Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1454/09.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: DIREITO AO BOM NOME
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
FIGURA PÚBLICA
INTERESSE PÚBLICO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
DEVER DE RESERVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS DA PERSONALIDADE - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / LIBERDADE DE EXPRESSÃO / DIREITO DE INFORMAÇÃO / LIBERDADE DE IMPRENSA.
DIREITO COMUNITÁRIO - DIREITOS FUNDAMENTAIS.
DIREITO INTERNACIONAL - DIREITOS HUMANOS.
Doutrina:
- Anabela Gradim, in «Manual de Jornalismo – Livro de Estilo Urbi et Orbi», 74.
- António Henriques Gaspar, «A Influência da D.E.D.H. no Diálogo Interjurisdicional, A Perspectiva Nacional ou o Outro Lado do Espelho», intervenção no Colóquio por ocasião da Comemoração do 30.º Aniversário da vigência da C.E.D.H. em Portugal – S.T.J., 10/11/08, publicado na Revista Julgar, n.º 07, 39, 42, 44, 50.
- Francisco Teixeira da Mota, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão, Os Casos Portugueses, 21, 89.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, vol. I, 4.ª ed., 392, 393, 466, 572,
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, 1225 e 1237.
- Iolanda A.S. Rodrigues de Brito, Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, 46 e 47.
- Jónatas Machado, «Liberdade de Expressão – Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social», B.F.D.U.C., Coimbra, 425, 426, 566, 567, 750 e 768; «Liberdade de expressão, Interesse Público e Figuras Públicas e Equiparadas», B.F.D.U.C., vol. LXXXV, 2009, 74, 77, 91.
- Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra, 274.
- Rui Moura Ramos, «A Convenção Europeia dos Direitos do Homem – Sua posição face ao ordenamento jurídico português» e «Aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – Alguns Problemas», in Documentação e Direito Comparado – B.M.J., 1980 e 1983, respectivamente.
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Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 16/2/2006, da autoria de Esteves Remédio.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, N.º1, 79.º, N.º 3, 335.º, N.ºS 1 E 2, 484.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 58.º, 59.º, 277.º, N.ºS 1 E 2, 278.º, 279.º, 287.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 180.º E SS..
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 16.º, N.º 2, 18.º, N.º 2, 26.º, N.º1, 32.º, N.º 1, 37.º.
D.L. N.º 196/94, DE 21-7, APROVOU O REGULAMENTO DISCIPLINAR DA POLÍCIA JUDICIÁRIA: - ARTIGO 5.º, N.º 2, AL. E).
D.L. N.º 275-A/2000, DE 9-1, APROVOU A NOVA LEI ORGÂNICA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA: - ARTIGO 12.º.
ESTATUTO DA APOSENTAÇÃO, APROVADO PELO D.L. N.º498/72, DE 9-12: - ARTIGO 74.º, N.º 1.
Legislação Comunitária:
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PARECER DE JUÍZES NACIONAIS REUNIDOS EM INSTÂNCIA DE REFLEXÃO E CONSULTA (CFR. «AVIS N.º.9, 2006, DO CONSEIL CONSULTATIF DES JUGES EUROPÉENS»).
RECOMENDAÇÃO 1589 (2003), EM 28/1/2003, ASSEMBLEIA PARLAMENTAR DO CONSELHO DA EUROPA (CE).
RECOMENDAÇÃO R (2000), DE 19/1/2000, DO COMITÉ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS (CEDH): - ARTIGOS 1.º, 6.º, N.º 2, 8.º, 10.º, 19.º.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH): - ARTIGOS 11.º, N.º 1, 12.º, 19.º, 29.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26/4/1994, DE 14/2/2002, DE 7/3/2002 E DE 8/3/2007, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 7/3/2007 (CFR., AINDA, OS ACÓRDÃOS DO S.T.J., DE 7/2/2008, 10/7/2008, 30/6/2011, 28/6/2012, 8/5/2013, 21/10/2014 E 19/4/2016).
-DE 30/6/2011 E DE 19/4/2016, IN WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 634/1993, DE 4/11/1993, EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
-N.º 157/2001, IN D.R., SÉRIE I, DE 10/5/2001.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH):

-CASOS PETRINA C. ROMÉNIA (PROC. N.º 78060/01), ABEBERRY C. FRANÇA (PROC. N.º 58729/00) E LEEMPOEL § S.A. ED CINE REVUE C. BÉLGICA (PROC. N.º 64722/01), E, AINDA, MAIS RECENTEMENTE, OS CASOS MEDIPRESS – SOCIEDADE JORNALÍSTICA, LD.ª C. PORTUGAL (PROC. N.º 55442/12) E TAVARES DE ALMEIDA FERNANDES E ALMEIDA FERNANDES C. PORTUGAL (PROC. N.º 31566/13), CUJAS DECISÕES DATAM, RESPECTIVAMENTE, DE 30/8/2016 E DE 17/1/2017.
-CASOS LOPES GOMES DA SILVA C. PORTUGAL (2000), URBINO RODRIGUES C. PORTUGAL (2005), ROSEIRO BENTO C. PORTUGAL (2005), ALMEIDA AZEVEDO C. PORTUGAL (2007), COLAÇO MESTRE C. PORTUGAL (2007), LEONEL AZEVEDO C. PORTUGAL (2008), MEDIPRESS – SOCIEDADE JORNALÍSTICA, LD.ª C. PORTUGAL (2016) E TAVARES DE ALMEIDA FERNANDES E ALMEIDA FERNANDES C. PORTUGAL (2017).
-CASO ALLEN C. REINO UNIDO, DO TEDH (12/07/2013) – PROC. Nº 25424/099.
-ACÓRDÃOS Y. V. NORWAY (PROC. N.º 56568/00), DE 11/5/2003, E DIACENDO C. ITÁLIA (PROC. N.º 124/04), DE 07/05/2012.
-ACÓRDÃOS DEL LATTE C. HOLANDA (PROC. N.º44760/98), DE 9/11/2004, E CHEENA C. BÉLGICA (Nº60056/08), DE 9/5/2016.
-ACÓRDÃOS SAYGILI E OUTROS C. TURQUIA, DE 8/1/2008, E JULY E SARL LIBERATION C. FRANÇA, DE 14/2/2008.
Sumário :

I - A liberdade de expressão e a honra conformam dois direitos fundamentais, que, dada a sua relevância, mereceram a consagração constitucional.

II – Trata-se de direitos pertencentes à categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais, pelo que lhes é aplicável o seu regime específico, designadamente o previsto no nº2, do art.18º, da CRP.

III - O citado nº2 deu, assim, expressa guarida constitucional ao princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso.

IV - À luz da Constituição, a liberdade de expressão e a honra têm o mesmo valor jurídico, inviabilizando-se qualquer princípio de hierarquia abstracta entre si.

V - Importa, assim, recorrer ao princípio da concordância prática ou da harmonização.

VI - Todavia, revelando-se impossível alcançar uma solução de harmonização, para se obter uma solução justa para a colisão de direitos haverá que proceder a uma ponderação de bens, seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso.

VII - Razão pela qual a resolução do conflito não poderá deixar de assumir uma natureza concreta, esgotando-se em cada caso que resolve.

VIII - A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.

IX - O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.

X - Perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos.

XI - Em sede de ponderação dos interesses em causa e seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso, é de concluir ser a liberdade de expressão que, no caso concreto, carece de maior protecção.

XII - Sendo que, no caso, atenta a matéria de facto apurada, o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra dos recorrentes.

XIII - O princípio da presunção de inocência e o dever de reserva não relevam para a decisão da questão que cumpre apreciar.

Decisão Texto Integral:

Revista nº1454/09.5TVLSB.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.
1. AA, BB, CC, DD e EE, os 3 últimos menores, representados por seus pais, 1º e 2º AA., vieram propor, contra FF, GG, SA, HH, SA, e II, SA, acções seguindo forma ordinária, posteriormente apensadas e distribuídas à 1ª Vara Cível de …, pedindo a condenação do 1º R. a pagar aos AA. a quantia total de € 1.200.000, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, a título de indemnização por danos morais, decorrentes da publicação pelo 1º R., em livro e DVD, da sua versão dos factos relativos ao desaparecimento da menor, CC, ora 3ª A. e, bem assim, a proibição da venda, edição ou divulgação, por qualquer dos RR., do livro e DVD em causa.
    Contestaram todos os RR., impugnando a responsabilidade que lhes é imputada, concluindo pela improcedência da acção.
  Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o 1º R. a pagar a cada um dos 1º e 2º AA. a quantia de € 250.000,00, acrescida de juros legais, e proibindo os 1º, 2º e 3º RR. de proceder à venda, execução de novas edições e cedência de direitos de autor relativos ao livro e DVD em causa, tendo absolvido esses RR. do demais peticionado e a 4ª R. da totalidade do pedido.

Na sentença da 1ª instância concluiu-se que o livro escrito pelo réu FF, a adopção desse livro para o audiovisual (documentário) e a entrevista dada pelo mesmo réu são ilícitos, nos termos do art.484º, do C.Civil, e que se verificam os demais pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no art.483º, do mesmo Código, pelo que foram os pedidos formulados nas acções julgados parcialmente procedentes, nos termos atrás referidos.

Para se concluir pela ilicitude daquelas condutas, teve-se em consideração o conteúdo do livro, documentário e entrevista, bem como o conflito entre a liberdade de expressão e o direito ao bom-nome e reputação dos autores.

Desenvolveu-se, então, naquela sentença, a seguinte argumentação, que aqui reproduzimos, em parte, por se revelar interessante do ponto de vista da solução que irá ser dada à questão colocada nos autos:

«I. Iniciando a discussão, de forma lógica e cronológica, peta análise do livro, releva desde logo estabelecer que não está em causa um escrito de conteúdo informativo.

Efectivamente, não se encontra no livro o relato, despojado e simples, dos factos do inquérito que correu termos para o apuramento das circunstâncias do desaparecimento da menor CC no dia 3 de Maio de 2007, caso em que nenhum valor acrescentado o mesmo traria à cópia parcial da investigação que a Procuradoria-Geral da República fez distribuir pela Comunicação Social após o arquivamento do inquérito (n°s 65 e 66 da factualidade provada).

O livro é a manifestação de uma opinião, compreendendo a narração das ilações que o seu autor retira dos meios de obtenção da prova produzidos na investigação, em ordem a formular uma tese, uma hipótese de verificação dos factos.

A tese é, sinteticamente, a de que não ocorreu um rapto da menor, contrariamente àquela que foi a premissa inicial da investigação criminal e ao que os pais da criança sustentam até à actualidade. Ocorreu, sim, a morte acidental da criança no apartamento do empreendimento turístico, seguida do encobrimento desse evento através da ocultação do seu cadáver e da simulação do referido crime, levados a cabo pelos autores BB e AA.

Percorrido o texto do livro é-se conduzido pelos dias da investigação desde a noticia do crime, salientando o seu autor, a propósito de cada avanço da linha de tempo, os vários indícios que se oferecem no sentido da referida tese - entre outros, a falta de sinais de arrombamento do quarto e de impressões digitais estranhas aos utilizadores do apartamento (págs. 44 e 48), a presença da imprensa alertada pelo grupo de amigos do casal (pág. 48), o facto de a testemunha-chave JJ afirmar o avistamento de "pseudo-raptor" (JJJ) quando dois outros intervenientes, no mesmo local, nada viram (pág. 51), as inconsistências dos depoimentos e as incoerências desses meios de prova entre si (págs. 53, 57, 59, 144), os depoimentos da família KK (pág. 115) e os indícios recolhidos pela equipa cinotécnica (pág, 157,162,167).

Uma primeira conclusão é que se o livro trata de uma hipótese de verificação dos factos ou da opinião do seu autor sobre a forma como devem ser lidos os indícios recolhidos na investigação, não há que falar em falsidade, factos inverídicos, assim como não tem, salvo melhor juízo, cabimento a discussão da "exceptio veritatis".

Os meios de obtenção da prova e os indícios referidos no livro são os do inquérito criminal, tendo resultado a esse propósito demonstrado que os factos de que aquele se ocupa (assim como aqueles referidos no documentário e na entrevista), quando relativos à investigação criminal, são, na sua maioria, factos ocorridos ou documentados no inquérito (nº 80 da matéria provada).

Discute-se, pois, na acção, a nosso ver, o exercido do direito de opinião do réu naquele contexto.

Essa natureza de opinião está, de resto, bem patente nas conclusões finais do livro, quando o autor do mesmo afirma: "Para mim e para os investigadores que comigo trabalharam no caso até Outubro de 2007, os resultados a que chegámos foram os seguintes:

1. A menor CC morreu no apartamento ..., da ..., na noite de 00 de … de 2007;

2. Ocorreu uma simulação de rapto;

3. AA e BB são suspeitos de envolvimento na ocultação do cadáver da sua filha;

4. A morte poderá ter sobrevindo em resultado de um trágico acidente.

5. Existem indícios de negligência na guarda e segurança dos filhos " (nº 24, sublinhado nosso).

A entrevista dada pelo réu FF ao jornal “LL” e que foi levada à edição de 24 de … de 2008 é uma forma de publicitar o livro e, consequentemente, a tese no mesmo expendida. Nela o réu reafirma a referida tese em tantas proposições quantas as questões que lhe são colocadas: 1° “a menina morreu no apartamento”; 2º os testemunhos de JJ e de AA não são credíveis; 3° há indícios da simulação de crime; 4° houve ocultação do corpo (n° 48)

O documentário desenvolve a referida opinião de forma mais apelativa, como é próprio do suporte audiovisual, dando-lhe uma aparência de reconstituição policial dos factos.

Avança-se da expressão de uma opinião para a tentativa de provar uma tese. É o réu FF que o diz, enquanto narrador, no início do programa: “(...) Nos próximos 50 minutos, vou provar que a criança não foi raptada e que morreu no apartamento de férias na Praia … “ (nº 41, sublinhado nosso).

No documentário, essa tese afirma-se claramente como a contraversão da hipótese de rapto, como a alternativa verdadeira a esta e ao arquivamento do inquérito por falta de prova. Por isso o repto é "Descubra toda a verdade sobre o que se passou naquele dia. Uma morte que muita gente quer encobrir", acabando o réu a concluir “Tenho a certeza que de esta verdade [a de que CC morreu no apartamento] um dia será apurada. A investigação foi brutalmente interrompida e houve um arquivamento político e precipitado. Há quem esconda a verdade, mas mais tarde ou cedo, o verniz vai estalar e as revelações vão surgir. Só então haverá justiça para CC” (nºs 41 e 42).

Em qualquer dos suportes - livro, entrevista, documentário - procura-se que a tese de facto expendida seja apreendida como a versão real dos factos, por contraponto à teoria do rapto sustentada inicialmente na investigação e mediatizada pelos autores AA e BB. A mesma tese é sustentada ainda como a verdade que se oculta por detrás de um arquivamento determinado por motivos políticos e por subserviência às autoridades britânicas.

É esse, afigura-se, o sentido que o leitor médio confere ao título "… a Verdade da Mentira", sendo a "verdade" a tese do livro e a "mentira" a versão do rapto.

Ora, a tese de que a menor faleceu acidentalmente no apartamento e que esse facto foi ocultado pelos pais, que difundiram e alimentaram, para o iludir, uma hipótese de rapto, não é uma novidade do livro, da entrevista ou do documentário.

Essa teoria dos factos provém da própria investigação, está plasmada no relatório do Inspector-Chefe MM (n° 9), foi uma linha prosseguida no inquérito (n°s 10 e 11), determinou a constituição dos autores AA e BB como arguidos e foi colocada ao alcance da Comunicação Social, e logo do público em geral, através da disponibilização da cópia do inquérito (nºs 65 e 66).

Questiona-se então qual a diferença entre afirmar-se, como se fez a determinado passo da investigação ou como fazem vários comentadores, que existem indícios de morte acidental, de ocultação do cadáver e de simulação de crime e sustentar-se esse opinião como o fez o réu FF naqueles três suportes.

Existem um aspecto que se destaca nessa comparação e ele é a relação particular entre o réu FF e a investigação.

O referido réu não está para o inquérito como um mero comentador do "fait divers" criminal, um escritor de intrigas policiais ou um criminologista. Para os efeitos que nos ocupam e no que obviamente contribui para a autoridade e credibilidade da sua opinião, o réu foi o coordenador da investigação criminal do desaparecimento de CC entre o dia desse evento e 2 de Outubro de 2007. é esse particular aspecto conjugado com outros que dele são acessórios - como é a coincidência temporal entre o arquivamento do inquérito, de um lado, e o lançamento do livro, publicação da entrevista e venda do livro, de outro - são aspectos que fazem parte da discussão sobre o modo de resolver, no caso concreto, o conflito entre o direito do réu e os direitos dos autores.

II. No cerne da acção está uma situação de conflito prático entre os direitos ao bom nome e reputação dos autores AA e BB (atravessados pela presunção de inocência de que nunca deixaram de beneficiar) e a liberdade de expressão do réu FF, na concreta vertente do direito à opinião que lhe assiste.

A protecção legal desses direitos dos autores tem a sua sede primeira na Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo artº 12° preceitua que ninguém sofrerá, entre outros, ataques à sua honra e reputação, estipulando que contra esses ataques toda a pessoa tenha direito à protecção da lei.

Logo, porém, do art° 16° dessa Declaração magna resulta, com igual tutela, que "todo o indivíduo tem direito a não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão".

O critério de harmonização dos diversos direitos consagrados resulta do respectivo art° 29°, n° 2, ao preceituar que “no exercício destes direitos e no gozo destas liberdades, ninguém esta sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.

Também da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais decorre a tutela de ambos os direitos.

Lê-se no n° 1 do respectivo art° 10°: "Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia".

Sem embargo da liberdade de expressão afirmada nesse normativo e da proibição de qualquer ingerência na mesma por parte das autoridades pública de cada país, o n0 2 do mesmo artigo estabelece que “o exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública. a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.

A mesma Convenção consagra no n° 2 do seu art° 6° um dos pilares fundamentais das sociedades regidas pelos princípios do Estado de Direito democrático, estabelecendo que “Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.

Como se verá adiante, a actividade do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na interpretação e precipitação no caso concreto dessas normas revela-se particularmente importante [retenha-se ainda o principio de recepção do direito internacional no Direito português, no nº 1 do art° 8º da Constituição da Republica Portuguesa].

A Constituição da República Portuguesa tutela os direitos em análise no capitulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, parte que é dos direitos fundamentais.

Dispõe, com efeito, o art° 26°, nº 1, desse diploma, sob a epígrafe “outros direitos pessoais” que “a todos são reconhecidos os direitos (...) ao bom nome e reputação (...)”.

Porém, logo no mesmo diploma fundamental e com igual dignidade, se tutela, no art0 37º, a liberdade de expressão, preceituando o respectivo n° 1 que "todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações".

Sem embargo da valia dessa liberdade fundamental, o nº 3 do mesmo art° 37° refere-se às infracções cometidas no seu exercício, remetendo-as para o foro dos princípios gerais do Direito Criminal e do ilícito de mera ordenação social, enquanto o n0 4 aponta claramente para os limites a que a mesma liberdade pode estar sujeita, reconhecendo “a todas as pessoas, singulares ou colectivas (...) em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos”.

Glosando o referido n° 3 do preceito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira "Do nº 3 conclui-se, porém, que há certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento. A liberdade de expressão e de informação não pode efectivamente prevalecer sobre os direitos fundamentais dos cidadãos ao bom nome e reputação, à sua integridade moral, à reserva da vida privada (...)" [Constituição da República Portuguesa, itálico nosso].

Ainda no texto constitucional e também com interesse para o caso dos autos, é tutelada a liberdade de imprensa, sendo um dos seus expoentes máximos "a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores" [artº 38°, n° 2, alínea a)].

Refira-se que o próprio texto constitucional fornece o critério para dirimir o eventual conflito entre direitos fundamentais, ao estabelecer no art0 18°, n° 2 que as restrições legais a esses direitos devem “(...) limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Também a Constituição acolheu a presunção de inocência como uma das garantias do processo criminal (n° 2 do art 32°).

Sob a égide da lei ordinária, o art° 70° do Código Civil consagra a tutela geral da personalidade, declarando que "a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua integridade física ou moral".

Por outro lado, ainda naquela lei civil, dispõe genericamente o art0 483° que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” e o art° 484° especificamente consagra que "quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde petos danos causados".

Ensinam a este propósito Pires de Lima e Antunes Varela “exista ou não, por parte das pessoas singulares ou colectivas, um direito subjectivo ao crédito e ao bom nome, considera-se expressamente como antijurídica a conduta que ameace lesá-los, nos termos prescritos. Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contando que seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de diminuir c confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade (...)” [CC anotado, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 486, itálico nosso].

Também o Código Civil contém uma norma sobre conflitos de direitos, apontando os n°s 1 e 2 do art° 335° duas regras fundamentais a esse propósito, a saber:

“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer deles.

2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.

Sendo este o traçado genérico da lei aplicável à decisão da questão colocada da acção, importa conhecer o modo como os Tribunais Superiores enquadram e solucionam o conflito de direitos em análise, começando pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cuja jurisprudência é particularmente laboriosa e interessante nesta matéria.

Retém-se da mesma jurisprudência que contrariamente à corrente tradicional dos tribunais superiores portugueses, não é aceite, por princípio, o primado do direito à honra e ao bom nome sobre a liberdade de expressão/liberdade de imprensa [são exemplificativos dessa linha tradicional, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 2002 e 7 de Março de 2002, prolatados nas revistas n°s 3379/01 e 184/02, da 1ª e 7ª secções],

Bem diversamente, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem faz preponderar a liberdade de expressão e de imprensa, admitindo estritas restrições às mesmas, sobretudo, quando está em causa o debate de matérias de interesse público.

Assim, essa jurisprudência segue um enunciado de ideias com o seguinte núcleo essencial: (i) a liberdade de expressão é um postulado da sociedade democrática e do Estado de Direito, sendo a base do pluralismo, da tolerância e da abertura de espirito necessários ao progresso desse tipo de sociedades e ao desenvolvimento individual dos seus membros; (ii) as limitações à liberdade de expressão devem estar previstas na lei, prosseguirem um fim legitimo e serem necessárias numa sociedade democrática; (iii) quando no debate de questões de interesse público a possibilidade de restrições da liberdade de expressão é particularmente limitada; (iv) os políticos, as figuras públicas e os funcionários superiores da administração pública, quando no exercício das suas funções, estão sujeitos a limites de critica mais alargados do que os particulares, (v) na sindicância dos limites da liberdade de expressão devem distinguir-se as afirmações de facto dos juízos de valor, as afirmações dirigidas às opiniões do adversários por contraposição aos juízos sobre a pessoa desses adversários e aquilo que é critica do que constitui insulto e (vi) a imprensa tem o dever de transmitir informações e ideias sobre matérias de interesse público e ao fazê-lo é-lhe permitido recorrer a uma certa dose de exagero, mesmo de provocação [cfr., entre muitos outros, os Processos … c. Polónia, … c. Luxemburgo e … e Outros c. a Espanha, podendo ler-se um enunciado exaustivo das linhas de orientação fundamentais daquele Tribunal no douto Acórdão do Tribunal da Relação de … de 14 de Fevereiro de 2012, de que foi Relator o Exmo. Desembargador Rijo Ferreira, disponível em www.dgsi.pt].

A jurisprudência nacional mais recente vem fazendo eco destas linhas orientadoras, salientando a importância dos arestos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na concretização da fronteira entre a liberdade de expressão e os direitos à honra e bom nome dos visados e o contributo que os mesmos dão para a solução de cada conflito concreto entre os dois direitos.

Nesse sentido, lê-se no Acórdão de 7 de Fevereiro de 2008 «[Da] posição do TEDH, parece-nos resultar uma imposição no modo de pensar. Não se justifica que se pense, logo à partida, sobre se determinada peça jornalística ofende alguém. Deverá, antes, partir-se da liberdade de que gozam o ou os respectivos autores. Só, depois, se deve indagar se se justifica - atentos os critérios referenciais acabados de referir, com inclusão duma margem de apreciação própria por parte dos órgãos infernos de cada um dos Estados signatários da Convenção - a ingerência restritiva no campo dessa mesma liberdade e a consequente ida para as sanções legais.

Isto não significa, todavia - a nosso ver - que não assumam intensa relevância os casos em que se justifica tal ingerência restritiva. Basta ler-se esse n° 2 do artigo 10° e ponderar-se o que ele contém em termos de valores essenciais ao ser humano» [Revista nº 4403/07 da 2a Secção, podendo ler-se no mesmo sentido o Acórdão de 12 de Março de 2009 na revista n°s 2972/08; itálico nosso].

Importa ainda que se refira o conteúdo do direito à honra e as qualidades ou atributos que acolhe.

Lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2008, supra citado: “A honra da pessoa traduz-se, pois, no valor positivo que ela própria infere do intimo do seu ser, ou seja, o substrato moral e ético da sua existência, enquanto a consideração social, o bom-nome e a reputação se traduzem no julgamento pelos outros acerca de cada um. Correspondentemente, o direito ao bom-nome e à reputação consiste, essencialmente, em a pessoa não ser ofendida ou lesada na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação de outrem e a defender-se dessa ofensa e a obter a correspondente reparação” [idem].

Ensina Capelo de Sousa "a honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância (...). Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral intelectual, sexual, familiar, profissional ou político" [O Direito Geral da Personalidade, 1995, pág. 303, itálico nosso].

Acrescenta Brito Correia que a honra inclui ainda “(...) as qualidades adquiridas ao longo da vida, pelo seu [do individuo] esforço ou de outro modo e nos mais variados aspectos (familiares, políticos, profissionais, científicos, literários, artísticos, comerciais, etc). Abrange, nomeadamente, qualidades de carácter, probidade, rectidão, lealdade, etc, correspondendo-lhe um sentimento de auto-estima pessoal. Baseia-se na consciência individual do próprio valor: num auto-reconhecimento e auto-avaliação”. Ainda segundo o mesmo Autor, "o direito protege, todavia, não só esse sentimento pessoal da própria dignidade, a que pode chamar-se a honra interna, mas sobretudo a projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, a que pode chamar-se honra externa: as qualidades necessárias a uma pessoa para ser respeitada num meio social, incluindo o bem nome e a reputação, a consideração social" (Ob. Cit, pág. 587, itálico nosso].

A protecção dos direitos dos autores ao seu bom-nome e reputação está, no caso, intimamente relacionada com a presunção de inocência.

Os autores AA e BB foram constituídos arguidos na investigação criminal, estatuto que tendo uma função de garantia dos seus direitos (apesar de assim não ser interpretado pela generalidade do público) cessou com o arquivamento do inquérito, tendo o correspondente despacho concluído: “Não foi conseguido qualquer elemento de prova que permita a um homem médio, à luz dos critérios da lógica, da normalidade e das regras gerais de experiência, formular qualquer conclusão lúcida, sensata, séria e honesta sobre as circunstâncias em que se verificou a retirada da criança do apartamento, nem enunciar, sequer, um prognóstico consistente e inclusive - o mais dramático - apurar se ainda está viva ou se está morta, como parece mais provável. (...) Assim, tudo visto, analisado e devidamente ponderado, face ao que se deixa exposto determina-se: (...) o arquivamento dos Autos quanto aos arguidos BB e AA, por não existirem indícios de os mesmos terem praticado qualquer crime” (n° 15).

Na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o princípio da presunção de inocência impõe um padrão de conduta para todos os agentes, funcionários e magistrados envolvidos na administração da justiça criminal.

A presunção de inocência proíbe, segundo esses arestos, a expressão prematura de opiniões ou convicções de culpa pelos tribunais, mas também afirmações de quaisquer agentes públicos envolvidos nos procedimentos que possam levar o público a suspeitar da responsabilidade dos suspeitos nos factos em investigação. Nesse sentido lê-se na decisão proferida no processo … c Alemanha "The Court has previously held in this context that Article 6 § 2 aims at preventing undermining of a fair criminal trial by prejudicial statements made in dose connection with proceedings. It not only prohibits the premature expression by the tribunal itself of the opinion the person «charged with a criminal offence» is guilty before he has bens so proved according to the law, but also covers statements made by other public officials about pending criminal investigations which encourage the public to believe the suspect guilty and prejudge an assessment of the facts by the competent judicial authority" [hudoc, itálico nosso].

No Processo … c o Reino Unido o tribunal enfatizou a importância da presunção após a absolvição ou o arquivamento da investigação criminal, explicando que esse princípio impede que suspeitos ou arguidos nessas circunstâncias sejam tratados como se fossem de facto responsáveis pelas ofensas criminais de que eram acusados e realçando que sem esse segundo nível de protecção - o nível do respeito integral pela absolvição ou o arquivamento - a presunção de inocência se quedará ilusória ou meramente ideal.

Do mesmo modo, a presunção de inocência impõe que a ausência de culpa que dela emana seja respeitada, após a absolvição ou o arquivamento, em todos os procedimentos judiciais de qualquer natureza e por qualquer autoridade que entre em contacto com esses factos [idem … c. Reino Unido],

No caso, os autores AA e BB nunca deixaram de beneficiar dessa presunção de inocência e do imperativo de comportamento que a mesma coloca sobre as autoridades judiciais e judiciárias nacionais e todos os seus funcionários e agentes.

O réu FF foi o coordenador da investigação criminal entre a data da notícia do crime e o dia 2 de Outubro de 2007 (n° 12).

Em 1 de Julho de 2008 foi aposentado da Policia Judiciária, tendo o livro "... – A Verdade da Mentira" sido lançado no dia 24 seguinte e vendido com a edição do mesmo dia do jornal "LL", edição essa onde foi publicada a entrevista também versada nesta acção (n°s 13, 25,26 e 48).

"A Polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos Cidadãos" [art° 272° da Constituição da República Portuguesa].

“A Polícia Judiciária é um corpo superior de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Justiça e fiscalizado nos lermos da lei” [art° 1° da Lei Orgânica da Policia Judiciária, aprovada pelo Decreto-Lei n° 275-A/2000, de 9 de Novembro, na versão do Decreto-Lei n" 235/2005, de 30 de Dezembro, então em vigor).

Os coordenadores de investigação criminal são autoridades de polícia criminal para os efeitos da lei processual penal [arf 11º alínea g) da mesma Lei].

Nos termos do Regulamento Disciplinar da Policia Judiciária o dever de sigilo é um dos deveres gerais dos elementos da Polícia Judiciária [alínea e) do artº 5º do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n° 196/94, de 21 de Julho].

A par desse dever geral de sigilo, a lei orgânica impõe aos funcionários em serviço na Polícia Judiciária um dever de reserva, preceituando que "(...) não podem fazer revelações públicas relativas a processos ou sobre matérias de índole reservada, salvo o que se encontra previsto neste diploma sobre informação pública e acções de natureza preventiva junto da população e ainda o disposto nas leis de processo penal" [nº 2 do art 12°]. Ainda assim as declarações admissíveis “(…) dependem de prévia autorização da director nacional ou dos directores nacionais-adjuntos, sob pena de procedimento disciplinar, sem prejuízo da responsabilidade penal a que houver lugar” [n° 3 do art° 12°].

O dever de reserva é uma obrigação funcional comum às Magistraturas e aos órgãos de polícia criminal. Exemplificativamente, no caso dos Magistrados do Ministério Público, a lei ordinária postula que ele se manterá após a jubilação, preceituando o n° 7 do art 148° do respectivo Estatuto que "os magistrados jubilados encontram-se obrigados è reserva exigida pela sua condição".

Trata-se de um dever que é essencial à preservação da confiança dos cidadãos nas instituições da administração da justiça. O dever de reserva protege as finalidades de acção criminal, mas também a integridade física, moral, a liberdade e a dignidade dos visados pela mesma.

Os funcionários de investigação criminal aposentados por motivo diverso da aplicação de pena disciplinar conservam direitos especiais, sendo titulares de um cartão de identificação para reconhecimento da sua qualidade e dos direitos de que gozam [n°s 1 e e 2 do art° 149° da Lei Orgânica da Policia Judiciária e Portaria n° 96/2002 de 31 de Janeiro].

O Estatuto da Aposentação [aprovado pelo Decreto-Lei 498/72, de 9 de Dezembro] estabelece, desde a sua redacção original, no respectivo art° 74º, n0 1, que "o aposentado, além de titular do direito à pensão de aposentação, continua vinculado à função pública, conservando os títulos e a categoria do cargo que exercia e os direitos e deveres que não dependem da situação de actividade".

Consta do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 16 de Fevereiro de 2006 (Esteves Remédio, in www.ministeriopublico.pt):

“A relação jurídica de aposentação é, no confronto com a relação jurídica de emprego público, uma relação menos intensa em que existe um esbatimento dos laços entre o aposentado e a Administração, traduzido na redução de direitos e deveres. Trata-se, ainda assim, de um «vínculo à função pública», que se materializa na conservação dos títulos e da categoria do cargo exercido e dos direitos e deveres que não dependam da situação de actividade” (itálico nosso).

Concluiu-se no mesmo parecer - "O aposentado continua sujeito a deveres de conduta privada, traduzidos designadamente na abstenção da pratica de factos integradores de crimes que tenham uma conexão relevante com as funções antes exercidas e que, desse modo. afectem de forma real o funcionamento do serviço ou de modo grave a dignidade e o prestigio da função ou da Administração" (idam).

Tendo presente esse mosaico legal, como resolver o conflito que no caso concreto existe entre os direitos dos autores AA e BB ao seu bom nome e reputação e o direito do réu FF à sua opinião enquanto emanação da liberdade de expressão que lhe assiste?

Afigura-se que o conflito deve resolver-se com os dados de facto que estão presentes desde a primeira hora e que se revelam da condição especial do réu face à investigação criminal, condição essa, que o próprio capitaliza no livro, na entrevista e no documentário.

Neste, o réu é explícito logo na abertura: "O meu nome é FF e fui investigador da Policia Judiciaria durante 27 anos. Coordenei a investigação do desaparecimento de CC no dia 3 de Maio de 2007. Nos próximos 50 minutos, vou provar que a criança não foi raptada (...)" (n° 41).

No livro veicula-se que a verdade do inquérito é meramente formal, enquanto a do seu autor (a que se encontraria no fim da linha de investigação que foi prosseguida até ao afastamento daquele) é a verdade material – “Este livro tem ainda um propósito maior. O de contribuir para a descoberta da verdade material e a realização da justiça (...)” (n° 23).

Não há dúvida que é o próprio réu que convoca a sua condição de ex-coordenador da investigação criminal e que é por via desse estatuto que o livro, a entrevista e o documentário se distinguem - qualificando-se - da opinião de comentadores televisivos, escritores ou outros glosadores do tema.

Porém, pelo menos a nosso ver, não pode deixar de ser esse mesmo estatuto a marca dos limites da liberdade de expressão do réu quando comparada com a daqueles outros.

Por ter sido o responsável dessa mesma investigação enquanto elemento da Policia Judiciária, o réu FF, apesar de aposentado desde o dia 1 de Julho de 2008, não gozava, no dia 24 seguinte, face àqueles que foram os resultados da investigação criminal divulgados no dia 21 do mesmo mês e ano, de ampla e total liberdade de expressão.

Essa liberdade estava-lhe condicionada pelas funções que exerceu, funções que lhe impunham especiais deveres que atravessam o estatuto da aposentação, entre eles, o dever de reserva.

Na situação concreta, pese embora as razões pessoais que o réu invoca na nota introdutória do livro, era a liberdade de expressão que deveria ceder por imperativo daquela reserva.

Não foi o que aconteceu e a verdade é que no dia 24 de Julho de 2008, escassos 3 dias após a divulgação do despacho de encerramento do inquérito por ausência de prova, dão-se o lançamento do livro, a sua venda com a edição do jornal e a publicação da entrevista.

A continuidade temporal exibe bem a intenção de convocar para o contraditório, em praça pública, o encerramento da investigação, confrontando-a com a tese da anterior linha de investigação, contada como a verdadeira por um ex-responsável pela mesma investigação.

Nessa forma de resolução do conflito entre os direitos revela-se a ilicitude da conduta do réu FF para os efeitos do art° 484° do Código Civil».
Inconformados, os 1º, 2º e 3º RR. interpuseram recursos de apelação daquela sentença.
O Tribunal da Relação de … concedeu provimento àqueles recursos e revogou a sentença apelada, julgando a acção improcedente quanto aos apelantes e absolvendo-os da totalidade dos pedidos, tendo, para o efeito, argumentado nos seguintes termos:

«Em matéria de direitos de personalidade, dispõe o art. 26°, n°1, da Constituição, que a todos são reconhecidos os direitos ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

Na mesma lei fundamental, e com igual dignidade, se tutelando a liberdade de expressão, ao preceituar-se, no n°1 do art. 37°, que todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

E, bem assim, no n°2 do art. 38°, a liberdade de imprensa, ao consagrar-se a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores,

Estabelecendo-se, no n°2 do art. 18°, para a eventualidade de conflito entre direitos fundamentais, que as restrições legais a esses direitos se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Por seu turno, na lei ordinária, consagrando o art 70° do C.Civil, como principio, que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa á sua integridade física ou moral, dispõe o art. 80° desse diploma que todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.

Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares, nos termos do n°1 do art. 335°, ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer deles - prevalecendo (n°2 desse preceito), sendo os direitos desiguais ou de espécie diferente, o que deva considerar-se superior.

Assim, e como vem entendendo a jurisprudência dominante:

“Um dos limites à liberdade de informar, que não é por isso um direito absoluto, é a salvaguarda do direito ao bom-nome. Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade.

- Assiste aos media o direito, a função social, de difundir notícias e emitir opiniões críticas ou não, importando que o façam com respeito pela verdade e pelos direitos intangíveis de outrem, como são os direitos de personalidade.

- O direito à honra, em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são tradicionais domínios de conflito.

- A crítica tem como limite o direito dos visados, mas não deixa de ser legítima se for aculilante, acerada, desde que não injuriosa, porque quantas vezes ai estão o estilo de quem escreve.

- Criticar implica censurar, a censura veiculada nos media só deixa de ser legítima como manifestação da liberdade individual quando exprime antijuricidade objectiva, violando direitos que são personalíssimos e que afectam, mais ou menos duradouramente segundo a memória dos homens, bens que devem ser preservados como são os direitos aqui em causa, à honra, ao bom nome e ao prestígio social” (acórdão do STJ, de 20/1/2010, www.dgsi.pt).

No caso concreto, para além do relato dos factos constantes do inquérito relativo ao desaparecimento da menor CC, resulta da análise do livro e demais material publicado aí sustentar o ora 1° apelante a tese de que não terá ocorrido um rapto, mas sim a morte acidental da criança, seguida do respectivo encobrimento – através da ocultação do seu cadáver e da simulação de tal crime - pelos AA. BB e AA, ora apelados.

Decorrendo da aludida publicação que os meios de prova e indícios a que aquele se reporta são, essencialmente, os referidos e documentados no inquérito criminal a tal respeitante.

Porém, a tese exposta, de que a menor faleceu acidentalmente e esse facto foi ocultado pelos pais, que difundiram, para o iludir, a hipótese de rapto, não reveste novidade - já que a mesma se mostra igualmente contida no relatório, a que alude o n°9 dos factos provados, determinando a constituição como arguidos desses apelados, e veio, na sequência da disponibilização da cópia do inquérito, a ser publicitada pela comunicação social (n°s 65 e 66, dos factos provados).

Como se entendeu no acórdão, desta Secção, proferido na providência cautelar apensa, pretendendo, através dele, o 1° apelante - uma vez que a instituição à qual estava vinculado lhe não permitiu responder a ataques ao seu brio e honorabilidade, enquanto profissional da polícia de investigação criminal - ali expor a sua visão dos factos, tem de se considerar a publicação do livro em causa como traduzindo legítimo exercício do direito de opinião.

E resultando da matéria provada que - para além de se tratar de factos profusamente plasmados no inquérito e mesmo publicitados por iniciativa da Procuradoria-Geral da República - foram eles os próprios apelados a, beneficiando de aí terem fácil acesso, multiplicar-se em entrevistas e intervenções nos órgãos de comunicação social nacionais e internacionais, deve concluir-se terem sido os mesmos quem, voluntariamente, limitou os seus direitos à reserva e à intimidade da vida privada.

Pelo que, ao assim procederem, abriram caminho a que qualquer pessoa opinasse igualmente sobre o caso, contradizendo a sua tese - sem com isso deixar de exercer um legitimo, e constitucionalmente consagrado, direito de opinião e liberdade de expressão do pensamento.

Por outro lado, não se vislumbra que o direito dos apelados a beneficiarem, na sequência da sua constituição como arguidos, das garantias do processo penal - incluindo o direito a uma investigação justa e o direito à liberdade e segurança - possa ser ofendido pelo conteúdo de um livro que, no essencial, descreve e interpreta factos constantes de inquérito cujo conteúdo foi publicitado.

Nada obstando a que, embora não tenham sido julgados suficientes para levarem a uma acusação criminal, tais factos sejam objecto de apreciação diversa, nomeadamente em obra de cariz literário.

Assim sendo, e por contida nos direitos assegurados, designadamente, nos arts. 37º e 38º da Constituição, se impõe considerar licita a publicação em causa.

Entendeu-se, todavia, na decisão recorrida que, tendo sido o ora 1º apelante, FF, até 2/10/2007, o coordenador da investigação criminal, relativa ao desaparecimento de CC, estaria aquele, mesmo após a sua aposentação, em 1/7/2008, sujeito aos deveres de sigilo e reserva, regulamentarmente impostos aos funcionários em serviço na Policia Judiciária.

E, em tais termos, pese embora as razões pessoais invocadas na nota introdutória do livro, numa situação de conflito com os direitos ao bom nome e reputação dos apelados, não gozaria aquele, face aos resultados da investigação, de ampla e total liberdade de expressão - sendo, pois, ilícita a sua conduta, para os efeitos do art. 484° do C.Civil.

Do que acima, a tal respeito, ficou dito, claramente se intui que a argumentação expendida não pode merecer acolhimento.

Com efeito, e independentemente das razões invocadas pelo apelante para a publicação, mal se compreenderia que um funcionário, além do mais aposentado, mantivesse os aludidos deveres de sigilo e reserva, ficando limitado no exercício do seu direito à opinião, relativamente à interpretação de factos já tornados públicos pela autoridade judiciária, e amplamente debatidos (aliás, em grande medida, por iniciativa dos próprios intervenientes) na comunicação social, nacional e estrangeira.

Na ausência do seu primordial pressuposto, se haverá, pois, de concluir, ao invés do decidido, pela improcedência de qualquer dos pedidos formulados pelos ora apelados - quedando-se prejudicada a reapreciação da matéria de facto, subsidiariamente requerida».

   

Os 1º e 2º autores interpuseram recurso de revista daquele acórdão.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

1. Os AA. AA e BB são casados um com o outro (al. A).

2. A A. CC nasceu em 00/00/2003, sendo filha dos AA. AA e BB (al. B).

3. O A. DD nasceu em 00/00/2005, sendo filho dos AA. AA e BB (al. C).

4. A A. EE nasceu em 00/00/2005, sendo filha dos AA. AA e BB (al. D).

5. A A. CC encontra-se desaparecida desde 3/5/2007, tendo sido aberto o inquérito criminal nº 201/07.0GALGS pela Procuradoria da República do Círculo de … (al. E).

6. Os cães da polícia britânica “...” e “...” detectaram marcas de odores de sangue humano e de cadáver no apartamento 0-X do NN (al. AR).

7. Os cães da polícia britânica “...” e “...” detectaram marcas de odores de sangue humano e de cadáver num veículo automóvel alugado pelos AA. AA e BB após o desaparecimento de CC (al. AS).

8. Os AA. AA e BB foram constituídos arguidos no inquérito criminal (al. F).

9. A fls. 2587-2602 do inquérito criminal, em 10/9/2007, o Inspector Chefe MM elaborou um relatório, do qual consta nomeadamente o seguinte:

 “De todo o apurado, os factos apontam no sentido de que a morte de CC ocorreu, na noite de 3 de Maio de 2007, no interior do apartamento 0 X, do NN da Praia da ..., ocupado pelo casal AABB e pelos três filhos. (fls. 2599 dos autos criminais)  (…)

Por todo o exposto, resulta dos autos que:

A) a menor CC morreu no apartamento 0 X do NN da Praia da ..., na noite de 03 de Maio de 2007;

B) ocorreu uma simulação de rapto;

C) de forma a impossibilitar a morte da menor antes das 22H00, foi inventada uma situação de vigilância das crianças do casal AABB enquanto dormiam;

D) AA e BB estão envolvidos na ocultação do cadáver da sua filha CC;

E) neste momento, parece não existirem ainda fortes indícios de que a morte da menor não tenha ocorrido devido a um trágico acidente;

F) do apurado até ao momento, tudo indica que o casal AABB, como autodefesa, não queira fazer a entrega de forma imediata e voluntária do cadáver, existindo uma forte probabilidade de o mesmo ter sido transladado do local inicial de depositação. Esta situação é susceptível de levantar questões quanto às circunstâncias em que ocorreu a morte da menor.

Assim, sugere-se a remessa dos Autos ao Exm.º Sr. Procurador da República, no círculo de …, para:

G) eventual novo interrogatório dos arguidos AA e BB;

H) avaliar da aplicação de medida de coação que se julgar adequada ao caso. (fls. 2601 dos autos criminais)” (al. AT).

10. A fls. 2680 do inquérito criminal, em 10/9/2007, o Procurador da República titular do inquérito proferiu um despacho, do qual consta nomeadamente o seguinte:

“No desenrolar da investigação em que continua a investigar-se o desaparecimento da CC, estando portanto em aberto a investigação, quer para confirmar, quer para infirmar a sua ocorrência, relativamente aos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver e conforme plano delineado, torna-se necessário documentar a hora real do referido desaparecimento, apurar a localização de cada um dos intervenientes - desde o casal AABB ao grupo de amigos que com eles se encontravam de férias nos apartamentos turísticos NN na Praia da ...: JJ, OO, PP, QQ, RR, SS e TT - à data dos factos e nos momentos posteriores, assim como determinar as movimentações dos arguidos BB e AA, no período em que viveram em Portugal, estabelecendo também as conexões entre todos os intervenientes e terceiros.

Nesse sentido e porque as diligências que a seguir se indicam se mostram essenciais para a descoberta da verdade, nomeadamente proceder à análise da informação do tráfego telefónico do casal AABB e seus amigos, bem como de outros números de telefone que se verificou estarem relacionados com os factos ocorridos na noite de 03 de Maio de 2007, remeta os autos ao Mmo. JIC.” (al. AU).

11. A fls. 3170 do inquérito criminal, em 3/12/2007, o Juiz de Instrução Criminal de … proferiu um despacho, do qual consta nomeadamente o seguinte:

“Por nos presentes autos se investigar a prática dos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver, sendo os três primeiros punidos com pena de prisão superior a 3 anos e por se afigurar relevante a identificação da pessoa que revelou o comportamento suspeito ocorrido nas imediações do local onde desapareceu a criança e a que aludem os depoimentos de fls. 3150 e 3154 e ss., possuindo, assim, extrema relevância para a descoberta da verdade, os dados solicitados pelo Ministério Público, ordeno (…) se solicite à operadora telefónica ... (…)” (al. AV).

12. O R. FF foi, até ao dia 2/10/2007, o Inspector da Polícia Judiciária encarregado da coordenação da investigação relativa ao desaparecimento da A. CC (al. G).

13. O R. FF ficou na situação de aposentado da Polícia Judiciária a partir de 1/7/2008 (art. 19º).

14. Em 21/7/2008 a Procuradoria-Geral da República divulgou uma “Nota para a Comunicação Social” anunciando que tinha sido determinado o arquivamento do inquérito referido no nº 5 e informando que o mesmo poderia vir a ser reaberto, por iniciativa do Ministério Público ou a requerimento de algum interessado, se surgissem novos elementos de prova que originassem diligências sérias, pertinentes e consequentes  (art. 20º).

15. No inquérito criminal foi proferido despacho de arquivamento pelo Procurador da República em 21/7/2008, consignando-se nomeadamente o seguinte:

 “Tendo em conta que havia determinados pontos dos depoimentos dos arguidos e testemunhas que revelavam, pelo menos aparentemente, contradição ou que careciam de comprovação física, foi decidido proceder-se à “reconstituição do facto”, diligência esta consagrada no artigo 150º do CPP no sentido de esclarecer devidamente e no próprio local dos factos os seguintes importantíssimos detalhes, entre outros:

 1- A proximidade física, real e efectiva entre JJ, BB e UU, no momento em que a primeira passou por eles, e que coincidiu com o avistamento do suposto suspeito, transportando uma criança. Resulta, a nosso ver, estranho que tanto BB como UU não a tenham visto, nem ao alegado raptor, apesar da exiguidade do espaço e da pacatez do local;

 2- A situação relativa à janela do quarto onde CC dormia, juntamente com os gémeos, a qual estava aberta, segundo AA. Afigurava-se então necessário esclarecer se existia alguma corrente de ar, já que se menciona movimento das cortinas e pressão sobre a porta de entrada do quarto, o que seria, eventualmente, descortinável através da reconstituição;

 3- O estabelecimento de uma linha de tempo e de controlo efectivo dos menores deixados sozinhos nos apartamentos, uma vez que a crer-se que tal controlo seria tão apertado como as testemunhas e os arguidos o descrevem, seria, pelo menos, muito difícil que se reunidas condições para a introdução de um raptor na residência e posterior saída do mesmo, com a criança, mormente por uma janela com escasso espaço. Acresce que o suposto raptor só poderia passar, nessa janela, com a menor numa posição diferente (na vertical) à que a testemunha JJ o visualizou (na horizontal);

 4- O que aconteceu no espaço de tempo que mediou entre cerca das 18H45/19H00 - hora a que CC foi vista pela última vez, no seu apartamento, por pessoa diferente (RR) dos seus pais ou irmãos - e a hora a que é reportado o desaparecimento por AA - cerca das 22H00;

 5- As vantagens óbvias e consabidas da apreciação imediata da prova, ou por outras palavras, a concretização do princípio da imediação da prova em ordem à formação de uma convicção o mais firme possível sobre o presenciado por JJ e demais intervenientes e, eventualmente, arredar de vez quaisquer dúvidas que pudessem subsistir sobre a inocência dos pais da desaparecida.

Foram nesse sentido seguidos os procedimentos legais em conformidade com as normas e convenções em vigor, sendo solicitada a comparência das testemunhas, convidando-as a estarem presentes fazendo-se inclusivamente o apelo à solidariedade com o casal AABB, sendo certo que desde o início houve, da parte destes, adesão a tal diligência processual.

Contudo, não obstante as autoridades nacionais terem assumido todas as medidas para viabilizar a sua deslocação a Portugal, por motivos que se desconhecem, depois de várias vezes terem sido esclarecidas as muitas dúvidas que levantavam sobre a necessidade e oportunidade da sua deslocação, optaram por não comparecer o que inviabilizou a diligência.

Temos para nós que os principais prejudicados foram os arguidos AABB, que perderam a possibilidade de comprovarem aquilo que desde a sua constituição como arguidos têm protestado: a sua inocência face ao fatídico acontecimento; também estorvada restou a investigação, porque tais factos ficaram por esclarecer (…)

Tal denota que os pais não estavam persistentemente preocupados com os filhos, que não iam fazer a sua verificação como depois declararam efectuar, antes negligenciaram, embora não temerária nem grosseiramente, o dever de guarda dos mesmos filhos. (…)

Se é um facto incontornável que a CC desapareceu do Apartamento 0X do “NN”, já não o é o modo e circunstâncias em que tal sucedeu - não obstante as muitíssimas diligências feitas nesse sentido - mantendo-se intocável o leque de crimes indiciados e referidos ao longo do Inquérito (…)

No respeitante aos outros crimes indiciados não passam disso mesmo e pese embora se nos afigurar não ser de descartar, dado o seu elevado grau de probabilidade, a verificação de um homicídio, tal não pode passar de mera suposição por carência de elementos de sustentação nos autos.

O não envolvimento dos arguidos pais da CC em qualquer actuação penalmente relevante parece resultar das circunstâncias objectivas de não estarem no apartamento aquando do seu desaparecimento, no seu comporta- mento normal adoptado até esse desaparecimento e posteriormente, como amplamente decorre do depoimento das testemunhas, da análise das comunicações telefónicas e também das conclusões das perícias, principalmente dos relatórios do FSS e do Instituto de Medicina Legal.

A isso acresce que, na realidade, nenhum dos indícios que levou à sua constituição como arguidos veio a obter confirmação ou consolidação posteriores. Senão vejamos: não se confirmaram as informações de prévio alerta da comunicação social, em preterição das polícias, não se verificou a ratificação laboratorial dos vestígios assinalados pelos cães e as indicações iniciais do e-mail acima transcritas, mais bem esclarecidas posteriormente, vieram a revelar-se inócuas.

Ainda que, por hipótese, se admitisse que BB e AA pudessem ser os responsáveis pela morte da criança, sempre restaria por explicar como, por onde, quando, com que meios, com a ajuda de quem e para onde se libertaram do seu corpo no estrito espaço temporal de que, para tanto, teriam disposto. Acresce que a sua rotina diária até ao dia 3 de Maio se circunscrevera aos estreitos limites do aldeamento “NN” e à praia que lhe está adjacente, desconhecendo os terrenos circundantes e, para além dos amigos ingleses que com eles aí veraneavam, não tinham amigos ou contactos conhecidos em Portugal (…)

Foram realizados exames e análises em duas das instituições mais prestigiadas e credenciadas para o efeito - Instituto Nacional de Medicina Legal e o laboratório britânico Forensic Science Service - cujos resultados finais não valorizaram positivamente os vestígios recolhidos, nem vieram corroborar as marcações caninas.

Não foi conseguido qualquer elemento de prova que permita a um homem médio, à luz dos critérios da lógica, da normalidade e das regras gerais de experiência, formular qualquer conclusão lúcida, sensata, séria e honesta sobre as circunstâncias em que se verificou a retirada da criança do apartamento, nem enunciar, sequer, um prognóstico consistente e inclusive - o mais dramático - apurar se ainda está viva ou se está morta, como parece mais provável (…)

Assim, tudo visto, analisado e devidamente ponderado, face ao que se deixa exposto determina-se: (…) o arquivamento dos Autos quanto aos arguidos BB e AA, por não existirem indícios de os mesmos terem praticado qualquer crime” (al. AQ).

16. A R. GG, SA, é uma sociedade comercial, que tem por objecto designadamente a edição, publicação e comercialização, incluindo importação e exportação, de livros (al. L).

17. Em 10/3/2008, a R. GG, SA, e o R. FF celebraram o acordo escrito junto a fls. 277-281, denominado “contrato de cedência de direitos de autor”, através do qual o R. FF cedeu à R. GG, SA, em exclusivo, por um período de 10 anos, os direitos para publicar o texto “…, A Verdade da Mentira” na forma de livro, impresso ou electrónico, em todas as línguas e para todo o mundo (al. M).

18. A cláusula 4ª, nº1, deste acordo tem a seguinte redacção: “A retribuição a pagar pelo 1º outorgante ao 2º outorgante a título de direitos de autor relativamente às edições da obra para comercialização em Portugal será de: a) 12% do preço de capa de cada exemplar vendido, líquido de IVA, até 30.000 exemplares; b) 14% do preço de capa de cada exemplar vendido, líquido de IVA, a partir dos 30.001 exemplares vendidos até 50.000 exemplares; c) 16% do preço de capa de cada exemplar vendido, líquido de IVA, a partir dos 50.001 exemplares vendidos.” (al. N).

19. A cláusula 5ª, nº2, deste acordo tem a seguinte redacção: “Se o 1º outorgante vender para outras línguas, em qualquer outro país do mundo, os direitos da obra, fica estabelecido que a receita líquida dessas vendas, após deduzidos os custos que decorram directamente da operação de venda, será dividido entre o 1º e o 2º outorgantes em partes iguais, ou seja, 50% para cada um” (al. O).

20. O R. FF é autor do livro “..., A Verdade da Mentira”, editado pela R. “GG, S.A.” (al. H).

21. Na capa do livro encontra-se, a vermelho, a palavra “confidencial” e na contracapa estão os dizeres “leitura reservada” e “contém revelações únicas” (al. P).

22. Da ficha técnica do livro, na sua página 4, consta nomeadamente o seguinte: “Revisão: VV. Capa e paginação: WW. Fotografia do autor: XX. © GG, S.A., 2008. Reservados todos os direitos. © YY media para fotografias e infogravuras. Infogravuras elaboradas por ZZ” (al. Q).

23. Do livro “..., A Verdade da Mentira” consta nomeadamente o seguinte:

 “Nota introdutória

 Este livro surge da necessidade que senti de repor o meu bom nome, que foi enxovalhado na praça pública, sem que a instituição a que pertencia há 26 anos, a Polícia Judiciária Portuguesa, tenha permitido que me defendesse ou que o fizesse institucionalmente. Pedi autorização para falar nesse sentido, pedido ao qual nunca recebi resposta. Respeitando rigorosamente os regulamentos da Polícia Judiciária, mantive-me em silêncio. Este, porém, era dilacerante para a minha dignidade.

Mais tarde fui afastado da investigação. Entendi então que era a hora de fazer a minha defesa pública.  

 Para tal, pedi imediatamente a passagem à aposentação, de forma a readquirir a plenitude da minha liberdade de expressão.

 Este livro tem ainda um propósito maior. O de contribuir para a descoberta da verdade material e a realização da justiça, na investigação conhecida como «Caso ...». Estes são valores fundamentais aos quais me obriguei por imperativo de consciência, por convicção e por disciplina à instituição a que tive o orgulho de pertencer. Estes mesmos valores não se extinguiram com a minha aposentação e continuarão a estar sempre presentes na minha vida.

 Em nenhuma circunstância o livro põe em causa o trabalho dos meus colegas da Polícia Judiciária, nem compromete a investigação em curso. É meu entendimento profundo que a revelação numa obra deste tipo de todos os factos poderia comprometer diligências futuras determinantes para a descoberta da verdade. Todavia, o leitor encontrará dados que desconhece, interpretações dos factos - sempre à luz do direito - e, naturalmente, interrogações pertinentes.

 Uma investigação criminal apenas se compromete com a busca da verdade material. Não se deve preocupar com o politicamente correcto (págs. 11-12) (…)

Muita coisa foi dita até ao momento - verdades e mentiras, assistindo-se, a par do dever de informação, a campanhas de desinformação que visaram descredibilizar a investigação criminal desenvolvida e os responsáveis pela mesma. Para mim a investigação estava morta desde 2 de Outubro de 2007, quando parecia ter vingado um novo ultimatum inglês no próprio dia em que se discutia o Tratado de Lisboa, pelo que já nada me admirava. Nos últimos tempos tinha assistido a mais um espectáculo mediático, um último forcing pela tese do rapto, com a divulgação por parte da família AABB de um retrato-robô de um presumível raptor. Já nada me surpreende.

-  Não ligues. É Carnaval.

 Prosseguimos com conversa de circunstância, mas senti que, definitivamente, o meu mundo tinha como que colapsado.

 Depois de desligar, voltei a olhar para as amendoeiras, plantadas no chão duro algarvio, chão esse que pode ter tido influência na estratégia de ocultação de um cadáver e, pensei, não se teria Deus precipitado ao fazê-las florir no Inverno? (pag. 16)  (…)

Um inquérito destinado ao arquivo

Tenho o pressentimento de que com aquela declaração o director nacional pretende preparar a opinião pública para o inevitável, ou seja, o fim da investigação e o arquivamento do inquérito. Essa parecia ser a estratégia adoptada em 2 de Outubro de 2007, a qual veio consolidar-se com a realização de diligências para cumprir calendário, um pouco para inglês ver. Temi logo que fosse colocada em causa a investigação realizada até ali, de forma a facilitar um eventual arquivamento. Esta investigação tinha vindo a desgastar a imagem da Polícia Judiciária, dos seus investigadores e de Portugal, e talvez por isso teria de terminar.

A constituição de AA e BB, pais de CC, como arguidos deveria ter sido o ponto de viragem na relação entre as polícias envolvidas e o casal. Se, quanto à polícia portuguesa, essa ruptura aconteceu, o mesmo parece não se poder dizer relativamente à polícia inglesa. Havia um entendimento entre ambas as polícias para avançar num rumo de investigação que encarava seriamente a possibilidade de a morte da criança ter ocorrido no apartamento mas, subitamente, a polícia inglesa inflectiu o rumo sem explicação técnica coerente - como adiante veremos. Causou-nos sempre estranheza a forma como o casal era tratado, mesmo após a sua constituição como arguido, e a informação policial a que eventualmente tiveram acesso.

Mentalmente, vou revendo a investigação, as recordações brotam em catadupa.

Penso principalmente naquela criança que, pouco antes de fazer 4 anos viu, de forma repentina, negado o seu direito à existência, a fazer-se mulher, a uma potencial vida de felicidade e sucesso na companhia dos seus familiares e amigos, que abruptamente se perdeu. Nada faz sentido. Parece estar a ser preparado um abafamento dos factos, diminuindo-se a força de todo e qualquer tipo de indício, esquecendo-se os direitos daquela e de outras crianças. Mas quem é que deseja este resultado? Quem exigiu a minha saída da coordenação operacional da investigação? Quem deseja o fim do estatuto dos AABB e de AAA como arguidos? Aqueles que insistem numa tese de rapto? Os que afirmaram, e adiante direi quem são, que por muito menos já tinham prendido pessoas em Inglaterra? Ou os que insistem na mentira esquecendo a busca da verdade material? A alguém há-de servir o eventual arquivamento do inquérito e o fim das investigações.

Depois da minha saída de … em 2 de Outubro de 2007, tinha decidido esquecer o caso. Talvez fosse melhor, face aos poderes que parecem estar envolvidos.

Se as autoridades do país natal da criança pouco querem saber do que lhe aconteceu, alimentando a tese de rapto, porque terei eu de me preocupar? Não será uma declaração despropositada (ou induzida pela entrevistadora) de um director de polícia que vai conseguir apagar os indícios existentes (também não terá sido dita com essa intenção), o nosso trabalho está plasmado nos autos. Só destruindo-os é que se pode apagar o registo do que foi feito e, mesmo assim, resta-nos a nossa memória e a daqueles que connosco levaram a cargo a árdua tarefa de tentar descobrir a verdade material (págs.. 19-20)  (…)

Sim, morreu uma criança! E digo-o não por juízos de valor, mas por dedução fundamentada pela recolha de informações, indícios e provas de factos que estão plasmados nos autos (pag. 21)  (…)

A prudência de uma decisão

Já em …, encontro o inspector-chefe MM, que integrava a equipa que coordenei.

 Conhecemo-nos desde os tempos em que ingressámos na Polícia Judiciária. Está apreensivo com as palavras do director nacional, fala de um inquérito que já terá solicitado à Direcção Nacional da Polícia Judiciária. Para ele, o inquérito ao nosso trabalho virá repor a verdade.

- Durante os cinco meses em que nos mantivemos na investigação, ouvimos de tudo um pouco, mas fomos realizando o nosso trabalho.

  Relembramos o que fizemos, com muito esforço e, honestamente, temos dúvidas que outros pudessem ter feito melhor. Não é presunção, é confiança no rigor do trabalho de todos os profissionais de polícia envolvidos:

- Ouve! Esta malta não sabe fazer contas? Como se pode falar de precipitação quando o casal foi constituído arguido quatro meses depois dos factos. Eles não conhecem o princípio da não auto-incriminação?

 Referia-se à impossibilidade legal de continuar a recolher declarações de alguém, como testemunha, de forma a que esta dê a conhecer factos que a venham a incriminar. Ou seja, quando alguém está a prestar declarações sobre um determinado caso e, a dado momento, se verifica que esse cidadão terá um eventual envolvimento ou responsabilidade na prática de qualquer acto ilícito, é constituído arguido. Com isso o cidadão tem direitos e deveres. Curiosamente, e ao contrário do que se vê tantas vezes escrito na imprensa, sobretudo na inglesa, o arguido ganha protecção com a possibilidade de se remeter ao silêncio sem que com isso cometa um crime de falsas declarações - como seria o caso se ainda se mantivesse como testemunha.

- Concordo contigo. Se existem erros na investigação esse é um deles. O atraso em proceder à constituição do casal como arguido. Houve política a mais e polícia a menos.

- Bem, não diria tanto. O erro foi termos tratado o casal «com pinças». Bem sabes que desde muito cedo vimos que muita coisa não batia certo e eles foram tratados com privilégios. Isso é que não é normal! (pag. 23)

- Talvez o director nacional pense que o casal só abandonou o Algarve por terem sido constituídos arguidos.

- O casal foi ficando pelo Algarve, enquanto se falava da tese de rapto…quando tal tese foi colocada em causa, começaram logo a falar em regressar a Inglaterra.

- Donde se conclui que a sua constituição como arguidos foi um falso pretexto para abandonarem o nosso país.

- Sabes!? Houve jornalistas ingleses que consideraram Portugal um país do Terceiro Mundo… discordei e continuo a discordar, no entanto, só num país de Terceiro Mundo é que se afasta o responsável por uma investigação criminal em curso, sem que o mesmo tivesse sido posto em causa pela investigação que conduzia.

- Fala-se muito na governamentalização da justiça … esquece-se a forma como se pode influenciar uma qualquer investigação criminal…

- É fácil… distribui-se a investigação a pessoas da nossa confiança … ou então, se as coisas não correm bem, mudam-se os responsáveis pelas mesmas…

- Não me parece que tenha sido essa a razão de fundo, mas…

- Existem sempre argumentos válidos e legais… Enfim. O único obstáculo a essa gestão da investigação, quase política…são os dirigentes máximos das polícias.

  É preciso que se oponham a situações dúbias e contrárias ao interesse da investigação. Não podem concordar com tudo só para ficarem agarrados ao poder…

- Companheiro… As pessoas não dirigem as polícias por interesses pessoais … dirigem-nas na prossecução do interesse público. Só assim se pode entender o papel das polícias num Estado democrático e de direito.

- Mas, olha!... Podemos chegar ao ponto em que determinadas investigações só serão realizadas por quem os arguidos quiserem…. talvez fosse uma questão de “modernidade”.

- De modernidade ou de interesses… isto é tudo uma merda! (págs.. 22-24)  (…)

  Burla ou abuso de confiança?

 Num momento de relaxe de uma destas reuniões, terei cometido um deslize ou, quiçá, terei sido inoportuno e pouco diplomático. Preocupado com a possibilidade de o casal AABB estar, de alguma forma, envolvido no desaparecimento de sua filha, e quando raciocinava quanto aos tipos de crime que os mesmos pudessem ter praticado, apercebi-me de um facto. Se, realmente, se viesse a confirmar qualquer tipo de responsabilidade do casal AABB, então poderia estar em causa, relativamente ao fundo criado para as buscas por CC, que atingia mais de 2 milhões de libras, um crime de burla ou abuso de confiança. Abriu-se então o debate e, de facto, com as premissas indicadas, os crimes de burla qualificada ou abuso de confiança poderiam existir, mas Portugal não teria jurisdição para investigar e julgar por tal crime. Esta pertenceria ao Reino Unido, por o fundo se encontrar registado naquele país. Os colegas ingleses aperceberam-se então de uma dura realidade: a forte possibilidade de terem um crime para investigar no seu país, tendo como eventuais suspeitos o casal AABB, coisa que parecia não lhes agradar muito. Tendo-me apercebido de uma repentina palidez na face dos britânicos presentes (pág. 193)  (…)

  Um desaparecimento, uma janela e um cadáver

  Aqui chegados importa fazer uma síntese dedutiva sobre este caso. Ou seja, rejeitar o que é falso; afastar o que não se pode provar, por insuficiente; dar como válido e adquirido aquilo de que se fez prova.

 Assim:

 1. A tese do rapto é defendida desde a primeira hora pelos pais de CC;

 2. No seio do grupo, apenas os seus progenitores declaram ter observado a janela aberta no quarto da menina desaparecida; a maioria não pode testemunhá-lo fielmente por ter acorrido ao apartamento já depois de ter sido dado o alarme;

 3. O único depoimento externo ao grupo que refere a janela aberta e os estores levantados, é o de BBB, uma das educadoras do NN, que aponta a sua observação para cerca das 22h20 / 22h30, logo, bastante depois de ser dado o alarme e não provando que aquela assim estivesse aberta à hora em que ocorreu o crime;

 4. O conjunto de depoimentos e testemunhos evidenciam um elevado número de imprecisões, incongruências e contradições - o que poderá ser tipificado, em alguns casos, como falsos testemunhos. Em particular, o depoimento-chave para a tese do rapto, o de JJ, perde toda a credibilidade por ter evoluído sucessivamente ao longo de vários momentos, tornando-se ambíguo e desqualificando-se;

 6. Há um cadáver não localizado, constatação validada pelos cães ingleses EVRD e CSI e corroborados pelos relatórios laboratoriais preliminares (págs. 219-220)” (al. I).

24. O R. FF concluiu no livro “..., A Verdade da Mentira” o seguinte:

 “Para mim e para os investigadores que comigo trabalharam no caso até Outubro de 2007, os resultados a que chegámos foram os seguintes:

 1. A menor CC morreu no apartamento 0-X do NN, da ..., na noite de 3 de Maio de 2007;

 2. Ocorreu uma simulação de rapto;

 3. AA e BB são suspeitos de envolvimento na ocultação do cadáver da sua filha;

 4. A morte poderá ter sobrevindo em resultado de um trágico acidente.

 5. Existem indícios de negligência na guarda e segurança dos filhos (págs. 220-221)” (al. J).

25. O livro “..., A Verdade da Mentira” foi lançado no dia 24/7/2008, no centro comercial CCC, em … (al. R).

26. No dia do seu lançamento, em 24/7/2008, o livro foi também vendido com o jornal “LL” (al. S).

27. O livro “..., A Verdade da Mentira” teve as seguintes edições em Portugal: 1ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 30.000 exemplares; 2ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 3ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 4ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 30.000 exemplares; 5ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 25.000 exemplares; 6ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 7ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 15.000 exemplares; 8ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 9ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 10ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 11ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; e 12ª, em 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares (al. T).

28. O livro foi publicado, através de outras editoras, nos seguintes países: em Espanha, em Setembro de 2008, com eventual comercialização em castelhano nos países da América Latina; na Dinamarca, em Novembro de 2008, com eventual comercialização noutros países nórdicos; em Itália, em Dezembro de 2008, com comercialização em língua italiana para todo o mundo; na Holanda, em Abril de 2009, com comercialização em língua neerlandesa para todo o mundo; em França, em Maio de 2009, com comercialização em língua francesa para todo o mundo; na Alemanha, em Junho de 2009, com comercialização também na Áustria e Suíça (al. U).

29. No âmbito da providência cautelar apensa, foram entregues à mandatária dos AA. cerca de sete mil exemplares do livro (al. V).

30. Circulam na Internet, sem autorização da R. GG, SA, uma versão inglesa e uma versão portuguesa do livro (al. X).

31. O preço de capa do livro “..., A Verdade da Mentira”, em Portugal, foi fixado pela R. GG, SA, em € 13,33, com IVA incluído (art. 2º ).

32. A venda dos livros foi efectuada, em parte, à consignação e, noutra parte, em conta firme com direito a devolução, estando sujeita a devoluções por diversos motivos, nomeadamente, defeitos de fabrico, manuseamento ou não transacção (art. 23º ).

33. O R. FF auferiu com a venda do livro “... A Verdade da Mentira”, nos anos de 2008 e 2009, a quantia de € 342.111,86 (arts. 3º e 4º ).

34. A R. HH, SA, é uma sociedade comercial, que tem por objecto designadamente a criação, desenvolvimento, produção, promoção, comercialização, distribuição, exibição e difusão de obras cinematográficas e audiovisuais (al. AA).

35. Em 7/3/2008, o R. FF e a R. HH, SA, celebraram o acordo escrito junto a fls. 282-283, denominado “opção de direitos - deal memo”, através do qual o R. FF cedeu à R. HH, SA, em exclusivo, os direitos de adaptação audiovisual (documentário e ficção) de um livro sobre a investigação do desaparecimento da Praia da ... (al. AB).

36. Em 11/3/2008, o R. FF e a R. HH, SA, celebraram o acordo escrito junto a fls. 284-288, denominado “cessão de direitos - contrato de opção”, através do qual o R. FF cedeu à R. HH, SA, em exclusivo, por um período de dois anos, o direito de opção para proceder à adaptação do livro “…, A Verdade da Mentira” para um documentário e ou ficção, que poderá ter o formato de um filme para cinema ou de um telefilme para televisão (al. AC).

37. A cláusula 2ª deste acordo tem a seguinte redacção: “Pela cessão desse direito exclusivo de opção, a HH obriga-se a pagar ao autor a importância ilíquida de € 25.000, sujeita às taxas legais, e acrescida do IVA respectivo (...).” (al. AD).

38. Da cláusula 4ª deste acordo consta nomeadamente o seguinte: “1. Para a adaptação do livro a documentário, o autor obriga-se a participar como narrador, cedendo todos os direitos de imagem e de som. 2. Por essa participação, e pela cedência de todo o conteúdo patrimonial dos direitos de autor e conexos à HH, o autor receberá a importância ilíquida de € 15.000, sujeitos à taxa legal. (…)  3. Pela cedência dos direitos referidos no ponto anterior, o autor receberá 10% de todas as receitas, nacionais e internacionais, da exploração do documentário (em todas as plataformas e em todos os suportes inventados e a inventar) após dedução dos custos de produção.” (al. AE).

39. A R. HH, SA, acordou com a sociedade HH Multimédia, S.A, em 6/6/2008, ceder a esta os direitos de comercialização, distribuição, exibição e difusão de um conjunto de obras cinematográficas e audiovisuais (filmes, mini-séries e documentários) que se propunha produzir num prazo de 5 anos (art. 30º da base instrutória).

40. A R. HH, SA, produziu o documentário intitulado “..., A Verdade da Mentira”, realizado por DDD, que corresponde à adaptação da obra literária (livro) do R. FF, documentário esse que o DVD junto aos autos reproduz (al. AF).

41. No início do documentário, o R. FF afirma o seguinte:

 “O meu nome é FF e fui investigador da Polícia Judiciária durante 27 anos. Coordenei a investigação do desaparecimento de CC no dia 3 de Maio de 2007. Nos próximos 50 minutos, vou provar que a criança não foi raptada e que morreu no apartamento de férias na Praia da .... Descubra toda a verdade sobre o que se passou naquele dia. Uma morte que muita gente quer encobrir.” (al. AG).

42. No final do documentário, o R. FF afirma o seguinte:

 “Aquilo que sei diz-me que CC morreu no apartamento 0-X no dia 3 de Maio de 2007. Tenho a certeza de que esta verdade um dia será apurada. A investigação foi brutalmente interrompida e houve um arquivamento político e precipitado. Há quem esconda a verdade, mas mais tarde ou mais cedo, o verniz vai estalar e as revelações vão surgir. Só então haverá justiça para CC” (al. AH).

43. A R. HH, SA, concluiu o documentário com a seguinte declaração:

 “O mistério persiste, o ex-inspector acredita que um dia se saberá a verdade. Por enquanto só sabemos que no dia 3 de Maio de 2007, CC desapareceu na Praia da .... Tinha 3 anos de idade e era uma criança feliz” (al. AI).

44. Na sequência de deliberação social tomada no dia 27/10/2008 ocorreu um aumento do capital da R. HH, SA, o qual foi registado em 28/9/2009, pelo qual o capital da mesma sociedade passou a ser detido, na proporção de 60% pela sociedade Estúdios HH - Gravações e Audiovisuais, SA e, na proporção de 40%, pelo Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual (art. 29º).

45. Nos dias 13/4/2009 e 12/5/2009 o documentário foi transmitido pela R. II, SA (al. AJ).

46. Antes da emissão do documentário, a R. II, SA, emitiu a seguinte declaração:

 “O programa que se segue é um documentário baseado no livro de FF, ex-inspector da PJ que investigou o desaparecimento de CC, no Algarve. A sua versão dos acontecimentos é repudiada pelos pais de CC, que continuam a defender tratar-se de um caso de rapto.

O processo crime conduzido pelas autoridades portuguesas terminou com o arquivamento do inquérito, decisão contestada por FF.

Mais do que apontar responsáveis, tarefa que incumbe à justiça, a emissão deste documentário destina-se a contribuir para que se faça luz sobre um caso que permanece um mistério por desvendar, há quase dois anos, e que se facultem elementos que ajudem a sua compreensão por parte da opinião pública” (al. AL).

47. Pelo menos dois milhões e duzentas mil pessoas assistiram ao programa transmitido no dia 13/4/2009 (art. 10º).

48. O R. FF deu uma entrevista ao jornal “LL”, conduzida pelos jornalistas EEE e FFF, publicada na edição de 24/7/2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com chamada de 1ª página, tendo-lhe sido atribuídas nomeadamente as seguintes afirmações:

 “LL - Qual é a sua tese, como investigador do caso?

  FF - A menina morreu no apartamento. Está tudo no livro, que é fiel à investigação até Setembro: reflecte o entendimento das polícias portuguesa, inglesa e do Ministério Público. Para todos nós, até ali estavam provadas: a ocultação do cadáver, simulação de rapto e exposição ao abandono.”

  LL - O que o levou a indiciar os AABB por todos esses crimes?

  FF - Tudo começa numa teoria de rapto forçada pelos pais. E o rapto baseia-se em dois factos: um é o testemunho de JJ, que diz que viu um homem passar à frente do apartamento com uma criança ao colo; o outro é a janela do quarto que, segundo AA, estava aberta quando devia estar fechada. Provou-se que nada disso aconteceu.

  LL - Como é que se provou?

 FF - JJ não é credível: identifica e reconhece pessoas diferentes. Começa por AAA, mais tarde fala-se noutra pessoa, pelo desenho feito por uma testemunha, e ela já diz que é aquela, completamente diferente de AAA.

  LL - O testemunho de JJ orientou a tese de rapto.

 FF - Para se avançar por aí era preciso dar-lhe crédito: nada mais indiciava o rapto. E a questão da janela do quarto, onde CC e os irmãos dormiam, é fulcral. Leva à simulação. Isto é, se estava ou não aberta quando JJ diz que viu o homem de criança ao colo. A mãe da menina, AA, é a única a falar na janela aberta.

 LL - Isso desmonta a tese de rapto?

 FF - Ali está a solução. Estar ou não fechada indicia fortemente simulação. E porque é que se simula rapto e não se diz que a criança desapareceu?

  Pode ter aberto a porta e saído…

  LL - As impressões digitais de AA reforçam a tese de simulação?

  FF - São as únicas impressões digitais na janela. E em posição de forma a abrir a janela. (…)

  LL - O que é que na sua opinião aconteceu ao corpo?

 FF - Tudo indiciava que o corpo, depois de estar num determinado local, foi movimentado de carro para outro, vinte e tal dias depois. Com os vestígios encontrados no carro, a menina teria de ter sido ali transportada.

  LL - Como é que pode afirmar isso?

 FF - Por aquele tipo de fluido, dizemos nós polícias, peritos, que o cadáver foi congelado ou conservado em frio e ao ser colocado na bagageira, com o calor que fazia na altura, parte do gelo derreteu. Numa curva, por exemplo, caiu alguma coisa do lado direito da mala, por cima da roda. Podem dizer que é especulação, mas é a única forma de explicar o que ali aconteceu.

 LL - Se o corpo foi primeiro escondido na zona da praia esteve sempre fora do alcance das buscas?

 FF - A praia foi batida a uma hora que não se sabe se o corpo ainda lá estava. Utilizando cães, mas os cães-pisteiros têm limitações, como a água salgada, por exemplo. Depois poderá ter sido removido” (al. Z).

49. O R. FF proferiu as afirmações que lhe são atribuídas no número anterior (art. 1º).

50. O R. FF concedeu entrevistas à R. II, SA, nos dias 16/5/2009 e 27/5/2009 (al. AM).

51. No final de Abril de 2009, o documentário começou a ser comercializado em DVD, com o título e subtítulo “… A Verdade da Mentira - Um poderoso documentário baseado no best-seller “A Verdade da Mentira” de FF” (al. AN).

52. O DVD referido no número anterior foi editado e as cópias editadas foram comercializadas pela sociedade HH Multimédia, SA, mediante acordo celebrado com a sociedade GGG, SA (art. 8º).

53. Foram distribuídos para venda 75.000 exemplares do DVD (al. AO).

54. 63.369 exemplares do DVD não foram vendidos, tendo sido posteriormente destruídos (art. 18º ).

55. Na capa do vídeo encontra-se, a vermelho, a palavra “confidencial” (al. AP).

56. O DVD foi vendido pela sociedade GGG, SA, conjuntamente com o jornal de que era proprietária - “LL” - ao preço de venda ao público de € 6,95, com IVA incluído (art. 6º).

57. Até à presente data, o documentário só uma vez foi reproduzido para ser editado, publicado e comercializado em Portugal em formato vídeo, no caso o DVD referido no nº 42 (art. 31º).

58. A reprodução e a edição do documentário em formato vídeo foram autorizadas pela HH Multimédia, SA, à sociedade GGG, SA, proprietária do jornal LL, conforme contrato entre ambas estabelecido (art. 32º).

59. Nos termos do qual, os DVD, respectivas capas e embalagens seriam, como foram, fabricados por conta, ordem e sob a responsabilidade da GGG, para serem distribuídos e comercializados conjunta- mente com o jornal LL (art. 33º).

60. E todo o processo de registo e classificação da edição em vídeo (DVD) do documentário junto do IGAC seria, como foi, desenvolvido pela HH Multimédia, processo esse cujos custos a GGG suportaria, como suportou (art. 34º).

61. O DVD do documentário foi distribuído para venda em conjunto com a distribuição para venda do jornal “LL” (art. 35º).

62. O R. FF auferiu com a venda do DVD, no ano de 2008, a quantia de € 40.000 (art. 7º).

63. O documentário foi reproduzido, inclusive legendado em língua inglesa, por terceiros que o difundiram na Internet, sem a autorização e contra a vontade da R. HH, SA (art. 36º).

64. Essa difusão ilícita prejudica não só os direitos de que a R. HH, SA, é titular sobre o documentário, como a respectiva exploração comercial, pois qualquer cidadão pode aceder ao documentário, também à distância de um “clic” (art. 37º).

65. A Procuradoria da República de … determinou a criação de uma cópia digital do processo de inquérito, com ressalva de elementos sujeitos a sigilo absoluto, e a sua entrega, sob requerimento, a diversas pessoas, nomeadamente jornalistas, o que ocorreu (al. AX).

66. O conteúdo de tal cópia digital foi divulgado, designadamente através da Internet, tendo sido conhecido, comentado e discutido pública e universalmente (al. AZ).

67. Os AA. AA e BB alertaram a imprensa para o desaparecimento da sua filha (al. BA).

68. Os AA. AA e BB concederam uma entrevista ao programa norte-americano de televisão “HHH”, apresentado por III, revelando a existências de novos testemunhos, reconstituições e retratos robot (al. BB).

69. A entrevista ao programa “HHH” foi transmitida para o mundo inteiro por sinais disponíveis através de satélites e de redes de cabo (al. BC).

70. Esta entrevista para o programa “HHH” foi transmitida, em Portugal, pela JJJ, nos dias 9/5/2009 e 12/5/2009 (al. BD).

71. Os AA. AA e BB, em colaboração com a estação televisiva britânica “KKK”, realizaram um documentário sobre o desaparecimento da sua filha, intitulado “Still missing CC”, com a duração de 60 minutos (al. BE).

72. Em 15/4/2009, a R. II, SA, celebrou um acordo preliminar, com vista ao licenciamento da transmissão, em exclusivo, em Portugal, do documentário “Still missing CC”, por € 35.000 (al. BF).

73. Os AA. AA e BB deram instruções para que o licenciamento da transmissão do documentário “Still missing CC” não fosse atribuído à R. II, SA (al. BG).

74. O documentário “Still missing CC”, sob a tradução “…, dois anos de angústia”, foi transmitido pela JJJ no dia 12/5/2009 (al. BH).

75. Em 17/10/2007, LLL, porta-voz dos AA. AA e BB, afirmou que estes eram suficientemente realistas para admitirem que a sua filha estaria provavelmente morta (al. BI).

76. Era enorme o interesse público, em Portugal e por todo o mundo, acerca dos acontecimentos que rodearam o desaparecimento de CC, das investigações levadas a efeito para a encontrar e para apurar o que de facto sucedeu, sua evolução e vicissitudes, nestas se incluindo a constituição dos AA. AA e BB como arguidos no correspondente processo de inquérito e o afastamento do R. FF das investigações que neste processo foram desenvolvidas sob sua coordenação (al. BJ).

77. Os AA. AA e BB contrataram, através do Fundo CC, empresas de comunicação e porta-vozes (al. BL, dos factos assentes).

78. O denominado “Caso ...” tem sido profundamente tratado na sociedade portuguesa e estrangeira, seja por órgãos da comunicação social, seja em livros, como foram as obras da autora de MMM, NNN e OOO (art. 24º).

79. O denominado “Caso ...” foi comentado pelo dr. PPP, ex-inspector, escritor, criminalista e comentador, nessa qualidade, em diversos órgãos de comunicação social (art. 25º).

80. Os factos relativos à investigação criminal do desaparecimento de CC que o R. FF refere no livro, na entrevista ao jornal “LL” e no documentário são, na sua maioria, factos ocorridos e documentados nessa investigação (arts. 27º e 28º).

81. Em consequência das afirmações do R. FF no livro, no documentário e na entrevista ao LL, os AA. AA e BB sentiram raiva, desespero, angústia, preocupação, tendo sofrido insónias e falta de apetite (art. 13º).

82. Os mesmos AA. sentem mal-estar por serem considerados, pelas pessoas que acreditam na tese do R. FF sobre o desaparecimento de CC, como responsáveis pela ocultação do cadáver desta e como autores da simulação do seu rapto (art. 14º).

83. Os AA. AA e BB sentem, com muita preocupação, a necessidade de afastarem os filhos mais novos do conhecimento da tese referida no número anterior (art. 15º).

84. Sean e EE ingressaram na escola em Agosto de 2010 não tendo ainda tomado conhecimento da tese do R. FF referida no mesmo número (art. 17º, da base instrutória).

FACTOS NÃO PROVADOS

a) Que o preço de capa do livro “..., A Verdade da Mentira” em Portugal seja de €13,80, IVA incluído;

b) Que o réu FF tivesse auferido com a venda da edição portuguesa  do livro “..., A Verdade da Mentira” quantia não inferior a €621.000,00;

c) Que o réu FF tivesse auferido com a venda das edições em língua estrangeira do livro quantia não inferior a €498.750,00;

d) Que o livro tivesse sido comercializado no Brasil pela ré “GG, S.A.”;

e) Que o DVD tenha o preço de capa de € 6,00;

f) Que o réu FF tivesse auferido com a venda do DVD quantia não inferior a €112.500,00;

g) Que o DVD tivesse sido editado e as cópias editadas tivessem sido comercializadas pela ré “HH S.A.”;

h) Que a ré “HH, S.A.” já tivesse colocado disponível o DVD, em versão inglesa, para entrega imediata através de encomenda pela Internet;

i) Que por causa das afirmações do réu FF no livro, no documentário e na entrevista ao LL, a Policia Judiciária tivesse deixado de recolher informação e de investigar o desaparecimento de CC;

j) Que por causa das afirmações do réu FF no livro, no documentário e na entrevista ao LL, os autores AA e BB se encontrem totalmente destruídos, de um ponto de vista moral, social, ético, sentimental, familiar, muito para além da dor que a ausência da sua filha lhes provoca;

k) Que nomeadamente por causa das afirmações do réu FF no livro, no documentário e na entrevista ao LL, a autora AA se encontre mergulhada numa depressão grave e profunda, que já a fez declarar publicamente “Queria estar em coma, para aliviar a dor”;

l) Que o réu FF tivesse ficado na situação de aposentado da Policia Judiciária a partir de 1.6.2008;

m) Que o inquérito criminal tivesse sido reaberto pelo surgimento de novas provas;

n) Que a atenção da comunicação social e das pessoas em geral tivesse diminuído com a publicação do livro do réu FF.

2.2. Os recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões:

a. Para subsumir o facto à previsão especial de ilicitude do artigo484° do Código Civil, basta que o facto afirmado ou divulgado seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de abalar o prestígio de que a pessoa goze, ou o bom conceito em que seja tida no meio social.

b. É suscetível de abalar o prestígio de que a pessoa goze, ou o bom conceito em que seja tida no meio social, um livro e demais sucedâneos comunicacionais que não relatam essencialmente quaisquer factos, meios de prova ou indícios pertencentes ao processo-crime a que aludem, por os mesmos terem sido julgados inexistentes pelo respetivo despacho de arquivamento.

c. Abala também a honra, o bom nome e a imagem de qualquer pessoa inocente, e já anteriormente inocentada por via de despacho de arquivamento de processo-crime (cuja conclusão é a de que não existem quaisquer meios de prova ou indícios do cometimento por ela de quaisquer crime), um livro, um documentário e uma entrevista extravagantes a esse processo-crime, e não fazendo parte desses suportes comunicacionais sequer a menção àquele despacho arquivamento, mas exatamente o contrário do que este postula.

d. E mais abala a honra, o bom nome e a imagem de qualquer cidadão inocente e inocentado, os suportes de comunicação que pretendem e conseguem desrespeitar e enfraquecer o julgamento alcançado por magistrados do Estado, únicos detentores da ação penal, representando o cidadão por eles visado, aos olhos dos restantes cidadãos, como suspeito da prática de crimes, por meio da utilização de concretas circunstâncias publicistas que apregoam a "verdade da mentira", "revelações únicas" e "confidenciais", e que irão provar os crimes de que visam o cidadão inocente, tudo com o intuito confesso de inculcar face a terceiros a convicção de que uma criança morreu e que seus pais estão envolvidos na ocultação do seu cadáver, simulando rapto e burlando a justiça e o cidadão comum.

e. O direito de livre expressão não é absoluto devendo respeitar o direito à honra e ao bom nome, podendo ser passível de sanção legal, quando essa expressão, mesmo que de facto verdadeiro, seja abusiva e, portanto, antijurídica.

f. O direito-dever de expressar o pensamento tem de ser exercido com claro índice cívico, de respeito do Homem pelo Homem, e a informação deve pautar-se por regras éticas e morais rigorosas, adequadas a uma natural convivência cívica.

g. Não cabem no conceito constitucional ou convencional de liberdade de expressão, vigente em qualquer País democrático do Mundo, atos abusivos e lesivos de expressão opinativa de um funcionário público aposentado, que desafiam, sem sustentação lógica, honesta e válida, uma decisão judicial intocada e proferida no processo que aquele mesmo funcionário investigou, por meio de comportamento contrários ao seu próprio estatuto profissional, à paz social e aos direitos de personalidade de terceiros, atos esses exclusivamente destinados a obter lucros financeiros e sociais, e a criar um fenómeno popular cuja repercussão beneficia os lesantes e acarreta danos ponderosos e indeléveis aos lesados, até por serem tais comportamentos proibidos não só face a direitos absolutos dos visados, mas também atentos os deveres a que um funcionário aposentado continua obrigado.

h. No caso dos autos, uma possível sobrevalorização, em relação aos direitos nunca comprimidos de personalidade dos visados pelo exercício abusivo do um bem jurídico e interesse constitucional não absoluto - Liberdade de Expressão, Liberdade de Informação, Liberdade de Imprensa - não apenas é inaceitável, como repugna ao Homem, por ser um exercício ilegítimo, ilegal, abusivo e antijurídico de direitos, constituir um trato degradante e desumano e consubstanciar uma conduta inconstitucional, violador de tratados internacionais sobre direito humanitário, imoral e antiética.

i. Os direitos invocados pelos Recorrentes nas ações principais e já reconhecidos por três das sentenças anteriormente proferidas em 1a instância, enquadram-se e justificam-se por via do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, até agora caraterizadora do perfil politico-sociológico do Estado português, com expressão na regulação da tutela do direito ao bom nome e reputação, na tutela da proteção da sua inocência, na tutela jurisdicional efetiva e na tutela do direito à vida e à integridade pessoais.

j. A liberdade de expressão, imprensa e comunicação social, numa sociedade do primado do direito como a portuguesa, não contêm em si qualquer garantia especialmente poderosa e incompressível, e o seu regime não se sobrepõe aos direitos de personalidade convocados nos autos pelos Recorrentes, devendo, por isso, ceder perante eles, com vista a assegurar maiores objetivos constitucionais.

k. A liberdade de expressão e de comunicação social, representando um poder de facto, obriga o Estado, nessas circunstâncias, a assegurar, nomeadamente através dos seus Tribunais, um sistema de garantias efetivas dos direitos fundamentais dos cidadãos, perante tal poder, no cumprimento do princípio fundamental do Estado de Direito Democrático, que é o do respeito e garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

l. Em Portugal, perante a Constituição da República Portuguesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e a Convenção dos Direitos da Criança, não é permitido escrever, difundir por todos os meios e comentar com todas as nuances possíveis, uma tese que inculpa criminalmente cidadãos inocentes e nunca, sequer, acusados judicialmente dos crimes que ela contém, não cabendo ao Estado e aos Tribunais proteger quem assim age, mas sim proteger os cidadãos de tais agressões.

m. Exatamente por serem não só absolutamente inocentes, mas também por terem direito a beneficiar do princípio da presunção de inocência ao atuar e se comportar como qualquer outro cidadão não constituído arguido em processo criminal, tudo o que os pais de uma criança desaparecida façam, dentro da legalidade, por si, para reaver a sua filha ou em representação dela ou saber o que lhe aconteceu, deve ser acolhido por Portugal, não como uma compressão voluntária de direitos fundamentais de personalidade desses pais, mas como uma atividade protegida pelo direito interno e internacional, não cabendo sequer no âmbito de possível crítica a esse comportamento, a afirmação e difusão urbi et orbe da tese proclama pelos Recorridos.

n. O entendimento judicial contrário às conclusões supra, plasmado no acórdão recorrido, ao promover e possibilitar no caso concreto dos autos a republicação do livro ou do filme, e a absolvição dos Recorridos de pagar adequada e proporcionalmente os prejuízos indeléveis que causaram aos Recorrentes por força da sua atuação e suportes comunicacionais ilícitos, conforme, aliás, anteriormente decidido e proclamado por três das sentenças de l.ª instância proferidas nos autos, está:

Por um lado, ferido de vício de interpretação e aplicação erróneas ao caso dos autos do disposto nos artigos 12.° da DUDH. 6°, 8° e 10° da CEDH, artigos 5°, 6°, 9.° 11.° 13°, 14°, 16°, 17° e 34° a 37° da Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, os artigos 1°, 2°, 8°, 20.° 26°, 32°, 37°, 38° e 272°, todos da CRP, os artigos 70°, 80°, 81.° 335°, n° 2, 483° e 484°, todos do CC, o artigo 371 ° do CP, o artigo 74° do D.L 498/72, de 9 de Dezembro, e o artigo 3° do EDTEFP, consagrado pelo DL 24/84, de 16 de Janeiro e, na versão subsequente ainda aplicável aos autos, na Lei 58/2008, de 9 de Setembro.

Por outro, ferido de inconstitucionalidade material, por força do entendimento normativo que a decisão ora recorrida deu às normas jurídicas vertidas nos artigos 1.°, 2°, 8°, 16° n°s l e 2, 18°, n.0 2, 20.° 26° n0 l. 32°, n0 2 e 37.° n.0 4 da CRP:

A) quando interpretadas e aplicadas ao caso concreto dos autos, no sentido de permitir a republicação do livro ou do filme, e a absolvição dos Recorridos de pagar adequada e proporcionalmente os prejuízos indeléveis que causaram aos Recorrentes  por  força  da  sua  atuação  e  suportes comunicacionais abusivos e ilícitos, e B) quando é mais certo que essa interpretação e aplicação dos referidos preceitos constitucionais, se mostra incompatível com os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da tutela geral da personalidade e do direito ao bom nome e reputação, e, ainda, das tutelas jurisdicional efetiva e da presunção de inocência.

TERMOS EM QUE, e no mais de Direito que V. Exas. certamente suprirão, sempre tendo em vista a reposição da justíssima sentença agora revogada por força do acórdão do TR… recorrido,

Devem Vs. Exas. julgar totalmente procedente o recurso de Revista Ordinário interposto pelos Recorrentes;

Mais devendo, em consequência, ser tal decisão integralmente substituída por outra que, aplicando o Direito aos Factos, pelo menos,

l) Declare a antijuridicidade dos factos imputáveis aos Recorridos e a sua culpa no cometimento dos mesmos;

2) Reconheça que as sociedades Recorridas constituíram-se como veículos do ilícito cometido pelo Recorrido FF, pelo que são sujeitos passivos das medidas que ao abrigo do artigo 70.°, n.° 2 do Código Civil devem ser ordenadas no caso, de acordo com critérios de adequação e proporcionalidade, exatamente para atenuar os efeitos desse ilícito;

3) Reconheça que tais medidas devem consistir na proibição de venda e na ordem de recolha dos livros, dirigidas aos Recorridos FF e GG, SA para entrega aos Recorrentes;

4) Decrete a proibição de execução de novas edições do livro ou do DVD, bem como de cedência dos direitos de edição e de autor, devendo tal injunção ser dirigida contra os Recorridos FF, GG e HH, que é, esta última, em face do primeiro, a titular dos direitos de adaptação audiovisual do livro;

5) Fixe sanção compulsória adequada, de acordo com o disposto no n° l do art° 829°-A do Código Civil, para as prestações de facto infungível, considerando-se proporcional um montante nunca inferior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros) por cada infracção a esse comando ( n° 2 do art° 829°-A do Código Civil);

6) Compense os danos comprovadamente verificados nas esferas jurídicas dos Recorrentes, e que são causa direta e necessária do comportamento ilícito, culposo e abusivo do Recorrido FF, danos esses que, ponderado o grau de culpa do lesante, a gravidade da ofensa, as circunstâncias temporais e sociais em que foram cometidos os factos, e, porquanto particularmente relevante no caso concreto, o valor dos benefícios auferidos por aquele com o ilícito, não devem ser ressarcidos com quantia indemnizatória inferior à peticionada nos autos por cada um dos ora Recorrentes, e a eles anteriormente arbitrada, nessa exacta medida, pela sentença agora revogada pelo TR….

2.3. A recorrida GG, SA, contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

A. Está, entre outros, em causa nos presentes autos, o livro "…/ A Verdade da Mentira", da autoria do Recorrido, FF, editado pela Recorrida, em cumprimento de contrato celebrado a 10 de Março de 2008 e que foi publicado a 24 de Julho desse mesmo ano.

B. Circulam na internet, sem autorização da Recorrida, uma versão inglesa e uma versão portuguesa do livro em causa nos presentes autos/ e uma versão do documentário, com legendagem em língua inglesa, para além de cópia integral do processo crime.

C. A acção que deu origem os presentes autos e de que Recorrida é parte, foi intentada também contra a II, que foi absolvida por sentença proferida em 1a instância, que já transitou em julgado quanto a esta.

D. Ou seja, os Recorrentes aceitaram a absolvição em primeira instância da Ré II que tinha difundido, por duas vezes, um documentário elaborado com base no livro da autoria do Recorrido FF e publicado pela ora Recorrida e, em consequência, aceitaram que tal Ré pudesse difundir o documentário e divulgar de alguma forma a tese vertida no livro.

E. Com excepção da alínea a) do pedido formulado na ação, todas as demais alíneas se dirigem a todos os Réus da acção, onde se incluía a II, logo, os Recorrentes não se importam que a Ré II possa praticar os factos que pretenderam acautelar com a presente acção, mas a Recorrida e os demais não.

F. Com o aceitar da absolvição da Ré II, o presente recurso que visa perseguir os Recorridos FF, GG e HH, consubstancia abuso de direito previsto no artigo 334a do CC e implica a improcedência do presente recurso.

G. Estamos num Estado de Direito Democrático, baseado no pluralismo de expressão, que assegura a liberdade de pensamento e a sua livre divulgação, para além de devermos todos contribuir para o enriquecimento da cultura, pela publicação de livros e documentários.

H. E indiscutível a notoriedade e a fama que os Recorrentes alcançaram em Portugal e no Mundo, pelo que, não podem estes permitir que os órgãos de comunicação social lhe façam entrevistas, até na intimidade do seu lar, se tal lhes é favorável, e depois proibir a publicação de livros ou comentários até, sobre factos públicos, quando alegadamente estas lhe podem ser desfavoráveis.

I. Assim, a esfera da vida privada dos Recorrentes, quer pela sua notoriedade, quer por sua opção, não pode deixar de se considerar reduzida, nomeadamente para os termos e efeitos do disposto no nº 2 do artigo 80° do CC.

J. Os Recorrentes mantêm na mesma medida a dignidade da pessoa humana, o bom nome e reputação e a presunção de inocência, que tinham antes e depois da publicação do livro em causa.

K. Há uma cronologia e sucessão de factos públicos e notórios que não podem ser omitidos, que estão plasmados na factualidade dada como provada elencada no acórdão recorrido e do despacho de arquivamento também nela incluído.

L. Desde o desaparecimento da menor, até à presente data, os Recorrentes têm difundido a opinião deles sobre os factos, ]'á que estes são ainda hoje desconhecidos.

M. Assim como os Recorrentes, todo e qualquer cidadão tem direito a ter uma opinião sobre os factos e a difundi-la.

N. Os direitos à liberdade de expressão e informação e o direito à liberdade de imprensa e meios de comunicação social, estão consagrados nos artigos 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa.

O. E, o direito à liberdade de expressão encontra-se ainda consagrado nos artigos 19° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 10° da Convenção Europeia do Direitos do Homem.

P. Contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, são várias as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que podemos consultar, que têm vindo a condenar os tribunais portugueses por violação do direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa ao condenar jornalistas e outros cidadãos por difamação.

Q. O TEDH entende que o direito à liberdade de expressão trata-se de um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática.

R. Também o Supremo Tribunal de Justiça em Portugal tem vindo a proferir Acórdãos que valorizam o direito à liberdade de expressão, em detrimento de outros direitos.

S. Face ao exposto, não restam dúvidas que o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade de imprensa, são fundamentais num estado de direito democrático.

T. Como se disse, foram os próprios Recorrentes que optaram livre e conscientemente, por tornarem públicos factos, que de resto não se podem considerar da vida privada e familiar.

U. O pedido de injunções protetivas dos direitos de personalidade dos Recorrentes peticionadas, não são aptas ao fim em causa, para além de ilegais.

V. E, só poderiam ser aplicadas após a sua análise detalhada, para verificar, caso a caso, se elas são legais, adequadas e proporcionais ao caso concreto e quem são os destinatários das mesmas, o que está vedado a esse Tribunal.

W- Os presentes autos são compostos por duas acções distintas com valores diferentes, sendo que a Recorrida é parte numa acção com o valor de € 30.000,01, pelo que, é esse o valor de sucumbência.

X. O acórdão proferido deve ser mantido nos seus precisos termos, sob pena de violar, nomeadamente, os:

Artigos 13°, 20º, 37°, 38° e 42° da CRP

Artigos 59,158° e 615° ° do CFC

Artigos 334a e 335° do CC

Artigo 19° da Declaração dos Direitos do Homem

Artigo 10° da Convenção Europeia do Direitos do Homem.

2.4. Verifica-se que a divergência que se detecta nas decisões das instâncias reside, essencialmente, no seguinte:

- a 1ª instância considerou que o réu FF, por ter sido o responsável da investigação criminal, enquanto elemento da PJ, apesar de, entretanto, aposentado, não gozava de ampla e total liberdade de expressão, já que as funções que exerceu lhe impunham, designadamente, o dever de reserva, pelo que, devendo aquela liberdade ceder perante este dever, a sua conduta foi ilícita, para os efeitos do art.484º, do C.Civil;

- a 2ª instância entendeu que aquela argumentação não pode merecer acolhimento, porquanto «mal se compreenderia que um funcionário, além do mais aposentado, mantivesse os aludidos deveres de sigilo e reserva, ficando limitado no exercício do seu direito à opinião, relativamente à interpretação de factos já tornados públicos pela autoridade judiciária e amplamente debatidos, aliás, em grande medida, por iniciativa dos próprios intervenientes na comunicação social, nacional e estrangeira», impondo-se considerar a publicação do livro em causa como traduzindo legítimo exercício do direito de opinião.

Os recorrentes, nas conclusões da sua alegação do recurso de revista, apesar de aludirem à sua pretensão de verem reposta a sentença da 1ª instância, não fizeram qualquer referência expressa à questão do aí invocado dever de reserva do réu FF, ao qual, no entender daquela sentença, se deveria submeter a liberdade de expressão, o que constitui a pedra de toque de toda a construção que conduziu à conclusão de que a conduta daquele réu foi ilícita, para os efeitos do art.484º, do C.Civil.

Tese esta que, como já vimos, não mereceu acolhimento por parte do Tribunal da Relação.

Assim, o que os recorrentes alegam é que, para subsumir o facto à previsão especial de ilicitude do citado art.484º, basta que o facto afirmado ou divulgado seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de abalar o prestígio de que a pessoa goza, ou o bom conceito em que seja tida no meio social.

Tanto mais, acrescentam, quanto se trata de cidadãos inocentes e inocentados (por via do despacho de arquivamento do processo crime), que, de todo o modo, têm direito a beneficiar do princípio da presunção de incocência.

Mais alegam que a liberdade de expressão, numa sociedade do primado do direito, como a portuguesa, não contém em si qualquer garantia especialmente poderosa e incompressível, não se sobrepondo o seu regime aos direitos de personalidade convocados nos autos pelos recorrentes, devendo, por isso, ceder perante eles, com vista a assegurar maiores objectivos constitucionais.

Vejamos.

 A questão fulcral que importa apreciar no presente recurso consiste em saber como resolver o conflito que se verifica entre os direitos dos autores AA e BB, ora recorrentes, ao seu bom nome e reputação, e os direitos dos réus FF, GG, SA, e HH, SA, ora recorridos, à liberdade de expressão e informação e à liberdade de imprensa e meios de comunicação social.

Tal questão implica a formulação da seguinte pergunta: deve a conduta dos recorridos ser tida como ilícita, por atentar contra a honra dos recorrentes?

Como já resulta do atrás exposto, a liberdade de expressão e a honra conformam dois direitos fundamentais, que, dada a sua relevância, mereceram a consagração constitucional.

Sufraga-se uma concepção ampla da honra, englobando as diversas acepções que lhe são juridicamente reconhecidas: a Constituição tutela o «bom nome e reputação» (nº1, do art.26º); o C.Civil acolhe a «personalidade moral» (nº1, do art.70º), a «honra, reputação ou simples decoro» (nº3, do art.79º) e o «crédito ou o bom nome» (art.484º); o C.Penal protege a «honra ou consideração» (arts.180º e segs.).

Assim, o art.26º, nº1, da CRP, acolhe o direito ao bom nome e reputação, que, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., pág.466, consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação.

Por seu turno, o art.37º, da CRP, reconhece dois conjuntos de direitos – o direito de expressão do pensamento e o direito de informação – sendo que, o direito de expressão é, desde logo, a liberdade de expressão, isto é, o direito de não ser impedido de exprimir-se e de divulgar ideias e opiniões.

Segundo aqueles ilustres constitucionalistas, ob. cit., pág.572, o regime do direito de expressão do pensamento e do direito de informação é, sob o ponto de vista jurídico-constitucional, essencialmente idêntico, sendo que o âmbito normativo da liberdade de expressão «deve ser o mais extenso possível de modo a englobar opiniões, ideias, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto (questões políticas, económicas, gastronómicas, astrológicas), e quaisquer que sejam as finalidades (influência da opinião pública, fins comerciais) e os critérios de valoração (verdade, justiça, beleza, racionais, emocionais, cognitivos, etc)».

Assim, enquanto o citado art.37º regula as liberdades e direitos de expressão e informação, em geral, o art.38º ocupa-se desses direitos quando exercidos através da imprensa e demais meios de comunicação de massa.

Deste modo, a liberdade de imprensa é apenas uma qualificação da liberdade de expressão e informação destinada ao público.

Por isso que aquela compartilha de todo o regime constitucional desta.

A honra e a liberdade de expressão têm, ainda, consagração na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH – arts.12º e 19º, estabelecendo o art.29º, nº2, o critério de harmonização dos diversos direitos) e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH – arts.8º e 10º).

Embora o STJ tenha já entendido, designadamente nos Acórdãos de 30/6/11 e de 19/4/16 (in www.dgsi.pt), que a CEDH não tutela, no plano geral, o direito à honra, a ele se reportando, apenas, como possível integrante das restrições à liberdade de expressão mencionadas no citado art.10º, nº2, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) considera que do respeito pela vida privada consagrado no art.8º, da CEDH, emerge um direito à protecção da reputação [cfr. os casos … c. Roménia (78060/01), … c. França (58729/00) e … § … c. Bélgica (64722/01), citados no já referido Acórdão da Relação de …, de 14/2/12, e, ainda, mais recentemente, os casos …, Ld.ª c. Portugal (55442/12) e MM e … c. Portugal (31566/13].

Nestes dois últimos casos, cujas decisões datam, respectivamente, de 30/8/16 e de 17/1/17, considerou-se que sempre que o Tribunal tiver que se pronunciar sobre um conflito entre os dois aludidos direitos, igualmente protegidos pela Convenção, deve efectuar um balanço dos interesses em jogo, quer sob o ponto de vista do art.8º, quer sob o ponto de vista do art.10º, já que esses dois direitos merecem, a priori, um igual respeito.

Note-se que, no âmbito jurídico-civil, o art.335º, do C.Civil, determina que a resolução concreta de um conflito de direitos com idêntico valor impõe a sua harmonização, procurando optimizá-los de forma a que cada um possa produzir os seus máximos efeitos.

 Porém, uma vez que estamos perante uma colisão de direitos fundamentais, o conflito não é passível de ser resolvido pelo princípio do igual tratamento, antes havendo que proceder a uma ponderação dos interesses em causa para se determinar qual é o que carece de maior protecção no caso concreto.

No caso dos autos, estamos, claramente, perante direitos pertencentes à categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais, sendo-lhes, pois, aplicável o seu regime específico, designadamente o previsto no art.18º, da CRP, mais concretamente o previsto no seu nº2, nos termos do qual:

«A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

O citado nº2 deu, assim, expressa guarida constitucional ao princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso, que, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., págs.392 e 393, se desdobra em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).

No mesmo sentido, pode ver-se o Acórdão Nº634/93, do Tribunal Constitucional, de 4/11/93.

À luz da Constituição, a liberdade de expressão e a honra têm o mesmo valor jurídico, inviabilizando-se qualquer princípio de hierarquia abstracta entre si (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, págs.1225 e 1237).

Importa, assim, recorrer ao princípio da concordância prática ou da harmonização, que obstaculiza uma solução que sacrifique um direito em relação ao outro e obriga à existência de limitações e condicionamentos mútuos, com o fim de se alcançar uma solução de harmonia ou de concordância prática entre ambos (cfr. o citado art.18º, nºs 2 e 3).

Todavia, revelando-se impossível alcançar uma solução de harmonização, para se obter uma solução justa para a colisão de direitos haverá que proceder a uma ponderação de bens, seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso («norma de decisão situativa», no dizer de Gomes Canotilho, ob.cit., pág.1237).

Razão pela qual a resolução do conflito não poderá deixar de assumir uma natureza concreta, esgotando-se em cada caso que resolve.

Na verdade, dirimir o conflito em abstracto, implicaria uma hierarquização apriorística dos direitos constitucionalmente inadmissível.

Como é sabido, nos modernos Estados de Direito democráticos, como Portugal, o conflito entre a liberdade de expressão e a honra é um clássico.

Principalmente quando os envolvidos são figuras públicas e está em causa uma questão de interesse público.

A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.

Assim, o TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.

Como refere Francisco Teixeira da Mota, in o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão, Os Casos Portugueses, pág.89, «Não obstante a CEDH não acrescentar muitos direitos aos que já constam da nossa Constituição da República Portuguesa, a sua ratificação por Portugal é um marco significativo por diversas razões, entre as quais se destaca o facto de Portugal ter passado a integrar uma comunidade jurídico-cultural que valoriza e defende os direitos humanos e o facto de passar a estar disponível para os seus cidadãos um acesso directo a mecanismos internacionais (europeus) de protecção desses direitos».

Tem-se entendido, entre nós, quer a nível doutrinal, quer a nível jurisprudencial, que a CEDH ocupa «uma posição infraconstitucional, estando portanto a sua aplicação na ordem interna dependente da sua conformidade aos preceitos da nossa lei fundamental» e que tem um «valor supra-legal, pelo que as leis internas posteriores a um tratado internamente recebido que contrariem o disposto nos seus comandos não poderão, nessa medida, ser aplicadas pelos tribunais» (Cfr. Rui Moura Ramos, «A Convenção Europeia dos Direitos do Homem – Sua posição face ao ordenamento jurídico português» e «Aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – Alguns Problemas», in Documentação e Direito Comparado – BMJ, 1980 e 1983, respectivamente).

Os juízes nacionais estão, deste modo, vinculados à CEDH, porquanto, tendo sido ratificada e publicada, constitui direito interno que, como tal, deve ser interpretada e aplicada, primando, em termos constitucionais, sobre a lei interna (art.8º, da CRP).

Aliás, nos termos do nº2, do art.16º, da CRP, «Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem».

Como refere António Henriques Gaspar, actual Juiz-Conselheiro Presidente do STJ, in «A Influência da DEDH no Diálogo Interjurisdicional, A Perspectiva Nacional ou o Outro Lado do Espelho», intervenção no Colóquio por ocasião da Comemoração do 30º Aniversário da vigência da CEDH em Portugal – STJ, 10/11/08, publicado na Revista Julgar, nº07, pág.39, «… não obstante os termos limitados da vinculação directa, as decisões do TEDH quando interpretam as disposições da CEDH devem ter uma «autoridade específica» que se impõe a todos os Estados por força da chamada autoridade de «chose interpretée»: o TEDH tem por função «clarificar, garantir e desenvolver» as normas da CEDH, contribuindo para assegurar o respeito pelos Estados dos compromissos que assumem pela vinculação convencional».

De tal modo que a interpretação pelo TEDH de normas convencionais deve ser considerado como integrando a própria CEDH, podendo encontrar-se o princípio de vinculação nas fórmulas dos arts.1º e 19º que comandam toda a CEDH.

Assim, os juízes nacionais, ao interpretarem e aplicarem a CEDH, como juízes convencionais de primeira linha, devem ter em consideração «as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional».

Note-se que, segundo o parecer de juízes nacionais reunidos em instância de reflexão e consulta (cfr. «Avis nº9, 2006, do Conseil Consultatif des juges européens, sobre a função dos juízes nacionais na aplicação efectiva do direito internacional e europeu), a jurisprudência do TEDH deve constituir para todos os juízes uma referência no processo de elaboração de um corpo de direito europeu.

Por outro lado, em 28/1/03, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (CE), através da Recomendação 1589 (2003) reiterou ao Comité de Ministros, entre outras medidas, a necessidade de tornar públicos os dados relativos à monotorização do exercício da liberdade de expressão nos países membros e candidatos e a necessidade de os Estados membros «incorporarem a jurisprudência do TEDH no campo da liberdade de expressão na sua legislação interna e assegurarem a formação apropriada dos juízes».

Porém, como é evidente, a consideração pela jurisprudência do TEDH não é uma aceitação por imposição, antes constitui um imperativo intelectual, a implicar análise e ponderação, de onde poderá resultar aceitação mas, também, divergência.

Na verdade, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei, não tendo vinculações de qualquer natureza, excepto o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.

Parafraseando o actual Juiz Conselheiro Presidente do STJ, ob.cit., pág.44, «O diálogo e a interacção entre a instância europeia e as instâncias nacionais têm que supor da parte destes uma posição de grande abertura e a assumpção de uma cultura de cosmopolitismo judicial».

O qual, no entanto, não deixa de alertar para situações em que é afastada por inteiro a margem de apreciação nacional, transformando, de facto, o TEDH em «quarta instância», contrariamente ao modelo convencional de controlo (ob.cit., pág.42).

Porém, como aí se diz (ob.cit., pág.50) as instâncias internacionais, por seu turno, devem também ter sempre presente a advertência do Juiz Jackson da «Supreme Court»: «We are not final because we are infalible, but we are infalible only because we are final».

Por conseguinte, termina (ob.cit., pág.50) o diálogo interjurisdicional deve ser assumido pelos juízes nacionais com rigor intelectual, sem radicalismos próprios de um qualquer «nacionalismo metodológico».

De todo o modo, há matérias que apresentam maior permeabilidade às leituras jurisprudenciais do TEDH, pelo que, nesses casos, mais se justifica que as mesmas sejam tidas como referência.

É o que acontece com a jurisprudência relativa à liberdade de expressão, construída na interpretação e aplicação do art.10º, da CEDH, que oferece um fundo de critérios de relevantíssima utilidade para os tribunais nacionais, integrando, já, um «consenso europeu», pelo que as decisões internas não poderão deixar de a ter em consideração.

Tal consenso revela uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, nos termos atrás referidos, a qual é considerada como «super liberdade» e como um dos direitos mais preciosos do homem.

Contudo, a nossa jurisprudência sobre liberdade de expressão, no seu confronto com o direito à honra, tende, em geral, a defender o primado deste sobre aquela (cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 26/4/94, de 14/2/02, de 7/3/02 e de 8/3/07, in www.dgsi.pt).

Constata-se, pois, que, enquanto pelo lado do TEDH a solução das questões relacionadas com a ingerência na liberdade de expressão é feita tendo em consideração o seu carácter excepcional e a importância fulcral dessa liberdade numa sociedade democrática, pelo lado das instâncias nacionais há uma tendência clara para secundarizar a liberdade de expressão e para sobrevalorizar o direito à honra.

O que tem valido a Portugal algumas condenações pelo TEDH, por violação do art.10º, da CEDH [cfr. os casos … c. Portugal (2000), … c. Portugal (2005), … c. Portugal (2005), … c. Portugal (2007), … c. Portugal (2007), … c. Portugal (2008), …, Ld.ª c. Portugal (2016) e MM … c. Portugal (2017)].

Refira-se, a propósito, que, nos casos em que o Estado Português vier a ser condenado pelo TEDH, por violação das normas da CEDH, pode ser interposto recurso de revisão para o tribunal que proferiu a decisão a rever [cfr. o art.449º, nº1, al.g), do CPP, introduzido pela Lei nº48/2007, de 29/8, e o art.771º, al.f), do CPC, introduzido pelo DL nº303/2007, de 24/8 (art.696º, al.f), do NCPC)].

Seguiram-se, assim, as injunções da Recomendação R (2000), de 19 de Janeiro de 2000, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que constitui um instrumento soft law, a qual instou os Estados a prever a possibilidade de reabertura dos processos internos quando a reapreciação constituir o meio necessário para reparar o direito afectado nos casos de declaração de violação pelo TEDH.

O que traduz a importância que vem assumindo a jurisprudência daquele Tribunal.

Verifica-se, porém, que a jurisprudência nacional tem vindo a operar um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão, como se diz no Acórdão do STJ, de 7/3/07 (cfr., ainda, os Acórdãos do STJ, de 7/2/08, 10/7/08, 30/6/11, 28/6/12, 8/5/13, 21/10/14 e 19/4/16, onde se constata a influência do paradigma jurisprudencial do TEDH)

De tudo isto nos dá conta a sentença da 1ª instância. Por isso que a reproduzimos, em parte, no presente acórdão, por entendermos que aí se fez uma invocação correcta da legislação e da jurisprudência relevantes para se decidir a questão fulcral atrás referida, e, ainda, por razões de economia processual, para não se repetirem citações legais e jurisprudenciais, que, deste modo, damos aqui por reproduzidas.

Só que, aquela sentença acabou por resolver a questão com recurso à presunção de inocência dos autores AA e BB e ao dever de reserva do réu FF, sendo que discordamos do assim decidido, com base na argumentação que aduziremos de seguida.

Antes, todavia, elencar-se-ão os factos provados relevantes a ter em consideração para se decidir a questão colocada:

5. A A. CC encontra-se desaparecida desde 3/5/2007, tendo sido aberto o inquérito criminal nº 201/07.0GALGS pela Procuradoria da República do Círculo de … (al. E).

6. Os cães da polícia britânica “...” e “...” detectaram marcas de odores de sangue humano e de cadáver no apartamento 0-X do NN (al. AR).

7. Os cães da polícia britânica “...” e “...” detectaram marcas de odores de sangue humano e de cadáver num veículo automóvel alugado pelos AA. AA e BB após o desaparecimento de CC (al. AS).

8. Os AA. AA e BB foram constituídos arguidos no inquérito criminal (al. F).

9. A fls. 2587-2602 do inquérito criminal, em 10/9/2007, o Inspector Chefe MM elaborou um relatório, do qual consta nomeadamente o seguinte:

“De todo o apurado, os factos apontam no sentido de que a morte de CC ocorreu, na noite de 3 de Maio de 2007, no interior do apartamento 0 X, do NN da Praia da ..., ocupado pelo casal AABB e pelos três filhos. (fls. 2599 dos autos criminais)  (…)

  Por todo o exposto, resulta dos autos que:

  A) a menor CC morreu no apartamento 0 X do NN da Praia da ..., na noite de 03 de Maio de 2007;

  B) ocorreu uma simulação de rapto;

 C) de forma a impossibilitar a morte da menor antes das 22H00, foi inventada uma situação de vigilância das crianças do casal AABB enquanto dormiam;

 D) AA e BB estão envolvidos na ocultação do cadáver da sua filha CC;

 E) neste momento, parece não existirem ainda fortes indícios de que a morte da menor não tenha ocorrido devido a um trágico acidente;

 F) do apurado até ao momento, tudo indica que o casal AABB, como autodefesa, não queira fazer a entrega de forma imediata e voluntária do cadáver, existindo uma forte probabilidade de o mesmo ter sido transladado do local inicial de depositação. Esta situação é susceptível de levantar questões quanto às circunstâncias em que ocorreu a morte da menor.

  Assim, sugere-se a remessa dos Autos ao Exm.º Sr. Procurador da República, no círculo de …, para:

 G) eventual novo interrogatório dos arguidos AA e BB;

 H) avaliar da aplicação de medida de coação que se julgar adequada ao caso. (fls. 2601 dos autos criminais)” (al. AT).

10. A fls. 2680 do inquérito criminal, em 10/9/2007, o Procurador da República titular do inquérito proferiu um despacho, do qual consta nomeadamente o seguinte:

 “No desenrolar da investigação em que continua a investigar-se o desaparecimento da CC, estando portanto em aberto a investigação, quer para confirmar, quer para infirmar a sua ocorrência, relativamente aos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver e conforme plano delineado, torna-se necessário documentar a hora real do referido desaparecimento, apurar a localização de cada um dos intervenientes - desde o casal AABB ao grupo de amigos que com eles se encontravam de férias nos apartamentos turísticos NN na Praia da ...: JJ, OO, PP, QQ, RR, SS e TT - à data dos factos e nos momentos posteriores, assim como determinar as movimentações dos arguidos BB e AA, no período em que viveram em Portugal, estabelecendo também as conexões entre todos os intervenientes e terceiros.

  Nesse sentido e porque as diligências que a seguir se indicam se mostram essenciais para a descoberta da verdade, nomeadamente proceder à análise da informação do tráfego telefónico do casal AABB e seus amigos, bem como de outros números de telefone que se verificou estarem relacionados com os factos ocorridos na noite de 03 de Maio de 2007, remeta os autos ao Mmo. JIC.” (al. AU).

11. A fls. 3170 do inquérito criminal, em 3/12/2007, o Juiz de Instrução Criminal de … proferiu um despacho, do qual consta nomeadamente o seguinte:

  “Por nos presentes autos se investigar a prática dos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver, sendo os três primeiros punidos com pena de prisão superior a 3 anos e por se afigurar relevante a identificação da pessoa que revelou o comportamento suspeito ocorrido nas imediações do local onde desapareceu a criança e a que aludem os depoimentos de fls. 3150 e 3154 e ss., possuindo, assim, extrema relevância para a descoberta da verdade, os dados solicitados pelo Ministério Público, ordeno (…) se solicite à operadora telefónica ... (…)” (al. AV).

12. O R. FF foi, até ao dia 2/10/2007, o Inspector da Polícia Judiciária encarregado da coordenação da investigação relativa ao desaparecimento da A. CC (al. G).

13. O R. FF ficou na situação de aposentado da Polícia Judiciária a partir de 1/7/2008 (art. 19º).

14. Em 21/7/2008 a Procuradoria-Geral da República divulgou uma “Nota para a Comunicação Social” anunciando que tinha sido determinado o arquivamento do inquérito referido no nº 5 e informando que o mesmo poderia vir a ser reaberto, por iniciativa do Ministério Público ou a requerimento de algum interessado, se surgissem novos elementos de prova que originassem diligências sérias, pertinentes e consequentes  (art. 20º).

15. No inquérito criminal foi proferido despacho de arquivamento pelo Procurador da República em 21/7/2008, consignando-se nomeadamente o seguinte: (…)

20. O R. FF é autor do livro “..., A Verdade da Mentira”, editado pela R. “GG, S.A.” (al. H).

23. Do livro “..., A Verdade da Mentira” consta nomeadamente o seguinte: (…)

24. O R. FF concluiu no livro “..., A Verdade da Mentira” o seguinte:

 “Para mim e para os investigadores que comigo trabalharam no caso até Outubro de 2007, os resultados a que chegámos foram os seguintes:

 1. A menor CC morreu no apartamento 0-X do NN, da ..., na noite de 3 de Maio de 2007;

 2. Ocorreu uma simulação de rapto;

 3. AA e BB são suspeitos de envolvimento na ocultação do cadáver da sua filha;

 4. A morte poderá ter sobrevindo em resultado de um trágico acidente.

 5. Existem indícios de negligência na guarda e segurança dos filhos (págs. 220-221)” (al. J).

25. O livro “..., A Verdade da Mentira” foi lançado no dia 24/7/2008, no centro comercial CCC, em … (al. R).

40. A R. HH, SA, produziu o documentário intitulado “..., A Verdade da Mentira”, realizado por DDD, que corresponde à adaptação da obra literária (livro) do R. FF, documentário esse que o DVD junto aos autos reproduz (al. AF).

41. No início do documentário, o R. FF afirma o seguinte:

 “O meu nome é FF e fui investigador da Polícia Judiciária durante 27 anos. Coordenei a investigação do desaparecimento de CC no dia 3 de Maio de 2007. Nos próximos 50 minutos, vou provar que a criança não foi raptada e que morreu no apartamento de férias na Praia da .... Descubra toda a verdade sobre o que se passou naquele dia. Uma morte que muita gente quer encobrir.” (al. AG).

42. No final do documentário, o R. FF afirma o seguinte:

 “Aquilo que sei diz-me que CC morreu no apartamento 0-X no dia 3 de Maio de 2007. Tenho a certeza de que esta verdade um dia será apurada. A investigação foi brutalmente interrompida e houve um arquivamento político e precipitado. Há quem esconda a verdade, mas mais tarde ou mais cedo, o verniz vai estalar e as revelações vão surgir. Só então haverá justiça para CC” (al. AH).

43. A R. HH, SA, concluiu o documentário com a seguinte declaração:

 “O mistério persiste, o ex-inspector acredita que um dia se saberá a verdade. Por enquanto só sabemos que no dia 3 de Maio de 2007, CC desapareceu na Praia da .... Tinha 3 anos de idade e era uma criança feliz” (al. AI).

48. O R. FF deu uma entrevista ao jornal “LL”, conduzida pelos jornalistas EEE e FFF, publicada na edição de 24/7/2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com chamada de 1ª página, tendo-lhe sido atribuídas nomeadamente as seguintes afirmações: (…)

65. A Procuradoria da República de … determinou a criação de uma cópia digital do processo de inquérito, com ressalva de elementos sujeitos a sigilo absoluto, e a sua entrega, sob requerimento, a diversas pessoas, nomeadamente jornalistas, o que ocorreu (al. AX).

66. O conteúdo de tal cópia digital foi divulgado, designadamente através da Internet, tendo sido conhecido, comentado e discutido pública e universalmente (al. AZ).

67. Os AA. AA e BB alertaram a imprensa para o desaparecimento da sua filha (al. BA).

68. Os AA. AA e BB concederam uma entrevista ao programa norte-americano de televisão “HHH”, apresentado por III, revelando a existências de novos testemunhos, reconstituições e retratos robot (al. BB).

69. A entrevista ao programa “HHH” foi transmitida para o mundo inteiro por sinais disponíveis através de satélites e de redes de cabo (al. BC).

70. Esta entrevista para o programa “HHH” foi transmitida, em Portugal, pela JJJ, nos dias 9/5/2009 e 12/5/2009 (al. BD).

71. Os AA. AA e BB, em colaboração com a estação televisiva britânica “KKK”, realizaram um documentário sobre o desaparecimento da sua filha, intitulado “Still missing CC”, com a duração de 60 minutos (al. BE).

74. O documentário “Still missing CC”, sob a tradução “…, dois anos de angústia”, foi transmitido pela JJJ no dia 12/5/2009 (al. BH).

75. Em 17/10/2007, LLL, porta-voz dos AA. AA e BB, afirmou que estes eram suficientemente realistas para admitirem que a sua filha estaria provavelmente morta (al. BI).

76. Era enorme o interesse público, em Portugal e por todo o mundo, acerca dos acontecimentos que rodearam o desaparecimento de CC, das investigações levadas a efeito para a encontrar e para apurar o que de facto sucedeu, sua evolução e vicissitudes, nestas se incluindo a constituição dos AA. AA e BB como arguidos no correspondente processo de inquérito e o afastamento do R. FF das investigações que neste processo foram desenvolvidas sob sua coordenação (al. BJ).

77. Os AA. AA e BB contrataram, através do Fundo CC, empresas de comunicação e porta-vozes (al. BL, dos factos assentes).

78. O denominado “Caso ...” tem sido profundamente tratado na sociedade portuguesa e estrangeira, seja por órgãos da comunicação social, seja em livros, como foram as obras da autora de MMM, NNN e OOO (art. 24º).

79. O denominado “Caso ...” foi comentado pelo dr. PPP, ex-inspector, escritor, criminalista e comentador, nessa qualidade, em diversos órgãos de comunicação social (art. 25º).

80. Os factos relativos à investigação criminal do desaparecimento de CC que o R. FF refere no livro, na entrevista ao jornal “LL” e no documentário são, na sua maioria, factos ocorridos e documentados nessa investigação (arts. 27º e 28º).

Recordemos, de seguida, o núcleo essencial do «consenso europeu» a que chegou a jurisprudência do TEDH relativa à liberdade de expressão, construída na interpretação e aplicação do art.10º, da CEDH:

«(i) a liberdade de expressão é um postulado da sociedade democrática e do Estado de Direito, sendo a base do pluralismo, da tolerância e da abertura de espirito necessários ao progresso desse tipo de sociedades e ao desenvolvimento individual dos seus membros; (ii) as limitações à liberdade de expressão devem estar previstas na lei, prosseguirem um fim legitimo e serem necessárias numa sociedade democrática; (iii) quando no debate de questões de interesse público a possibilidade de restrições da liberdade de expressão é particularmente limitada; (iv) os políticos, as figuras públicas e os funcionários superiores da administração pública, quando no exercício das suas funções, estão sujeitos a limites de critica mais alargados do que os particulares, (v) na sindicância dos limites da liberdade de expressão devem distinguir-se as afirmações de facto dos juízos de valor, as afirmações dirigidas às opiniões do adversários por contraposição aos juízos sobre a pessoa desses adversários e aquilo que é critica do que constitui insulto e (vi) a imprensa tem o dever de transmitir informações e ideias sobre matérias de interesse público e ao fazê-lo é-lhe permitido recorrer a uma certa dose de exagero, mesmo de provocação [cfr., entre muitos outros, os Processos … c. Polónia, … c. Luxemburgo e … e Outros c. a Espanha]». [cfr., ainda, quando ao ponto i), os casos … c. Roménia e … c. Sérvia e Montenegro (5955/06); quanto ao ponto ii), os casos … c. Portugal (20620/04) e … c. Portugal (29288/02); quanto ao ponto iii), os casos … c. Portugal (37698/97) e … c. Alemanha (28274/08); quanto ao ponto iv), os casos … c. Sérvia e Montenegro (5995/06) e … c. França (32280/09); quanto ao ponto v), os casos … c. Roménia (78060/01) e … c. Moldávia (20928/05); quanto ao ponto vi), os casos … c. França (13290/07) e … c. Hungria (23954/10)].

 Face ao enquadramento legal e jurisprudencial atrás exposto, haverá que analisar a situação concreta revelada nos autos, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, já reproduzida.

O que dela resulta, como bem se refere na sentença da 1ª instância, é que o livro em questão é a «manifestação de uma opinião, compreendendo a narração das ilações que o seu autor retira dos meios de obtenção de prova produzidos na investigação, em ordem a formular uma tese, uma hipótese de verificação dos factos».

Sendo que, quer a entrevista quer o documentário em causa, mais não são do que formas de publicitação do livro e da tese aí defendida, embora o documentário a desenvolva de forma, talvez, mais apelativa.

Tal tese é, sinteticamente, como também se diz na sentença da 1ª instância, «a de que não ocorreu um rapto da menor, contrariamente àquele que foi a premissa inicial da investigação criminal e ao que os pais da criança sustentam até à actualidade. Ocorreu, sim, a morte acidental da criança no apartamento do empreendimento turístico, seguida do encobrimento desse evento através da ocultação do seu cadáver e da simulação do referido crime, levados a cabo pelos autores BB e AA».

Porém, como referem as instâncias, a tese exposta não reveste novidade, porquanto já se mostra igualmente contida no relatório a que alude o nº9 dos factos provados, elaborado no âmbito do inquérito criminal, com data de 10/9/07.

Sendo, pois, uma linha de investigação prosseguida naquele inquérito, o que, aliás, determinou a constituição dos ora recorrentes como arguidos (cfr. os nºs 10 e 11 dos factos provados).

Acresce que, tendo a Procuradoria da República de … disponibilizado cópia do aludido inquérito, nomeadamente a jornalistas, o respectivo conteúdo foi divulgado e discutido pública e universalmente (cfr. os nºs 65 e 66 dos factos provados).

Por conseguinte, o que se discute na presente acção é o exercício do direito de opinião do recorrido sobre matéria de interesse público, relativamente aos recorrentes, que, no caso, não poderão deixar de ser considerados figuras públicas.

Na verdade, a «figura pública» surge em oposição a «figura privada», sendo que esta é todo o cidadão anónimo, que vive no recato da sua existência.

No caso dos autos, poder-se-á dizer, tendo em consideração a tipologia em que se analisa o conceito de «figura pública» a que alude Iolanda A.S. Rodrigues de Brito, in Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, págs.46 e 47, que estamos perante figuras públicas relativas, na medida em que os recorrentes intervêm publicamente para influenciar um debate de interesse público, fazendo com que a dimensão da sua vida pública conexionada com esse debate, as sujeite a um interesse público de informação, que lhes garante a possibilidade de aceder aos meios de comunicação social.

E, ainda, que se trata de figuras públicas voluntárias, porquanto aceitaram ser lançados para a vulnerabilidade da praça pública, em consequência do papel que procuraram assumir no debate público em que decidiram intervir.

É que, como se diz no acórdão recorrido e resulta dos factos provados, foram os próprios recorrentes a, beneficiando de aí terem fácil acesso, multiplicar-se em entrevistas e intervenções nos órgãos de comunicação social nacionais e internacionais, pelo que abriram caminho a que qualquer pessoa opinasse igualmente sobre o caso, contradizendo a sua tese.

Ora, como refere Francisco Teixeira da Mota, ob.cit., pág.21, «O TEDH, na apreciação dos casos que lhe são submetidos, atribui o grau máximo de protecção ao debate público e à liberdade de expressão, quando estão em causa questões públicas ou políticas, nelas se incluindo as próprias figuras públicas e as suas actuações».

Isto porque aquele Tribunal entende que a liberdade de expressão, tal como é assegurada no § 1º do art.10º da CEDH, constitui «uma das funções essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições básicas para o seu progresso e para a realização individual».

Como já se referiu, o TEDH tem desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse público.

É que, sendo o visado uma figura pública e não um simples particular, está mais exposto, inevitável e conscientemente, a um controlo apertado dos seus comportamentos e opiniões, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, devendo, por isso, demonstrar muito maior tolerância perante tal controlo.

E tanto mais assim é quando aconteça que seja o próprio visado a proferir declarações públicas susceptíveis de crítica.

Claro que a figura pública tem direito à protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada.

O que se quer significar é que os imperativos de tal protecção devem ser ponderados com os interesses da livre discussão das questões públicas.

Assim, em nome da polémica robusta não devem ser protegidos ataques pessoais injustificados, dirigidos à dignidade, integridade e probidade moral e profissional, considerados manifestamente desnecessários e desproporcionais.

Todavia, também aqui o intenso confronto de ideias pode facilmente conduzir a determinados exageros, os quais devem, numa medida considerada razoável, ser protegidos, particularmente nos casos em que se esteja perante um fórum público dotado de condições razoáveis de igualdade e reciprocidade.

Note-se, por outro lado, que a liberdade de opinião, na formulação do § 1º do art.10º da CEDH, é o primeiro dos elementos constitutivos da liberdade de expressão.

A distinção entre factos e opiniões é um dos aspectos que o TEDH refere como de particular importância.

Assim, «Enquanto a existência de factos é possível de ser demonstrada, a verdade das opiniões não é susceptível de ser provada. A exigência da prova da verdade de uma opinião é impossível de cumprir e infringe a própria liberdade de expressão, que é uma parte fundamental do direito assegurado pelo art.10º da CEDH. Contudo, mesmo quando uma afirmação corresponde a um julgamento de valor, a proporcionalidade da interferência pode depender de existir uma base factual suficiente para a afirmação impugnada, já que uma opinião sem qualquer base factual para a suportar pode ser excessiva» [cfr. o caso … c. Áustria (1991)].

A liberdade de opinião goza de uma protecção quase absoluta, no sentido de serem inaplicáveis as possíveis restrições permitidas pelo § 2º do citado art.10º, por se revelarem incompatíveis com a sociedade democrática, sendo que tal protecção impede os Estados de discriminarem cidadãos com base nas suas opiniões, não podendo os mesmos sofrer consequências negativas em virtude delas (cfr, neste sentido, Iolanda Brito, ob.cit., pág.65).

Segundo Manuel da Costa Andrade, in «Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal», Coimbra, pág.274, « … a tolerância dispensada aos juízos de valor é ostensivamente mais generosa do que a outorgada às imputações de facto (…)».

Como refere Anabela Gradim, in «Manual de Jornalismo – Livro de Estilo Urbi et Orbi», pág.74, «Quem escreve opinião está ciente da parcialidade das suas posições, mas simultaneamente admite e deseja que estas sejam partilhadas e adoptadas por um grande número de receptores dessa opinião – é esse o sentido da argumentação: converter, convencer, arregimentar» (cfr., ainda, Jónatas Machado, «Liberdade de Expressão – Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social», BFDUC, Coimbra, págs.425, 426 e 768).

O TEDH tem realçado que as questões de interesse público devem ser debatidas e que as opiniões expressas sobre tais questões, ofensivas da honra de figuras públicas, surgindo frequentemente revestidas de uma linguagem violenta, forte e exagerada, devem considerar-se protegidas pela liberdade de expressão.

No caso dos autos, o que se verifica é que o recorrido veiculou a sua opinião, nos termos atrás expostos, tendo em conta o que, no seu entender, resulta dos meios probatórios e dos indícios recolhidos no âmbito do inquérito criminal aberto em virtude do desaparecimento de CC em 3/5/07.

Assim, o juízo valorativo e o raciocínio lógico-dedutivo que vai desenvolvendo ao longo do livro conduz o recorrido à conclusão de que aquela criança – cuja guarda e segurança, a par da dos seus irmãos DD e EE, foi negligenciada pelos seus progenitores, ora recorrentes, embora não temerária nem grosseiramente, como se diz no despacho de arquivamento proferido pelo Procurador da República em 21/7/08 – morreu acidentalmente no interior do apartamento onde se encontrava, após o que ocorreu a simulação do seu rapto e a ocultação do respectivo cadáver.

Ao mesmo tempo que assim raciocina, o recorrido põe em causa os fundamentos ou alicerces em que se poderia sustentar a alegação de que a referida CC havia sido raptada.

Tais conclusões foram posteriormente reproduzidas pelo recorrido no documentário e na entrevista atrás mencionados, onde procurou descredibilizar o depoimento da recorrente AA.

Dúvidas não restam que tendo o recorrido sido, até ao dia 2/10/07, o Inspector da Polícia Judiciária encarregado da coordenação da investigação relativa ao desaparecimento de CC (ponto 12 dos factos provados), não podia deixar de conhecer, em pormenor, os indícios e meios de prova nele até então recolhidos e as diligências que até aí haviam sido efectuadas.

Por isso que não é de estranhar que os factos relativos àquela investigação referidos pelo recorrido no livro, na entrevista e no documentário, sejam, na sua maioria, factos ocorridos e documentados nessa investigação (ponto 80 dos factos provados).

Note-se que o entendimento defendido pelo recorrido era, também, em termos quase coincidentes, perfilhado pelo Inspector Chefe MM, que redigiu o relatório dirigido ao M.ºP.º, datado de 10/9/07 (ponto 9 dos factos provados).

Refira-se, ainda, que o M.ºP.º, ao promover junto do Juiz de Instrução a obtenção de dados de tráfego, aludiu à sua necessidade para a investigação dos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver, sendo que, os dados cuja obtenção se pretendia respeitavam, além do mais, aos recorrentes, e compreendiam não só a data dos factos mas também o período em que estiveram em Portugal (ponto 10 dos factos provados).

Dados esses cuja recolha foi ordenada pelo Juiz de Instrução (ponto 11 dos factos provados).

O que significa que a tese perfilhada pelo recorrido mereceu, a dada altura, acolhimento por parte da entidade constitucionalmente encarregue do exercício da acção penal.

Aliás, os recorrentes foram constituídos arguidos no referido inquérito criminal (ponto 8 dos factos provados).

O que implica que surgiu fundada suspeita de terem cometido crime ou crimes (cfr. os arts.58º e 59, do CPP).

É certo que o aludido inquérito criminal acabou por ser arquivado, designadamente em virtude de nenhum dos indícios que levou à constituição dos recorrentes como arguidos ter obtido confirmação ou consolidação posteriores (ponto 15 dos factos provados).

 No entanto, mesmo no despacho de arquivamento são suscitadas sérias reservas quanto à verosimilhança da alegação de que a referida CC fora raptada, tendo em conta as dúvidas suscitadas pela versão de JJ/AA.

Dúvidas essas que a investigação pretendia ver esclarecidas com a diligência de reconstituição dos factos mencionada naquele despacho, que, todavia, foi inviabilizada pela falta de comparência das testemunhas.

No aludido despacho concluiu-se, também, que os recorrentes negligenciaram, embora não temerária nem grosseiramente, o dever de guarda dos filhos, e, ainda, que, apesar de não ter sido possível apurar se a criança está viva ou não, parece mais provável que esteja morta.

Aliás, um porta-voz dos recorrentes afirmou, em 17/10/07, que estes eram suficientemente realistas para admitirem que a sua filha estaria provavelmente morta (ponto 75 dos factos provados).

Refira-se, por outro lado, que, na nota introdutória do livro em questão, o recorrido afirma que o mesmo tem como propósitos a reposição do seu bom nome, que, no seu entender, foi enxovalhado na praça pública, a contribuição para a descoberta da verdade material e a realização da justiça (ponto 23 dos factos provados).

Seja como for, da matéria de facto apurada transparece que o recorrido pretendeu, por um lado, colocar em crise a decisão de ter sido afastado da investigação, chegando mesmo a aventar que terá ocorrido uma gestão política da investigação, e, por outro, salvaguardar o rigor do trabalho de todos os profissionais da polícia envolvidos na investigação até ao momento em que deixou de a coordenar.

De todo este circunstancialismo não resulta, a nosso ver, que, subjacente ao livro, ao documentário e à entrevista, esteja uma intenção difamatória relativamente aos recorrentes, isto é, um animus injuriandi, mas antes um animus informandi e um animus defendendi.

A opinião expressa pelo recorrido acha-se suficientemente escorada numa apreciação intelegível e lógica dos factos e meios de prova recolhidos no inquérito, não se prefigurando, pois, a existência de um mero ataque ad hominem à pessoa dos recorrentes.

Acresce que o desaparecimento da referida CC e a subsequente investigação tornaram-se temas de interesse geral e de debate a nível nacional e, até, internacional, o que, aliás, foi propiciado pela conduta dos próprios recorrentes (pontos 65 a 71 e 76 a 79 dos factos provados).

Tudo aponta, pois, em sede de ponderação dos interesses em causa e seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso, no sentido de ser a liberdade de expressão que, no caso concreto, carece de maior protecção, tendo em conta, também, o contexto jurídico europeu onde nos inserimos e a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.

Mas será que a protecção dos direitos dos recorrentes ao seu bom nome e reputação está, no caso, intimamente relacionada com a presunção de inocência, como se diz na sentença da 1ª instância?

E isto porque, como dizem os recorrentes nas conclusões da sua alegação de recurso, além de serem absolutamente inocentes e inocentados, por via do despacho de arquivamento do processo-crime, têm também direito a beneficiar do princípio da presunção de inocência?

Vejamos.

Dir-se-á, antes do mais, que o princípio da presunção de inocência (art.32º, nº2, da CRP, 11º, nº1, da DUDH e 6º, nº2, da CUDH) é uma regra de tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo judicial criminal.

Deste modo, esse princípio não pode ser erigido como uma restrição à discussão pública dos factos potencialmente delituosos, não obstante os entes públicos deverem, nas comunicações que façam, usar da necessária contenção, para evitar que se crie a convicção de que o arguido é efectivamente culpado [cfr. o ac. … c. Grécia, de 28/11/11 (proc. nº53466/07].

O referido princípio pode, até, impor, para lá do limiar do processo criminal, o respeito por uma decisão penal absolutória ou mesmo por uma decisão de arquivamento por parte das autoridades judiciárias intervenientes em processos subsequentes [cfr. o caso … c. Reino Unido, do TEDH (12/07/2013) – proc. nº25424/099].

Porém, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem decidido que o princípio da presunção de inocência não tem aplicação nos procedimentos civis subsequentes (mormente indemnizatórios) a um processo criminal, sob pena de se esvaziar o próprio direito da vítima a aceder aos tribunais e a ser ressarcida [cfr. os acórdãos Y. v. …. (proc. 56568/00), de 11/5/2003 e … c. Itália (proc. 124/04), de 07/05/2012].

Como refere Jónatas Machado, in «Liberdade de expressão, Interesse Público e Figuras Públicas e Equiparadas», BFDUC, vol.LXXXV, 2009, pág.91, «A presunção de inocência, porque é apenas uma presunção, não se pode sobrepor à procura da verdade e ao direito dos cidadãos à verdade. Também não pode impedir a crítica pública e o controlo público do funcionamento da justiça. O mesmo sucede, de resto, com a tentativa de demonstrar a inocência de um condenado e com isso afastar o estigma da condenação. A procura da verdade, incluindo a verdade acerca da justiça, constitui desde sempre uma das principais justificações da liberdade de expressão».

Note-se que, no presente processo, não está em discussão a responsabilidade penal dos recorrentes, isto é, a sua inocência ou a sua culpabilidade, quanto aos factos conducentes ao desaparecimento da sua filha, pelo que não tem aqui que ser apreciada.

O que está em discussão é, tão só, a responsabilidade civil dos recorridos, pelo facto de terem formulado e divulgado a tese/opinião atrás aludida quanto àquele desaparecimento.

De tal modo assim é que o desfecho do presente processo não é susceptível de colocar em causa a dimensão extraprocessual da presunção de inocência.

Ou seja, ainda que a acção improceda, tal não implicará, mesmo aos olhos da comunidade, qualquer consideração sobre a responsabilidade dos recorrentes, pois que a tal desfecho jamais se poderá equiparar uma constatação da respectiva culpabilidade [cfr., a este respeito, os acórdãos … c. Holanda (nº44760/98), de 9/11/2004, e … c. Bélgica (nº60056/08), de 9/5/2016].

Acresce que estamos perante uma decisão de arquivamento por parte do M.ºP.º, a qual é passível de modificação por várias vias.

Assim, além do recurso à via jurisdicional, através da abertura da instrução (art.287º, do CPP) e à reclamação para o superior hierárquico (art.278º, do CPP), o inquérito pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo M.ºP.º no despacho de arquivamento (art.279º, do CPP).

Aliás, isso mesmo é dito na «Nota para a Comunicação Social» divulgada pela Procuradoria-Geral da República em 21/7/08, onde se anunciou que tinha sido determinado o arquivamento do inquérito e se informou que «o mesmo poderia vir a ser reaberto, por iniciativa do M.ºP.º ou a requerimento de algum interessado, se surgissem novos elementos de prova que originassem diligências sérias, pertinentes e consequentes» (ponto 14 dos factos provados).

Deste modo, não sendo o aludido despacho de arquivamento uma decisão judicial em sentido estrito, nem assumindo cariz definitivo, menos se justificaria a invocação do princípio da presunção de inocência para restringir a liberdade de expressão.

E não se invoque a salvaguarda da autoridade do poder judicial (cfr. o § 2º do art.10º da CEDH), porquanto está definitivamente superada a ideia tradicional nos termos da qual as críticas ao poder judicial devem ser proscritas por contribuírem para minar a sua dignidade, autoridade e credibilidade a longo prazo, sendo que, a melhor garantia da dignidade de todas as instituições estaduais, a longo prazo, consiste na sua permanente abertura à crítica pública (cfr. Jónatas Machado, Liberdade de Expressão – Dimensões Constitucionais … ob.cit., págs.566 e 567).

E não se diga, também, que os recorrentes foram inocentados por via do despacho de arquivamento do processo-crime.

Na verdade, o aludido despacho não foi proferido em virtude de o M.ºP.º ter adquirido a convicção de que os recorrentes não praticaram qualquer crime (cfr. o nº1, do art.277º, do CPP).

Tal arquivamento, no caso, foi determinado por não ter sido possível ao M.ºP.º obter indícios suficientes da prática de crimes pelos recorrentes (cfr. o nº2, do citado art.277º).

Existe, pois, uma diferença assinalável, e não meramente semântica, entre os fundamentos legalmente admissíveis do despacho de arquivamento.

Não parece, assim, aceitável que se considere que o referido despacho, fundado na insuficiência de indícios, deva ser equiparado à comprovação da inocentação.

Consideramos, portanto, que a invocação da violação do princípio da presunção de incocência não deve merecer acolhimento, não relevando tal princípio para a decisão da questão que cumpre decidir.

Mas será que a liberdade de expressão do recorrido estava condicionada pelas funções que exerceu e que estas, mesmo já na situação de aposentado, lhe impunham o dever de reserva, como se sustentou na sentença da 1ª instância e é reafirmado pelos recorrentes?

É certo que o recorrido, na qualidade de funcionário da Polícia Judiciária aposentado, continua vinculado à função pública, conservando, além do mais, os direitos e deveres que não dependam da situação de actividade (cfr. o art.74º, nº1, do Estatuto da  Aposentação, aprovado pelo DL nº498/72, de 9/12).

Como se refere no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 16/2/06, citado na sentença da 1ª instância, da autoria de Esteves Remédio, a doutrina considera como deveres do aposentado que não dependem da situação de actividade o dever de lealdade, o dever de sigilo e o dever de conduta digna, este reportado insistentemente à abstenção da prática de crimes.

Mais se refere naquele Parecer que o dever de sigilo «consiste em guardar segredo profissional relativamente aos factos de que tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções e que não se destinem a ser do domínio público», citando-se aí o art.3º, nº9, do Estatuto Disciplinar.

E, ainda, que o dever de sigilo se prolonga para além do exercício de funções, mantendo-se no decurso da aposentação, mas que, tal como na situação do activo, se exige que a conduta afecte de forma relevante o funcionamento do serviço ou a dignidade e o prestígio da função ou da Administração.

Note-se que em lado nenhum da legislação citada, a este propósito, na sentença da 1ª instância, se alude ao dever de reserva.

Assim, o art.5º, nº2, al.e), do DL nº196/94, de 21/7, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Polícia Judiciária, refere expressamente «O dever de sigilo».

Por seu turno, o art.12º, do DL nº275-A/2000, de 9/1, que aprovou a nova Lei Orgânica da Polícia Judiciária, está submetido à epígrafe «Segredo de justiça e profissional» (cfr. o art.149º, relativamente aos funcionários aposentados).

Ora, como escreveu Cunha Rodrigues, in «Justiça e Comunicação», BFD 68 (1992), pág.124, não se deve confundir «sigilo» com «reserva».

No caso, tratando-se de dever de sigilo ou de segredo de justiça, que se mantém no decurso da aposentação, haverá que entender que estamos perante obrigação funcional que tutela, essencialmente, os interesses do serviço a que pertencia o recorrido, nomeadamente a eficácia da investigação criminal.

Todavia, os factos em questão já haviam sido tornados públicos pela autoridade judiciária e amplamente debatidos, quer a nível nacional, quer a nível internacional, sendo que o inquérito já estava encerrado.

Por outro lado, o eventual incumprimento do dever de sigilo por parte do recorrido não projectaria, na esfera dos particulares, quaisquer direitos subjectivos ou interesses juridicamente protegidos, pelo que não relevaria como fonte de ilicitude.

Acresce que o TEDH, em situações similares, leva sobretudo em conta a importância que tem para o bom funcionamento da justiça a cooperação de um público esclarecido e bem informado (cfr. os acs. … e Outros c. Turquia, de 8/1/08, e … e … c. França, de 14/2/08).

Consideramos, pois, que a liberdade de expressão também não tem que ceder perante o invocado dever funcional a cargo do recorrido, pelo que a conduta deste não foi ilícita, nos termos que foram tidos em consideração na sentença da 1ª instância.

A nosso ver, tem razão o acórdão recorrido ao entender que a argumentação da 1ª instância não pode merecer acolhimento e ao afirmar que «mal se compreenderia que um funcionário, além do mais aposentado, mantivesse os aludidos deveres de sigilo e reserva, ficando limitado no exercício do seu direito à opinião, relativamente à interpretação de factos já tornados públicos pela autoridade judiciária e amplamente debatidos, aliás, em grande medida, por iniciativa dos próprios intervenientes na comunicação social, nacional e estrangeira».

Ao contrário do que alegam os recorrentes, para subsumir o facto à previsão legal de ilicitude do art.484º, do C.Civil, não basta que o facto afirmado ou divulgado seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de abalar o prestígio de que a pessoa goza ou o bom conceito em que seja tida no meio social.

Na verdade, de acordo com o brocardo latino «qui iure suo utitor nemini facit injuriam».

O que significa que, quem actua no exercício de um direito, está a agir em conformidade com a ordem jurídica, não podendo, pois, ser responsabilizado civilmente (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, pág.376).

Assim, quando são imputados factos ou formulados juízos de valor ofensivos da honra de uma figura pública, pode estar a ser legitimamente exercida a liberdade de expressão.

Sendo que, em matéria de formulação de juízos de valor, o exercício do direito à liberdade de expressão tem uma apetência justificativa mais ampla, dada até a natureza excepcional da obrigação de indemnizar por juízos de valor.

O que não obsta a que se mantenha a preocupação de se atribuir uma equilibrada solução jurídico-concreta ao conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas.

O que não podem é ser submetidos a quaisquer pré-juízos de preferência abstracta por qualquer um deles, já que conformam dois direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e que ocupam a mesma hierarquia.

Mas perante a impossibilidade de o conflito entre dois direitos iguais ou da mesma espécie ser resolvido pelo princípio do igual tratamento (cfr. o nº1, do art.335º, do C.Civil), haverá que fazer prevalecer o direito que seja considerado superior no seu exercício (cfr. o nº2, do mesmo artigo), tendo em conta os critérios de ponderação necessários evidenciados pelo caso concreto.

Tais critérios já foram enunciados ao longo do presente acórdão, como sejam, designadamente, a realização de um interesse público, o estatuto público dos visados, a base factual suficiente dos juízos de valor emitidos e a natureza destes, bem como o respectivo contexto (tendo como pano de fundo uma acesa controvérsia sobre questão de relevante interesse público).

Consideramos que, no caso, atenta a matéria de facto apurada, o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra dos recorrentes.

Tal conclusão resulta da interpretação das normas internas em conformidade com a Constituição, mas também com a CEDH, lida pela cartilha da jurisprudência do TEDH.

Segundo Jónatas Machado, in Liberdade de Expressão – Dimensões Constitucionais …, ob.cit., pág.750, «(…) a medida da protecção civil e penal dos direitos de personalidade deve ser determinada a partir dos parâmetros constitucionais das liberdades da comunicação, recusando-se qualquer autonomia valorativa sistemático-imanente daqueles ramos de direito, dando particular relevo à finalidade constitucional de criação de uma esfera pública de discussão aberta e desinibida dos assuntos de interesse geral, devendo este objectivo estar sempre presente na análise dos resultados da aplicação do direito».

Acrescentando aquele ilustre Professor, in Liberdade de Expressão, Interesse Público …, ob.cit., pág.74, que «A posição preferencial da liberdade de expressão, nas sua qualidade de pré-condição do funcionamento democrático do sistema político, é uma verdade constitucional incontornável».

E aludindo, mais à frente, última ob.cit., pág.77, ao «Dever de interpretar as normas legais sobre a tutela da honra, do bom nome e da reputação em conformidade com a Constituição, de forma a servir a promoção das finalidades constitucionais substantivas de protecção de uma sociedade livre e democrática, onde as questões de interesse público selam objecto de informação e discussão livre a aberta».

A jurisprudência do TEDH, como já resulta abundantemente do atrás expendido, tem propendido, manifestamente, para uma interpretação restritiva dos direitos de personalidade no confronto com a liberdade de expressão, por forma a não comprometer o papel central desta numa sociedade democrática.

Por outro lado, como se diz no sumário do já citado Acórdão do STJ, de 7/2/08: «Da jurisprudência que vem sendo firmada por este (TEDH), resulta uma imposição no modo de pensar: Não se justifica que se pense, logo à partida, sobre se determinada peça jornalística ofende alguém. Deverá, antes, partir-se da liberdade de que gozam o ou os respectivos autores. Só depois, se deve indagar se se justifica – atentos os critérios referenciais do mesmo tribunal, com inclusão duma margem de apreciação própria por parte dos órgãos internos de cada um dos Estados signatários da Convenção – a ingerência restritiva no campo dessa mesma liberdade e a consequente ida para sanções legais».

Aliás, o Tribunal Constitucional tem afirmado uma «clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição» (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 157/2001, in D.R., Série I, de 10/5/01).

Perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos.

O que, no entanto, não significa resolver o conflito em questão com preferência abstracta pela liberdade de expressão, mas sim com vinculação aos pressupostos, isto é, aos critérios europeus de resolução do conflito.

Do que se trata, no fundo, é de identificar o bem jurídico que será, em concreto, prevalecente, tendo em conta que, na dirimência de cada conflito, os pratos da balança partem de uma posição de equilíbrio, já que a liberdade de expressão e a honra deverão partir numa posição de igualdade.

Para o efeito, haverá que introduzir os respectivos critérios de valoração no prato da liberdade de expressão ou no prato da honra.

E será no jogo de pesos e contrapesos que, no fim, se observará qual dos pratos pesa mais.

Ora, no caso dos autos, como já resulta do atrás exposto, o prato que pesa mais é o da liberdade de expressão.

O que vale por dizer que é esse o bem jurídico que, no caso, prevalece.

 Haverá, assim, que concluir que, no caso dos autos, prevalecem os direitos dos recorridos à liberdade de expressão e informação e à liberdade de imprensa e meios de comunicação social.

Não merece, pois, censura o acórdão recorrido, ao excluir a ilicitude da conduta dos ora recorridos e, consequentemente, ao absolvê-los da totalidade dos pedidos.

Improcedem, deste modo, as conclusões da alegação dos recorrentes, não se vendo que aquele acórdão tenha violado qualquer norma jurídica vertida na CRP, antes se entendendo, como resulta do que já se expendeu, que a interpretação das normas aplicáveis ao caso foi feita em conformidade com a Constituição.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 31 de janeiro de 2017

Roque Nogueira - Relator

Alexandre Reis

Lima Gonçalves

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SUMÁRIO:

I - A liberdade de expressão e a honra conformam dois direitos fundamentais, que, dada a sua relevância, mereceram a consagração constitucional.

II – Trata-se de direitos pertencentes à categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais, pelo que lhes é aplicável o seu regime específico, designadamente o previsto no nº2, do art.18º, da CRP.

III - O citado nº2 deu, assim, expressa guarida constitucional ao princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso.

IV - À luz da Constituição, a liberdade de expressão e a honra têm o mesmo valor jurídico, inviabilizando-se qualquer princípio de hierarquia abstracta entre si.

V - Importa, assim, recorrer ao princípio da concordância prática ou da harmonização.

VI - Todavia, revelando-se impossível alcançar uma solução de harmonização, para se obter uma solução justa para a colisão de direitos haverá que proceder a uma ponderação de bens, seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso.

VII - Razão pela qual a resolução do conflito não poderá deixar de assumir uma natureza concreta, esgotando-se em cada caso que resolve.

VIII - A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.

IX - O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.

X - Perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos.

XI - Em sede de ponderação dos interesses em causa e seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso, é de concluir ser a liberdade de expressão que, no caso concreto, carece de maior protecção.

XII - Sendo que, no caso, atenta a matéria de facto apurada, o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra dos recorrentes.

XIII - O princípio da presunção de inocência e o dever de reserva não relevam para a decisão da questão que cumpre apreciar.

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