Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
66/09.8GBVLN-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: RAUL BORGES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
BURLA QUALIFICADA
NOVOS MEIOS DE PROVA
PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
Data do Acordão: 02/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO O RECURSO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I – No caso presente o que o condenado, ora recorrente, pretende é a apreciação de novos meios de prova, consubstanciados numa carta manuscrita e nos depoimentos de duas testemunhas apresentadas, uma delas autor da missiva, cujos depoimentos seriam demonstrativos de que o recorrente não cometeu o crime de burla por que foi condenado, pois o “negócio” celebrado pelo ofendido não foi com o arguido, mas com outrem, nem tão pouco estivera no locus delicti no dia 4 de Agosto de 2008.

II – O objecto do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas da motivação apresentada pela recorrente, não havendo neste recurso extraordinário lugar, por razões óbvias (em causa está apenas a fixação da matéria de facto), a qualquer conhecimento oficioso.

III – A única questão a apreciar prende-se com a aferição da verificação do fundamento de admissibilidade da revisão de sentença previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal.

IV – Consiste a revisão num meio extraordinário que visa a impugnação de uma sentença transitada em julgado e a obtenção de uma nova decisão, mediante a repetição do julgamento.

V – Como se assinala no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/2000, de 13 de Julho de 2000, proferido no processo n.º 379/99-1.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Dezembro, e no BMJ n.º 499, pág. 88, trata-se de recurso com uma natureza específica, que no próprio plano da Lei Fundamental se autonomiza do genérico direito ao recurso garantido no processo penal pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. 

VI – O direito à revisão de sentença encontra consagração constitucional no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, versando em concreto sobre «Aplicação da lei criminal», no domínio dos direitos, liberdades e garantias, exactamente inserido no Título II, subordinado à epígrafe “Direitos, liberdades e garantias”, e a partir da primeira revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro de 1982 -, no Capítulo I, sob a epígrafe “Direitos, liberdades e garantias pessoais”. Trata-se de preceito que contém o essencial do “regime constitucional” da lei criminal.

VII – Releva para o caso presente, o n.º 6 deste preceito, que reconhecendo e garantindo o direito a revisão, estabelece: “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”. Este n.º 6, acrescentado ao artigo 29.º pela referida Lei Constitucional n.º 1/82, mais não é do que a reprodução/transferência do primitivo n.º 2 do artigo 21.º da Constituição da República, na sua redacção originária, inserto então em norma que versava sobre “Responsabilidade civil do Estado”.

VIII – Segundo José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1984 (reedição), volume V, pág. 158, “O recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa a eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”.

 IX – Admitindo que a sentença judicial não tem o alcance de modificar a realidade do direito substantivo, transformando por misericordiosa ficção o injusto em justo, deverá tirar-se a consequência de que nenhuma decisão judicial seria definitiva e irrevogável.

X – A reparação da decisão, condenatória ou absolutória, reputada de materialmente injusta, pressupõe que a certeza, a paz e a segurança jurídicas que o caso julgado encerra (a justiça formal, traduzida em sentença transitada em julgado), devem ceder perante a verdade material; por esta razão, trata-se de um recurso marcadamente excepcional e com fundamentos taxativos.

XI – Nas palavras de Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Batista, no Comentário ao Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 1934, 6.º volume, págs. 402-403: “O princípio da res judicata pro veritate habetur é um princípio de utilidade e não de justiça e assim não pode impedir a revisão da sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos de alcançar. (…) A revisão tem a natureza de um recurso. (…) A revisão é um exame do caso quando surgem novos e importantes elementos de facto. Pode assim dizer-se que se não trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos”.

XII – Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-04-2005, proferido no processo n.º 135/05 - 3.ª Secção, publicado na CJSTJ, 2005, tomo 2, pág. 179, o recurso extraordinário de revisão consagrado no artigo 449.º e seguintes do CPP apresenta-se como uma válvula de segurança do sistema, modo de reparar o erro judiciário cometido, sempre que, numa reponderação do decidido, possa ser posta em causa, através da consideração de factos-índice, taxativamente enumerados naquele normativo, seriamente a justiça da decisão ou do despacho que ponha termo ao processo.

XIII – Constitui passo imprescindível para a apreciação de recurso de revisão com este fundamento, o conhecimento do núcleo essencial da decisão revidenda, ao nível da fixação da matéria de facto, pois que como se refere no já aludido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/2000, de 13 de Julho de 2000, processo n.º 379/99 - 1.ª Secção, publicado in BMJ n.º 499, pág. 88, uma vez que a revisão solicitada nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal implica apreciação de matéria de facto, a decisão a rever deverá ser aquela que tiver apreciado os factos provados e não provados, sendo essa a decisão a submeter a recurso de revisão.     

XIV – Pereira Madeira, no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, 2.ª edição revista, pág. 1507, afirma: “3. A revisão tem a natureza de um recurso, em regra, sobre a questão de facto. Não se trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos de facto. Por tal motivo, não parece admissível o recurso com o objectivo apenas de alteração da qualificação jurídica dos factos.

Em regra, a revisão funda-se em matéria de facto e só excepcionalmente algumas legislações a admitem com base em matéria de direito. Será o caso da previsão das alíneas e), f) e g), aditadas pela Lei n.º 48/2007, de 29/8”.

XV – A conduta do ora recorrente que relevou para o preenchimento do tipo objectivo da burla por que foi condenado é a de ter convencido o ofendido AOAAS de que era o dono da máquina retroescavadora giratória, de marca Catterpiller, modelo 235-D, com o n.º de série 08TJ00125/A6C7605 — quando, como bem sabia, não o era —, levando aquele a entregar-lhe a quantia de € 12 000,00, para pagamento do preço da mesma, nos termos do negócio de compra e venda referente a essa máquina, celebrado entre ambos.

XVI – Na verdade, o recorrente no recurso para a Relação, na defesa da tese de dever ser absolvido do crime de burla, não questionou ter celebrado com o ofendido um contrato de compra e venda tendo por objecto a referida máquina. O que sustentou foi que, como consta da conclusão 17.ª, era, então, o dono e legítimo possuidor da mesma por a “B - SFCB, S.A.”, ter celebrado consigo, na qualidade de legal representante da “A, Unipessoal, Lda” um contrato de compra e venda, mediante o qual aquela sociedade lhe transmitiu a propriedade da máquina dos autos, pelo preço fixado de € 20 000,00.

XVII – No primeiro recurso extraordinário de revisão interposto em 15-07-2012, o arguido, invocando a alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, indicou duas testemunhas, a saber, GG e EE, e juntou um relatório social elaborado pelo ISS.IP, em 30-04-2012, no âmbito de um processo de … .

XVIII – O recorrente invocava então que no dia 4-08-2008, não estava em Chaves, mas em Sesimbra a tratar de um negócio de uma pedreira.

XIX – As duas testemunhas afirmaram que no dia 4 de Agosto de 2008, o requerente encontrava-se no sul do país, numa deslocação de negócios a uma pedreira, sita em … ou …, perto de Sesimbra, aí permanecendo no dia seguinte, pelo que não era possível naquele dia 4 de Agosto ter estado em Chaves.

XX – No presente recurso foram arroladas duas testemunhas, uma delas exactamente o mesmo EE, que já depusera no primeiro recurso de revisão. Ao responder ao Advogado do recorrente, pelo minuto 4.02, refere-se ao primeiro recurso de revisão, onde depôs como testemunha, dizendo agora que no princípio de Agosto de 2008, o ora recorrente estava com o depoente por o ter acompanhado quando tinha de, no segmento da sua actividade dedicado a sucata naval (minuto 12.00), apresentar uma proposta de desmantelamento de barcos que se encontravam na baía do Seixal. Esta proposta de desmantelamento de barcos no Seixal é repetida pela testemunha quando interpelada pela Exma. Juíza ao minuto 10:40. Mais. A testemunha referiu, ao minuto 12:22-23, que “desde aí que ele (A - arguido) sempre me disse que não tinha nada a ver com esse negócio”, negócio da máquina, entenda-se.

XXI – Acontece que sendo o negócio com o árabe no princípio de Agosto de 2008, como iria o recorrente dizer o que disse, quando ainda não teria tomado conhecimento do negócio, pois que estando no Seixal, não sabia o que por aqueles dias, outrém estaria a fazer em Chaves…

XXII – Ora aí está como em dois depoimentos separados por mais de sete anos – finais de 2012 e 13 de Janeiro de 2020 –, se opera uma convolação de um negócio de uma pedreira em Sesimbra em negócio de sucata naval, com desmantelamento de barcos, na baía do Seixal

XXIII – Em 1-12-2019, decorridos 11 anos, 3 meses e 26 dias, sobre o dia 4 de Agosto de 2008, DD, que fora colaborador do recorrente no estaleiro da …, …, Póvoa de Varzim, entre 2007 e 2008, fazendo muitas vezes de seu motorista, envia uma carta manuscrita ao ora recorrente.

XXIV – Ouvido, disse o depoente que teve conhecimento da situação prisional do ora recorrente num almoço na … com EE, que o pôs ao corrente da situação, dizendo que na causa da reclusão estava um negócio celebrado com um árabe.

XXV – Na carta diz que o arguido está inocente “porque quem fez esse negócio com o A fui eu”.

XXVI – Refere no depoimento que tendo combinado encontro com o árabe no estaleiro “Teve muita sorte, pois naquela altura estavam a manobrar máquinas para alinhá-las para uma exposição e então mostrou do lado de fora a máquina ao árabe. Ajustaram o preço de 12.000,00 €, mas para surpresa sua, o árabe tinha levado uma pasta cheia de notas e o negócio fez-se”. Como refere, recebeu o dinheiro, mas esqueceu-se de fazer a sua parte, que era entregar a máquina. Tudo isto se passa de manhã, pela hora do almoço, seguindo depois para o Porto e nunca mais aparecendo no estaleiro da Póvoa.

Tendo-lhe sido perguntado se não foi pedido um comprovativo, uma factura, respondeu que bastou um aperto de mão.

Sendo perguntado que vantagem teria BB em negociar com a testemunha em vez de o fazer com o arguido, respondeu que BB tinha pressa em pegar na máquina.

Não sabendo o número do árabe, nem tendo trocado números de telefone, foi pedido que explicasse a frase da carta em que diz “Liguei ao árabe, para ver se ele a queria comprar, ele disse logo que sim”. A resposta foi que era “um pouco disléxico”.

XXVII – O depoimento não oferece credibilidade, anotando-se que mal se entende que, indo BB a Chaves para ver uma máquina, se tivesse feito acompanhar de uma pasta cheia de notas, tão cheia que dava exactamente para pagar o preço de uma máquina que acabara de ver em acção.

XXVIII – De toda esta argumentação posta no recurso, há um ponto presente. Incontornável. O arguido nunca negou ter recebido o dinheiro que BB pagou pela máquina. Por todo o exposto, é de denegar a revisão.

XXIX – Para além das custas pela sucumbência no recurso, o recorrente será condenado na quantia a que alude o artigo 456.º do CPP, sancionando a montagem de um panorama factual, com pinceladas de inverosimilhança, incongruência, com total desrespeito pela lógica e coerência, com versões fantasiosas, a roçar a negligência grosseira.

Decisão Texto Integral:

       AA, divorciado, nascido em …-05-1961, natural de …, concelho de …, residente na Rua …, n.º …, …, …, condenado nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal singular n.º 66/09.8GBVLN do Juízo Local Criminal de … – Comarca de …, vem interpor recurso extraordinário de revisão, com o fundamento previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do C.P.P., apresentando a motivação de fls. 3 a 10 verso, que remata com as seguintes conclusões (Realces do texto):

1. O arguido, que sempre reclamou inocência, não cometeu os factos pelos quais foi condenado. Existem factos e meios de prova novos, que agora foram descobertos e que põem em causa a justiça da sentença que o condenou.

2. “A rescisão de decisões criminais surge como um ensaio legislativo ao equilíbrio entre a imutabilidade da sentença decorrente do caso julgado e a necessidade do respeito pela verdade material” in; Simas Santos e Leal Henriques: "Recursos em Processo Penal - 5a.Edição - 2002;

3. Na verdade, não foi o arguido quem efetivamente praticou os fatos pelos quais foi condenado;

4. Nem sequer se podia ter encontrado com o ofendido (seja ele o BB ou o CC), fazendo um qualquer acordo, porque nem sequer esteve em … naquele dia ou nos dias anteriores.

 5. Tem a certeza de que não se encontrou com o ofendido, não falou com ele, não fez com ele nenhum contrato de compra e venda nem em …, nem em qualquer outro lugar, não fez com ele, aquele negócio e, como tal é uma pessoa inocente e injustamente condenada;

6. O arguido sempre reclamou inocência, como o fez no recurso de revisão já transitado e que, não obstante mereceu indeferimento.

7. O arguido requerente foi surpreendido agora, entre os dias 2 a 6 de dezembro de 2019, com carta que lhe foi endereçada por DD e por si recebida no Estabelecimento Prisional de …, onde este reclama para si a prática dos actos ilícitos que lhe foram imputados descrevendo-os minuciosamente,

8. Tendo tomado, então e só então, conhecimento de quem fora que os praticou.

9. E face aos pormenores que o redactor e subscritor daquela revela, dúvidas não tem o requerente de que foi ele próprio quem os praticou e que o Tribunal se equivocou ao imputá-los a si.

10. Estes factos e meios de prova novos e que agora foram descobertos - e só agora - por si só ou combinados com os que foram apreciados no processo suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação, nos termos do disposto no artg0. 449°., n°. 1, al. d) do CPPenal.

       Termina pedindo seja concedido total provimento ao recurso e, por via disso, dar cumprimento ao disposto no artigo 459.° do CPP, designar dia para julgamento e, observando-se em tudo os termos do respetivo processo, restituindo-se o arguido à situação jurídica anterior à condenação, atenuando a já difícil situação do arguido e da justiça, seguindo-se os ulteriores termos legais – artigos 449.º e sgs. do CPP.

     Juntou um documento e arrolou duas testemunhas, a saber, EE e DD.



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     Por despacho de 17-12-2019, a fls. 21, foi admitido o recurso, ordenando-se a notificação para o Ministério Público responder, no prazo de 10 dias, o que aconteceu ainda antes da produção de prova.

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      O Ministério Público no Juízo Local Criminal de … apresentou a resposta de fls. 32 a 42, colocando a questão prévia da intempestividade da resposta, concluindo:

A) Como que a título prévio de análise do mérito da motivação apresentada pelo recorrente sempre diremos que, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, e melhor entendimento de Vossas Excelências, na nossa humilde perspetiva, não se impunha ao Ministério Público, após prolação do despacho judicial de fls. 935 (ref.ª 33…05) apresentar resposta;

B) O presente recurso de revisão fundamenta-se no artigo 449.º, n.º1, alínea d) do C.P.P.;

C) Importa atender, em termos de tramitação subsequente legalmente imposta, ao disposto nos artigos 451.º e seguintes do C.P.P.;

D) Complementa e concretiza o artigo 453.º do C.P.P. que (no que aos autos especificamente respeita) “(…) 1 - Se o fundamento da revisão for o previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º, o juiz procede às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas; (sublinhado nosso)

E) Revertendo ao caso dos autos, o Tribunal a quo deveria ter tomado posição quanto às diligências probatórias solicitadas, designadamente, a inquirição das testemunhas EE e DD, nunca ouvidas em momento anterior do processo, como o impunha o artigo 453.º, n.º1 do C.P.P.;

F) O recorrente fundamenta o pedido de revisão na descoberta de novos factos e meios de prova que por si só, a serem verdadeiros, poderão suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, para o que indica duas testemunhas que poderão, ou não, demonstrar a verdade, ou mentira, das suas alegações, nomeadamente, quanto à existência da carta cuja cópia junta aos autos, a sua autoria e identificação do agente do crime;

G) O Ministério Público ao ter de formular esta resposta sem qualquer elemento de prova seguro que sustente a motivação do pedido de revisão pouco ou nada pode trazer aos autos de relevante, no sentido de melhor auxiliar o julgador com uma tomada de posição esclarecida;

H) Atenta a alínea específica à luz da qual o recorrente fundamenta o seu requerimento de revisão a resposta não seria temporalmente apresentada neste momento processual, mas apenas depois de proferido despacho pelo Tribunal a quo quanto às diligências de prova requeridas e depois da sua realização (momento em que se poderia apresentar resposta sustentada, ou não, no bem fundado das alegações do recorrente para efeitos de procedência, ou não, do presente recurso extraordinário de revisão), no cumprimento do disposto no artigo 453.º, n.º1 do C.P.P.;

sem prescindir,

I) O recorrente foi condenado por Sentença proferida a 14-10-2010, transitada em julgado a 26-04-2012, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão efetiva;

J) Iniciou o cumprimento da pena no passado dia 09-09-2019 [ref.ª 20…63], com terminus previsto para o dia 09-05-2023;

K) Vem agora apresentar recurso extraordinário de revisão, nos termos, com os fundamentos e para os efeitos do disposto no art.º 449.º, n.º1, alínea d) do C.P.P.;

L) O recurso extraordinário de revisão é um direito reconhecido constitucionalmente no n.º6 do artigo 29.º da nossa Lei Fundamental “(…) aos cidadãos injustamente condenados (…)”.

M) Alega o recorrente que, na primeira semana do mês de dezembro do corrente ano de 2019, em reclusão no Estabelecimento Prisional de …, recebeu uma carta que diz ter sido elaborada e subscrita pelo punho de DD, que melhor identifica no artigo 21.º da motivação do recurso;

N) No “correr” dessa alegada carta, DD terá escrito que o autor dos factos em causa nestes autos é ele próprio e não o recorrente, escrevendo “(…) tenho de lhe pedi perdão… quem fez esse negócio com o BB fui eu…” (artigo 26.º da motivação e fls. 24 a 28 do Apenso B);

O) Sucede que, a carta cuja cópia o recorrente juntou está toda ela escrita em letras maiúsculas, vem assinada também em letras maiúsculas por alguém que se intitula «DD “…”», com uma rubrica ilegível, desconhecendo-se sequer se, de facto, existe DD;

P) Mais se desconhece se DD escreveu a carta cuja cópia o recorrente juntou e se o seu teor foi escrito, com verdade, por ele;

Q) Importa proceder-se à inquirição de DD e EE para, uma vez produzida essa nova prova, até à data alegadamente desconhecida pelo recorrente e a que os autos também eram completamente alheios, de forma a poder aferir-se, em concreto, acerca da necessidade, ou não, de revisão e, maxime, de prolação pelo Tribunal a quo de decisão também ela esclarecida acerca do mérito do pedido;

R) Sem prejuízo de, depois de produzida a prova outro sentido de pronúncia nossa se impor (daí a nossa discordância quanto à assertividade temporal da presente resposta), por ora, e face ao alegado pelo recorrente na sua motivação do recurso, dúvidas não poderão existir de que estamos perante novos factos (probandos, ainda, é certo) e novos meios de prova (que se destinam a sustentar esses novos factos probandos) que não foram considerados nem apreciados no processo;

S) O recorrente veio apresentar prova testemunhal que, alegadamente, poderá sustentar e/ou materializar as suas afirmações escritas no sentido de que não foi ele o autor dos factos, mas antes DD, sendo as testemunhas por ele indicadas, entre as quais este último, conhecedoras da factualidade em causa nos autos, produção de prova que, a assim ser, se impõe efetivar;

T) Só após a produção desta prova é que se poderá concluir pela superveniência de factos novos que impliquem um juízo de adequação e necessidade de revisão da Sentença, com consequente remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 454.º do C.P.P.;

U) Porque o recurso de revisão tem como teleologia precisamente a reparação de decisões injustas, entende o Ministério Público que, a demonstrar-se, na produção de prova que se impõe, a veracidade do alegado pelo recorrente, terá todo o mérito o presente recurso, seguindo os seus normais trâmites junto do Supremo Tribunal de Justiça, com eventual, mais sábia e esclarecida procedência.

     Nestes termos, e por ora, deverá confirmar-se, in totum, a Sentença recorrida, por nenhum agravo ter feito à Lei e por nenhum reparo nos merecer.

     Deverá, contudo, produzir-se prova, nos termos e para os efeitos requeridos pelo recorrente, com inquirição, como testemunhas, de DD e EE (nunca antes inquiridas no processo). A demonstrar-se, a final, depois dessa mesma produção de prova, a veracidade do alegado pelo recorrente, no sentido de que o autor dos factos por que foi condenado nestes autos foi DD e não ele, terá todo o mérito o presente recurso extraordinário de revisão, seguindo-se os seus normais trâmites junto do Supremo Tribunal de Justiça, com eventual, mais sábia e esclarecida procedência.


***


     Seguiu-se a inquirição das testemunhas arroladas em 13-01-2020, sendo junto original do documento apresentado, como consta da acta de fls. 44 a 47. 

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      A Exma. Juíza no Juízo Local Criminal de ..., da Comarca de ..., lavrou douta informação, nos termos do artigo 454.º do Código de Processo Penal, a fls. 51 a 55, nos termos que se transcrevem (realces do texto):

      “Nos autos principais aos quais o presente processo se encontra apenso, AA foi condenado, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão, por sentença proferida em 14.10.2010, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.06.2011 e transitada em julgado em 26.04.2012.

     Inconformado, em 13.12.2019, veio o condenado interpor recurso extraordinário de revisão, alegando, em suma, que não cometeu os factos pelos quais foi condenado, sendo que existem factos e meios de prova novos, agora descobertos e que põem em causa a justiça da sentença que o condenou.

     Assim, alega que não foi a pessoa que praticou os factos que constam da sentença, porquanto, para além de nem sequer ter estado em … naquele dia ou nos dias anteriores, de não se ter encontrado com o ofendido, de não ter falado com ele e de não ter celebrado qualquer contrato com o mesmo, nem em … nem em qualquer outro lugar, teve, agora, conhecimento de quem os praticou.

      Mais concretamente, alega que recebeu uma carta que lhe foi remetida por DD, na qual este reclama para si a prática dos factos pelos quais foi condenado.

     Em sede de requerimento de interposição de recurso, requereu a junção de um documento e a inquirição de duas testemunhas.

      Admitido o recurso interposto, foi o Ministério Público notificado para, querendo, responder.

     Em sede de resposta, o Ministério Público, em suma, para além de consignar que entende que a resposta só teria cabimento depois de produzida a prova requerida pelo condenado, vem pugnar pela manutenção da sentença proferida, por nenhum agravo ter feito à Lei e por não merecer qualquer reparo.


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      O condenado juntou aos autos o original do documento junto com as suas alegações de recurso.

      Foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo condenado.

      O Ministério Público e o condenado proferiram as suas conclusões orais quanto a todas as provas produzidas.


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      Assim, e nos termos e para os efeitos previstos no artigo 454.º do Código de Processo Penal, cabe proferir a seguinte informação quanto ao mérito do presente recurso de revisão, nos termos que infra se descrevem.

     Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

      A jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal de Justiça tem vindo unanimemente a entender que, nos termos e para os efeitos da norma agora referida, são novos factos ou novos meios de prova os que não puderam ser apresentados e apreciados ao tempo do julgamento, quer por serem desconhecidos dos sujeitos processuais, quer por não poderem ter sido apresentados a tempo de serem submetidos à apreciação do julgador. Importa, ainda, que tais factos ou meios de prova provoquem uma grande dúvida sobre a justiça da condenação.

     Ora, no caso em apreço, importa, assim, aquilatar se, face aos novos factos e aos meios de prova apresentados pelo condenado, suscitam grandes dúvidas sobre a justiça da sentença proferida nos autos.

      Desde já, afigura-se-nos que não. Vejamos.

     Em sede de alegações, veio o condenado alegar que não foi a pessoa que praticou os factos que constam da sentença, porquanto, para além de nem sequer ter estado em … naquele dia ou nos dias anteriores, de não se ter encontrado com o ofendido, de não ter falado com ele e de não ter celebrado qualquer contrato com o mesmo, nem em … nem em qualquer outro lugar, teve, agora, conhecimento de quem os praticou.

      Mais concretamente, alega que recebeu uma carta que lhe foi remetida por DD, na qual este reclama para si a prática dos factos pelos quais foi condenado.

     Ouvidos EE e DD, sendo que este “confessou” ser o autor da carta ora junta aos autos, entende este Tribunal que a versão ora apresentada pelo condenado afigura-se, de todo, inverosímil e incoerente, sendo que os depoimentos de tais testemunhas, para além de não terem sido plausíveis e cabais a sustentar tal versão, não são idóneos a abalar a demais prova produzida em sede de julgamento e, em concreto, as declarações do ofendido, sendo que, ao invés, revelaram que a sentença ora proferida nos autos principais não merece qualquer reparo.

      Concretizando.

      A testemunha EE precisou apenas que foi quem deu conhecimento a DD de que o condenado se encontrava em situação de reclusão pelos factos pelos quais foi condenado nos presentes autos e que, no dia em que ocorreu o negócio com o ofendido, o condenado se encontrava consigo na zona do … . Sobre tal “versão” de que o arguido se encontra na zona do Seixal, já incidiu o recurso extraordinário de revisão a que se reporta o Apenso A e que mereceu indeferimento.

      Por sua vez, o depoimento da testemunha DD afigurou-se incoerente e inverosímil, desde logo porquanto se afigurou que veio relatar uma versão completamente fantasiosa e, nessa medida, improvável por contraponto com a realidade factual que ficou vertida na sentença proferida nos autos.

     Desde logo, o motivo pelo qual veio argumentar ter sido o próprio a celebrar o negócio de venda da referida máquina com o ofendido BB não se afigura de todo plausível, nem que, de igual, só agora, ao fim de tantos anos, é que tenha sentido um peso na consciência e tenha sentido necessidade de “contar a verdade” só porque o condenado se encontra a cumprir pena de prisão.

      Ademais, note-se que a referida testemunha precisou que conheceu o ofendido BB na altura em que trabalhou como motorista para o condenado AA, afirmando que o ofendido não o poderia confundir com aquele, uma vez que sempre se identificou em concreto, e nunca se fez passar pelo condenado. Ora, a ser assim, porque motivo o ofendido apresentaria queixa contra o arguido e não contra a testemunha ora arrolada? Não se vislumbra outra razão plausível que não a versão relatada pelo ofendido de que foi o condenado AA o autor dos factos em apreço pois o normal acontecer dita que quem se veja lesado nos seus interesses actue por forma a defender os mesmos.

      Ademais, a referida testemunha confirmou que não tinha acesso a qualquer documentação da empresa do condenado nem que sabia o n.º de série da máquina em causa e que alega ter sido ele a vender ao ofendido. Ora, a ser como refere a dita testemunha, como se explica que o documento junto aos autos principais a fls. 14, do qual consta a identificação do condenado, descreva a máquina em causa e identifique o n.º de série da mesma que, por sua vez, é coincidente com o n.º de série constante dos documentos de fls. 137-151 dos autos principais, que se reportam ao alegado negócio de venda da mesma máquina pela empresa … ao condenado? Também por esta via se mostra a “fantasia” ora criada pelo condenado e corroborada por tal testemunha, pois de outra forma que não a que consta dos factos constantes da sentença proferida nos autos se consegue explicar como é que o ofendido teria acesso a tais documentos.

      Mais: na carta ora junta aos autos, referiu a ora testemunha que “liguei ao árabe para ver se ele a queria comprar”. Ora, inquirido por este Tribunal, veio, a final, a dita testemunha referida que o ofendido BB não tinha o seu número de telefone, o que entra em clara contradição com o teor da aludida carta e, também por esta via, mostra a como é inverosímil a versão apresentada pelo condenado.

      Assim, e em suma, entende-se, com devido respeito por outra opinião, que os factos e os novos meios de prova carreados pelo condenado em nada abalam a justiça da condenação de que foi alvo nos presentes autos, nem são idóneos a levantar qualquer dúvida sobre a mesma.


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      Pelo exposto, somos de parecer de que o recurso interposto não é provido de mérito, porquanto os meios de prova apresentados, de per si ou conjugados com os que foram apreciados nos autos principais, não suscitam qualquer dúvida sobre a justiça da condenação.

      De todo o modo, V.as Ex.as, como sempre, melhor decidirão e farão JUSTIÇA.

     Oportunamente, subam os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça.


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      A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, na vista a que alude o artigo 455.º, n.º 1, do CPP, emitiu de fls. 59/60, douto parecer, defendendo dever ser proferida decisão que denegue a revisão.

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      Colhidos os vistos, realizou-se a conferência a que alude o artigo 455.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

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      Questão a apreciar.

      Com o presente recurso, pretende o recorrente se autorize a revisão da sentença condenatória proferida em 14 de Outubro de 2010, no processo comum singular n.º 66/09.8…, do Juízo Local Criminal de …, Comarca de …, transitada em julgado em 26 de Abril de 2012, após confirmação integral pelo Tribunal da Relação do Porto.

     No caso presente o que o condenado, ora recorrente, pretende é a apreciação de novos meios de prova, consubstanciados numa carta manuscrita e nos depoimentos de duas testemunhas apresentadas, uma delas autor da missiva, cujos depoimentos seriam demonstrativos de que o recorrente não cometeu o crime de burla por que foi condenado, pois o “negócio” celebrado pelo ofendido não foi com o arguido, mas com outrem, nem tão pouco estivera no locus delicti no dia 4 de Agosto de 2008.

       O objecto do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas da motivação apresentada pela recorrente, não havendo neste recurso extraordinário lugar, por razões óbvias (em causa está apenas a fixação da matéria de facto), a qualquer conhecimento oficioso.

      A única questão a apreciar prende-se com a aferição da verificação do fundamento de admissibilidade da revisão de sentença previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal.

                    


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       Analisando.        

      Consiste a revisão num meio extraordinário que visa a impugnação de uma sentença transitada em julgado e a obtenção de uma nova decisão, mediante a repetição do julgamento.

      Como se assinala no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/2000, de 13 de Julho de 2000, proferido no processo n.º 379/99-1.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Dezembro, e no BMJ n.º 499, pág. 88, trata-se de recurso com uma natureza específica, que no próprio plano da Lei Fundamental se autonomiza do genérico direito ao recurso garantido no processo penal pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. 

     O direito à revisão de sentença encontra consagração constitucional no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, versando em concreto sobre «Aplicação da lei criminal», no domínio dos direitos, liberdades e garantias, exactamente inserido no Título II, subordinado à epígrafe “Direitos, liberdades e garantias”, e a partir da primeira revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro de 1982 -, no Capítulo I, sob a epígrafe “Direitos, liberdades e garantias pessoais”.

      Trata-se de preceito que contém o essencial do “regime constitucional” da lei criminal. 

      Releva para o caso presente, o n.º 6 deste preceito, que reconhecendo e garantindo o direito a revisão, estabelece:

      “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.

      Este n.º 6, acrescentado ao artigo 29.º pela referida Lei Constitucional n.º 1/82, mais não é do que a reprodução/transferência do primitivo n.º 2 do artigo 21.º da Constituição da República, na sua redacção originária, inserto então em norma que versava sobre “Responsabilidade civil do Estado”.

      Dizia então o primitivo n.º 2 do artigo 21.º:

      “2. Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e a indemnização pelos danos sofridos”.

  

      Como assinalam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, 1984, 1.º volume, pág. 208:

      “VII. O n.º 6 [do artigo 29.º da CRP] reconhece e garante: (a) o direito à revisão de sentença; (b) o direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no caso de condenações injustas. É um caso tradicional de responsabilidade do Estado pelo facto da função jurisdicional o ressarcimento dos danos por condenações injustas provadas em revisão de sentença”.

      Do mesmo modo em Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, Janeiro de 2007, 4.ª edição revista, volume I, pág. 498:

      “ XII. O n.º 6 reconhece e garante: (a) o direito à revisão de sentença; (b) o direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no caso de condenações injustas.

         É um caso tradicional de responsabilidade do Estado pelo facto da função jurisdicional o ressarcimento dos danos por condenações injustas provadas em revisão de sentença”. 

       Procurava-se então responder à reparação do erro judiciário, fora do plano da prisão preventiva ilegal ou injustificada (a qual pode originar lesões graves e ilegítimas, devendo merecer igual protecção o ressarcimento dos danos provocados), e constante já do artigo 2403.º do Código Civil de 1867 [Parte IV – Da ofensa dos direitos e da sua reparação – Livro I – Da responsabilidade civil – Título V – Da responsabilidade por perdas e danos causados por empregados públicos no exercício das suas funções, o qual estabelecia: “Mas, se alguma sentença criminal for executada, e vier a provar-se depois, pelos meios legais competentes, que fora injusta a condenação, terá o condenado, ou os seus herdeiros, o direito de haver reparação de perdas e danos, que será feita pela fazenda nacional, precedendo sentença controvertida com o ministério publico em processo ordinário”] e do artigo 690.º do Código de Processo Penal de 1929, então vigente, no que respeita ao plano específico da “Indemnização ao réu absolvido”, condenado pela sentença revista. (A revisão era então versada no Título X – Da revisão das sentenças e despachos - artigos 673.º a 700.º).

      Actualmente, a indemnização em caso de a decisão revista ter sido condenatória e o tribunal de revisão absolver o arguido está prevista no artigo 462.º (Indemnização), com reporte ao artigo 461.º (Sentença absolutória no juízo de revisão), como aquele do Código de Processo Penal.

      Por seu turno, o artigo 4.º, n.º 2, do Protocolo n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), permite a quebra do caso julgado, a “reabertura do processo (…), se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento”.

    Como diz o acórdão deste Supremo Tribunal de 16-06-2011, proferido no processo n.º 108/07.1PASJM-K.S1, da 5.ª Secção, a importância do recurso de revisão como instrumento para remediar situações de intolerável injustiça cobertas pelo caso julgado, deu-lhe assento constitucional.    

 

     Segundo José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1984 (reedição), volume V, pág. 158, “O recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa a eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”.

      Através do mecanismo processual da revisão de sentença, procura-se alcançar a justiça da decisão: “Entre o interesse de dotar de firmeza e segurança o acto jurisdicional e o interesse contraposto de que não prevaleçam as sentenças que contradigam ostensivamente a verdade, e, através dela, a justiça, o legislador tem que escolher. O grau em que sobrepõe um ao outro é questão de política criminal. Variam as soluções nas diferentes legislações. Mas o que pode afirmar-se resolutamente é que em nenhuma se adoptou o dogma absoluto do caso julgado frente à injustiça patente, nem a revisão incondicional de qualquer decisão transitada. Se aceitamos pois, como postulado, que a possibilidade de rever as sentenças penais deve limitar-se, a questão que doutrinalmente se nos coloca é onde colocar o limite”. Assim, Emílio Gomez Orbaneja e Vicente Herce Quemada, Derecho Procesal Penal, 10.ª Edição, Madrid, 1984, pág. 317 (a autoria do capítulo respeitante aos recursos é do 1.º Autor).

      Mais do que meros interesses individuais, são ponderosas razões de interesse público que ditam a existência desta última garantia, cuja teleologia se reconduz em fazer prevalecer a justiça (material, real ou extraprocessual), sobre a segurança jurídica. – José Maria Rifá Soler e José Francisco Valls Gombau, Derecho Procesal Penal, Madrid, Iurgium Editores, pág. 310.

      Admitindo que a sentença judicial não tem o alcance de modificar a realidade do direito substantivo, transformando por misericordiosa ficção o injusto em justo, deverá tirar-se a consequência de que nenhuma decisão judicial seria definitiva e irrevogável.

      Contra esta consequência se move, porém, a necessidade de segurança jurídica que, em largo limite, assim é chamada a restringir a justiça – Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, III, Lisboa, 1958, pág. 36; de modo concordante, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª Edição, 1974 – Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 42 a 45.

      A reparação da decisão, condenatória ou absolutória, reputada de materialmente injusta, pressupõe que a certeza, a paz e a segurança jurídicas que o caso julgado encerra (a justiça formal, traduzida em sentença transitada em julgado), devem ceder perante a verdade material; por esta razão, trata-se de um recurso marcadamente excepcional e com fundamentos taxativos. Assim, Vicente Gimeno Sendra, Derecho Procesal Penal, Editorial Colex, 1.ª Edição, 2004, pág. 769.

       Conforme escreveu Eduardo Correia, in A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Almedina, 1983, pág. 302, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto” (em registo semelhante ver, do mesmo Autor, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pág. 7).

      Figueiredo Dias (loc. cit., pág. 44) afirma que a segurança é um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “o que não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser, só, no fundo, a força da tirania”.

      Nas palavras de Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Batista, no Comentário ao Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 1934, 6.º volume, págs. 402-403: “O princípio da res judicata pro veritate habetur é um princípio de utilidade e não de justiça e assim não pode impedir a revisão da sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos de alcançar. (…) A revisão tem a natureza de um recurso. (…) A revisão é um exame do caso quando surgem novos e importantes elementos de facto. Pode assim dizer-se que se não trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos”.

      Para Simas Santos/Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 2.ª edição, pág. 129, o legislador, “com vista ao estabelecimento do equilíbrio entre a imutabilidade da sentença decorrente do caso julgado e a necessidade de respeito pela verdade material”, consagrou a possibilidade de revisão das sentenças penais, limitando a respectiva admissibilidade aos fundamentos taxativamente enunciados no artigo 449.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

      Segundo os mesmos Autores, in Código de Processo Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, 2000, II volume, págs. 1042/3: “O recurso extraordinário de revisão apresenta-se como um ensaio legislativo com vista ao estabelecimento do equilíbrio entre a imutabilidade da sentença decorrente do caso julgado e a necessidade de respeito pela verdade material”.

      Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, versando o artigo 449.º, na nota 1, pág. 1209, da edição de 2007 (na 4.ª edição actualizada, Abril de 2011, a págs. 1205), afirma: “Esta é uma norma excepcional que prevê a quebra do caso julgado e, portanto, uma restrição grave do princípio da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito”.

      Após aludir ao artigo 29.º, n.º 6, da CRP e artigo 4.º, § 2.º, do Protocolo adicional n.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, disposições que permitem a quebra do caso julgado no processo penal, refere (págs. 1209/1210 e 1216 na edição de 2007 e págs. 1206 - nota 1 e 1213 - nota 20, na 4.ª edição de 2011): “A noção definitividade da sentença (caso julgado) assenta, pois, no esgotamento das vias de recurso ordinário ou no decurso do prazo para o seu exercício, sem prejuízo da reabertura do processo desde que com base em novos factos ou em vício fundamental do processo. Mas só circunstâncias “substantivas e imperiosas” (substantial and compelling) devem permitir a quebra do caso julgado, de modo a que este recurso extraordinário se não transforme em uma “apelação disfarçada” (appeal in disguise, na expressão do acórdão do TEDH Ryabyh v. Rússia …).

       E na nota 2, pág. 1206, acrescenta: “Por isso, o elenco das causas do artigo 449.º, n.º 1, é taxativo (acórdão do STJ, de 6.10.1999, SASTJ, n.º 34, 63).”.


      Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-04-2005, proferido no processo n.º 135/05 - 3.ª Secção, publicado na CJSTJ, 2005, tomo 2, pág. 179, o recurso extraordinário de revisão consagrado no artigo 449.º e seguintes do CPP apresenta-se como uma válvula de segurança do sistema, modo de reparar o erro judiciário cometido, sempre que, numa reponderação do decidido, possa ser posta em causa, através da consideração de factos-índice, taxativamente enumerados naquele normativo, seriamente a justiça da decisão ou do despacho que ponha termo ao processo.

      Neste sentido, cfr. o acórdão de 17-09-2009, proferido no processo n.º 144/99.0SMLSB-B.S1-3.ª Secção.

      Extrai-se dos acórdãos de 10-09-2008, proferidos nos processos n.º 2154/08 e n.º 2286/08, ambos da 3.ª Secção e do mesmo Relator:

      “A revisão da sentença ou despacho corresponde a uma relativização, numa escalada em ascensão entre nós, (cf., por exemplo, o art. 371.º-A do CPP, na recente alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08), ainda dentro de limites apertados, do valor do caso julgado penal, e realiza o formato da concordância prática entre a segurança e a estabilidade e o ideal de justiça, que, em situações de clamorosa ofensa, de ostensiva lesividade do sentimento de justiça reinante no tecido social, reclama atenuação da eficácia da decisão a coberto do trânsito em julgado”, podendo ainda ler-se no primeiro:

       “O trânsito em julgado não cobre, na filosofia deste recurso extraordinário, a injustiça da condenação penal, nenhum Estado adoptando como dogma, em nome do valor da certeza e segurança do direito, o caso julgado, quando uma decisão já transitada atente flagrantemente contra a verdade, contra os direitos fundamentais dos cidadãos, procurando o nosso sistema processual penal realizar um compromisso entre os dois valores fundamentais”.


      Delimitando o objecto do recurso de revisão, vejamos a decisão impugnada.

     Decisão recorrida – Por sentença de 14 de Outubro de 2010 do Juízo Local Criminal de …, Comarca de …, proferida no PCS n.º 66/09.8GBVLN, foi o arguido AA, condenado pela autoria material de crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de 3 anos e 8 meses de prisão e a pagar ao demandante BB a quantia de 12.000,00 € e juros de mora desde a notificação do pedido. – Fls. 11 a 20.

     A sentença transitou em julgado em 26 de Abril de 2012, ut certidão de fls. 11.

     Tendo a sentença transitado um ano, seis meses e doze dias depois de ter sido proferida, certo sendo que o arguido foi julgado in absentia, a verdade é que o tardio trânsito se explica pela singela circunstância de que o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, facto certamente importante na economia deste recurso, mas olvidado pelo recorrente.

     Na realidade, tiveram lugar anteriormente duas impugnações da decisão recorrida, sendo um recurso ordinário e um primeiro recurso extraordinário de revisão a que se alude nos artigos 12 e 36 da motivação, a págs. 4 e 7 verso, e conclusão 6.ª, sendo o presente recurso de revisão a terceira impugnação.

      Começando pelo recurso ordinário referido na informação a fls. 51, dirigido ao Tribunal da Relação do Porto.

      Em tal recurso, ao longo de 49 conclusões, o arguido invocou a nulidade do despacho que decidiu a realização da audiência de julgamento sem a presença do arguido por não estar fundamentada, impugnou matéria de facto e pediu a suspensão da execução da pena, tendo na conclusão 17.ª afirmado que “o arguido era titular da máquina por ter efectuado a compra e venda da mesma à …., então sua legítima proprietária” e referindo na conclusão 22.ª a realização de contrato em 8 de Setembro de 2009 (sic) – Realce nosso).

      Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Junho de 2011, foi negado provimento ao recurso.

      O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual por despacho de 27-09-2011, não foi admitido, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.

      Seguiu-se recurso de revisão interposto em 15-07-2012, decidido em acórdão de 13-11-2013 e em 2019 é interposto o presente.


       Revertendo ao caso concreto.

      Certificada a legitimidade do recorrente para interpor o presente recurso, face ao disposto no artigo 450.º, n.º 1, alínea c), do CPP, avancemos.


      Constitui passo imprescindível para a apreciação de recurso de revisão com este fundamento, o conhecimento do núcleo essencial da decisão revidenda, ao nível da fixação da matéria de facto, pois que como se refere no já aludido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/2000, de 13 de Julho de 2000, processo n.º 379/99 - 1.ª Secção, publicado in BMJ n.º 499, pág. 88, uma vez que a revisão solicitada nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal implica apreciação de matéria de facto, a decisão a rever deverá ser aquela que tiver apreciado os factos provados e não provados, sendo essa a decisão a submeter a recurso de revisão.    

      Como dizia Luís Osório no Comentário ao Código de Processo Penal, volume VI, pág. 403, versando a revisão sempre sobre a questão de facto, visa-se pela mesma não um reexame nem uma reapreciação de anterior julgado, mas, sim e antes, uma nova decisão assente em novo julgamento do feito com apoio em novos dados de facto, “não se trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos”.

      A revisão versa apenas sobre a questão de facto, como concluem Leal Henriques-Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, 2008, pág. 209, referindo os mesmos Autores que versa apenas matéria de facto em Recursos Penais, Rei do Livros, 8.ª edição, 2011, pág. 219.

      Como dizia Luís Osório no Comentário ao Código de Processo Penal, volume VI, pág. 403, versando a revisão sempre sobre a questão de facto, visa-se pela mesma não um reexame nem uma reapreciação de anterior julgado, mas, sim e antes, uma nova decisão assente em novo julgamento do feito com apoio em novos dados de facto, “não se trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos”.

      Pereira Madeira, no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, 2.ª edição revista, pág. 1507, afirma:

 “3. A revisão tem a natureza de um recurso, em regra, sobre a questão de facto. Não se trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos de facto. Por tal motivo, não parece admissível o recurso com o objectivo apenas de alteração da qualificação jurídica dos factos.

4. Em regra, a revisão funda-se em matéria de facto e só excepcionalmente algumas legislações a admitem com base em matéria de direito. Será o caso da previsão das alíneas e), f) e g), aditadas pela Lei n.º 48/2007, de 29/8”.


      Vejamos a matéria de facto dada por provada, tal como emerge da sentença condenatória, ora questionada, confirmada in totum pelo acórdão da Relação do Porto, o qual negou provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente.     

     Factos provados

      «Os factos dados por provados e que relevaram para a condenação do requerente são, em suma, os seguintes:

— no dia 4 de Agosto de 2008, o ofendido BB deslocou-se a …, onde se encontrou com o requerente AA, que lhe propôs vender-lhe uma máquina retroescavadora giratória, de marca Catterpiller, modelo 235-D, com o n.º de série 08TJ00125/A6C7605, pelo preço de €12000,00, vindo os dois a celebrar um contrato de compra e venda de equipamentos usados, tendo o ofendido entregado ao requerente a quantia de € 12 000,00, para pagamento do preço;

— o requerente AA não era o dono da máquina retroescavadora embora tivesse feito uma proposta de compra à sua legitima proprietária, a sociedade “…”, em cujas instalações a máquina se encontrava;

— no dia 7 de Agosto de 2008, o requerente emitiu e entregou ao ofendido a factura n.º 7…/2008;

— o requerente acordou com o ofendido entregar-lhe a máquina no prazo de 10 dias;

— quando o ofendido se deslocou às instalações da sociedade “…” para carregar a máquina, foi informado por FF que não poderia carregar a máquina visto que a mesma ainda não tinha sido paga pelo requerente AA;

— o mesmo FF, na ocasião, telefonou ao requerente que lhe transmitiu que poderia entregar a máquina ao ofendido pois, em meia hora, estaria na "…" para liquidar o preço da retroescavadora, o que nunca fez;

— agiu o requerente com o propósito de conseguir um aumento do seu património à custa do correspondente empobrecimento do património do ofendido, causando-lhe um prejuízo de € 12 000,00, o que logrou por ter convencido o ofendido de que era o proprietário da referida máquina retroescavadora, nessa qualidade celebrando o contrato de compra e venda da mesma.


     A motivação da decisão de facto revela que a convicção do tribunal, quanto aos factos dados por provados, se formou com base, nomeadamente:

— nas declarações prestadas pelo ofendido «o qual, de modo sereno e pormenorizado, descreveu todos os passos do negócio que celebrou com o arguido, designadamente, as suas várias deslocações a …, para ver a máquina na companhia do arguido que sempre se assumiu corno tendo legitimidade para lhe vender» e que «relatou o modo como foi outorgado o contrato de compra e venda tendo o arguido lhe remetido a respectiva factura», esclarecendo que:

— «durante esse tempo o arguido sempre se assumiu e agiu como dono da referida máquina, tendo-lhe dito que a podia levantar no prazo de 10 dias a contar da data em que outorgaram o contrato de compra e venda»

— «passados esses dias, contactou uma empresa que lhe providenciasse por um reboque especial a fim de fazer o transporte da máquina para o porto de Vigo, uma vez que a mesma se destinava à execução de uma obra que estava a realizar no Egipto)»,

— «nesse dia o Sr. FF disse-lhe que não podia levar a máquina, uma vez que o arguido, não obstante ter efectuado uma proposta de compra da mesma à entidade ‘…”, sua real proprietária, não efectuou o pagamento do preço pelo que nunca chegou a adquirir tal bem».

— «contactado telefonicamente, o arguido disse que passado algum tempo iria ao local regularizar a situação, o que nunca chegou a fazer»,

— «por diversas vezes contactou o arguido tendo este sempre afirmado que iria resolver a situação, sendo que, a partir de certa altura, deixou de receber os telefonemas»

— no depoimento da testemunha FF, o qual, em traços gerais, confirmou as declarações do ofendido;

— no documento de fls. 14 dos autos «que retrata o contrato de compra e venda de equipamentos usados celebrado entre o arguido e o ofendido, estando plasmado o preço de € 20.000,00, com data de 04/08/2008, onde se pode ler que a máquina se encontra paga sendo de 10 dias o prazo para o se levantamento»;

— no documento de fls. 8 dos autos «relativo à factura que o arguido remeteu ao ofendido».

      (A contradição com os factos dados por provados, quanto ao preço, indicando-se aqui € 20.000,00 deve-se a manifesto lapso, resultando do documento de fls. 14 o preço de € 12 000,00).


      Analisando.

      A conduta do ora recorrente que relevou para o preenchimento do tipo objectivo da burla por que foi condenado é a de ter convencido o ofendido BB de que era o dono da máquina retroescavadora giratória, de marca Catterpiller, modelo 235-D, com o n.º de série 08TJ00125/A6C7605 — quando, como bem sabia, não o era —, levando aquele a entregar-lhe a quantia de € 12 000,00, para pagamento do preço da mesma, nos termos do negócio de compra e venda referente a essa máquina, celebrado entre ambos.

     Na verdade, o recorrente como se viu, no recurso para a Relação, na defesa da tese de dever ser absolvido do crime de burla, não questionou ter celebrado com o ofendido um contrato de compra e venda tendo por objecto a referida máquina. O que sustentou foi que, como já se referiu e como consta da conclusão 17.ª, era, então, o dono e legítimo possuidor da mesma por a “… — Sociedade de Fabrico e Comercialização de …, S.A.”, ter celebrado consigo, na qualidade de legal representante da “…, Unipessoal, Lda” um contrato de compra e venda, mediante o qual aquela sociedade lhe transmitiu a propriedade da máquina dos autos, pelo preço fixado de € 20 000,00.

      Mas, como resulta do aludido acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08-06-2011, “toda a tese construída pelo recorrente, a qual assenta na consideração de que quando vendeu a máquina ao ofendido era o proprietário da mesma” foi julgada improcedente.


       Os depoimentos de EE

      No primeiro recurso extraordinário de revisão interposto em 15-07-2012, o arguido, invocando a alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, indicou duas testemunhas, a saber, GG e HH e juntou um relatório social elaborado pelo ISS.IP, em 30-04-2012, no âmbito de um processo de … .

     O recorrente invocava então que no dia 4-08-2008, não estava em …, mas em Sesimbra a tratar de um negócio de uma pedreira.

     No dia da inquirição o arguido prescindiu da testemunha HH.

      Tendo sido ouvida a testemunha GG, a requerimento do requerente, porque esta testemunha se tivesse referido a EE, que também tinha conhecimento do “facto novo” e que se encontrava presente no Tribunal, foi ouvida tal testemunha.

      Esta testemunha não foi arrolada, mal se entendendo por que não o tenha sido, quando alegadamente acompanhara o recorrente a Sesimbra.

     Uma e outra afirmaram que no dia 4 de Agosto de 2008, o requerente encontrava-se no sul do país, numa deslocação de negócios a uma pedreira, sita em … ou …, perto de Sesimbra, aí permanecendo no dia seguinte, pelo que não era possível naquele dia 4 de Agosto ter estado em … .

      No presente recurso foram arroladas duas testemunhas, uma delas exactamente o mesmo EE, que já depusera no primeiro recurso de revisão.

       A testemunha foi ouvida no dia 13-01-2020, entre as 14:51:33 e as 15:05:00 horas, ou seja, durante cerca de 13:26 minutos.

      Ao responder ao Advogado do recorrente, pelo minuto 4.02, refere-se ao primeiro recurso de revisão, onde depôs como testemunha, dizendo agora que no princípio de Agosto de 2008, o ora recorrente estava com o depoente por o ter acompanhado quando tinha de, no segmento da sua actividade dedicado a sucata naval (minuto 12.00), apresentar uma proposta de desmantelamento de barcos que se encontravam na baía do Seixal. Esta proposta de desmantelamento de barcos no Seixal é repetida pela testemunha quando interpelada pela Exma. Juíza ao minuto 10:40. Mais. A testemunha referiu, ao minuto 12:22-23, que “desde aí que ele (AA) sempre me disse que não tinha nada a ver com esse negócio”, negócio da máquina, entenda-se.

     Acontece que sendo o negócio com o árabe no princípio de Agosto de 2008, como iria o recorrente dizer o que disse, quando ainda não teria tomado conhecimento do negócio, pois que estando no Seixal, não sabia o que por aqueles dias, outrém estaria a fazer em Chaves…

     Ora aí está como em dois depoimentos separados por mais de sete anos – finais de 2012 e 13 de Janeiro de 2020 –, se opera uma convolação de um negócio de uma pedreira em Sesimbra em negócio de sucata naval, com desmantelamento de barcos, na baía do Seixal

     Perguntado sobre o encontro com a testemunha DD, referiu o depoente que o encontrou em meados de Novembro passado, na …, num almoço, achando-o mais forte, tendo dito que o AA estava preso por causa de um negócio com um árabe, mostrando-se então perplexo, mas nada mais dizendo.

       A carta manuscrita de 1-12-2019

      Decorridos 11 anos, 3 meses e 26 dias, sobre o dia 4 de Agosto de 2008, DD, que fora colaborador do recorrente no estaleiro da …, …, Póvoa de Varzim, entre 2007 e 2008, fazendo muitas vezes de seu motorista, envia uma carta manuscrita ao ora recorrente.

      O depoente teve conhecimento da situação prisional do ora recorrente num almoço na …, com EE, que o pôs ao corrente da situação, dizendo que na causa da reclusão estava um negócio celebrado com um árabe.

       Eis o teor da carta.

      «Sr. AA

      Senhor AA, antes de mais espero que se encontra bem ainda pelo que sei, a situação em que se encontra, ser muito triste. Sr. AA, sou o DD, que trabalhou como seu colaborador na … entre 2007 a 2008, e que fiz muitas vezes de seu motorista. Soube agora pelo Sr. EE, que estava a almoçar no mesmo restaurante que eu, e na conversa ao perguntar por si, ele pôs-me, ao corrente da sua situação, contou-me o porquê e o negócio que o levou para aí. Antes não o tivesse visto, eu estive alguns dias a pensar no assunto e não consigo ter paz. Tenho de lhe pedir perdão, mas na verdade, como diz o Sr. EE, você tem razão quando diz vezes sem conta que está inocente, é verdade, porque quem fez esse negócio com o BB fui eu. Como sabe eu conheci o BB, tal como outros clientes, no seu estaleiro na …, e ele nas suas costas, fartou-se de me pedir máquinas sem você saber, quando lhe comprou no seu estaleiro uma caterpillar velha que você lá tinha, disse-me de seguida outra vez para eu estar atento, e quando soubesse de alguma coisa, para lhe dizer que eu ganhava o meu. Passado algum tempo, se se lembra? Quando fui consigo a … para que o senhor AA visse aquele lote de máquinas e peças que estava na … . Fui eu que conduzi nesse dia. Enquanto estava a verificar o lote, eu reparei, naquela máquina que era exatamente igual à que o Sr. lhe tinha vendido, e como nessa altura estava muito aflito, para resolver uma situação, e nunca pensei que viesse a dar nisto. Liguei ao árabe, para ver se ele a queria comprar, ele disse logo que sim. Então disse onde estava, a máquina e marquei com ele na Rotunda em frente á …, e ele foi lá ter comigo. Viu a máquina da estrada, do outro lado da rede e disse logo que ficava com ela.

      Perguntou como fazíamos e eu disse que se ele quisesse tinha de me pagar logo e eu ia conversar consigo, para você tratar com a … a entrega da máquina, mas sem você saber quem era o cliente e por isso e tinha de esperar que eu desse instrução para ele entregar. Nunca pensei, com franqueza, que ele me desse o dinheiro todo naquele momento, mas deu.

     Eu nunca lhe contei, mas se se lembrar, eu fui embora poucas semanas depois.

       A razão foi porque eu tinha medo de que ele lhe contasse, e você ia ter chatices comigo nessa altura, e não por receio de si, mas porque sempre me ajudou, e já levamos quase um ano com muitas horas e dias a fio juntos. Não tive coragem e preferi afastar-me. Entretanto mudei de ramo, estabilizei a minha vida e sinceramente não pensava a não ser por coincidência voltar a encontrar-me consigo. Mas depois da conversa com o Sr. EE que também conhecia lá do seu estaleiro, não consigo ter paz, e estou a escrever, para lhe pedir desculpa e para lhe dizer, que se você precisar de ajuda para si, ou para a família ou mesmo que lhe faça algum trabalho é só dizer. Só lamento não poder remediar a sua atual situação, porque pelo que me disse o Sr. EE, o Sr. já está condenado, mas quando você sair, vou tentar ajudá-lo em tudo para compensar esta situação.

O meu contacto é 96…41.

Ao seu dispor, … em 1 de Dezembro de 2019».

      O original da carta foi junto no dia da inquirição, tendo a testemunha assumido a sua autoria.


       O depoimento de DD.    

     A inquirição, realizada em 13-01-2010, iniciou-se pelas 15:07:43, prolongando-se durante 1:05.21, começando a testemunha por identificar-se como … e após ligeiro compasso de espera como … .

     Nas respostas ao Sr. Advogado que ocuparam pouco tempo e depois a perguntas das Exmas. Juíza e Procuradora, a testemunha foi dizendo que o negócio da máquina com o árabe foi feito por si e não pelo AA, para quem então trabalhava como motorista.

     Refere que o BB queria uma máquina e que ele se propôs arranjá-la, pois tinha visto em … uma dessas máquinas de uma vez que lá se tinha deslocado com o AA.

     Assim combinaram que iriam ter a …, a uma rotunda, junto do estaleiro da … .

      Esteve algum tempo à espera, e estava quase para se ir embora, quando finalmente o árabe apareceu.

     Teve muita sorte, pois naquela altura estavam a manobrar máquinas para alinhá-las para uma exposição e então mostrou do lado de fora a máquina ao árabe. Ajustaram o preço de 12.000,00 €, mas para surpresa sua, o árabe tinha levado uma pasta cheia de notas e o negócio fez-se. Como refere, recebeu o dinheiro, mas esqueceu-se de fazer a sua parte, que era entregar a máquina. Tudo isto se passa de manhã, pela hora do almoço, seguindo depois para o Porto e nunca mais aparecendo no estaleiro da … .

      Tendo-lhe sido perguntado se não foi pedido um comprovativo, uma factura, respondeu que bastou um aperto de mão.

     Sendo perguntado que vantagem teria BB em negociar com a testemunha em vez de o fazer com o arguido, respondeu que BB tinha pressa em pegar na máquina.

      Perguntado se seria mais rápido, respondeu: “seria mais fácil, não sei”.

       Foi-lhe perguntado se estando o BB tão aflito e com pressa para obter a máquina, se não lhe pediu o número de telemóvel, para facilmente contactarem.

       Respondeu que não tinha interesse em dar-lhe o seu número e como ele não pediu o seu, ficou mais tranquilo.

       Não sabendo o número do árabe, nem tendo trocado números de telefone, foi pedido que explicasse a frase da carta em que diz “Liguei ao árabe, para ver se ele a queria comprar, ele disse logo que sim”. A resposta foi que era “um pouco disléxico”.

      Não soube explicar a coincidência entre a factura e as características da máquina.

      Fosse o “negócio” assim feito, ficaria por explicar a razão por que o enganado BB tivesse seguido o AA e não tivesse confrontado o AA com a conduta do seu motorista.

       Perguntado por que razão o BB diz que o negócio foi feito com o AA e não com ele, não respondeu.

       De igual modo não soube responder relativamente a quem fez o contrato e quem emitiu a factura.

       O depoimento não oferece credibilidade, anotando-se que mal se entende que, indo BB a Chaves para ver uma máquina, se tivesse feito acompanhar de uma pasta cheia de notas, tão cheia que dava exactamente para pagar o preço de uma máquina que acabara de ver em acção.

       De toda esta argumentação posta no recurso, há um ponto presente. Incontornável.

       O arguido nunca negou ter recebido o dinheiro que BB pagou pela máquina.

       Por todo o exposto, é de denegar a revisão.

       Tributação 

      Para além das custas pela sucumbência no recurso, o recorrente será condenado na quantia a que alude o artigo 456.º do CPP, sancionando a montagem de um panorama factual, com pinceladas de inverosimilhança, incongruência, com total desrespeito pela lógica e coerência, com versões fantasiosas, a roçar a negligência grosseira.

      Decisão      

      Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso de revisão interposto pelo arguido AA, denegando a revisão requerida.

      Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 456.º e 513.º, n.º s 1 e 3, do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril (artigos 1.º e 2.º), pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro).

       Mais vai condenado o recorrente, nos termos do artigo 456.º do CPP, no pagamento da quantia de 10 UC.

       Mantém-se em vigor o valor da UC (Unidade de conta) vigente em 2018, conforme estabelece o artigo 182.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2019), publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 251, de 31-12-2018. Tal valor é de 102,00 €, que se tem mantido inalterado desde 20 de Abril de 2009.   

      Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.


     Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 19-02-2020


      Raul Borges (Relator)

  Manuel Augusto de Matos

Santos Cabral (Presidente da Secção)