Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2399/18.3T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ACESSÃO INDUSTRIAL
BEM IMÓVEL
PRESSUPOSTOS
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO EXECUTIVA
PENHORA DE DIREITOS
BENFEITORIA
DIREITO POTESTATIVO
FALTA DA VONTADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
POSSE
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
CITAÇÃO
Apenso:
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Na acessão industrial imobiliária, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas inovar e alterar a substância do objecto da posse, construir uma coisa nova, atribuindo a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa; nomeadamente a junção de um edifício ao solo ou à porção de um determinado solo vem a constituir, no seu conjunto, uma coisa nova, mediante alteração da substância daquela em que a obra é feita.

II – Penhorado determinado edifício, construído em solo alheio, como uma benfeitoria, em execução movida contra aquele que construiu o edificado, a Autora, proprietária do solo, é alheia a quaisquer ocorrências na execução, que não podem ser feitas valer contra si – não apenas não era a executada, como também foi citada nos termos do actual artº 773º CPCiv, pela consideração da norma relativa à penhora de direitos ou de expectativas de aquisição do bem pelo executado – actual artº 778º CPCiv.

III – Na acessão imobiliária, a aquisição do direito de propriedade sobre o terreno pelo autor da obra não se dá pelo simples fenómeno da união material de coisas distintas, tornando-se necessário, por parte do autor da obra incorporada, uma declaração de vontade sem a qual não existe aquisição do direito de propriedade – artº 1317º al. d) CCiv.

IV – Se até ao exercício do direito, as propriedades se mantêm distintas e cada um dos sujeitos puder exercer o seu direito ou cedê-lo a outrem, não pode descurar-se a situação possessória de facto verificada, com relação a ambas as coisas.

V – Se o possuidor pode gozar da presunção da titularidade do direito – artº 1268º nº 1 1ª parte CCiv, já não pode fazer valer tal direito contra a Autora, que goza da presunção juristantum do artº 7º CRegPred, fundada em registo anterior ao início do domínio empírico do Réu.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça*



As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

                  

AA intentou a presente acção contra BB.

Pediu a condenação do Réu a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre a casa composta por ... e primeiro andar, destinada a habitação, tendo o rés-do-chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros, e, o primeiro andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, inscrito na matriz predial urbana da freguesia .... sob o artº 72.... e, em consequência, restituir-lha, livre e devoluta de pessoas e bens, e a sua condenação no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, a título de lucros cessantes, contabilizada desde Novembro de 2007 até à entrega efectiva da casa devoluta de pessoas e bens, no montante de € 910,97 por cada mês em que se encontrar, por isso, impedida de arrendar o imóvel, liquidando-se as rendas vencidas, até à data do petitório, em € 118.426,23 (€ 910,97 x 130 meses), à qual acrescem juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data de citação do R. até integral e efectivo pagamento.

Acrescenta a A. que, à indemnização peticionada, deverá ser deduzido o valor do direito de crédito arrematado pelo R., a apurar nos presentes autos, mas que não poderá ser superior ao valor que o R. pagou pela arrematação do mesmo, no âmbito da acção executiva n.º 305/..., ou seja, € 40.150,00.

Alega ser proprietária do prédio urbano sito na Rua da ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial .... sob o n.º …90, adquirido por sucessão hereditária de CC, com quem foi casada. Ao longo dos anos foram edificadas várias construções no prédio, entre elas, a casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, e logradouros, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 72… da freguesia de ..., cujo … a A. deu de arrendamento desde Janeiro de 2001, recebendo a respectiva renda, mantendo o primeiro andar por acabar. Em 2000, cedeu ao seu afilhado o primeiro andar, comprometendo-se este a executar as obras de acabamento, o que ele fez.

Em 2003, foi surpreendida com uma notificação do Proc. n.º 305/..., do … Juízo do Tribunal ..., em que era exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e executados o seu afilhado DD e mulher, no âmbito da qual foi penhorado o direito a benfeitorias realizadas pelos executados no prédio. Contactou o afilhado que lhe transmitiu estar a tratar do assunto e lhe pediu para assinar documentos, sem compreender o seu conteúdo. Em 2005 foi ordenada a venda judicial do direito a benfeitorias, tendo o afilhado lhe pedido para assinar um documento com uma proposta de aquisição. Em 4 de Julho de 2006 foram abertas as propostas apresentadas, estando a A. presente, tendo sido aceite a proposta do R., no montante de € 40.150,00, por ser de valor superior à proposta por si apresentada. Em 12 de Março de 2007, o tribunal emitiu o título de transmissão.

Em consequência da incorrecta descrição do direito a benfeitorias, sucederam equívocos e, apesar das tentativas de esclarecimento pedidas por si, o certo é que o R. passou a considerar-se o proprietário da casa de rés-do-chão e primeiro andar, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 72... da freguesia ..., de que é proprietária, passando a receber a renda do inquilino do rés-do-chão desde Novembro de 2007. Apesar de ter conhecimento de que apenas adquiriu benfeitorias, o R. arroga-se proprietário do imóvel. Opôs-se à criação pelo R. de um novo artigo matricial, tendo recorrido para o Tribunal Administrativo e Fiscal ..., que lhe deu razão. Conclui que é a proprietária do prédio inscrito na matriz sob o artigo 72..., da freguesia .., facto que comunicou ao R., que continua a ocupar ilicitamente o prédio.

Alega ainda a A. que a ocupação do prédio pelo R. lhe causa danos, pois impede-a de receber as rendas desde Novembro de 2007, quer do ..., no valor de € 450,00 mensais, quer do primeiro andar, no valor de € 460,97, quantias a que acrescem juros.

Citado, o R. contestou invocando a excepção de caso julgado, face ao Proc. nº 305/..., do … Juízo de ..., renumerado em 3810/14..., do Juízo de Execução do ... – Juiz …, do Tribunal da Comarca ..., e impugnando os factos alegados pela A.

Alega que o prédio em causa não foi construído pela A., mas pelo seu afilhado, que, por ter dívidas, manteve a A. como titular. A credora CCAM sabendo que o prédio era do afilhado da A., nomeou à penhora a construção, seguindo-se as demais fases do processo, nas quais a A. participou, acompanhada do seu mandatário.

Ao R. veio a ser adjudicada a benfeitoria, que corresponde à totalidade do prédio artigo 72…., composta por casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, tendo o rés-do-chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros, e, o primeiro andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 72…. da freguesia……, passando a residir no primeiro andar e a receber as rendas relativas ao rés-do-chão, fazendo-o com base no título de transmissão.

As Decisões Judiciais

Em 1ª instância, a acção foi julgada improcedente, com absolvição do Réu do pedido.

Ao invés, na Relação, o Réu foi condenado a reconhecer a Autora como proprietária da casa composta por rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 72… da freguesia ... e averbada pela ap. 1 de 04.12.2001 na descrição predial do prédio descrito sob o n.º …90, inscrito pela ap.7 de 1998.06.03 a favor da A., e a restituí-la, livre de pessoas e bens, à Autora, mantendo, no mais, a sentença recorrida.

A Revista

Recorre agora o Réu de revista, formulando as seguintes conclusões:

a. (…)

b. Os presentes autos foram originados pela circunstância de o Recorrente ter adquirido em 2007, por venda judicial realizada no âmbito de ação executiva, em que eram executados DD (afilhado da Recorrida) e mulher, que correu termos no … juízo do Tribunal Judicial de ... com o nº de processo 305/…. (renumerado na sequência do novo mapa judiciário com o nº 3810/14 – Juízo de Execução ... – Juiz …), a edificação composta por ... e primeiro andar, destinado a habitação, tendo o rés-do-chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros, e, o primeiro andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, com a área coberta de 234,5 m2 e a área descoberta de 118,5 m2, implementadas em terreno propriedade da Recorrida, sito na Rua ..., ..., freguesia ....

c. A venda da construção fora publicitada na referida venda judicial como “benfeitorias” (factos 15. e 20 da matéria de facto provada)

d. Sucede que, o bem adquirido pelo Recorrente por venda judicial no processo de execução acima identificado corresponde à totalidade de uma construção (pontos 5. e 24. da matéria de facto provada do Acórdão Recorrido).

e. Assim, a questão essencial de direito que motiva os presentes autos de Recurso e que se submete à apreciação de V. Exas. resume-se à determinação da natureza jurídica das “benfeitorias”, ou melhor da construção penhorada no âmbito do processo executivo nº 305/... que correu termos no … Juízo do Tribunal Judicial de ... (renumerado na sequência do novo mapa judiciário com o nº 3810/14... – Juízo de Execução do ... – Juiz …) e adquiridas pelo Recorrente em 2007 através de venda judicial em sede daquela ação executiva, e em consequência o regime substantivo aplicável.

f. Tal circunstancialismo remete-nos impreterivelmente para a dicotomia entre o regime das benfeitorias e acessão, como fora feito pelo Tribunal de 1ª instância e que incompreensivelmente não fora considerada pela Relação de Évora.

g. A esse propósito, tem sido acolhido na nossa jurisprudência a orientação doutrinária de Pires Lima e Antunes Varela (ob. Cit., p. 163), no sentido de que, “A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. (…) São acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional. (…) As benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos que se distinguem pela existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada” (Acórdão da Relação de Coimbra, 13 de maio de 2014, proc. nº 1068/08.7TBTMR-B.C1).

h. Aliás, esse mesmo entendimento encontra-se plasmado nos Acórdãos citados na decisão do Tribunal “a quo” (V. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de março de 2007, proc. nº 07B589 e de 27 de setembro de 2012, proc. nº 1696/08.0TBFAR.E1.S2, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

i. Acolhendo essa posição doutrinária, o Tribunal de 1ª instância considerou, de forma douta, que, “(…) a construção do imóvel pelo afilhado DD não tinha por objecto conservar ou melhorar o prédio propriedade da A., antes constituindo um prédio autónomo, onde aquele passou a residir com a sua família, adquirindo assim a sua natureza de prédio próprio do DD, construído em terreno alheio (acessão).”

j. O ponto fulcral para a ratio decidendi no caso sub judice é a determinação de existência de relação jurídica que ligue a pessoa à coisa beneficiada (benfeitoria) ou a inexistência da mesma (acessão).

k. Ora, da matéria de facto provada resulta que o afilhado da Recorrida foi meramente autorizado por aquela a edificar a construção (ponto 3. da matéria de facto provada), pelo que é inequívoca a inexistência de qualquer relação especial que o unisse ao terreno da Recorrida, e consequentemente a inexistência regime jurídico específico que mande aplicar no presente caso o regime jurídico das benfeitorias.

l. Ademais, a lei substantiva, responde expressamente ao caso dos autos no art.º 1340.º, nº 4 do C.Civ., integrado no regime jurídico da acessão industrial imobiliária, que dispõe que, “entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno”.

m. Impõe-se deste modo considerar, como fora considerado pela sentença da 1ª instância, que não nos merece qualquer reparo que, a construção sempre assumiu a natureza de acessão, pois foi construída pelo afilhado da Recorrida em terreno alheio, tendo, por conseguinte, o Recorrente adquirido edificação construída em terreno alheio.

n. Dever-se-á assim entender que o direito (acessão) que até ao momento da venda judicial assistia ao afilhado da Recorrida e esposa fora transmitido, com a venda, para o Recorrente, pelo que contrariamente à pretensão da Relação de Évora nunca se pode afirmar que a obra construída pelo afilhado da Recorrida e transmitida, por venda judicial, para o Recorrente corporiza um mero conjunto de benfeitorias.

o. Pertencendo a referida edificação, antes da venda judicial, ao afilhado da Recorrida, o que esta demonstrou ter pleno conhecimento, tendo-o afirmado expressamente em declaração apresentada no mencionado processo executivo (ponto 17. da matéria de facto provada do Acórdão Recorrido _ fls. 254 e 254 verso), não se compreende o entendimento por parte do Tribunal “a quo” de que a presunção do art.º 7.º do Código do Registo Predial não se mostra ilidida, uma vez que, resulta dos autos inequívoca prova em sentido contrário, ou seja, de que a Recorrida não é a titular da construção em causa, pois tanto a Recorrida reconheceu que a construção era pertença do seu sobrinho, como o próprio Tribunal “a quo” afirma que “não colhe dúvidas, face à factualidade provada, que DD, construiu, com autorização da A., o ... e … andar (…) sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia de ... e inscrito registralmente a favor da A. pela ap. 7/03.06.98, descrito sob o n.º ....90 na Cons. de Reg. Predial ..., averbada na descrição predial do prédio descrito sob o n.º ....90”.

p. Demonstra-se assim inequívoco que, a edificação era propriedade do afilhado da Recorrida, o que a própria Recorrida reconhece (fls. 254), apenas sendo propriedade desta o terreno onde a mesma se encontrava implementada. Assim, dever-se-ia ter considerado ilidida a presunção nos termos do disposto no art.º 350.º, nº 2 do C. Civ.

q. Incompreensivelmente o Tribunal “a quo”, apesar de considerar que a construção adquirida pelo Recorrente corresponde à totalidade de uma casa e que a mesma fora integralmente construída pelo Sr. DD em terreno da Recorrida, devidamente autorizado (pontos 3., 5. e 24 da matéria de facto provada), considerou, erroneamente, que aquela construção corporiza um conjunto de meras benfeitorias e por conseguinte que o Recorrente será titular de um simples direito de crédito sobre as mesmas.

r. O Tribunal “a quo” parece, sem qualquer sustentação legal, ter colocado o cerne do seu sentido de decisão em dois fatores:

i. o direito adquirido pelo Recorrente foi um direito de crédito a benfeitorias pela circunstância de a construção em causa não ter alterado a natureza do prédio (ponto 33. das Alegações).

ii. A venda judicial do direito adquirido pelo Recorrente foi publicitado como venda de “benfeitorias”, pelo que o Recorrente sabia que a natureza do direito que adquiria era a de um direito de crédito (ponto 45 das Alegações).

s. Ambos os entendimentos, descurando a destrinça entre benfeitoria e acessão e desviando-se do caminho trilhado pela jurisprudência para prolação de decisão em casos similares, assentam em premissas totalmente erradas.

t. Desde logo, inversamente ao considerado pela Relação, a construção em causa alterou a natureza do prédio propriedade da Recorrida - o que mesmo a não ter sucedido nunca seria fator de distinção entre benfeitorias e acessão, como acima se logrou demonstrar no ponto 43. das Alegações.

u. É assim, pois, o bem imóvel adquirido pelo Recorrente, além de corresponder à totalidade de uma construção, corresponde à totalidade do artigo matricial 72.... da freguesia de ... (pontos 3., 5. e 24. da matéria de facto provada do Acórdão Recorrido).

v. Resultando inequívoco de prova documental que instrui os autos, nomeadamente a caderneta predial do artigo matricial 72... (fls. 37) e do averbamento à descrição predial Av. 2, Ap. 1, de 04.12.2001 da casa inscrita na matriz sob o artigo ... na descrição predial do prédio descrito sob o nº ...90 (fls. 180 e 181), que a referida construção originou novo artigo matricial.

w. O mesmo se constata da informação resultante do verso do Doc. 13 junto pela A. (Recorrida) com a petição inicial - caderneta predial, do qual resulta também que a construção realizada pelo afilhado da Recorrida consubstanciou, à altura, um prédio novo, o qual aquando da sua participação se declarou ter sido edificado no logradouro do art.º ….03

x. A tal conclusão sempre se chegaria pela análise do projeto de construção com destaque apresentado na Câmara Municipal (fls. 38 a 42 e docs. 7 a 11 juntos com a petição inicial), documento também através qual se afere a criação de novo prédio com construção e destaque nos termos do n.º 2 do art.º 5 da Lei nº 448/91 de 29 novembro.

y. Tendo tal projeto sido apresentado em nome da Recorrida, é clarividente o conhecimento da mesma de que se trata de prédio novo, que teve origem no logradouro de outro artigo matricial de que era proprietária, informação que sempre resultaria de documentação tributária de que era titular.

z. É vero que, a construção edificada pelo afilhado da Recorrida no logradouro do artigo matricial ....03 de que a mesma era titular, não alterou em termos de descrição predial a natureza do prédio, mas só não alterou na descrição predial, pois não se pode ignorar que tal não sucedeu apenas por o novo artigo matricial ter sido averbado à descrição predial nº ...90, que já integrava todos os artigos matriciais inscritos a favor da Recorrida (fls. 180 e 181).

aa. Em segundo lugar, como explanado nos pontos 46. a 48. das Alegações, a designação de “benfeitorias” atribuída na ação executiva e a venda do direito com essa designação não pode determinar a real natureza da construção. Pelo que, sempre deveria o Tribunal “a quo” ter atentado na natureza da construção, mormente a sua composição, que correspondendo à totalidade de uma edificação, que o afilhado da Recorrida foi por esta autorizado a construir no seu terreno, tal sempre remeteria a Relação de Évora para a aplicação do regime da acessão, nunca das benfeitorias.

bb. Encontrando-se a matéria de direito na disponibilidade do Tribunal, sendo a mesma de conhecimento oficioso, deveria o Tribunal “a quo” aplicar o regime jurídico mais adequado à situação factual que lhe era apresentada independentemente de qualquer designação anterior que já havia sido atribuída à mesma! A não ter atuado desse modo, o Tribunal “a quo” furtou-se flagrantemente ao exercício das suas funções.

cc. Andou também mal o Tribunal “a quo” ao considerar apenas o despacho transitado em julgado que determinou a entrega da construção ao Recorrente para daí inferir que o direito transmitido ao Recorrente foram benfeitorias atenta designação aí concedida, o qual deveria ter sido tido em conta mas para efeitos de considerar que pelo mesmo operou a transmissão do bem para o Recorrente.

dd. O trânsito em julgado da ação executiva deveria ter relevado para considerar que por essa ação fora emitido título de transmissão da construção até então pertença do afilhado da Recorrida para o Recorrente, bem como auto de entrega pelo qual se investe o Recorrente na posse do bem transmitido, os quais nunca foram postos em causa pela Recorrida, que participou ativamente no processo de execução (factos 17. a 19. e 22. da matéria de facto provada), tendo, inclusive, assinado o auto de entrega (fls. 290).

ee. A propósito do mencionado auto de entrega deverá relevar o entendimento da 1ª instância de que “como resulta da execução, em especial do auto de entrega (fls. 290), o R. foi investido na posse das benfeitorias constituídas por rés-do-chão e primeiro andar e notificou o arrendatário do rés-do-chão, que se encontrava presente, para respeitar e reconhecer o direito do adquirente, a quem deverá pagar a renda. Ora tal entrega, nos termos em que ocorreu, não se limita a reconhecer que o R. tem um direito de crédito, antes o investe na posse da edificação e o reconhece como titular dos frutos que dala resultam” (sublinhado nosso).

ff. Evidência de que o direito adquirido pelo Recorrente tem a natureza de acessão e não de benfeitoria é, como considerado pelo Tribunal de 1ª instância, a circunstância de “caso tivesse sido penhorado ou vendido uma benfeitoria, sempre deveria ter sido determinado o seu valor, pois que, como direito de crédito, estaria limitado ao seu valor”. O que não sucedeu!

gg. Assim, contrariamente ao afirmado no Aresto Recorrido competia sim à Relação de Évora pronunciar-se sobre a bondade do despacho, maxime no que se refere à qualificação do direito transmitido como benfeitorias!

hh. O cerne da motivação da matéria de direito por parte do Tribunal “a quo” sempre deveria ter sido o da determinação da natureza do bem adquirido pelo Recorrente e não dar de barato que se o mesmo foi designado como benfeitoria então este tem simplesmente um direito de crédito, quando todo o circunstancialismo factual indicia o contrário.

ii. O bem adquirido pelo Recorrente não consubstancia um qualquer melhoramento, mas uma implantação de uma construção inovatória em terreno propriedade da Recorrida. Sendo evidente que a mencionada construção, alterou a natureza do imóvel, propriedade da Recorrida. De facto, é inquestionável que a construção de uma edificação em logradouro, ou melhor em terreno onde não se verificava qualquer construção, altera inevitavelmente a natureza do mesmo, o que sempre é corroborado pela criação de novo artigo matricial e pedido de destaque nos serviços tributários após a conclusão da obra pelo afilhado da Recorrida e para individualização dessa edificação. Pelo que se impunha concluir pela natureza de acessão do bem adquirido pelo Recorrente.

jj. Resulta assim demonstrada a violação perpetrada pelo Tribunal “a quo” da lei substantiva, designadamente dos arts.º 216.º e 1325.º, ambos do C.Civ.

kk. Concluindo-se pela natureza de acessão do prédio adquirido pelo Recorrente, o litígio entre as partes sempre se solucionará com a aplicação do regime do art.º 1340.º, nºs 1 e 3 do C.Civ. como considerado em 1ª instância e não dos arts.º 1273.º do C.Civ. e 773.º, nºs 1, 2 e 3 do CPC, a que faz referência o Acórdão recorrido.

ll. Mostra-se evidente que, o Tribunal “a quo” deveria ter mantido o indeferimento da pretensão da Recorrida, confirmando a sentença do Tribunal de 1ª instância.

mm. Por último, dever-se-á considerar que também andou mal o Tribunal “a quo” ao entender que a conduta do Recorrente se traduz numa manifesta situação de abuso de direito (art.º 334.º do C.Civ.), pois, o Tribunal “a quo” não logra demonstrar a presença dos pressupostos de que depende a verificação de uma situação de abuso de direito (ponto 66. das Alegações).

nn. De qualquer forma, não se verificam no presente caso os pressupostos de que depende a aplicação do instituto do abuso de direito, aos quais se refere o ponto 67., 68., 69. e 70. das Alegações.

oo. É assim pois, no caso dos autos não se pode afirmar qualquer comportamento anterior do Recorrente suscetível de fundar qualquer expetativa legítima da Recorrida nem qualquer alteração de comportamento _ essenciais à afirmação de uma situação de abuso de direito. O Recorrente após ter sido investido na posse da edificação que adquirira por venda judicial sempre agiu como dominusdo bem imóvel, tendo sido o próprio Tribunal que através dos mencionados título de transmissão e auto de entrega lhe legitimaram que atuasse nessa qualidade. Ao ser investido na posse do bem e a ser-lhe reconhecido o direito aos frutos da mesma, criou-se sim no Recorrente a legítima confiança de que era proprietário do bem imóvel.

pp. Nunca se pode afirmar a presença de criação na Recorrida de qualquer situação legítima de confiança ou de qualquer expetativa, o que o Tribunal “a quo” também não logra demonstrar, tendo o Recorrente atuado sempre da mesma forma, nunca poderia adotar conduta inconciliável com qualquer expetativa que tenha criado na Recorrida com qualquer conduta sua anterior.

qq. Aliás, nunca se poderá falar em criação de legítimas expetativas por parte da Recorrida quando a mesma reconhece e sabe que a propriedade da referida construção não lhe pertence _ declaração na ação executiva de que a construção era pertença do seu afilhado (fls. 254).

rr. O Recorrente sempre agiu em boa-fé, pelo que não colhe o argumento aduzido pela Relação de Évora de que ocupa o local há 13 anos sem pagar IMI, sendo a Recorrida que suporta tal tributo, pois, o Recorrente tentou inscrever o imóvel em seu nome quer no registo predial, quer no serviço de finanças, o que sempre terá de se considerar demonstrativo de que atuara de boa-fé, nunca pretendendo permanecer no local às custas da Recorrente. Não sendo assim possível afirmar a má-fé do Recorrente, também essencial à consideração de que atuara em abuso de direito.

ss. Mais, a questão do abuso de direito sempre ficaria prejudicada atento o supra exposto, pois sendo pertença do Recorrente a mencionado construção, nunca teria o mesmo agido em abuso de direito.

tt. Ademais, a própria Relação de Évora reconhece, conforme se logra demonstrar no ponto 76. das Alegações que, não existiu da parte do Recorrente qualquer comportamento ilícito e/ou culposo e que a sua atuação encontra justificação no auto de entrega do imóvel que o investiu na posse do mesmo. O Tribunal “a quo” acaba por se contrariar, diga-se, com o devido respeito, pondo os pés pelas mãos e revelando total incoerência. Reconhecendo-se tal circunstancialismo sempre se impunha a conclusão de que não existiu da parte do Recorrente qualquer abuso de direito.

uu. Temos assim que, também o art.º 334.º do C. Civ. foi erroneamente aplicado ao caso dos autos pelo Tribunal “a quo”.

vv. Por todo o supra exposto, mostra-se evidente a violação da lei substantiva, mormente do C. Civ., tendo sido erroneamente interpretado e aplicado além do regime do abuso de direito (art.º 334.º), também o regime das benfeitorias (art.º 216.º e 1273.º) e o regime da acessão (art.º 1325.º e ss.), o qual tinha plena aplicação no caso sub judice, nos termos acima explicitados e conforme acontecera em sede de 1ª instância!


Em contra-alegações, a Recorrida pugna pela confirmação da sentença recorrida.


São os seguintes os Factos Apurados no Processo:

1. Pela Ap. 7 de 1998.06.03, mostra-se registada a aquisição a favor da A. por sucessão hereditária, do prédio urbano sito no ..., ..., na freguesia..., concelho..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º …90, composto por:

a) casa de rés-do-chão, com quatro divisões, cozinha, sala comum, casa de banho, corredor, marquise e varanda, com a área de 103,40 m2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...01 da freguesia ...;

b) casa de rés-do-chão, destinada a anexos e arrecadação, com duas divisões, cozinha, casa de banho e arrecadação, com a área de 120,96 m2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...02 da freguesia ...;

c) armazém com duas divisões e duas garagens, com a área de 148,12 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...01 da freguesia ...;

d) rés-do-chão composto por dois armazéns e logradouro, com a área coberta de 167,52 m2 e a área descoberta de 7190,82 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …03 da freguesia …;

e) casa composta por rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, tendo o rés-do-chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros, e, o primeiro andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, com a área coberta de 234,5 m2 e a área descoberta de 118,5 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 72... da freguesia....

2. A A. nunca teve filhos, e tinha um carinho especial por esse afilhado que tratava como se um filho seu fosse (art.º 19.º)

3. Em 1992, a A. autorizou o seu afilhado DD e a esposa, a efectuar a construção do imóvel, numa parcela de terreno, que fazia parte do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número …90 da Freguesia  .... e a que corresponde a totalidade do artigo matricial 72... da freguesia  ..., referido em 1. (artºs. 42º e 46º da contestação).

4. A edificação identificada em 1., alínea e) foi projectada em Agosto de 1992, pelo Gabinete Técnico de Desenho “GTD – Projectos” (artº 5º da petição inicial – parte).

5. O afilhado da A. construiu a casa, não se tendo limitado apenas a concluir as casas de banho, a cozinha, aos acabamentos a nível de revestimento de paredes e de pavimento, pinturas e conclusão da rede eléctrica e de água e instalação de torneira. (artº 56º da contestação).

6. O projecto de obras e o pedido de licenciamento foi requerido em nome da A. (artºs 48º da contestação – parte).

7. A referida edificação foi objecto de inscrição na respectiva matriz predial urbana em 10 de Fevereiro de 2000 e a A. notificada da avaliação. (artºs 6º e 7º da petição inicial)

8. Posteriormente, em Abril de 2002, a A. deu de arrendamento a EE, que aceitou, o sobredito rés-do-chão (art.º 11.º)

9. Como contrapartida pelo arrendamento, o arrendatário obrigou-se perante a aqui A. ao pagamento de uma renda mensal, inicialmente no montante de € 400,00 e, a partir de Setembro de 2002, no montante de € 450,00 (art.º 12.º)

10. - Rendas que EE pagava à A. e que esta, após recebimento, emitia o respectivo recibo de quitação (art.º 13.º).

11. Renda que, após recebida, era declarada pela A. à Administração Tributária (art.º 16.º).

12. Pelo Av. 2, Ap. 1, de 04.12.2001, a casa atrás descrita em 1., alínea e) foi averbada na descrição predial do prédio descrito sob o n.º .....

13. Ao ... da referida edificação foi atribuída a Licença de Utilização n.º 112/..., emitida pela Câmara Municipal ... em 26 de Agosto de 2003, para oficina de torneiro.

14. Em Abril de 2003, foi a A. surpreendida com uma notificação do … Juízo do Tribunal Judicial de ..., que lhe dava conta de que a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., C.R.L.” tinha movido uma acção executiva contra DD e a mulher, que corria termos sob o Procº n.º 305/..., e que, no âmbito dessa acção, tinha sido penhorado o direito às benfeitorias realizadas pelos Executados no prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 72.... (artº 34º da petição inicial).

15. A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo nomeou à penhora o direito às benfeitorias, compostas por rés-do-chão e 1º andar, destinado a habitação, tendo o r/chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros e, o 1º andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, com a área coberta de 234,5m2 e a área descoberta de 118,5 m2, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ....90 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 72... da freguesia ....

16. Após realização da penhora no âmbito do já aludido processo executivo a ora A. Interveniente Principal foi notificada na qualidade de proprietária daquela penhora de direitos, nos termos do art.º 862º do CPC, actual art.º 781º do CPC e também para em 10 dias fazer as declarações que entendesse quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efectivo (artº 54º da contestação).

17. Na sequência da notificação do direito nomeado à penhora, a A. juntou requerimento, por si subscrito, de que existe cópia a fls. 254 verso, dizendo: “O prédio onde a benfeitoria foi construída pertence à requerente, não tendo o executado qualquer parcela de terreno. (…) o prédio construído pelo executado no seu prédio, com a área coberta de 234,50 m2 é construído por construção de ..., primeiro andar e sótão, com um anexo. (…) O prédio construído pelo executado tem alterações não constantes do projecto e não aprovadas e não tem licença de utilização, não tendo sido legalizado na Câmara devido às alterações havidas e não autorizadas” (artº 55º da contestação).

18. Na primeira marcação para abertura de propostas em carta fechada que ocorreu em 23/01/2006 e que depois veio a ser dada sem efeito, a A. se fez acompanhar do Ilustre causídico Dr. FF, que passou a representá-la no processo. (artºs 64º e 65º da contestação)

19. Aquando da abertura de propostas em carta fechada em 04/07/2006, a A. esteve presente e apresentou uma proposta. (artº 48º da petição inicial e artº 67º da contestação)

20. Acabando por ser aceite a proposta apresentada pelo aqui R. para a aquisição do direito penhorado, no montante de € 40.150,00, por ser de valor superior à proposta apresentada pela A. (artº 49º da petição inicial)

21. Direito que foi adquirido pelo aqui R., por venda judicial realizada no âmbito da acção executiva. (artº 107º da petição inicial)

22. Além de ter apresentado uma proposta, a A., em virtude de a sua proposta não ter sido a vencedora, requereu que lhe fosse concedido o direito de preferência, na medida em que ainda configurava como titular inscrita do prédio onde se acham realizadas as benfeitorias objecto da venda judicial, tendo-lhe sido negado o exercício de tal direito. (artºs 68º e 69º da contestação)

23. Em 12 de Março de 2007, o 2.º Juízo do Tribunal Judicial .... emitiu “Título de Transmissão”, a favor do aqui R., do direito às benfeitorias compostas por rés-do-chão e primeiro andar, destinado a habitação, tendo o rés-do-chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros, e, o primeiro andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, com a área coberta de 234,5 m2 e a área descoberta de 118,5 m2, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 72... da freguesia .... (artº 50º da petição inicial)

24. As benfeitorias em apreço reportam-se e são constituídas pela totalidade de uma construção que se compõe como já se viu de rés-do-chão e 1º andar, destinado a habitação, tendo no r/chão uma sala, cozinha, quatro casa de banho, duas arrecadações, adega e garagem e dois logradouros e, no 1º andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas. (artº 77º da contestação)

25. Com data de 27 de Março de 2007, o R. notificou o arrendatário do rés-do-chão da casa da A., EE, para este passar a proceder ao pagamento da renda mensal devida pelo arrendamento em conta bancária da titularidade do R. (artº 56º da petição inicial)

26. Não obstante, o arrendatário continuou a pagar a renda mensal à A. (artº 57º da petição inicial)

27. No auto de entrega que teve lugar em 30 de Outubro de 2007, foi o R. investido na posse das benfeitorias, e o arrendatário do rés-do-chão da casa, EE, que paga a renda mensal de € 450,00, notificado para respeitar e reconhecer o direito do adquirente, a quem devem ser pagas as rendas, não se eximindo dessa obrigação pelo facto de as pagar à Interveniente (a ora A.). (artº 58º da petição inicial e artº 80º da contestação)

28. O arrendatário deixou de pagar a renda à A., tendo posteriormente entregue o rés-do-chão ao ora R. (artº 59º da petição inicial)

29. Após a aquisição, em 27.07.2007, o R. requereu o registo da aquisição na Conservatória do Registo Predial de ..., que lhe foi recusado com fundamento de que “o apresentante adquiriu um direito de crédito, o direito a benfeitorias como referido no título de transmissão, facto não sujeito a registo.” (artºs. 62º e 63º da petição inicial)

30. Em 17 de Dezembro de 2007, o R. apresentou no Serviço de Finanças Declaração “Modelo 1 de IMI”, dando origem à criação de um novo artigo matricial, o artigo ...09 e à desactivação do artigo 72.... (artº 64º da petição inicial e artº 84º da contestação)

31. A A. apresentou Reclamação junto do Serviço de Finanças ..., requerendo a reinscrição do prédio correspondente ao artigo matricial ... em seu nome e a anulação da inscrição do artigo ...,09 que foi indeferido pelo Chefe do Serviço de Finanças…. por despacho proferido em 20 de Janeiro de 2009. (artºs. 65º e 66º da petição inicial).

32. Em 20 de Fevereiro de 2009, a aqui A. apresentou recurso hierárquico do acto de indeferimento que foi indeferido por despacho que negou provimento ao recurso. (artºs. 67º e 68º da petição inicial)

33. Inconformada, a ora A. instaurou acção administrativa especial contra a Administração Tributária, que correu termos na Unidade Orgânica 4 do Tribunal Administrativo e Fiscal ..., sob o número de processo 1897/09... (artº 69º da petição inicial)

34. No âmbito da supra identificada acção, o aqui R. foi citado na qualidade de contrainteressado, que não se apresentou a juízo. (artºs 70º e 75º da petição inicial)

35. Por sentença proferida em 30 de Janeiro de 2017, foi a supra identificada acção administrativa especial julgada procedente, e, em consequência, foi a Administração Tributária condenada no pedido. (artº 71º, 72º, 73º, 74º e 76º da petição inicial)

36. “A A. sempre liquidou o Imposto Municipal sobre Imóveis, relativo ao prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 72.... da freguesia ....”.

37. O R. ocupa a casa referida em 1., al. e)


Foram considerados Não Provados os seguintes factos:

Da petição inicial:

A) - (…) a pedido e a expensas da aqui A. (art.º 5.º parte)

B) - Em Janeiro de 2001, a A. deu de arrendamento a GG, que aceitou, o ... do prédio melhor identificado na alínea e) do artigo 3.º (art.º 8.º)

C) - Como contrapartida pelo arrendamento, o arrendatário obrigou-se perante a aqui A. ao pagamento de uma renda mensal, no montante de 90.000$00 (art.º 9.º)

D) - Rendas que GG pagava à A., enquanto senhoria, e que esta, após recebimento, emitia o respectivo recibo de quitação (art.º 10.º).

E) - No que concerne ao primeiro andar da moradia, faltava executar as obras de acabamentos, pelo que estava devoluto (art.º 17.º).

F) - Em 2000, o afilhado da A., DD, estava à procura de casa para viver com a esposa, 65 (art.º 18.º).

G) - Motivo pelo qual confiava totalmente no mesmo (art.º 20.º).

H) - Sendo mesmo sua intenção instituir o afilhado como seu único herdeiro testamentário (art.º 21.º).

I) - Nesta relação de grande proximidade, o referido DD pediu à A. se a mesma lhe emprestava o primeiro andar da casa melhor descrita na alínea e) do artigo 3.º desta Petição, para residir na mesma (art.º 22.º).

J) - Como contrapartida pela ocupação do primeiro andar, DD comprometeu-se a executar as obras necessárias à habitabilidade do mesmo, bem como a auxiliar a A. sempre que esta necessitasse (art.º 23.º).

K) - O que foi aceite pela A., pois assim não só ajudava o afilhado, como este passava a viver “paredes meias” consigo, e estaria disponível para a auxiliar em todos os momentos, o que era importante para a A., pois já tinha uma idade avançada e vivia sozinha (art.º 24.º).

L) - Neste contexto, DD concluiu as casas de banho, instalando as loiças sanitárias e procedendo aos acabamentos a nível de revestimento de paredes e de pavimento (art.º 25.º),

M) - Concluiu a cozinha, instalando os móveis e a bancada (art.º 26.º),

N) - Procedeu ao tratamento e à pintura das paredes no interior da casa (art.º 27.º),

O) - Assim como concluiu a instalação da rede eléctrica, com a conclusão das tomadas e da rede de água, com a instalação das torneiras (art.º 28.º).

P) - Foi, assim, celebrado entre as partes um contrato de comodato, na medida em que a cedência do uso e gozo do primeiro andar a DD foi a título gratuito (art.º 30.º).

Q) - De imediato, a A. foi apurar junto do afilhado de que se tratava aquela notificação, uma vez que o prédio em questão era sua pertença e não do afilhado, que, como se disse, apenas tinha realizado algumas benfeitorias no mesmo (art.º 35.º).

R) - Nessa ocasião, DD tranquilizou a A., assegurando-lhe que iria contratar um advogado e esclarecer a situação junto do Tribunal (art.º 36.º).

S) - Pouco tempo depois, DD surgiu com um documento escrito e pediu à A. que o assinasse, dizendo-lhe para não se preocupar mais, que com o mesmo iria resolver a situação suscitada pelo Tribunal (art.º 37.º).

T) - Confiando cegamente no afilhado, a A. acabou por assinar o dito documento, sem que o respectivo conteúdo lhe tivesse sido devidamente explicado por este (art.º 38.º).

U) - Posteriormente, DD pediu à A. para assinar outros tantos documentos, dirigidos ao mencionado processo (art.º 39.º).

V) - Afirmava, então, o afilhado que estava a tratar do assunto da madrinha…(art.º 40.º)

W) - Confiando que o afilhado estava realmente a zelar pelos seus direitos e interesses, a A. assinou todos os documentos que este lhe apresentou, sem entender o respectivo conteúdo (art.º 41.º).

X) - No início de 2005, foi ordenada a venda judicial do direito a benfeitorias que os Executados DD e mulher tinham efectuado no prédio melhor identificado na alínea e) do artigo 3.º desta PI (art.º 42.º).

Y) - Quando a A. tomou conhecimento desse facto, interpelou o afilhado, questionando-o sobre o motivo por que estava a ser publicitada a venda do prédio de que a A. era proprietária (art.º 43.º).

Z) - Ao que o afilhado lhe disse, uma vez mais, para não se preocupar…(art.º 44.º)

AA) - Algum tempo depois DD pediu à A. para assinar um papel e que teria que ir com ele e com o advogado a Tribunal (art.º 45.º)

BB) - Leiga em questões jurídicas, a A. assinou o papel que o afilhado lhe deu para assinar, tendo visto que o mesmo era uma proposta de compra, pelo que questionou o afilhado o que é que queria que ela comprasse por trinta e cinco mil euros (art.º 46.º).

CC) - Mais uma vez o afilhado disse-lhe para ela não se preocupar que não teria que pagar dinheiro nenhum, pois quem pagaria seria ele, pelo que a A. acedeu, uma vez mais, ao pedido do afilhado, assinando o documento e indo a Tribunal com o afilhado (art.º 47.º).

DD) - Incrédula com o sucedido, a A. foi, então, pedir explicações ao afilhado, pois, contrariamente ao que este lhe havia prometido, os seus direitos e interesses não foram acautelados (art.º 51.º).

EE) - Acontece que DD não teve resposta para dar à A. e, num ataque de fúria, acabou por deferir um murro na A., tendo de seguida abandonado o primeiro andar do prédio identificado na alínea e) do artigo 3.º desta PI (art.º 52.º).

FF) - Desde essa altura, a A. nunca mais falou com DD, cujo actual paradeiro desconhece. (art.º 53.º)

GG) - Facto que a A. tem transmitido insistentemente ao aqui R. ao longo dos anos, inclusivamente através de cartas que lhe dirigiu. – Cfr. Carta que se junta como doc. n.º 123 e se dá por integralmente reproduzido (art.º 78.º).

HH) - Saliente-se, contudo, que, em virtude da confusa e da pressão efectuadas pelo aqui R. sobre o arrendatário para o reconhecer como seu senhorio, este acabou por abandonou o locado, fazendo cessar o arrendamento (art.º 85.º).

II) - Relativamente ao primeiro andar da mesma casa, poderia a A. tê-la introduzido no mercado do arrendamento urbano, auferindo a respectiva renda (art.º 90.º).

JJ) - Renda que nunca seria inferior ao valor fixado nos termos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do seu artigo 35.º do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), ou seja, o valor anual correspondente a 1/15 do valor patrimonial do locado, que, nos termos da alínea b), igualmente citada, corresponde à avaliação realizada nos termos do artigo 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) (art.º 91.º).

KK) - E que estamos a falar, por ora, de metade do imóvel – o primeiro andar – (art.º 93.º).

LL) - Em 2000, a A. cedeu o uso e o gozo temporário do primeiro andar da dita casa ao seu afilhado, DD, para este nela residir, com o seu agregado familiar, tendo o mesmo procedido à realização das benfeitorias necessárias para a casa se tornar habitável (art.º 101.º).

MM) - As obras, autorizadas pela A., na qualidade de proprietária, foram efectivamente realizadas pelo afilhado desta na casa melhor descrita na alínea e) do artigo 3.º, configurando benfeitorias úteis, na medida em que lhe aumentaram o valor (art.º 102.º).


E da contestação:

NN) - O preço da construção referida em 4. foi suportado única e exclusivamente pelo seu afilhado/executado e esposa. (artº 49º da contestação)

OO) - Na altura, aparecia a madrinha ora A. como titular do direito, bem sabendo ambos que, de facto, o proprietário do prédio construído era da titularidade do afilhado/executado, sendo este quem o construiu e suportou o preço dessa construção. (artº 45º - parte)

PP) -. Motivo pelo qual o contrato de arrendamento também ficara em nome da A. (artº 51º - parte)

QQ) - Contudo, o executado naqueles autos e afilhado da A. era, à data, empresário do ramo da construção civil e deparava-se com dívidas advindas daquela actividade, nomeadamente, dívidas de obrigações fiscais e, por esse motivo, A. e afilhado/executado nunca reduziram a escrito tal doação (art.º 43.º).

RR) - bem como, pelo facto de o afilhado/executado ter vários credores no seu encalce, nomeadamente a Administração Fiscal e Tributária, que porventura o processo de licenciamento de obras da Câmara Municipal ..., foi requerido em nome da A. (art.º 44.º, parte).

SS) - Na verdade, era o que dava jeito ao afilhado/executado da A. (art.º 45.º, parte)

TT) - ficaria em seu nome por forma a que os credores do seu afilhado/executado não lhe pudessem penhorar tal construção (art.º 48.º parte).

UU) - Figurando a A. como titular do direito apenas para evitar penhoras dos credores do afilhado/executado (art.º 50.º).

VV) - por forma a evitar penhoras (art.º 51.º).

                               

Conhecendo:


I

Como bem inicia de ajuizar o acórdão recorrido, encontrando-nos perante acção de reivindicação de propriedade, e reconhecido esse direito, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei – artº 1311º nº2 CCiv.

Estes “casos previstos na lei” são os de qualquer relação, obrigacional ou real, que confira, a quem a invoca, a posse ou a detenção da coisa – p.e., nos casos da invocação pelo usufrutuário, pelo locatário ou pelo credor pignoratício.

Restaria, em todo o caso, o não reconhecimento à reivindicante do direito de propriedade sobre o imóvel, classificado na execução como “benfeitoria”, penhorado e transmitido nessa sobredita execução.

Esta, em bom rigor, a matéria com que se depararam o acórdão e a sentença.

Esta última, a fim de considerar improcedente a pretensão da Autora, entendeu existir dúvida sobre a acessão imobiliária do solo da construção penhorada (existe, de facto, um prédio, construído em solo alheio, que foi transmitido na execução), dúvida que se deveria resolver contra a Autora reivindicante, proprietária do solo.

O acórdão centrou-se na ideia de que “o que releva é que o bem penhorado foi o direito a benfeitorias e a Autora foi notificada da penhora na qualidade de proprietária, nos termos do disposto nos artºs 856º e 860º-A do CPCiv (então vigente) e o Réu adquiriu esse direito e não a obra, a construção, o imóvel”.

Independentemente da questão de ónus probatório, referido na sentença (artº 342º CCiv), não há dúvida de que o instituto da acessão pressupõe, nos termos da norma do artº 1325º CCiv, que exista determinada coisa, propriedade de alguém, que se une e se incorpora com outra coisa que não lhe pertence, pressupondo-se assim duas propriedades distintas que, por força da acessão, virão a formar uma coisa única.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 66 figuraram-se dois critérios de distinção entre benfeitoria e acessão imobiliária – um critério subjectivo e um critério objectivo.

Para o critério subjectivo, a benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela – assim, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol.III, 2ª ed., pg. 163. Nesta linha, o quid da distinção deveria achar-se na diversidade, oposição ou conflito de títulos, própria da acessão, uma pertinência de elementos congregados na coisa, mas atribuíveis a diferentes titulares – Antunes Varela, Col. S.T.J. 96/10.

O critério objectivo obtém-se, v.g., da síntese de Menezes Leitão, Direitos Reais, 2ª ed., pg.227: “as benfeitorias correspondem apenas a despesas para conservar ou melhorar a coisa (artº 216º nº 1 CCiv), havendo assim apenas uma manutenção ou desenvolvimento do seu valor económico, que gera apenas obrigações de restituição das despesas ou um jus tollendi, não criando um conflito de direitos; já na acessão vai-se mais longe, efectuando-se uma incorporação de um valor económico novo naquele bem, através da união com outra coisa ou da sua transformação por aplicação de trabalho, o que gera um direito novo sobre a coisa, que entra em conflito com o do proprietário primitivo; assim, por exemplo, se um locatário de um prédio rústico construir um edifício no terreno, a situação é de acessão e não de benfeitoria”.

No mesmo sentido, já Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, pg. 312, apontava o critério clássico seguido até à entrada em vigor do Código Civil de 66, esclarecendo que os actos de acessão se distinguem das benfeitorias porque inovam, porque alteram a substância do objecto da posse – melhorar uma construção existente, trata-se de benfeitoria; quando se faz construção nova, há acessão.

Este critério objectivo de distinção entre benfeitoria e acessão veio a ser doutrinado por Vaz Serra, Revista Decana, 108º/253, 255 e 266, na vigência do Código Civil de 66, no sentido de que, “no caso da acessão, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra é feita, atribuindo assim a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa”.

O critério de distinção preferível é o critério objectivo, tendo-se o mesmo imposto também na jurisprudência – cf. S.T.J. 27/5/99 Col.II/123 (Miranda Gusmão), independentemente de a necessidade de distinção só aparecer nas hipóteses de intervenção de terceiro em terreno alheio (artºs 1340º e 1342º CCiv), posto que a ponderação de direitos e deveres associados às benfeitorias só tem sentido se o beneficiador não for o dono da coisa beneficiada – Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, Col. S.T.J. 96/14.

Sem prejuízo de que o critério objectivo pode ser afastado pelo regime jurídico aplicável à relação em causa ou pela convenção das partes (Vaz Serra, op. cit., pg. 265) - como observa Júlio Vieira Gomes, Da Acessão, Mormente da Acessão Industrial Imobiliária, Porto, 2019, pg. 104, “frequentemente a mesma obra ou construção poderá segundo os casos ser tratada como uma benfeitoria (melhoramento, adição ou inovação), discutindo-se a questão da sua indemnização, ou como uma acessão, havendo que determinar de quem é a propriedade”.

A situação dos autos reconduz-se à construção de um edifício, casa de ... e andar, com arrecadações, garagem, logradouros, com inscrição matricial própria, em terreno da Autora, mas com autorização da Autora. A construção foi também averbada na descrição predial do prédio da Autora.

O prédio/edifício veio a ser penhorado em processo executivo movido contra o autor da obra, como uma benfeitoria.

Não como um “crédito por benfeitorias”, mas como uma coisa, tendo o adquirente em venda executiva beneficiado da entrega efectiva do imóvel – passou aliás até a receber a renda da parte arrendada (...).

Resta saber se a propriedade do edifício, mais tarde vendido no processo executivo, independentemente da caracterização feita no processo executiva (penhora de “benfeitoria”, que não “penhora de imóvel”), pode ser feita valer contra a propriedade existente na esfera jurídica da Autora.

Não poderia ser feita valer enquanto benfeitoria – como afirma adequadamente o acórdão recorrido, “o benfeitorizante não adquire nunca o direito à propriedade da coisa, mas apenas o direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, na impossibilidade de separar a construção, do terreno onde está implantada – nº 2 do artº 1273º CCiv”.

A benfeitoria é, em primeira linha, um crédito pelo ressarcimento da despesa de quem a levou a cabo – sem prejuízo de a benfeitoria poder integrar um fenómeno mais vasto de acessão (em sentido lato), na medida em que determinados materiais ou obras incorporadas passem a ser partes componentes da propriedade de outrem, não podendo ser levantadas (artºs 1273º nº 2 e 1275º nº 1 CCiv), mas nunca por nunca dando azo a um direito de propriedade sobre a coisa benfeitorizada.

Diga-se também, que a Autora é alheia a quaisquer ocorrências na execução, que não podem ser feitas valer contra si – não apenas não era a executada, como também foi citada nos termos do actual artº 773º CPCiv, por força da consideração da norma relativa à penhora de direitos ou de expectativas de aquisição do bem pelo executado – actual artº 778º CPCiv.

Como vimos, porém, o critério base, de adoptar no caso concreto do solo e do edifício de habitação dos autos, está em aceitar que a junção de um edifício ao solo ou à porção de um determinado solo vem a constituir, no seu conjunto, “uma coisa nova, mediante alteração da substância daquela em que a obra é feita” (Vaz Serra).

Neste quadro, é à luz da acessão industrial imobiliária que se poderia obstar ao êxito da reivindicação.


II

Inexistindo dúvida sobre a boa fé do autor das obras (artº 1340º nº4 CCiv), nesta matéria rege o artº 1340º CCiv: “1 – Se alguém de boa fé construir obra em terreno alheio… e o valor que as obras tiverem trazido á totalidade do prédio for maior que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras… 3 – Se o valor acrescentado for menor, as obras pertencem ao dono do terreno, com a obrigação de indemnizar o autor do valor que tinham ao tempo da incorporação.”

Ora, desde o artigo de Oliveira Ascensão (Acessão, in Scientia Juridica, 1973, tomo XXII, pgs. 324ss.) que se vem maioritariamente entendendo que a aquisição do direito de propriedade sobre o terreno pelo autor da obra não é automática, isto é, não se dá pelo simples fenómeno da união material de coisas distintas. Torna-se necessário, por parte do autor da obra incorporada, uma declaração de vontade no sentido de que efectivamente pretende adquirir o terreno, independentemente de os efeitos da declaração de vontade deverem retroagir ao momento da incorporação.

E assim, sem declaração de vontade não existe aquisição do direito de propriedade, tão só um direito potestativo que assiste ao dono da obra, que assim o poderá exercer, ou não – artº 1317º al. d) CCiv, de resto, como visto, também dependente da efectivação de determinado pagamento.

Da mesma forma, também Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, 1979, pgs. 721 a 723 e alguns acórdãos dos tribunais superiores – Ac.R.C. 7/11/89 Col.V/51 (Manuel Pereira da Silva), Ac.R.C. 2/7/91 Col.IV/94 (Virgílio de Oliveira) ou Ac.R.P. 9/3/00 Col.II/190 (João Bernardo), para além de Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª ed., pgs. 401ss.

Portanto, nada tendo feito o Réu valer, na presente acção, sobre acessão industrial imobiliária, nenhuma consequência poderia advir para os autos do referido instituto.

Por outro lado, o não exercício do direito potestativo não poderia, em princípio, deixar a Autora, dona do terreno onde foram feitas as obras, desprovida de qualquer protecção jurídica.


III

A pergunta a efectuar é – o não exercício do direito de acessão industrial imobiliária autoriza (ou não autoriza) o proprietário do solo, em reconstituição natural, a agir em defesa do prédio?

Uma solução possível resultaria de, até ao exercício do direito, as propriedades se manterem distintas e cada um dos sujeitos poder exercer o seu direito ou cedê-lo a outrem.

Como refere Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª ed., pg. 403, “a situação não é anómala para a ordem jurídica portuguesa, nem para a cessão imobiliária, que de várias maneiras se afasta da regra rígida de que tudo o que está dentro dos limites verticais do prédio deve pertencer ao mesmo proprietário”.

“Como consequência da natureza potestativa da acessão e enquanto o respetivo direito não for exercido, cada uma das coisas (obra e terreno) mantém certa individualidade, designadamente para efeitos jurídicos, e os respetivos sujeitos conservam os seus direitos e podem exercê-los, de harmonia com as circunstâncias” – Ac.S.T.J. 10/1/2019, pº 4982/15.0T8GMR.G1.S1 (Maria Rosa Oliveira Tching).

Significa isto que a boa fé do autor da união sempre implicaria a existência paralela dos bens – o solo, por um lado, o edifício, por outro, isto enquanto durasse a situação de não exercício do direito potestativo de acessão.

Esta situação é, todavia, portadora de acrescidas dificuldades de harmonização dos direitos recíprocos, agravados pela constatação a que procede o acórdão recorrido – a Autora continua a pagar IMI sobre um terreno de que não pode desfrutar; o Réu não consegue proceder ao registo do seu direito sobre o edificado, posto que adquiriu um direito de crédito relativo ao valor de determinadas benfeitorias, direito esse não sujeito a registo; o Tribunal Administrativo ordenou a reinscrição matricial do prédio na titularidade da Autora.

O Réu (arrematante em execução) vive no 1º andar do prédio, recebe a renda relativa ao arrendamento do ... e não paga IMI.

Adquiriu o edificado em 2006 e, a partir de 2007, passou a receber a renda relativa ao rés-do-chão, que antes, e desde Abril de 2002, era pago à Autora.

Resultaria necessária a comprovação prática da convivência dos dois imóveis, fisicamente coincidentes sobre a idêntica realidade do solo do prédio da Autora.

E é necessário conjugar tal doutrina com outros aspectos da situação da coisa, tal como proposto por Carvalho Fernandes, Aquisição do Direito de Propriedade na Acessão Industrial Imobiliária, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, pg. 662:

“Está em causa a circunstância de a incorporação que constitui o elemento material da acessão pressupor a detenção do terreno e das coisas, sementes ou plantas nele incorporadas, mesmo quando aquele e estas sejam alheios. Realidade que se consolida, quanto ao implante, por efeito da incorporação, o que conduz a identificar na titularidade do seu autor poderes de facto sobre o terreno e o implante, logo, uma situação equivalente à de posse, de boa ou má fé, consoante a qualificação que no caso caiba à actuação do autor da incorporação.”

A questão pode e deve ser vista do ponto de vista do direito exercido seja sobre as obras, por um lado, seja sobre o solo onde foram implantadas, por outro lado.

Como diz Oliveira Ascensão, Acessão cit., o dono do solo tem sempre o poder de actuar por meio de acção possessória ou de reivindicação, pedindo a entrega da coisa e a reconstituição natural da situação (no mesmo sentido, Júlio Gomes, op. cit., pgs. 124 e 133).

E prossegue o primeiro Autor: “Com efeito, a implantação, mesmo se realizada de boa fé, representa um acto ilícito, salvo se a incorporação foi autorizada pelo dono do terreno. (…) Cada beneficiário só actua se quiser, e aqui está a maleabilidade da situação; mas vários meios asseguram que, no seu próprio interesse, ele tenda a atingir em breve trecho a unificação das propriedades, limitando o sacrifício do sujeito preterido e terminando com a indefinição a que a lei quer efectivamente pôr cobro”.

A questão era muito visível no Código de Seabra, em que apenas o possuidor de boa-fé com posse titulada poderia invocar a acessão: numa acção de reivindicação o possuidor de boa-fé podia limitar-se a pedir a indemnização das benfeitorias, mas poderia também invocar as mesmas obras para adquirir a propriedade da coisa benfeitorizada (Júlio Gomes, op. cit., pg. 104).


IV

A matéria pode ser encarada assim, finalmente, pelo prisma possessório, como nos convidam os aludidos Autores, ou até pelo simples prisma da titularidade do direito, sobre o qual o fenómeno empírico da posse gera uma presunção – artº 1268º CCiv.

Nestes termos, e pressupondo a matéria de facto provada, seria possível figurar que o possuidor aqui Réu gozasse da presunção da titularidade do direito – artº 1268º nº1 1ª parte CCiv – mas não poderia fazer valer tais direitos contra a Autora, se acaso esta justificasse a titularidade de um direito de propriedade, nos termos das normas dos artºs 1305º, 1311º e 1313º CCiv.

Não se demonstraram actos de posse, praticados pelo Réu ou pelo seu antecessor (que construiu a casa) anteriores ao registo do prédio, de que a Autora beneficia – averbada na descrição predial em 4/12/2001.

Não está assim em causa a usucapião do edifício implantado no prédio da Autora.

Valem agora aqui, de pleno, as considerações do acórdão recorrido:

“Como vimos, a procedência da acção de reivindicação está dependente da alegação e da prova dos factos constitutivos do direito de propriedade sobre o prédio reclamado (art.ºs. 1311.º e 342.º, n.º 1, do Cod. Civil).”

“Ora, estando registada, a favor da A. a aquisição do direito de propriedade da “casa” em questão, de harmonia com a regra do art.º 7.º do Cod. do Registo Predial, beneficia o registante da presunção de que o direito de propriedade existe na sua titularidade, nos exactos termos em que o registo o define.”

“O registo definitivo constitui presunção juris tantum de que o direito existe e pertence à pessoa em cujo nome está inscrito.”

“É esta uma presunção legal que, nos termos do n.º 2 do art.º 350.º Cod. Civil, pode ser ilidida por prova em contrário.”

“Quem beneficia da presunção derivada do registo não necessita de provar o direito registado. Já quem o impugna tem de fazer prova de que ele não existe, ou não existe tal como o registo o define.”

“No caso vertente, não se mostra ilidida, pelo que impera a presunção dele decorrente de que tal direito existe e existe na titularidade da pessoa em nome de quem está inscrito.”

“Destarte, caberá condenar o R. a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o prédio a que os presentes autos se reportam.”

Nos autos, sabe-se que o Réu, desde que adquiriu o edificado na venda judicial, habita o 1º andar e passou a receber, desde 2007, a renda relativa ao ... do prédio, podendo considerar-se o domínio empírico sobre a coisa, na pessoa do Réu.

Por isso, ainda que se considerasse que existe o conflito de presunções, entre o domínio empírico do Réu (que presume a posse – artº 1252º nº 2 CCiv) e o registo de que beneficia a Autora, a presunção de registo prevaleceria, porque anterior ao domínio do Réu – artº 1268º nº 1 CCiv.

Esta, pois, a realidade emergente da discussão da causa e que permite confirmar o sentido decisório do acórdão recorrido, com o reconhecimento da propriedade sobre a casa reivindicada nos autos pela Autora, porque descrita no registo predial a favor da mesma Autora.


Concluindo:

I – Na acessão industrial imobiliária, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas inovar e alterar a substância do objecto da posse, construir uma coisa nova, atribuindo a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa; nomeadamente a junção de um edifício ao solo ou à porção de um determinado solo vem a constituir, no seu conjunto, uma coisa nova, mediante alteração da substância daquela em que a obra é feita.

II – Penhorado determinado edifício, construído em solo alheio, como uma benfeitoria, em execução movida contra aquele que construiu o edificado, a Autora, proprietária do solo, é alheia a quaisquer ocorrências na execução, que não podem ser feitas valer contra si – não apenas não era a executada, como também foi citada nos termos do actual artº 773º CPCiv, pela consideração da norma relativa à penhora de direitos ou de expectativas de aquisição do bem pelo executado – actual artº 778º CPCiv.

III – Na acessão imobiliária, a aquisição do direito de propriedade sobre o terreno pelo autor da obra não se dá pelo simples fenómeno da união material de coisas distintas, tornando-se necessário, por parte do autor da obra incorporada, uma declaração de vontade sem a qual não existe aquisição do direito de propriedade – artº 1317º al. d) CCiv.

IV – Se até ao exercício do direito, as propriedades se mantêm distintas e cada um dos sujeitos puder exercer o seu direito ou cedê-lo a outrem, não pode descurar-se a situação possessória de facto verificada, com relação a ambas as coisas.

V – Se o possuidor pode gozar da presunção da titularidade do direito – artº 1268º nº 1 1ª parte CCiv, já não pode fazer valer tal direito contra a Autora, que goza da presunção juristantum do artº 7º CRegPred, fundada em registo anterior ao início do domínio empírico do Réu.


Decisão:

Acorda-se em negar a revista.

Custas pelo Recorrente.


S.T.J., 13/5/2021


Vieira e Cunha (relator)                                              

Abrantes Geraldes                                              

Tomé Gomes

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Exmº Senhor Conselheiro António Abrantes Geraldes e do Exmº Senhor Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, que compõem este coletivo.

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· Rec. 2399/18.3T8STR.E1.S1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Exmº Conselheiro Abrantes Geraldes e Exmº Conselheiro Tomé Gomes.