Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2057/11.0TVLSB.L1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
NULIDADE
COMPROPRIEDADE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
AQUISIÇÃO DERIVADA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
MATÉRIA DE DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
OBJECTO DO PROCESSO
OBJETO DO PROCESSO
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AUDIÇÃO PRÉVIA DAS PARTES
Data do Acordão: 03/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL / FALTA DE REQUISITOS LEGAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA.
Doutrina:
-Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume. 1.º, 3.ª Edição, Coimbra, p. 9 e 19;
-Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, p. 33;
-Paulo Ramos de Faria e Isabel Almeida, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, Almedina, p. 27 e 28;
-Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra, p. 17;
-Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 64 a 66;
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1416.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 608.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-06-2009, PROCESSO N.º 09B0523, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-11-2011;
- DE 17-06-2014, PROCESSO N.º 233/2000.C2.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Emerge do art. 608.º, n.º 2, do CPC que a actividade judicativa, com excepção das questões que o julgador deva conhecer oficiosamente, mostra-se confinada ao objecto do litígio, sendo o objecto do processo integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo autor, abarcando também e eventualmente a matéria de excepção aduzida pelo réu em sua defesa.

II - Ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino iura novit curia – actualmente consagrado no art. 5.º, n.º 3, do CPC, o tribunal pode apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.

III - As decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes, ou seja, aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado.

IV - A simples aplicação de uma norma que não foi invocada não justificará, por si só, a audição prévia das partes, só devendo ter lugar quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes preconizaram ser aplicável.

V - A sujeição do prédio ao regime da compropriedade determinada pelo n.º 1 do art. 1416.º do CC pressupõe a prévia existência de um título constitutivo da propriedade horizontal que, pelos motivos aí expostos, padeça da nulidade mista ali cominada.

VI - Não tendo o acórdão recorrido reconhecido a aquisição de parte de um prédio urbano por usucapião, por falta de alegação e demonstração dos pertinentes requisitos materiais e administrativos, não podia convocar o art. 1416.º, n.º 1, do CC, para concluir pela existência de uma situação de compropriedade ao abrigo desse preceito, quando não havia sido invocada a existência de qualquer título constitutivo.

VII - Na acção de reivindicação incumbe ao autor o ónus probatório dos respectivos elementos constitutivos, o que, em princípio, demanda a invocação de um modo de aquisição originário da propriedade; porém, nos casos de aquisição derivada, é tida por suficiente a invocação da aquisição do domínio e a junção de certidão do registo predial a su favor, atento o que deriva da respectiva presunção registal.

VIII - No entanto, perante a consideração de que tal presunção não abrange a descrição física dos espaços reivindicados, impende sobre os reivindicantes o ónus de demonstrarem que os espaços reivindicados se encontram integrados no imóvel registado a seu favor.

Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO.



Acordam na 7ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça.



I. AA e BB intentaram acção declarativa de condenação, com processo ordinário contra PATRIARCADO DE LISBOA, Entidade Canónica, e IGREJA CC, peticionando:

a) Se declare que os Autores são donos e legítimos proprietários dos locais ocupados;

b) Se condene a 2.ª Ré a restituir aos Autores os locais em causa, livres e devolutos de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

c) Se condenem os Réus a pagarem aos Autores uma indemnização correspondente ao valor pela ocupação do imóvel, nunca inferior a € 33.000,00;

d) Se condenem os Réus no pagamento das quantias vincendas até à efectiva restituição.

Alegaram, em síntese, que em 16/12/2009 adquiriram a propriedade do prédio sito na Rua …, …, …-A e …-B, em Lisboa, destinado a habitação, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 1…8, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º 1…6, freguesia da Sé; que o rés-do-chão, com a área de 35 m2, e a sobreloja, com a área de 27 m2, encontram-se ocupados pela 2.ª Ré, sem título nem autorização; que as zonas do imóvel acima referidas eram anteriormente ocupadas pelo Patriarcado de Lisboa, 1.º Réu, que, em Agosto de 2001, cedeu à 2.ª Ré, através de contrato de comodato, Igreja … e, além disso, sem qualquer título nem direito, o local objecto da presente acção; que se fossem arrendadas, as partes do imóvel ocupado pelas Rés renderiam uma quantia mensal aproximada de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

Os RR. contestaram, alegando, em suma, que a parte do prédio reclamada pelos Autores faz e sempre fez parte do prédio do 1.º Réu, como os Autores bem sabem; que essa parte de imóvel é propriedade do 1.º Réu, desde tempos imemoriais, e sempre foi usado, tratado e fruído pelo 1.º Réu ou por terceiros, com autorização deste, como é o caso agora da 2.ª Ré; que o 1º réu exerce a posse pacífica, ininterrupta e exclusiva, à vista de todos, sem qualquer oposição, sobre o espaço de loja e sobreloja, com acesso pelo n.º …-B da Rua …., há cerca de 100 anos.

Na contestação o 1º réu deduziu reconvenção e peticionou:

a) Seja declarado que o réu Patriarcado é o proprietário do espaço reivindicado pelos AA., por o ter adquirido por usucapião;

b) A entender-se que as divisões de cuja propriedade os AA. se arrogam estão integradas no prédio dos AA., deverá ser declarado que se constituiu a propriedade horizontal do prédio por usucapião, nos termos do art. 1417º /1 do C. Civil, pertencendo uma fracção correspondente ao espaço com acesso pelo nº …-B da Rua … ao R. Patriarcado e a outra fracção, correspondente ao restante prédio, aos AA.

Os Autores replicaram, pugnando pela improcedência da reconvenção e pedindo a condenação dos Réus como litigantes de má fé.

No despacho saneador, proferido dia 27/06/2012, não se admitiu o pedido reconvencional formulado sob a alínea b).

Foram elaborados os factos assentes e a base instrutória.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar “a acção e a reconvenção (pedido reconvencional formulado sob a al. a)) totalmente não provadas e improcedentes, absolvendo os Réus e os Autores dos respectivos pedidos”.

Inconformados com o decidido vieram os AA. interpor recurso de apelação sendo certo que a Relação decidiu julgar o recurso principal improcedente (sic) confirmando a sentença recorrida; por outro lado julgou prejudicado o conhecimento do recurso subordinado.

De novo inconformado recorre o Autor de revista tendo no termo de tudo quanto alegou pedido:

A) Por se entender que se afigura legalmente inadmissível a possibilidade de o juiz proceder à subsunção jurídica da matéria de facto dada como provada, estribado numa solução de direito não alegada ou discutida pelas partes, sem que tenha sido concedido oportunidade para se pronunciarem sobre aquela, violando assim os Princípios do Contraditório, Cooperação e Igualdade das Partes, bem como os artigos 20.° n.° 4 da Constituição da República Portuguesa, 3.° n.° 3, 4.° e 7.° do Código de Processo Civil.

B) Deverá ainda ser declarada a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, por via da violação do disposto no na 2.ª parte da al. d) do n.° 1 do art.° 615.° do C.P.C.

C) Consequentemente, deverá o aludido douto Acórdão ser substituído por outro que declare procedente por provada a acção e declarando-se os recorrentes como donos e legítimos proprietários das áreas objecto do presente litígio, condenar-se as rés a restituir os locais em causa livres e devolutos de pessoas e bens.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,


Conclusões.

1) Esteve mal o Tribunal a quo ao decidir a questão nos termos em que o fez.

2) Acordou-se com motivação totalmente diversa, em julgar improcedente o recurso interposto pelos recorrentes e confirmar a sentença recorrida.

3) No que ao enquadramento jurídico dos factos diz respeito, o Acórdão recorrido constitui uma decisão surpresa, porquanto não foi dada oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a respectiva fundamentação (questão da aplicação do instituto da compropriedade) nos termos do artigo 3.° n.° 3 do C.P.C.

4) O facto de o Juiz não estar sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, conforme o preceituado no n.° 3 do artigo 5.° do C.P.C, não prejudica, nem afasta o disposto no 3.° n.° 3 do C.P.C

5) A decisão proferida, ancorada no instituto da compropriedade, assenta em causa de pedir distinta daquela exposta na petição inicial.

6) Sopesados os entendimentos plasmados no douto Acórdão deste Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, em 27/09/2011, no âmbito do processo n.º 2005/03.0TVLSB.L1.S1, ressalta uma contradição quanto à admissibilidade legal de uma decisão relativa a matéria de direito, proferida pelo Juiz, sem que tenha sido dada oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a mesma.

7) O entendimento sufragado no sentido da inadmissibilidade legal de decisões-surpresa deverá prevalecer relativamente ao entendimento preconizado pelo Tribunal a quo.

8) O Acórdão recorrido violou os Princípios do Contraditório, Cooperação e Igualdade das Partes, bem como os artigos 20.° n.° 4 da Constituição da República Portuguesa, 3.° n.° 3, 4.° e 7.° do Código de Processo Civil.

9) Quer pela jurisprudência quer pela doutrina, vem sendo repetidamente afirmado que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida à apreciação do tribunal de que se recorre.

10) O Tribunal a quo ao decidir que o 1.° Réu é comproprietário do imóvel inscrito em nome dos recorrentes, sem que tal tenha sido alegado pelas partes (mormente pelos autores), nem submetido ao julgamento da l.ª instância, conheceu de questão que não podia conhecer, pelo que padece de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do disposto na 2.ª parte da al. d) do n.° 1 do art.° 615.° do C.P.C.).

11) O seu excesso configura nulidade relacionada com a 2.ª parte do n.° 2 do art.° 608.° do C.P.C., que proíbe ao Juiz ocupar-se de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objecto do litígio.

12) Por conseguinte, o Tribunal a quo enveredou pela subsunção jurídica dos factos na figura da compropriedade concluindo que se deu como verificado o direito de compropriedade do 1.° Réu sobre o prédio em que se insere a parte ocupada.

13) Os factos julgados como provados colidem inconciliavelmente com a fundamentação e com a decisão.

14) Enquanto não for operada a divisão jurídica (prévia ou simultânea) a posse fundamento de usucapião tem de ser uma posse que recaia sobre a totalidade do bem, de onde não se exercendo o poder de facto sobre todo o imóvel não pode proceder a pretensão de aquisição.

15) Não sendo possível a aquisição daquela parte do imóvel ora ocupado, teremos de concluir que o 1.° réu não logrou demonstrar ter adquirido a área objecto do litígio porque não foi reconhecido qualquer modo de aquisição originária do mesmo.

16) Para tal teria de ser reconhecida a aquisição da compropriedade do prédio por usucapião.

17) Pedido esse que nem sequer foi formulado nos presentes autos, nem provados factos que possam amparar a aquisição do direito de propriedade, de modo a sustentar o instituto da compropriedade.

18) A decisão de mérito assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa merece censura pelo raciocínio adoptado em violação da lei substantiva, colocando em causa toda a segurança e certeza do direito.

19) Pelo exposto, para além das invocadas nulidades do acórdão recorrido, o Tribunal a quo procedeu a uma incorrecta aplicação do direito à matéria de facto dada como provada, tenho sido violado o disposto 1305.°, 1311.°, 1316.°, 1406.° e 1416.°, todos do Código Civil.

20) Face ao exposto, requer-se a revogação da decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que declare procedente por provada a acção e declarando-se os recorrentes como donos e legítimos proprietários das áreas objecto do presente litígio, condenar-se as rés a restituir os locais em causa livres e devolutos de pessoas e bens.


Contra-alegaram os RR. pugnando pela negação da revista.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


*


2. FUNDAMENTOS.


O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,


2.1. Factos.


2.1.1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º 1…6/19…1, freguesia …, o prédio urbano sito na Rua …, n.ºs …, …-A e …-B, em Lisboa, composto por loja, sobreloja, 2 andares e águas furtadas, e correspondente à matriz n.º 138. (A)

2.1.2. Por apresentação 6, de 1999/10/20, foi registada a favor de Imobiliária DD, Unipessoal, Lda. a aquisição por compra do prédio urbano acima descrito. (B)

2.1.3. Por apresentação 1…2, de 2009/12/16, foi registada a aquisição a favor dos Autores do mesmo prédio, por compra à Imobiliária DD, Lda. (C)

2.1.4. A descrição constante da ficha n.º 1…6/Sé provém da descrição n.º 9…9 do Livro n.º 35 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa. (E)

2.1.5. A descrição predial n.º 9…9 era do seguinte teor: “Prédio sito na Rua … n.ºs … e … modernos, Freguesia da …. Compõe-se de loja, sobreloja – loja e água furtada”. (F)

2.1.6. Pelo averbamento n.º 1 à descrição n.º 9399 – 13 de Novembro de 1915 – foi averbado que “o prédio descrito sob o n.º 9…9 compõe-se mais de primeiro e segundo andares”. (G)

2.1.7. Pelo averbamento n.º 2 – 6 de Março de 1972 – à descrição n.º 9…9 consignou-se que “o prédio supra n.º 9…9 tem, actualmente, os números … -…-A e …-B”. (H)

2.1.8. O teor do artigo matricial urbano 1…8.º, referente ao prédio sito na Rua …, n.ºs …, …-A e …-B, é o seguinte:

 “Tipo de Prédio: Prédio em Prop. Total sem Andares nem Div. Susc. de Utiliz. Independente Descrição: Prédio composto de S/loja c/ 2 vãos e 4 div.; Loja n.º 18 – Carvoaria c/ 3 vãos; 1.º andar c/ 8 div.; 2.º andar c/ 8 div.; Águas - Furtadas c/ 7 div. Prédio inscrito no ano de 1937.”. (D)

2.1.9. A antiga caderneta matricial referente ao artigo 138.º descreve o prédio da seguinte forma:

 1 “Prédio composto de loja, s/loja, 2 andares e água furtada, com os números de polícia …-…A-…B.

 2 vãos por pavimento na s/loja

 3 “ “ “ loja

 3 “ “ “ no 1.º andar

 3 “ “ “ no 2.º “

 1 “ na água furtada

 Tem jardim pertencente ao 1.º andar, dando este para as escadinhas de …. Construção modesta.

Loja n.º 18 – Carvoaria

S/loja – habitação 4 divisões

1.º andar “ 8 “

2.º “ “ 8 “

água furtada “ 7 “. (I)

2.1.10. O prédio dos Autores é contíguo à Ermida …, propriedade do Réu Patriarcado de Lisboa, que data do Século XVIII. (L)

2.1.11. E foi posteriormente construído. (M)

2.1.12. A porta n.º …-B da fachada do prédio descrito em A) dá acesso a uma parte térrea com a área de 35 m2, e a uma sobreloja, com a área de 27 m2, que estão ocupadas pela 2.ª Ré, com autorização do 1.º Réu. (1.º)

2.1.13. A zona do imóvel, acima referida, era anteriormente ocupada pelo Réu Patriarcado de Lisboa que, pelo ano 2004, a cedeu temporária e gratuitamente à 2ª Ré. (2.º)

2.1.14. A Ermida de … sempre teve duas entradas ao nível do piso térreo pela sua fachada lateral, do lado do lote onde foi construído o edifício que agora pertence aos AA. (4.º)

2.1.15. Pelo menos desde 1956 que a Ermida de … tem duas entradas ao nível do piso superior – sobreloja – pela sua fachada lateral, do lado do lote onde foi construído o edifício que agora pertence aos AA. (5.º)

2.1.16. A entrada para o coro da Igreja e a entrada para o altar-mor ao nível do piso imediatamente superior ao térreo (sobreloja) fazem-se exclusivamente pelo exterior do átrio central da ermida, nomeadamente, no que respeita ao lado da ermida que confina com o prédio dos Autores, pela porta n.º …-B da Rua …, afecta à igreja e utilizada pelos Réus. (6 .º)

2.1.17. A porta principal da igreja, virada para a Rua …, não tem fechadura acessível pelo exterior da via pública, sendo o único acesso ao interior feito pelo n.º …-B, da Rua …. (7.º)

2.1.18. A situação de facto referida nos precedentes artigos 4.º a 7.º existe há mais de cinquenta anos, sem qualquer oposição. (8.º)

2.1.19. Os primeiros pisos do edifício que hoje tem os n.ºs de porta …-B, … e …-A foi construído na década de 1860, aproveitando a parede lateral nascente da Ermida …, e construindo, ao nível térreo e da sobreloja (considerando a fachada da Rua …), uma área (composta de corredor e divisão) de uso exclusivo do edifício contíguo – a ermida –, assente em solo que antes fazia parte do terreno descoberto da ermida, com entrada pelo n.º …-B, e através da qual se acede às portas de entrada da fachada lateral nascente da ermida, existentes ao nível do piso térreo e da sobreloja. (9.º)

2.1.20. O espaço ao qual se acede pelo n.º …-B da Rua de … é composto, ao nível do rés-do-chão, pela porta da entrada correspondente, por um espaço vestibular de acesso a uma porta lateral da ermida, por um corredor onde estão as escadas de acesso à sobreloja, por uma divisão usada como sacristia onde se localiza outra porta lateral da ermida, e por uma casa de banho, tudo com cerca de 35m2. (10.º)

2.1.21. Na sobreloja, o espaço a que se acede pelas escadas que se encontram no n.º …-B é praticamente idêntico ao do rés-do-chão, com duas antecâmaras de acesso à ermida (ao coro e altar-mor) e um corredor entre ambas, com área total de cerca de 27,5 m2. (11.º)

2.1.22. Este espaço de entrada pelo n.º …-B, contíguo à Ermida …, sempre esteve integrado na ermida, constituindo o acesso lateral à mesma. (12.º)

2.1.23. A parede que separa a ermida do espaço que tem entrada pelo n.º 18-B é a parede exterior estrutural da própria ermida. (13.º)

2.1.24. O prédio da Rua de … …-B, … e …-A e foi construído aproveitando a parede exterior estrutural da própria ermida, sem construção de outra parede que a ela encoste. (14.º)

2.1.25. Ao nível do piso térreo e da sobreloja, a parede entre o espaço reivindicado, com entrada pelo n.º …-B e o restante prédio, com entradas pelos n.ºs … e …-A é uma parede única, com grossura de 70 cm; ao nível dos mesmos piso térreo e sobreloja, a parede entre o espaço reivindicado, com entrada pelo n.º …-B e a ermida é constituída apenas pela parede original da ermida; ao nível do 1.º andar (3.º piso), a parede entre a ermida e o prédio com entrada pelo n.ºs … e …-A é a parede original da ermida. (15.º)

2.1.26. O espaço reivindicado, com entrada pelo n.º 18-B, comunica directamente com a ermida através de duas portas ao nível do rés-do-chão e de outras duas ao nível da sobreloja – coro e altar-mor. (16.º)

2.1.27. O espaço ao qual se acede pelo n.º …-B não tem presentemente qualquer comunicação com o (resto do) prédio ao qual se acede pelos n.ºs … e …-A. (17.º)

2.1.28. Só ao nível do 1.º andar (piso imediatamente superior à sobreloja, ou seja, 3.º piso, se considerarmos o piso térreo como o 1.º e a sobreloja como o 2.º), do 2.º andar e das águas furtadas é que o espaço correspondente ao (e assente no) que tem entrada pelo n.º …-B faz parte das respectivas habitações, com entrada pelo n.º …. (18.º)

2.1.29. O espaço com entrada pelo n.º …-B, constituído por piso térreo e sobreloja, é usado pelo Réu Patriarcado de Lisboa desde a sua construção, há muito mais de 20 anos, como se dono fosse, como acesso e espaço de apoio à igreja. (19.º)

2.1.30. O espaço serve exclusivamente de passagem, acesso e apoio à igreja, sendo usado exclusivamente pelo pessoal do Patriarcado e ultimamente pela Igreja CC de Lisboa, em virtude de um protocolo com a Igreja Portuguesa celebrado em 2004. (20.º)

2.1.31. Os Autores enviaram ao primeiro Réu, que a recebeu, carta datada de 25-03-2010, como seguinte teor:

«Assunto: Igreja … Reverendíssimo Senhor Cónego, Tomamos a liberdade de nos dirigir a V. Ex.a na qualidade de novos proprietários do prédio urbano sito na Rua …, n.ºs …., ….A e …B. Quando tomámos posse do imóvel, verificámos que parte do mesmo se encontra ocupada pela Igreja ….

Trata-se de uma situação delicada para cuja resolução gostaríamos de poder contar com a V/ ajuda.

Gostaríamos, assim, de solicitar uma reunião para debater o assunto. Na expectativa do V/ contacto, somos Atentamente». (J)

2.1.32. A utilização do espaço com entrada pelo n.º …-B é feita pelo 1.º Réu, por si ou, nos últimos anos, através da 2.ª Ré, à vista de todos, sem qualquer oposição (excepto a dos Autores referida no facto 31), há muito mais de 20 anos; e já assim o era quando os Autores adquiriram o imóvel. (21.º)


Factos considerados não provados:


As partes do prédio reivindicadas, se fossem arrendadas, renderiam cerca de € 1.500,00 mensais. (3.º).


+


    

   2.2. O Direito.


   Nos termos do preceituado nos arts.º 608.º nº 2, 635.º nº 3 e 690.º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

 - Nulidade do acórdão recorrido por ter exorbitado o âmbito da pronúncia (conclusões 9 a 11.);

 - Violação do princípio do contraditório, do princípio da cooperação e do princípio da igualdade de armas (conclusões 3 a 8);

 - Erro na interpretação e aplicação do direito (conclusões 12 a 19);


+


   2.2.1. Nulidade do acórdão recorrido por ter exorbitado o âmbito da pronúncia (conclusões 9 a 11);


  Argúem os recorrentes a nulidade a que alude o artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, onde pode ler-se que “o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. Como já acima o dissemos, emerge do preceito em causa que a actividade judicativa com excepção das que o julgador deva conhecer oficiosamente mostra-se confinada ao objecto do litígio, sendo o objecto do processo integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo Autor, abarcando também e eventualmente a matéria de excepção aduzida pelo Réu em sua defesa.

    Revertendo ao caso concreto e bosquejando a questão temos que na petição inicial os recorrentes aduziram, em suma, que adquiriram a propriedade do prédio sito na Rua …, …, …, …-A e …-B em Lisboa, destinado a habitação, sendo que o rés-do-chão e a sobreloja desse imóvel se mostram ocupados pela recorrida Igreja CC por cedência do recorrido Patriarcado de Lisboa o qual por ou por terceiros sempre os usou e fruiu, exercendo sobre os mesmos posse pacífica, ininterrupta e exclusiva.

   Da conjugação entre o pedido reivindicatório formulado pelos recorrentes e a defesa aduzida pelos recorridos conclui-se que o objecto da causa cinge-se a definir se o rés-do-chão e a sobreloja em questão integram o prédio de que os primeiros são proprietários.

   Delineado o objecto da causa, importa atender ao segmento do acórdão impugnado objecto da censura dos recorrentes, onde poderá ler-se:

   “Em suma, apesar de se reconhecer que o 1º Réu tem a posse em nome próprio e em termos de propriedade de parte do edifício registado em nome dos autores, não se pode reconhecer a aquisição, por usucapião, da propriedade dessa parte.

      Assiste, pois, neste ponto razão aos Autores apelantes.

    Porém, prescreve o art.º 1416º, nº 1 do CC que “1. A falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do art.º 1418 ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.”

    Deste modo, embora não possa ser invocada a usucapião do direito de propriedade do 1º Réu sobre a parte do prédio por si possuída e ocupada pela 2ª ré (a que corresponde a entrada pelo n.º …B da Rua …), tendo em conta a falta de constituição da propriedade horizontal, importa que se dê por verificado o direito de compropriedade do 1º Réu sobre o prédio em que se insere a parte ocupada (embora a sujeição do prédio ao regime de compropriedade não possa ser decretada nos autos, desde logo por não ter sido formulado pedido nesse sentido) (…)

   Assim, embora não se possam declarar o 1º Réu e os Autores comproprietários do prédio em apreço, por não ter sido formulado pedido nesse sentido, importa reconhecer que se provaram os factos conducentes a tal.

    Deste modo, provando-se ser o 1º Réu comproprietário do imóvel, o mesmo tem direito à sua utilização (art. 1406º do C. Civil).

      Improcede, por isso, a apelação (recurso principal).

     

Vê-se assim que na sequência de se ter constatado a inviabilidade do reconhecimento da aquisição da propriedade plena os espaços em apreço por parte do recorrido “Patriarcado de Lisboa (o que se ficou devendo mormente à falta de demonstração dos pertinentes requisitos materiais e administrativos da constituição da propriedade horizontal, se declarou que aquele recorrido é comproprietário desses espaços (o que até aí seria processualmente inviável dada a inexistência de qualquer pedido nesse sentido) mas antes e apenas que se provaram factos cuja valoração é conducente à conclusão de que existe um obstáculo irremovível à procedência da acção.

Mais relevantemente, importa considerar que os factos sobre os quais repousa essa conclusão foram alegados pelos Réus na respectiva defesa. E, como se sabe, o julgador dispõe de ampla liberdade na qualificação jurídica dos factos oportunamente alegados pelas partes (n.º 3 do artigo 5.º Código de Processo Civil).

Daí que, integrando-se a matéria exceptiva aduzida pelos recorridos no objecto do litígio, é de concluir que a decisão recorrida, ao reconhecer que os pertinentes factos, agregados à coloração jurídica que lhes atribuiu, impediam a procedência da pretensão reivindicatória formulada pelos recorrentes, não excedeu os limites tangíveis desse objecto. Nessa esteira e como viemos de expor, carece de sentido a invocação da causa de pedir como limite dos poderes cognitivos do tribunal.

Haverá, por isso, que desatender-se a nulidade arguida.

Pelo exposto improcede a arguida nulidade.


+


     2.2.2. Violação do princípio do contraditório, do princípio da cooperação e do princípio da igualdade de armas (conclusões III. a VIII);


   Invocam também os recorrentes que a decisão proferida constitui uma decisão surpresa afronta o princípio do contraditório, o princípio da cooperação e o princípio da igualdade de armas.

     Vejamos.

   Como acima já expusemos, o julgador não se acha limitado pelas alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação de regras de direito.

   Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino Iura novit Curia, – actualmente consagrado no n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”). Ao abrigo deste princípio, o tribunal pode e deve apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões jurídicas distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.

   Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil – serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objecto da causa[1].

   É certo, todavia, que o princípio a que vimos fazendo referência deve ser concatenado com o princípio do contraditório e, em particular, com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.

   Do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro extrai-se que, neste enunciado, se consagra a proibição da prolação de decisões surpresa, também tidas como “decisões solitárias do juiz”[2]. Por outro lado tem sido considerado que as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes ou seja aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes. O campo privilegiado de valência desta proibição são as questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado[3] .

   Assim, a simples aplicação de uma norma que não foi invocada pelas partes não justificará, por si só, a audição prévia das partes, sendo que a mesma só deverá ter lugar quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes preconizaram ser aplicável – será, por exemplo, o caso de se ter como nulo um contrato com base no qual as partes apenas esgrimiam argumentos a respeito do seu cumprimento –, não podendo aquelas razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso[4].

    No caso vertente e como vimos, o aresto impugnado limitou-se a enquadrar juridicamente os factos aduzidos pelos recorridos em sua defesa, não tendo, desse modo, ancorado a decisão de improcedência do recurso em qualquer factualidade distinta daquela que as partes tinham a possibilidade de ter em conta.

    Recorde-se, por seu turno, que, na contestação que apresentaram, os recorrentes suscitavam já o enquadramento da resolução do litígio sobre o exercício do direito de propriedade relativamente aos espaços reivindicados no contexto da propriedade horizontal.

    Na apelação subordinada que interpuseram, os recorridos invocaram também a existência de compropriedade sobre os espaços reivindicados pelos recorrentes.

   Desse modo, o enquadramento do caso no regime jurídico da propriedade horizontal não pode ser tido como inopinadamente díspar daquele que as partes podiam sensatamente conjecturar. De resto, também a sentença apelada, pertinentemente, convocara o regime da propriedade horizontal para dirimir o caso dos autos, o que não mereceu qualquer censura dos então apelantes. E, sabendo-se que a sujeição ao regime da compropriedade é uma das consequências da falta de reunião dos requisitos legais da propriedade horizontal e não estando alegada e/ou demonstrada a verificação de todos esses requisitos, seria razoavelmente expectável para as partes (que se encontram assistidas por advogado) que se viesse a concluir pela aplicação da previsão do n.º 1 do artigo 1416.º do Código Civil como fundamento de denegação da pretendida restituição.

    Assim, não se pode reconhecer razão aos recorrentes ao sustentarem que se trata de uma decisão surpresa, não se descortinando assim qualquer violação ao princípio do contraditório.

    Sabe-se, por outro lado, que o princípio da igualdade (artigo 4.º do Código de Processo Civil) visa exclusivamente assegurar que ambas as partes dispõem das mesmas faculdades para fazerem valer os seus interesses e que estão sujeitas a ónus e cominações similares ou semelhantes. Ora, ponderando que os recorrentes tiveram a possibilidade de contraditar a pretensão formulada pelos recorridos na apelação subordinada (n.º 5 do artigo 638.º do Código de Processo Civil) e ali afirmarem as razões que agora aduzem na revista, não se descortina um entorse a tal princípio.

    De resto, não se vislumbra que a simples consideração daquele quadro jurídico se constitua, em si mesmo, como uma infracção ao falado princípio.

    

É também sabido que o “princípio da cooperação” (artigo 7.º do Código de Processo Civil) visa criar uma comunidade de trabalho interactiva entre as partes e o tribunal[5], com vista à justa e célere composição do litígio. Tal princípio desdobra-se no plano material (previsto no n.º 2 desse preceito) e no plano formal (n.º 4 do mesmo artigo).

Atentas as razões já expostas, é de concluir que não se impunha à Relação que procurasse obter quaisquer contributos das partes para a solução que veio a dar ao litígio. Por isso, não se vislumbra como a consideração daquele enquadramento jurídico representa uma violação deste princípio. E, em consequência do que acabamos de referir e sabendo-se que apenas as normas jurídicas e as interpretações que delas se façam podem ser tidas como inconstitucionais, não se descortina que o entendimento que preconizamos dos preceitos acima citados contenda com qualquer uma das dimensões em que se desdobra o direito a um processo equitativo.


+


     2.2.3. Erro na interpretação e aplicação do direito (conclusões XII a XIX);


   Por fim, entendem os recorrentes que o acórdão interpretou erroneamente o direito aplicável, porquanto não foram apurados factos que sustentem o instituto da compropriedade.

    Vejamos, atentando primeiramente nos factos provados.

Colhe-se, no respectivo elenco (pontos nsº 12 a 18, 20, 22, 23, 26, 27, 28 e 32), que a porta n.º …-B da fachada do prédio sito na Rua …, n.ºs …, …-A e …-B, em Lisboa dá acesso a uma parte térrea com a área de 35 m2, e a uma sobreloja, com a área de 27 m2. Nessa sobreloja – à qual se acede por umas escadas colocadas no piso térreo –, localizam-se duas entradas que, respectivamente, dão acesso à entrada para o coro da igreja e ao altar-mor da Ermida de …. No piso térreo, existem ainda duas portas que dão acesso à Ermida. Tal Igreja é contígua àqueloutro edifício, encontrando-se esses acessos na lateral nascente daquela e constituindo os mesmos as únicas formas de ingressar no interior da Ermida a partir do exterior, já que a sua porta principal não dispõe de fechadura acessível a partir da via pública.

   O espaço de entrada pelo n.º …-B sempre esteve integrado na ermida, sendo desta separado pela parede exterior estrutural da própria ermida e não tendo qualquer comunicação com o edifício ao qual se acede pelos n.ºs … e …-A.

Tal utilização perdura há mais de 20 anos, sem qualquer oposição, actuando o recorrido “Patriarcado de Lisboa” como se fosse dono daqueles espaços, tendo-os actualmente cedido à recorrida “Igreja CC”.

   Da valoração deste conjunto de factos, perpassa a ideia de que, como salientaram as instâncias, o “Patriarcado de Lisboa”, com o animus de proprietário, tem vindo exercer a posse pacífica, pública e contínua sobre esses espaços, o que seria, em princípio, hábil a propiciar o reconhecimento da aquisição dos mesmos por usucapião, como fora peticionado em sede reconvencional (cfr. artigo 1258.º, n.º 1 do artigo 1261.º, artigo 1262.º, artigo 1287.º e artigo 1296.º, todos do Código Civil).

     Atentemos agora no que se decidiu no aresto impugnado.

Aí, observou-se que o edifício não foi parcelado em fracções autónomas – o que obstaria ao reconhecimento da aquisição originária desses espaços por usucapião – nem é viável o reconhecimento da sua constituição em propriedade horizontal por usucapião, por falta de alegação e demonstração de parte dos pertinentes requisitos materiais e administrativos.

     E, nesse seguimento, entendeu-se que a situação seria enquadrável na previsão do artigo 1416.º do Código Civil.

Façamos aqui um pequeno parêntesis para notar que a convocação do regime da propriedade horizontal (artigos 1414.º do Código Civil) se revela plenamente pertinente para resolver o caso dos autos, já que os espaços reivindicados se situam por debaixo do mesmo edifício que integra o imóvel pelo qual se acede pelos n.ºs … e …-A da Rua … e, apesar de serem dele independentes, partilham com ele a parede lateral nascente da Ermida e uma outra parede com a espessura de 70cm, sendo que, ao nível do 2.º piso, a área das habitações assenta no espaço que tem entrada pelo n.º 18-B, fazendo delas parte (cfr. pontos ns. 25 e 28 do elenco factual). Verifica-se, pois, que as fracções em questão não dispõem de autonomia estrutural e que existe utilização de cada uma pressupõe o uso de coisas necessariamente afectas à outra.

   Fechado este parêntesis e relembrado o que de mais importante resulta da factualidade provada e do raciocínio empreendido na decisão impugnada, cabe agora determinar se o mesmo é compaginável com as normas jurídicas aplicáveis.

A sujeição do prédio ao regime da compropriedade determinada pelo n.º 1 do artigo 1416.º do Código Civil pressupõe a prévia existência de um título constitutivo que, pelos motivos aí expostos, padeça da nulidade mista ali cominada. É o que se depreende da remissão para a previsão do artigo 1418.º do Código Civil, na qual se alude ao conteúdo do título executivo, sendo que a conversão legal ali enunciada é uma das especialidades (face ao que, em regra geral, resultaria da previsão do artigo 289.º do Código Civil) que enforma esse regime.

    Ora, no caso em apreço, jamais foi alegada a existência de qualquer título constitutivo. Daí que assista razão aos recorrentes ao imputarem ao acórdão recorrido a violação do preceituado no n.º 1 do artigo 1416.º do Código Civil. Também as descrições prediais (n.º 1 do artigo 79.º do Código de Registo Predial) não fazem prova plena relativamente à descrição física do prédio e nem sequer estão abrangidas pela presunção a que alude o artigo 7.º do mesmo diploma, atenta a sua consabida falta de rigor e de fidedignidade, já que a área e outros elementos dependem unicamente de mera declaração dos interessados. Em suma, tais elementos documentais não têm, pois, a virtualidade de definir os concretos conteúdos e abrangência de um direito de propriedade.

    Por seu turno e valorando os factos acima destacados, temos que os compartimentos reivindicados acham-se funcionalmente afectos ao acesso ao interior da Ermida … a partir do seu exterior, estando nela integrados. Terá sido mesmo essa a razão pela qual os mesmos, em meados do séc. XIX, foram edificados em solo que, note-se, pertencia à Ermida (cfr. ponto n.º 19 do elenco factual).

   É também de salientar a inexistência de qualquer comunicação entre esses compartimentos e o prédio com acesso pelos n.os … e …-A, bem como a circunstância de este ter sido posteriormente edificado sobre aqueles.

    Resulta evidenciado à saciedade que o prédio adquirido pelos recorrentes (e do qual se devem considerar proprietários, por via da aludida presunção) não integra os mencionados compartimentos.

    Na acção de reivindicação incumbe ao Autor o ónus probatório dos respectivos elementos constitutivos, o que, em princípio, demanda a invocação de um modo de aquisição originária da propriedade. Porém, nos casos de aquisição derivada, é tida por suficiente a invocação da aquisição do domínio e a junção de certidão do registo predial a seu favor, atento o que deriva da mencionada presunção registal.

No entanto, perante a consideração de que a mesma presunção não abrange a descrição física dos espaços reivindicados, impendia sobre os reivindicantes o ónus de demonstrarem que os ditos espaços estavam integrados no imóvel com acesso pelos ns.º … e …-A da Rua … . Como não o fizeram, tal determina necessariamente a improcedência da acção.

    Assim, crê-se ser de concluir pela subsistência do acórdão recorrido, embora por razões assaz diversas daquelas que nele foram enunciadas.

    Haverá assim que manter o acórdão recorrido, mau grado com fundamentação diversa da enunciada, o que dita a negação da revista.



+


    3. DECISÃO.


 Pelo exposto acorda-se em negar a revista.

 Custas pela Recorrente.


Lisboa, 15 de Março de 2018


Távora Victor (Relator)

António Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira

______

-Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Coimbra, p. 19;

[2] Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 2011 citado pelos recorrentes.

[3] Neste sentido, v. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, 3.ª Edição, Coimbra, pág. 19

[3] Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 2011 citado pelos recorrentes.

Neste sentido, v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 2009, proferido no processo n.º 09B0523 e que acha acessível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2014 proferido no processo n.º 233/2000.C2.S1 e ali igualmente acessível.

[3] Assim Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra, pág. 17.

[3] Assim Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 9 e Paulo Ramos de Faria e Isabel Almeida, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, págs. 27 e 28.

[4] Neste sentido, v. Lebre de Freitas e Isabel de Almeida, loc. cit. e Paulo Ramos de Faria e Ana Lourenço de Almeida, ob. cit., pág. 28; ainda no mesmo sentido, escreve Lopes do Rego – Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 33 – “a audição excepcional e complementar das partes (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo (…)”

[5] Assim, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, págs. 64 a 66.