Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
353/15.6PAVPV.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
PENA ÚNICA
PENA PARCELAR
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
DEVASSA DA VIDA PRIVADA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
REFORMATIO IN PEJUS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CONSENTIMENTO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / CRIMES CONTRA A DEVASSA DA VIDA PRIVADA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense ao “Código Penal”, I, 2.ª ed., 834; Direito Penal Português – As Consequência Jurídicas do Crime, 4.º Reimp., C. Ed., 291, 302.
- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, “Código Penal “– Parte geral e especial, 2014, Almedina, 376.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 409.º, N.º 1, 424.º, N.º 3, 432.º, N.º 1, AL. C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.º 1, 50.º, N.º 1, 70.º, 72.º, N.º 2, AL. C), 77.º, N.º 1, 171.º, N.ºS 1 E 2, 172.º, N.º 1, 177.º, N.º 1, AL. B), 192.º, N.º 1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 23.01.2008, PROC. 07P4830 E 29.11.2012, PROC. 862/11.6TAPFR.S1 E EM SENTIDO CONTRÁRIO O AC. DE 22.04.2015, PROC. 45/13.0JASDTB.L1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT E, POR MAIS RECENTE, O AC. DE 13.01.2016, PROC. 414/12.3TAMCN.S1-3.ª, EM SASTJ.
-DE 22.01.2013, PROC. 182/10.3TAVPV.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 17.04.2013, PROC. 700/01.8JFLSB.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
-DE 10.09.2014, PROC. 714/12.2JABRG.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 29.04.2015, PROC. 41/13.8GGVNG.S1 E 11.06.2015, PROC. 41/10.0JBLSB.S1.
Sumário :
I  -   A al. c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP deve ser interpretada no sentido de que, no caso de recurso directo do tribunal colectivo (ou júri) sobre matéria de direito, o STJ é competente para dele conhecer seja no respeitante à pena única superior a 5 anos de prisão, seja quanto às penas parcelares de limite inferior.
II -  No que diz respeito aos crimes sexuais, alguma jurisprudência convoca a figura do crime de trato sucessivo, estando porém tal longe de ser pacífico. A 1.ª tese, de cunho pragmático, visa dar resposta a situações de abuso sexual de crianças ou de menores dependentes caracterizadas pela sua repetição, muitas das vezes temporalmente indefinidas, e unificadas por uma mesma resolução criminosa e proximidade temporal e cuja reiteração encerra uma culpa agravada. A 2.ª tese considera que a estrutura típica desses tipos de ilícito não pressupõem tal reiteração, com eles se não pretendendo punir uma actividade, pelo que, no caso de violação plúrima do mesmo tipo legal de crime, a condenação reporta-se à pluralidade de crimes a punir com referência às regras do concurso, em ordem aso disposto no n.º 1 do art. 30.º do CP.
III -      Independentemente da pureza do carácter extremado dessas posições, no caso o arguido não levou a cabo o seu propósito criminoso no quadro de uma mesma resolução criminosa ou dolo inicial, tendo renovado o processo de motivação, o seu propósito lascivo, de forma autónoma e pensada. Pelo que cometeu, a par de 2 crimes de devassa da vida privada do art. 192.º, n.º 1, al. b), do CP, na pessoa das menores X e Y, relativamente à 1.ª ofendida 2 outros crimes de abuso sexual de crianças agravado dos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP e quanto à 2.ª ofendida, 9 crimes de abuso sexual de menor dependente do art. 172.º, n.º 1, do CP, todos em relação de concurso real.
IV -      Em causa está uma alteração de qualificação jurídica que este STJ pode levar a efeito e, no caso, sem necessidade de cumprimento prévio do disposto no art. 424.º, n.º 3, do CPP, na medida em que o arguido já antes pudera defender-se da acusação que precisamente versava sobre a pluralidade e concurso dos crimes em causa (de resto, em número maior, de 2 crimes de abuso sexual de criança agravado e 32 crimes de abuso sexual de menor dependente agravado).
V - A alteração da qualificação jurídica que temos como mais correcta, reclamaria penas parcelares em maior número que o da condenação e, assim, por voa do maior agravamento do respectivo somatório, uma pena única necessariamente mais elevada do que a que foi cominada no acórdão recorrido, o mesmo é dizer que tal se traduziria numa reformatio in pejus que o n.º 1 do art. 409.º do CPP proíbe em absoluto. Por isso o julgamento do mérito do recurso apenas pode ter em conta as penas parcelares e a pena única impugnadas.
VI -      Quanto às penas aplicadas pela prática dos crimes de devassa da vida privada (4 e 6 meses de prisão), tendo em conta que o ilícito se traduziu em filmagens do corpo desnudado das menores vão de encontro à personalidade lasciva do recorrente, manifestada nos demais ilícitos, pelo que só a pena de prisão se mostra adequada, sendo também adequadas as medidas concretas aplicadas.
VII – O mesmo se diga quanto à pena de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado e à pena de 4 anos e 6 meses aplicada pela prática do crime de abuso sexual de menor dependente, só de benevolência podendo o recorrente queixar-se.
VIII – O consentimento é irrelevante, quanto aos crimes de abuso sexual de criança agravado e ao crime de abuso sexual de menor dependente, no que respeita ao afastamento da tipicidade, se bem que em termos de medida da pena possa o mesmo assumir algum significado, mais ou menos intenso consoante a idade da vítima se encontre mais próxima ou mais afastada dos 16 anos de idade. No caso, em todo o período em que se desenrolou a sua conduta a menor tinha 14 anos, pelo que a irrelevância do consentimento é total.
IX -      Tal como entendeu o acórdão recorrido nem a culpa, nem a ilicitude se mostram especialmente diminuídas por quaisquer circunstâncias, desde logo quanto ao arrependimento (al. c) do n.º 2 do art. 72.º do CP) que relativamente à menor Y foi simplesmente verbalizado, não tendo sido acompanhado de actos concretos de autocensura.
X - Valorando o ilícito global e ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a conexão de homogeneidade entre eles e a sua relacionação com a personalidade unitária do arguido, o período temporal de actuação (Abril de 2014 a Outubro de 2015), a natureza dos bens jurídicos em causa e o facto de se tratar de duas ofendidas, na moldura do concurso de 4 anos e 6 meses a 9 anos e 10 meses de prisão, a pena única de 7 anos de prisão aplicada afigura-se adequada, sendo que é a proibição da violação do princípio da reformatio in pejus que impede que a diversa qualificação jurídica possa altera, para mais, a medida dessa pena única.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, [...] , foi julgado no âmbito do processo n.º 353/15.6PAVPV da ....ª Secção ...-..., da Instância Central de..., Comarca dos ..., que, por acórdão de 22 de Abril de 2016, decidiu nestes termos:

1 – Absolver o arguido da prática de um crime de abuso sexual de menor dependente de que vinha acusado (relativo a BB);

2 – Julgar o arguido autor material da prática, em concurso real, de:

2.1 – Um crime de abuso sexual de criança agravado, p. p. pelos art.ºs 171º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. b), do CP e, consequentemente, condená-lo na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;

2.2 – Um crime de abuso sexual de menor dependente, p. p. pelo art.º 172º, nº 1, do CP e, consequentemente, condená-lo na pena de 4 anos e 6 de prisão (ambos tendo como ofendida CC)

2.3 – Dois crimes de devassa da vida privada, p. p. pelo art.º 192º, nº 1, al. b), do CP, para os quais se convolam os dois crimes de pornografia de menores, agravados, de que vinha acusado e, consequentemente, condená-lo nas penas de 4 meses de prisão – relativo a CC - e 6 meses de prisão – relativo a BB;

3 – Em cúmulo jurídico, condenou o arguido na pena única de 7 anos de prisão.

Inconformado com o assim decidido, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça cuja motivação rematou com as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado, por um crime de devassa da vida privada, p. p. pelo artigo 192°, n° 1, alínea b) do CP, relativo a BB, na pena de seis meses de prisão, por a ter filmado desde que esta saiu da casa de banho, até que ficou sozinha no quarto enrolada na toalha, nua e a vestir-se, sempre sem de nada suspeitar e sem seu consentimento.

2. O referido crime é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
3. O artigo 70° do CP estabelece, com clareza, uma preferência pelas penas não detentivas, sempre que tal se mostre possível. Dispõe aquele preceito que, "Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

4. Sucede que o arguido, ab initio, confessou os factos, manifesta arrependimento, não tem antecedentes criminais e reparou à ofendida, até onde lhe era possível, os danos causados, conforme consta da própria acta da audiência de discussão e julgamento.

5. Deveria assim ter-lhe sido aplicada uma pena de multa e próxima do mínimo.

6. Acresce que, no caso em apreço, face ao referido no artigo 4º supra, o arguido deveria ter beneficiado da atenuação especial, prevista no artigo 72°, n° 2, alínea c) do CP, pelo que a pena de multa deveria ter em conta tal atenuação especial.

7. Foi igualmente o arguido [condenado] por um crime de devassa da vida privada, p. p. pelo artigo 192°, n° 1, alínea b) do CP, relativo a CC na pena de quatro meses de prisão, por a ter filmado desde que esta saiu da casa de banho, até que ficou sozinha no quarto enrolada na toalha, nua e a vestir-se, sempre sem de nada suspeitar e sem seu consentimento.

8. Do mesmo modo o arguido, ab initio, confessou os factos, manifesta arrependimento e não tem antecedentes criminais.

9. Deveria assim, de acordo com o disposto no citado artigo 70° do CP, ter-lhe sido aplicada um pena de multa e próxima do mínimo.

10. Foi ainda o arguido condenado por um crime de abuso sexual de criança agravado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão e por um crime de abuso sexual de menor dependente na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, considerando-se, salvo o devido respeito, [as penas] elevadas, designadamente a relativa ao abuso sexual de menor dependente.

11. Desde logo, não se valorizou tudo o que [se] provou da personalidade do arguido, nomeadamente que o arguido é o mais velho dos três filhos de um casal de estrato socioeconómico modesto, que constituía um agregado [familiar] com uma dinâmica funcional harmoniosa e estruturada, com regras bem definidas entre os filhos e os progenitores, partilhando estes as responsabilidades no processo educativo daqueles, recorrendo a estratégias educativas mais dialogantes do que punitivas, na qual existiam sentimentos de pertença, manifestos na expressão dos afectos, manutenção de sentimentos de preocupação uns pelos outros e de entreajuda, assentes na defesa de valores fundamentais, que foi bom aluno, tendo-se [licenciado] em educação física vindo, posteriormente, a realizar uma pós-graduação em ensino especial, trabalhador, competente, dedicou-se à prática desportiva federada, com um desenvolvimento afectivo-sexual sem constrangimentos, sexualidade de orientação heterossexual, madura, sem interesse, comportamento ou fantasia sexual desviante, nomeadamente envolvendo crianças, tem uma filha com 6 anos de idade, com a qual tinha uma relação estável e afectuosa, mantendo o arguido um relacionamento muito próximo com a filha, tendo sempre sido um pai presente e activo quer no processo educativo, quer na prestação de cuidados, quer na partilha do tempo, actividades e brincadeiras, está socialmente bem inserido e goza de boa imagem, no meio prisional revela capacidade de adaptação, mantém uma postura correcta e de cumprimento das regras, apresenta competências pessoais e sociais em várias áreas, não revela deficits de funcionamento em geral, denotando capacidade de assumir compromissos, responsabilidades e em lidar com a maioria da contrariedade, psicologicamente é um indivíduo com funcionamento tendencialmente mais calmo, sociável e com facilidade em estabelecer relacionamentos, quer sociais, quer mais íntimos, extrovertido, com adequada auto-estima, personalidade organizada e madura, trabalhador, ambicioso e orienta os seus padrões de comportamento por princípios éticos e morais e, em especial, reconhece a gravidade dos factos ora em apreço, bem como a repercussão dos mesmos nas vítimas, indicia capacidade de descentração e sentimentos de empatia para com elas, confessou os factos e manifesta arrependimento e não tem antecedentes criminais.

12. Acresce, a tal desvalorização não se entendeu, salvo o devido respeito, à relevância do consentimento da CC no crime de abuso sexual de menor dependente.

13. Nas leis da idade do consentimento, a noção de consentimento pode ser entendida como um tipo particular de competência que é considerada fundamental para o exercício do direito de liberdade sexual. O julgamento de quem é capaz de dar consentimento significativo para o acto sexual depende dos tipos de competência que se consideram relevantes. A competência considerada relevante para a tomada de decisão na actividade sexual é multidimensional, sendo concebida como uma combinação entre competência intelectual (habilidade para processar informação relevante), competência moral (capacidade para avaliar o valor social do gesto) e competência emocional (entendida como habilidade para expressar e manejar emoções).

14. A ofendida CC, aquando a prática do crime de abuso sexual de menor, já tinha experiência sexual com um namorado, tendo perdido a virgindade com este, pelo que jamais se poderia considerar que não tinha desenvolvimento competente, considerado relevante, para consentir e aderir, como aderiu, à relação sexual.

15. Parece assim que a pena aplicada ao arguido pelo crime de abuso sexual de criança poderia ser a mínima e na pena aplicada pelo crime de abuso sexual de menor dependente poderia ter sido ponderada a hipótese de atenuação especial e, mesmo que tal não fosse, a pena deveria situar-se abaixo de metade da moldura penal, ou seja, entre 2 e 3 anos.

16. Ao arguido, em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de sete (7) anos de prisão, não tendo nesta sido em conta o princípio da proporcionalidade.

17. De facto existem três itens que em sede de medida da pena conjunta deveriam ter sido devidamente ponderados e valorados, nomeadamente o reconhecimento da gravidade dos factos, bem como a repercussão dos mesmos nas vítimas, indicia capacidade de descentração e sentimentos de empatia para com elas; a circunstância dos actos punidos terem subjacente um consentimento que, sendo irrelevante em termos de afastamento da punibilidade, deve ser valorado em função da proximidade da sua relevância jurídico-penal; confissão; arrependimento; inexistência de antecedentes criminais e, por último, a circunstância do arguido apresentar competências pessoais e sociais em várias áreas, não revelar deficits de funcionamento em geral, denotando capacidade de assumir compromissos, responsabilidades e em lidar com a maioria da contrariedade, calmo, sociável e com facilidade em estabelecer relacionamentos, quer sociais, quer mais íntimos, extrovertido, com adequada auto-estima, personalidade organizada e madura, trabalhador, ambicioso e orienta os seus padrões de comportamento por princípios éticos e morais.

18. Por pena adequada considera-se a que é proporcional à gravidade do crime cometido.

19. Uma das ideias presente no princípio da proporcionalidade é justamente a de invadir o menos possível a esfera de liberdade do indivíduo, isto é, ser intrusivo apenas na medida do estritamente necessário à finalidade da pena que se aplica porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido. Por tal motivo, a ideia da proporcionalidade não pode ser separada de considerações sobre a finalidade e função da pena e não é possível determinar a medida da pena se esta não for orientada para um fim pelo que a racionalidade da opção assenta numa ideia sobre os seus efeitos.

20. Decisivo na escolha do tipo de pena e sua duração é a procura da maximização [da] tutela do bem jurídico com o menor custo possível. Na perspectiva da eficácia da prevenção geral intimidatória a eficácia da tutela depende não só a magnitude da pena, mas também que esta seja tomada a sério, ou seja, que se alguém lesa o bem jurídico é sancionado.

21. Face às circunstâncias descritas em que os factos ocorreram, ao princípio da proporcionalidade e à personalidade do arguido parece-nos, salvo o devido respeito, por adequada a pena conjunta entre 4 e 5 anos de prisão, cuja execução deverá ser suspensa, face o disposto no artigo 50.º do CP, porquanto se entende estarem preenchidos os pressupostos para que tal aconteça.

22. Na verdade o instituto da suspensão da pena pretende ser, do mesmo passo, um " meio de correcção", uma " medida de ajuda social" e " meio sociopedagógico activo ", sendo a sua aplicação " um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador" (Maia Gonçalves, CP, p. 203) quando este concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.

23. De facto a pena de prisão é, por toda a parte, a última ratio dos sistemas punitivos.

Escreve-se no " Anexo à Recomendação N° R (92) 17", de 19.10.1992, do Conselho da Europa que: "....6. Os princípios base da aplicação das penas devem ser compatíveis com as políticas criminais modernas e humanas, em particular no que concerne à redução do recurso à prisão efectiva, ao recurso a medidas e sanções na comunidade, ao prosseguimento de uma política de descriminalização, à utilização de medidas de diversão tais como a mediação e a indemnização das vítimas..." e ainda "... As penas privativas da liberdade devem ser consideradas como uma sanção a aplicar em último recurso e, consequentemente, só devem ser infligidas nos casos em que, tendo devidamente em conta outras circunstâncias apropriadas, a gravidade da infracção seja tal que torne todas as outras penas manifestamente inadequadas. Quando, por esse motivo, uma pena privativa da liberdade é considerada como justificada, essa pena não deve ir mais longe do que a exigida pela Infracção de que o interessado tenha sido reconhecido culpado. Devem ser afinados critérios para precisar as circunstâncias que tornam as infracções particularmente graves. Se possível, devem ser desenvolvidos critérios negativos para excluir a prisão, particularmente nos casos que implicam um pequeno prejuízo financeiro. Deve também ser encarada a adopção de disposições legislativas que restrinjam o recurso às penas privativas da liberdade de acordo com o parágrafo a., nomeadamente para as curtas penas de prisão. A fim de promover o recurso às penas e medidas não privativas da liberdade e em particular aquando da elaboração de novas leis, o legislador deve considerar a indicação, para certas infracções, de uma pena ou uma medida não privativa da liberdade em lugar da prisão como sanção de referência...".

24. Foi neste contexto que se inseriu a Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro, que procedeu a uma profunda alteração ao Código Penal. Esta na sua introdução, concretamente ponto 7. refere que " O Código traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem sempre ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador", e no ponto 11. diz " Outras medidas não detentivas são a suspensão da execução da pena ( artigos 48° e seguintes ( 50° e seguintes ) e o regime de prova ( artigos 53° e seguintes ( 50°, n° 2 ). Substitutivos particularmente adequados das penas privativas de liberdade, importa tornar maleável a sua utilização, libertando-os, na medida do possível, de limites formais, por forma a com eles cobrir uma apreciável gama de infracções puníveis com pena de prisão ".

25. A referida Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro, fixou os pressupostos e duração para a suspensão da execução da pena de prisão.

26° Quanto à duração não restam dúvidas que ao arguido deve ser aplicada pena não superior a cinco anos.

27. Quanto aos pressupostos parece igualmente que se verificam, conforme se refere em 11° supra.

28. Acresce que os factos praticados pelo arguido encontram-se totalmente desenquadrados do seu dia-a-dia e da sua personalidade, não passando duma fase menos boa e isolada da sua existência.

29. Sucede ainda que a sua reintegração na sociedade é bem aceite, conforme foi claramente referido por todas as testemunhas do arguido.

30. Caso se tivesse alguma dúvida sobre a suspensão da execução da pena de prisão, o Tribunal poderia ainda subordiná-la ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determinar que a suspensão fosse acompanhada de regime de prova, o que não se considera adequado para o caso concreto, mas admite-se como hipótese.

31. A situação descrita é suficiente para afastar o Recorrente da prática de futuros crimes, protegendo-se os bens jurídicos e, simultaneamente, reintegrando-o na sociedade, ou seja, satisfazendo-se por completo as finalidades da punição (artigos 40° e 50° do CP).

32. Em qualquer hipótese, a pena de prisão a aplicar ao Arguido deve situar-se em medida que possa ser suspensa, o que deve ocorrer no presente caso.

Julgando-se como se julgou, violou-se o disposto nos artigos 40°, 50°, 51°, 52°, 53°, 70°, 71°, n°s 1 e 2, 72°, n°s 1 e 2, alínea c), 73°, 171°, n°s 1 e 2, 172°, n° 1, 177°, n° 1, alínea b) e 192°, n°1, alínea b), todos do C. P”.

O Exmo. Procurador junto do tribunal recorrido pronunciou-se, em questão prévia, pela competência deste STJ para conhecer do recurso (o recorrente havia endereçado as alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa) e quanto ao mérito concluiu pelo seu não provimento.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido da incompetência do STJ, dado o recurso ter como objecto penas parcelares de montante não superior a 5 anos de prisão, subsidiariamente se pronunciando pelo não provimento do recurso, com a manutenção seja das penas parcelares, seja da pena única, cujo princípio da proporcionalidade se lhe não antolha violado.

Cumprido o n.º 2 do art.º 417.º do CPP, nenhuma resposta foi apresentada.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.

Decisão que versa sobre as seguintes questões:

a) - A questão prévia da incompetência do STJ;

b) – A escolha e medida da pena pelo crime de devassa da vida privada em que foi ofendida a menor BB (pena de multa próxima do limite mínimo, atenuada especialmente);

c) - A escolha e medida da pena pelo crime de devassa da vida privada em que foi ofendida a menor CC (pena de multa próxima do limite mínimo);

d) – A medida das penas pelos crimes de abuso sexual de criança e abuso sexual de menor dependente (mínimo da pena e atenuação especial, respectivamente; o consentimento da menor CC);

e) – A medida da pena única (violação do princípio da proporcionalidade; pena de prisão não superior a 5 anos; suspensão).

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II. Fundamentação

1. A questão prévia da incompetência

O M.º P.º junto deste STJ suscitou no seu parecer a questão prévia da incompetência deste tribunal para conhecer das penas parcelares dado serem inferiores a 5 anos de prisão, competência que se lhe afigura pertencer ao tribunal da relação, no caso, da Relação da Lisboa, enquanto tribunal de recurso-regra, para onde requer sejam remetidos os autos.

Trata-se de uma questão recorrente à qual temos dado resposta no sentido da competência, esse tendo sido, de resto, o entendimento do M.º P.º junto da 1.ª instância e do próprio tribunal (fls. 610 e 622).

Independentemente do caso julgado formal entretanto constituído, cumpre dizer que a jurisprudência do STJ não tem sido uniforme quanto à questão da atribuição de competência para conhecimento dos recursos restritos à matéria de direito directamente interpostos de decisão de tribunal colectivo (ou de júri) no caso de, em concurso, haverem sido aplicadas penas parcelares de medida não superior a 5 anos de prisão.

Para uns e à luz da alín. c) do n.º 1 do art.º 432.º do CPP, o STJ cobra competência para conhecer de todas as penas desde que a pena aplicada, ou seja, aquela que o condenado vai ter de cumprir, seja superior a esse limite de 5 anos de prisão.

Para outros, só são passíveis de recurso ou as penas superiores a 5 anos de prisão ou, no caso de concurso, a pena única superior a esse limite, sendo que as penas parcelares não superiores são da competência da relação.[1]

Mais sólida aquela orientação se nos afigura, a qual, de resto, tem hoje acolhimento largamente maioritário deste STJ.

Com efeito, se a recorribilidade para a relação é a regra (art.º 427.º do CPP), o recurso directo para o STJ constitui a excepção.

E, restrito à matéria de direito (cit. art.º 432.º, n.º 1, alín. c)), caso a pena aplicada seja superior a 5 anos, desde logo o n.º 2 do art.º 432.º do CPP impede, nessa circunstância, possa haver recurso prévio para a relação.

Por outro lado, de acordo com o n.º 1 do art.º 402.º do CPP o recurso interposto de uma decisão abrange todo o seu conteúdo, isto é e em caso de cúmulo, a pena superior a 5 anos de prisão e as penas parcelares inferiores.

Ainda no sentido da competência do STJ, o acórdão de 17.04.2013 deste tribunal[2], entendendo que a alín. c) do n.º 1 do art.º 432.º configura um “alargamento” de competência do STJ relativamente à apreciação de penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão, salientou que “essa posição interpretativa está em coerente coordenação com a natureza e finalidades processuais do recurso directo para o STJ e com o princípio do conhecimento unitário do recurso, que supõe que a instância competente para decidir parte das questões (…) assume a competência para conhecer de todas as questões de que depende o exercício da competência da instância superior, ou seja, no caso, a medida das penas parcelares e da pena única”.

Em suma, a alín. c) do n.º 1 do art.º 432.º do CPP deve ser interpretada no sentido de que, no caso de recurso directo do tribunal colectivo (ou júri) sobre matéria de direito, o STJ é competente para dele conhecer seja no respeitante à pena conjunta superior a 5 anos de prisão, seja quanto às penas parcelares de limite inferior.

Face ao exposto, improcede a questão prévia, sendo, pois, competente o STJ para apreciação do recurso[3].

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2. Factos provados

 “1 - CC nasceu a ... de 2001.

2 - BB nasceu a ... de 2000 e encontra-se institucionalizada desde os oito anos de idade.

3 - O arguido era treinador de atletismo da CC e da BB.

4 - Na qualidade de treinador de ambas é ele que as acompanha, bem como outros menores, aquando de deslocações para fora da ... para participação em torneios e campeonatos quer nos ..., quer no continente português.

5 – O arguido passou a treinar BB a partir de Outubro de 2014 e ministrava-lhe aulas de educação física semanalmente no âmbito de um programa implementado pela Câmara Municipal.

6 – Foi na qualidade de treinador que, com a concordância da BB e das entidades por esta responsáveis, a acompanhou, e a mais quatro rapazes, todos do clube “...” numa deslocação ao continente português para participarem em provas desportivas.

7 – Aquando de tal deslocação o arguido disse à BB que, por razões económicas e por ela não poder pernoitar no quarto dos rapazes, teria de pernoitar no quarto do arguido, ao que a BB acedeu.

8 – Toda a gestão logística da viagem, nomeadamente a marcação das viagens e hotéis, tinha sido efectuada pelo arguido.

9 – Viajaram para Lisboa em 06 de Maio de 2015 [e não 2014, como por lapso de indicou], com regresso previsto para dia 11 do mesmo mês, e pernoitaram a primeira noite nesta cidade.

9 – Cada um dos dois quartos onde ficavam os rapazes, tinham camas individuais e o quarto onde o arguido pernoitou com a BB tinha uma cama de casal.

10 - O arguido determinou o modo de utilização do quarto de banho, estabelecendo que a BB tomava banho em primeiro lugar e, logo que terminasse, saía da casa de banho para o quarto de dormir onde se enxugaria e vestiria, permitindo que o arguido, enquanto isso, tomasse banho.

11 – Nesta conformidade, a BB entrava vestida na casa de banho e saia enrolada na toalha, enquanto o arguido entrava e saía de boxers.

12 – Constrangida com o facto de ter de partilhar o quarto, a casa de banho e a cama, com o arguido, BB deitava-se na cama o mais afastada possível do arguido.

13 – Durante a estada em Lisboa, o arguido, juntamente com a BB e os rapazes, deslocaram-se a um centro comercial onde lhe comprou/ofereceu umas meias, um par de ténis e uma mala que a BB necessitava para as competições .

14 – Já antes de se deslocarem para Lisboa, o arguido tinha oferecido à BB roupa que tinha sido da sua companheira.

15 – De Lisboa seguiram para o Luso, onde as provas teriam lugar durante dois dias.

16 – As condições de alojamento permaneceram idênticas às ocorridas em Lisboa, ou seja, o arguido e a BB partilhavam o mesmo quarto, que também tinha uma cama de casal.

17 - Numa dessas duas noites, quando a BB estava deitada na ponta da cama, o arguido virou-se para ela e perguntou se ela não queria ter uma “curte” com ele, ao que a BB lhe respondeu que não.

18 – Face a esta resposta, o arguido, mostrando o seu desagrado, disse à menor que ela estava a ser insensível com os sentimentos dele, acrescentando que estava apaixonado por ela.

19 – No dia seguinte, após as provas de atletismo, o arguido efectuou uma massagem nas pernas aos rapazes e, de seguida, disse à BB para se deitar para também a massajar nas pernas.

20 – A BB ficou de cuecas, com uma toalha na zona da cintura, à semelhança do que sucedera com os rapazes e o arguido massajou-lhe as pernas, na sua totalidade, tal como havia feito aos rapazes, apesar de na altura a BB ter verbalizado que não lhe doíam as pernas.

21 - Durante a estada, o arguido, sem que a BB se tivesse apercebido, montou a sua máquina de filmar, deixando-a a filmar em modo automático, filmando assim a BB desde que esta saiu da casa de banho até que ficou sozinha no quarto enrolada na toalha, nua e a vestir-se, sempre sem de nada suspeitar.

22 – O modo de utilização da casa de banho determinado pelo arguido tinha por finalidade possibilitar a realização das “filmagens” acima referidas.

23 - Desde os 11 anos de idade que CC praticava atletismo, tendo participado em várias provas desportivas, quer nas várias ilhas dos Açores, quer no continente português.

24 – Em Abril de 2014, entre os dias 24 e 28, o arguido acompanhou CC e mais quatro rapazes, todos devidamente autorizados pelos progenitores, em deslocação ao continente português para participarem em provas desportivas.

25 – À semelhança do referido em relação a BB e pelas mesmas razões, a CC acedeu em partilhar o quarto com o arguido.

26 – Pernoitaram uma noite em Lisboa e, no dia seguinte, foram para o Luso, onde as provas teriam lugar.

27 – No estabelecimento hoteleiro onde se alojaram a CC partilhou o quarto com o arguido, quarto esse que também tinha uma cama de casal.

28 – Os quartos onde os rapazes pernoitaram tinham duas camas individuais, cada um.

29 - Na primeira noite que pernoitaram no Luso, depois de se terem deitado, o arguido dirigiu-se à CC e disse-lhe que ela era gostosa, ao mesmo tempo que começou a acariciá-la nas pernas.

30 - De seguida, o arguido perguntou-lhe se queria ter uma “curte” com ele.

31 - A CC começou por dizer que ia pensar, mas o arguido começou a apalpar-lhe os seios e a vagina e introduziu-lhe um dedo na vagina dela, friccionando-a.

32 – De seguida, o arguido pediu à CC que lhe tocasse/esfregasse o pénis, masturbando-o, o que ela fez.

33 - Antes do arguido ejacular, a CC pediu-lhe que não o fizesse para cima dela, porque tinha nojo desse líquido, tendo o arguido ejaculado para cima de um pedaço de papel higiénico que foi buscar à casa de banho.

34 - Na segunda noite no estabelecimento hoteleiro no Luso, os acontecimentos da noite anterior repetiram-se, ou seja, o arguido começou por apalpar os seios à CC, introduziu-lhe um dedo na vagina, friccionando-a, tendo-lhe também lambido a vagina até que ela atingiu o orgasmo.

35 - De seguida, o arguido pediu à CC que lhe tocasse/esfregasse o pénis, masturbando-o, o que ela fez.

36 - Antes do arguido ejacular, mais uma vez a CC lhe pediu que não o fizesse para cima dela, tendo o arguido ejaculado para cima de um pedaço de papel higiénico que foi buscar à casa de banho.

37 – Durante a estadia no Luso, o arguido, sem que a CC se tivesse apercebido, montou a sua máquina de filmar, deixando-a em modo de filmagem automático e filmou a CC desde que esta saiu da casa de banho até que ficou sozinha no quarto enrolada na toalha, nua e a vestir-se, sempre sem que esta de nada suspeitasse.

38 – No decurso do mês de Janeiro de 2015, CC, pela primeira vez, manteve relações de cópula completa, o que fez com o seu namorado.

39 - No final de Janeiro de 2015, o arguido abordou de novo a CC e perguntou-lhe se ela aceitava ter relações sexuais com ele, no que a menor concordou.

40 - Dirigiram-se, então, os dois, no carro do arguido, para a casa sita na ..., pertença de uma cunhada deste que, por razões profissionais, se encontra a residir no continente português e à qual o arguido tinha acesso por lhe ter sido entregue a chave respectiva a fim de que cuidasse da casa.

41- Nesta casa, dirigiram-se para o quarto de casal e na cama aí existente, o arguido introduziu completamente o seu pénis erecto na vagina da CC, tendo o arguido usado um preservativo.

42 - Combinou então o arguido com a CC que, como esta não tinha aulas à 5ª feira à tarde, a partir das 13:05 horas, passariam a encontrar-se todas as quintas-feiras para manterem relações de sexo um com o outro.

43 - Combinaram também que a CC diria aos pais que, nessas tardes, iria treinar atletismo.

44 - Assim, a partir do final do mês de Janeiro de 2015 e até meados do mês de Junho, data do termo do ano lectivo, excluído o período de férias escolares da Páscoa, passaram a encontrar-se regularmente na referida habitação, local onde mantinham relações de sexo em tudo semelhantes às anteriormente descritas bem como, pelo menos por três vezes, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus da CC bem como, em número indeterminado de vezes, o arguido introduziu a sua língua na vagina da CC e, também por número indeterminado de vezes, a CC colocou a sua mão no pénis do arguido e friccionou-o, masturbando-o.

45 - Em todas as referidas ocasiões o arguido utilizou preservativo.

46 - Em data não concretamente apurada mas contida no período temporal referido no ponto anterior, no interior da Escola ..., o arguido levou a CC para o interior do seu gabinete de trabalho, fechou-se no seu interior com ela, colocou a CC em cima da secretária, de barriga para cima, e introduziu o seu pénis erecto na vagina dela, ejaculando para cima da barriga desta, pois não utilizou preservativo.

47 - Depois de terminadas as férias escolares de verão, no período compreendido entre meados de Setembro de 2015 e o dia 21 de Outubro do mesmo ano, o arguido voltou a manter relações sexuais de cópula completa com a CC, pelo menos por mais duas vezes, tendo a última delas ocorrido nesta última referida data, numa zona de lazer, perto do ....

48 - O arguido, ao filmar BB quando esta tinha acabado de tomar banho, enxugando-se e vestindo-se, sem que esta disso tivesse conhecimento, sabia que estava a obter imagens da vida íntima da visada, sem para tal estar autorizado, actos que levou a cabo de forma livre e deliberada, consciente da ilicitude desta sua actuação, que sabia ser proibida e punida pela lei penal.

49 - O arguido, ao relacionar-se sexualmente com CC, apalpando-lhe os seios e a vagina, onde também lhe introduziu um dedo, friccionando-a, e fazendo com que a CC lhe friccionasse o pénis, masturbando-o, sabendo que ela tinha 13 anos de idade, pretendia obter satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fez de forma consciente, livre e deliberada, sabendo que tal actuação violava o direito de autodeterminação sexual de CC, bem como que o consentimento desta para a prática de actos sexuais desta natureza não era eficaz e, ainda assim, não se absteve de agir pela forma descrita, consciente da ilicitude destas suas condutas que sabia serem proibidas e punidas pela lei penal.

50 - O arguido, ao relacionar-se sexualmente com CC, introduzindo-lhe o pénis na vagina e no ânus, bem como lambendo-lhe a vagina e fazendo com que a CC lhe friccionasse o pénis, masturbando-o, pretendia satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fez de forma consciente, livre e deliberada, sabendo que ela tinha 14 anos de idade e que, por ser seu treinador de atletismo, a CC nele depositava uma especial confiança, sabendo que tal actuação violava o direito de autodeterminação sexual de CC, bem como que o consentimento desta para a prática de actos sexuais desta natureza não era eficaz e, ainda assim, não se absteve de agir pela forma descrita, consciente da ilicitude destas suas condutas que sabia serem proibidas e punidas pela lei penal.

51 - O arguido, ao filmar CC quando esta tinha acabado de tomar banho, enxugando-se e vestindo-se, sem que esta disso tivesse conhecimento, sabia que estava a obter imagens da vida íntima da visada, sem para tal estar autorizado, actos que levou a cabo de forma livre e deliberada, consciente da ilicitude desta sua actuação, que sabia ser proibida e punida pela lei penal.

Mais se provou que:

52 – O arguido é o mais velho dos três filhos de um casal de estrato socioeconómico modesto, que constituía um agregado com uma dinâmica funcional harmoniosa e estruturada, com regras bem definidas entre os filhos e os progenitores, partilhando estes as responsabilidades no processo educativo daqueles, recorrendo a estratégias educativas mais dialogantes do que punitivas.

53 – Existiam sentimentos de pertença, manifestos na expressão dos afectos, manutenção de sentimentos de preocupação uns pelos outros e de interajuda, assentes na defesa de valores fundamentais.

54 – O arguido iniciou a sua aprendizagem escolar em idade própria, a qual se desenrolou com sucesso e sem problemas relacionais ou disciplinares.

55 – Obteve licenciatura em educação física vindo, posteriormente, a realizar uma pós-graduação e ensino especial.

56 - Começou a trabalhar logo que concluiu o curso, apresentando-se o percurso profissional caracterizado pelo exercício regular de actividade laboral, sem períodos de desocupação, revelando adequadas competências profissionais, merecendo, do seu actual empregador, que mantem disponibilidade para continuar a beneficiar dos seus serviços, avaliação muito positiva do seu desempenho profissional.

57 - Paralelamente dedicou-se à prática desportiva federada, com o que aufere € 200,00 mensais que acrescem aos € 800,00 mensais que aufere da sua actividade profissional.

58 – O seu desenvolvimento afectivo-sexual decorreu sem constrangimentos.

59 – Assume uma sexualidade de orientação heterossexual, madura, sem interesse, comportamento ou fantasia sexual desviante, nomeadamente envolvendo crianças.

60 – O arguido estabeleceu vários relacionamentos de namoro, com diferentes graus de envolvimento e duração em consequência do tipo/intensidade dos sentimentos que nutria para com a namorada.

61 - À data dos factos, mantinha relação afectiva havia cerca de 10 anos, sendo a companheira professora do liceu.

62 - O casal tem uma filha com 6 anos de idade.

63 – Esta relação apresentava-se estável e afectuosa, mantendo o arguido um relacionamento muito próximo com a filha, tendo sempre sido um pai presente e activo, quer no processo educativo, quer na prestação de cuidados, quer na partilha do tempo, actividades e brincadeiras.

64 – Contudo, desde há cerca de 2/3 anos verificaram-se alterações na vida sexual do casal, nomeadamente na frequência e satisfação obtida nas relações, situação com que o arguido se acomodou, sem ter procurado, junto da companheira, inverter a situação.

65 – Na sequência dos factos ora em apreço, ocorreu a separação do casal.

66 – Mantém o apoio da família de origem e a ex-companheira acompanha a filha do casal nas visitas ao arguido no EP, na companhia de outros familiares.

67 – Está socialmente bem inserido e goza de boa imagem.

68 – No meio prisional revela capacidade de adaptação, mantém uma postura correcta e de cumprimento das regras.

69 – O arguido apresenta competências pessoais e sociais em várias áreas, não revela déficits de funcionamento em geral, denotando capacidade de assumir compromissos, responsabilidades e em lidar com a maioria da contrariedade.

70 – Psicologicamente é um indivíduo com funcionamento tendencialmente mais calmo, sociável e com facilidade em estabelecer relacionamentos, quer sociais, quer mais íntimos, extrovertido, com adequada auto-estima, personalidade organizada e madura, trabalhador, ambicioso e orienta os seus padrões de comportamento por princípios éticos e morais.

71 - Reconhece a gravidade dos factos ora em apreço, bem como a repercussão dos mesmos nas vítimas, indicia capacidade de descentração e sentimentos de empatia para com elas

72 – Confessou os factos e manifesta arrependimento.

73 – Não tem antecedentes criminais.

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3. O arguido foi, além do mais, condenado por um crime de abuso sexual de criança agravado e por um crime de abuso sexual de menor dependente, ambos em trato sucessivo, na pessoa da menor CC.

O arguido, único recorrente, não pôs em causa a qualificação jurídica dos crimes enquadrados na figura do trato sucessivo.

Trata-se de uma configuração criada por alguma jurisprudência, mormente deste STJ, que está, contudo, longe de ser pacífica[4].

A 1.ª tese, de cunho pragmático, visa dar resposta a situações de abuso sexual de crianças ou de menores dependentes caracterizadas pela sua repetição, muitas das vezes temporalmente indefinidas, e unificadas por uma mesma resolução criminosa e proximidade temporal e cuja reiteração encerra uma culpa agravada.

A 2.ª considera que a estrutura típica desses tipos de ilícito não pressupõem tal reiteração, com eles se não pretendendo punir uma actividade, pelo que, no caso de violação plúrima do mesmo tipo legal de crime, a condenação reporta-se à pluralidade de crimes a punir com referência às regras do concurso, em ordem ao disposto no n.º 1 do art.º 30.º do CP.

Independentemente da pureza do carácter extremado dessas posições, no caso que nos ocupa o arguido não levou a cabo o seu propósito criminoso no quadro de uma mesma resolução criminosa ou de dolo inicial.

O 1.º episódio de abuso sexual de criança ocorreu na noite de 25 para 26 de Abril de 2014 e o 2.º na noite seguinte, ainda que no mesmo local (v. pontos 29 a 35 da matéria de facto provada).

Nessa segunda actuação o arguido renovou o processo de motivação, o seu propósito lascivo, de forma autónoma e pensada.

Como assim ocorreu nos demais episódios de abuso sexual de menor dependente (na pessoa, sempre, da menor CC quando perfez a idade de 1 4 anos) retratados nos pontos 41, 44, 46, 47 e que com alguma segurança analítica atingem o número de 9 episódios delituosos, com referência temporal a finais de Janeiro de 2015 (1 crime, numa casa em ...), entre finais desse mês e finais de Junho seguinte (5 crimes na mesma habitação), no mesmo período 1 crime no gabinete de trabalho do arguido na Escola ...), 1 crime entre meados de Setembro de 2015 e 21 de Outubro do mesmo ano e um outro neste último dia, perto do ....

O arguido cometeu, assim, a par de 2 crimes de devassa da vida privada do art.º 192.º, n.º 1, alín. b), do CP, na pessoa das 2 menores CC e BB, relativamente à 1.ª ofendida, 2 outros crimes de abuso sexual de criança agravado dos art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alín. b), do CP e 9 crimes de abuso sexual de menor dependente do art.º 172.º, n.º 1, do CP, todos em relação de concurso real.

Em causa está uma alteração de qualificação jurídica que este STJ pode levar a efeito e, no caso, sem necessidade do cumprimento prévio do disposto no n.º 3 do art.º 424.º do CPP, na medida em que o arguido já antes pudera defender-se da acusação que precisamente versava sobre a pluralidade e concurso dos crimes em causa (de resto, em número maior, de 2 crimes de abuso sexual de criança agravado e 32 crimes de abuso sexual de menor dependente agravado).

Seja como for, a alteração da qualificação jurídica que temos como mais correcta, reclamaria penas parcelares em maior número que o da condenação e, assim, por via do maior agravamento do respectivo somatório, uma pena conjunta necessariamente mais elevada do que a que foi cominada no acórdão recorrido, o mesmo é dizer que tal se traduziria numa reformatio in pejus que o n.º 1 do art.º 409.º do CPP proíbe em absoluto.

É por isso que no julgamento do mérito do recurso que iremos encetar de acordo com as conclusões do recurso apenas podemos ter em conta as penas parcelares e a pena única impugnadas.

*

4. Assim e seguindo a ordem da motivação recursiva, da escolha da pena correspondente aos crimes de devassa da vida privada que o art.º 192.º, n.º 1, alín. d), do CP pune com pena de prisão até 1 ano ou em alternativa multa até 240 dias e cuja pretensão do recorrente vai no sentido da imposição de uma pena de multa próxima do mínimo e atenuada especialmente, nos termos da alín. c) do n.º 2 do art.º 72.º do CP cumpre dizer o seguinte:

- De acordo com o disposto no art.º 70.º do CP, nos casos de previsão de pena compósita alternativa, a preferência pela pena de multa depende da formulação de um juízo positivo sobre a adequação e suficiência dessa espécie de pena face às finalidades da punição.

Ora, as finalidades da punição seja de prevenção geral, seja aqui e em especial de prevenção especial, dado que o ilícito em que se traduziram as filmagens do corpo desnudado das menores vão de encontro à personalidade lasciva do recorrente, manifestada nos demais actos ilícitos, só a pena de prisão se mostra apta à realização de tais finalidades.

Quanto à medida das penas, embora o acórdão recorrido nada justificasse quanto à respectiva diferenciação (4 meses de prisão relativamente à menor CC e 6 meses de prisão quanto à menor BB), é a pena mais elevada que se mostra mais conforme quer à culpa (onde ganha especial destaque o modo planeado da instalação da câmara de filmar em modo automático), quer às necessidades de prevenção, fundamentalmente especial, estando-nos vedado, por força daquele princípio, proceder ao agravamento da 1.ª, por isso havendo que manter tais penas.

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5. Quanto à medida da pena correspondente ao crime de abuso sexual de criança agravado fixada em 4 anos e 6 meses de prisão (numa moldura abstracta de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão), ou seja, muito perto do mínimo legal e onde relevou todo o quadro atenuativo que o recorrente renova (confissão ainda que com valor mitigado, ausência de antecedentes penais e inserção familiar e social) só de benevolência o recorrente pode queixar-se.

A ilicitude da conduta do arguido é deveras intensa e a astúcia e o planeamento dos ilícitos desde o momento da preparação das viagens da ... e a logística que engendrou de forma a dividir os atletas rapazes por quartos individuais e a reservar para si um quarto com cama de casal para repartir com cada uma das atletas raparigas, revelam um intenso grau de culpa e um abuso grosseiro e muito reprovável da superioridade que a relação de treinador das menores lhe conferia, muito censurável sendo a violação da relação de confiança que menores e seus responsáveis lhe emprestaram.

Quanto à medida da pena pelo crime de abuso sexual de menor dependente fixada em 4 anos e 6 meses de prisão na moldura abstracta de 1 a 8 anos de prisão, na lógica seguida de 1 crime de trato sucessivo em que a reiteração de condutas conduz ao agravamento da culpa, tendo em conta o número de actos cometidos, tal pena mostra-se adequada e proporcional à sua culpa e à necessidade do seu cumprimento.

O recorrente sustenta que relativamente a esse ilícito deveria ter-se atenuado especialmente a pena dado que, como refere “a ofendida CC (…) já tinha experiência sexual com um namorado, tendo perdido a virgindade com este, pelo que jamais se poderia considerar que não tinha desenvolvimento competente, considerado relevante, para consentir e aderir, como aderiu, à relação sexual”.

Começando pelo consentimento, este é irrelevante no que respeita ao afastamento da tipicidade, se bem que em termos de medida da pena possa o mesmo assumir algum significado, mais ou menos intenso consoante a idade da vítima se encontre mais próxima ou mais afastada da idade limite de 16 anos enquanto elemento do tipo legal em causa[5].

Ora, no caso em apreço, em todo o período em que se desenrolou a conduta, a menor tinha a idade de 14 anos, pelo que a irrelevância do seu consentimento é total.

Quanto à atenuação especial da pena, no dizer de Figueiredo Dias “mandamentos irrenunciáveis de justiça e adequação (ou “necessidade”) da punição impõem que – quando esteja em causa uma atenuação da responsabilidade do agente, já não quando seja questão de uma “agravação”, pois que nestes casos o princípio da legalidade da punição implica que a falta de previsão do legislador funcione a favor do agente – o sistema seja dotado de uma válvula de segurança. Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena[6].

O efeito atenuativo não resulta nunca do número das circunstâncias atenuantes, mas apenas do facto de elas diminuírem essencialmente a ilicitude e a culpa.[7] 

Ora, tal como entendeu o acórdão recorrido nem a culpa, nem a ilicitude se mostram especialmente diminuídas por quaisquer circunstâncias, desde logo quanto ao arrependimento (alín. c) do n.º 2 do art.º 72.º do CP) que relativamente à menor CC foi simplesmente verbalizado, ou seja, não foi acompanhado de actos concretos de autocensura.

Quanto à necessidade da pena, a mesma é ditada seja pelas necessidades de prevenção geral desde logo tendo em conta o alarme social e o sentimento de repulsa da comunidade em geral associados a tipo de crimes, seja pelas exigências de prevenção especial, a partir da personalidade do arguido reflectida nos actos cometidos.

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6. Quanto à pena única, como vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência e pela doutrina, a medida concreta da pena única do concurso, construída dentro da moldura abstracta definida pelo n.º 2 do art.º 77.º do CP a partir das penas parcelares aplicadas aos diversos crimes, é determinada em função da culpa e da prevenção, levando em linha de conta o critério específico da consideração conjunta dos factos e da personalidade do arguido (art.º 77.º, n.º 1, do CP).

 À visão atomística relativa à determinação das penas singulares sucede agora uma visão de conjunto da totalidade dos factos, como se de um facto global se tratasse, de forma a detectar a gravidade do ilícito global com referência à personalidade unitária do arguido.

Na conhecida lição de Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva a sua avaliação concreta e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira” criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade[8].

O bem jurídico protegido pelo preceito incriminador dos art.ºs 171.º e 172.º do CP é a autodeterminação sexual face a condutas sexuais que, mesmo sem constrangimento da criança menor de 14 anos, podem prejudicar o livre desenvolvimento da sua personalidade, em particular na esfera sexual[9].

A lesão desse bem jurídico traduz-se, não raro, em danos incomensuráveis na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional da criança reflectidos em forte isolamento familiar e social, ansiedade, depressão, raiva, vergonha, baixa auto-estima…

Na população em geral, para lá de um sentimento de insegurança e de alarme social, o comportamento lesivo gera também um sentimento de repulsa, como já enfatizámos.

Quanto aos crimes de devassa da vida privada o bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade da própria pessoa.

O conjunto dos ilícitos perpetrados traduz-se em condutas violadoras da autodeterminação sexual do direito da criança a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.

A ilicitude global é de grau elevado, desde logo pelo número de actos em que se desdobrou a conduta do arguido, pela sua natureza, pelo modo pensado e planeado de execução e gravidade, ao arguido se impondo um especial dever de protecção dada a confiança que as crianças nele depositavam enquanto eu treinador de atletismo.

As exigências de prevenção geral positiva ou de integração são muito elevadas, desde logo dada a incidência deste tipo de criminalidade na sociedade portuguesa, como prementes são as razões de prevenção especial tendo em conta a personalidade desviante do arguido quanto aos tipos de ilícito em causa, não se descurando a sua integração familiar e socioprofissional enquanto factor adjuvante da sua ressocialização.

A confissão, porque em concorrência com outros elementos de prova não assume um valor determinante, o arrependimento foi meramente verbalizado em relação à menor CC, se bem que quanto à menor BB houvesse reparado voluntariamente os danos causados, a ausência de antecedentes criminais são o normalmente exigível a qualquer cidadão, o mesmo acontecendo com o cumprimento das regras em meio prisional.

 No contexto exposto, valorando o ilícito global e ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a conexão de homogeneidade entre eles e a sua relacionação com a personalidade unitária do arguido, o período temporal de actuação (entre Abril de 2014 e Outubro de 2015), a natureza dos bens jurídicos em causa e o facto de se tratar de duas ofendidas, na moldura do concurso de 4 anos e 6 meses e 9 anos e 10 meses de prisão, a pena única de 7 anos de prisão imposta afigura-se adequada e proporcional à severidade dos factos e à culpa do seu agente, sendo que é a proibição da violação do princípio da reformatio in pejus que impede que a diversa qualificação jurídica possa alterar, para mais, a medida dessa pena única.

Porque tal pena é de limite superior àquele que o n.º 1 do art.º 50.º do CP permite a suspensão da execução da pena, a apreciação dos pressupostos substanciais de tal pena de substituição fica prejudicada.

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III. Decisão

Face ao exposto, acordam em não dar provimento ao recurso, mantendo a pena única de 7 (sete) anos de prisão imposta ao arguido AA.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 7 UC (art.ºs 513.º, n.º 1, do CPP).

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Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Novembro 2016

Francisco M. Caetano

Souto de Moura

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[1] Sobre ambas as orientações e tomando posição pela 1.ª, v., entre muitos outros, o Ac. STJ de 10.09.2014, Proc. 714/12.2JABRG.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Proc. 700/01.8JFLSB.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Neste preciso sentido nos pronunciámos nos Acs. do STJ de 29.04.2015, Proc. 41/13.8GGVNG.S1 e 11.06.2015, Proc. 41/10.0JBLSB.S1, de que fomos relator.
[4] A título de mero exemplo, no sentido da sua admissibilidade, v. os Acs. do STJ de 23.01.2008, Proc. 07P4830 e 29.11.2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1 e em sentido contrário o Ac. de 22.04.2015, Proc. 45/13.0JASDTB.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt e, por mais recente, o Ac. de 13.01.2016, Proc. 414/12.3TAMCN.S1-3.ª, em SASTJ.
[5] A este propósito v. o Ac. STJ de 22.01.2013, Proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1, em www.dgsi.pt.
[6] Direito Penal Português – As Consequência Jurídicas do Crime, 4.º Reimp., C. Ed. pág. 302.
[7] M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal – Parte geral e especial, 2014, Almedina, pág. 376.
[8] Ob. cit. pág. 291.
[9] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 2.ª ed., pág. 834.