, a sua divisão material acordada entre os comproprietários de modo a que cada um passasse a exercer posse exclusiva sobre uma das parcelas desse lote como seu único proprietário tendo em vista a construção de habitação, não consistia numa operação de loteamento à luz do mencionado Decreto-Lei.

III- A lei não permite a divisão da propriedade de terrenos aptos para cultura em unidades, parcelas ou lotes de área inferior à unidade de cultura (artigo 1376.º/1 do Código Civil) salvo, designadamente, se o fracionamento tiver por fim a desintegração do terreno para construção (artigo 1377.º, alínea c) do Codigo Civil).

IV- O acordo, por via do qual as partes acordaram demarcar um prédio rústico em dois lotes de terreno que dividiram por vala, não traduz um acordo que tivesse em vista o fracionamento do terreno para construção nem tão pouco evidencia que as partes quisessem pôr termo à indivisão, dividindo o terreno em áreas inferiores à unidade de cultura, reconduzindo-se esse acordo divisório a um acordo entre consortes de utilização do prédio contemplado no artigo 1406.º/2 do Código Civil.

V- A circunstância de, neste referido contexto, um dos consortes ter ulteriormente construído edificação na aludida parcela sem oposição do outro consorte, não implica inversão do título da posse exigida pelo artigo 1406.º/2 do Código Civil.

VI- Assim sendo, não correspondendo, nem mesmo no plano de facto, o aludido acordo a uma divisão da propriedade para construção, não têm os AA posse de uma parcela de imóvel dividido para construção, não podendo também ser reconhecida a usucapião com base numa divisão material de propriedade rústica em parcelas com área inferior à unidade de cultura tendo em vista pôr termo à indivisão, acordo que, nestes precisos termos, também não se mostra que tenha sido efetivado.

VII- O reconhecimento da usucapião com base em atos possessórios sobre parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura resultante de mera divisão material, conduziria, dada a impossibilidade de ser proposta ação de anulação face à inexistência de negócio constitutivo do fracionamento do prédio que deu origem a essa parcela, a um resultado que a lei possibilita e pretende evitar quando esse ilegal fracionamento resulta de negócio jurídico.


Decisão: nega-se a revista.


Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 30-4-2015

Salazar Casanova (Relatora)

Lopes do Rego

Orlando Afonso

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[1] Processo distribuído no Supremo Tribunal de Justiça no dia 10-3-2015 [P.2015/310.10495/08]