Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
179/09.6YREVR.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: DIVÓRCIO LITIGIOSO
DEVER DE COABITAÇÃO
DEVER DE FIDELIDADE
CULPA DO CÔNJUGE
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA DA AUTORA E NEGADA A REVISTA DO RÉU
Doutrina: A. Varela, Direito da Família (I Direito Matrimonial), p. 404 e Queiroga Chaves, Casamento, Divórcio e União de facto, p. 198; P. Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, págs. 609, 616 e ss., 629, 650 e ss., P. Coelho, RLJ Ano 114.º, p. 184.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL: ARTIGO 1779.º, 1787º, 1792.º
Jurisprudência Nacional: AC.S STJ: Pº 464/09.7YFLSB (SEBASTIÃO PÓVOAS) IN WWW.DGSI.PT; DE 27/11/08 (SERRA BAPTISTA), Pº 08B3006; DE 4-03-97, NO PROC. 801/96 E DE 8-06-99, NO PROC. 280/99; DE 11/7/2006 (SEBASTIÃO POVOAS), ESTE IN CJ S ANO XIV, T. II, P. 157
Sumário :
1. São hoje admitidas três espécies no divórcio litigioso: o divórcio sanção, o divórcio remédio e o divórcio confirmação ou divórcio constatação da ruptura do casamento.
2. Para o decretamento do divórcio com base na saída do lar conjugal por banda de um dos cônjuges, não basta a constatação e prova de tal facto, sendo ainda necessário ao autor provar que o mesmo foi culposo, em termos de se poder formular um juízo de censura sobre o comportamento de tal membro do casal.
3. Se bem que se entenda que o art. 1779.º do CC se basta com a mera culpa do cônjuge ofensor, o mesmo preceito legal continua a formular rigorosas exigências quanto á violação dos deveres conjugais capaz de fundar a dissolução do casamento por divórcio, requerendo-se um apuramento efectivo da culpa.
4. Não bastando esta, já que a violação dos deveres conjugais tem de ser grave ou reiterada, comprometedora da possibilidade da vida em comum.
5. Estando os cônjuges separados um do outro desde Maio de 2001, nada partilhando entre eles desde então, sem quaisquer contactos ou troca de afectos, o facto da a A., em finais de 2006, ter passado a viver maritalmente com outro homem, assim violando o dever de fidelidade a que ainda estava obrigada por virtude do casamento, não assume gravidade bastante que possa levar a concluir que dele resultou o comprometimento da vida em comum. Não sendo, assim, tal violação, em si mesma, causa de divórcio.
6. A declaração de cônjuge culpado deve exprimir o resultado de um juízo global sobre a crise matrimonial quanto a saber se o divórcio é por igual imputável a ambos os cônjuges ou exclusiva ou predominantemente a um deles.
7. Sem atribuição de culpa não há lugar a indemnização pela dissolução do casamento.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



AA veio intentar acção, com processo ordinário, contra BB, pedindo que seja decretada a dissolução do casamento entre ambos, por divórcio.

Alegando, para tanto, e em suma:

A. e R. são casados entre si.

Encontram-se separados de facto há mais de três anos e não há por parte do cônjuge mulher o propósito de restabelecer a vida em comum.

Gorada a tentativa de conciliação e citado o réu, veio este contestar e reconvir, alegando, também em síntese:
A A., em 16 de Maio de 2001, saiu da casa do casal, sem dar quaisquer explicações, levando consigo alguns pertences e, só cerca de dois anos depois, voltou a casa para levar os restantes bens pessoais.
Não mais regressando, apesar das insistências do réu para o fazer.
A A. vive maritalmente com outro homem, com o qual se veio a relacionar intimamente ainda antes da abandonar a casa do casal.
Violou a A. os deveres de coabitação, fidelidade e lealdade a que para com o réu estava, pelo casamento, obrigada.
Fazendo-o de forma reiterada, assim comprometendo irremediavelmente a possibilidade de vida em comum.
Devendo o divórcio ser decretado por culpa exclusiva da ré.
Mais pedindo a condenação da ré a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento, a quantia de € 50 000.

Respondeu a ré, impugnando o pedido reconvencional contra ela deduzido.

Foi proferido o despacho saneador, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória.

Realizado o julgamento, for decidida a matéria de facto da base instrutória pela forma que do despacho junto de fls 241 a 247 consta.

Foi proferida a sentença, na qual, e na procedência dos pedidos formulados pelas partes, foi decretado o divórcio entre ambas, com culpa exclusiva da autora. Mais se condenando a mesma a pagar ao réu uma indemnização no montante de € 1 000.

Inconformados, vieram, a A. e o réu, interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, onde, por acórdão de 19 de Março de 2009, e na parcial procedência do recurso da autora, foi revogada a decisão recorrida apenas na parte que decretou o divórcio por culpa da mesma, por abandono do lar conjugal, mantendo-se quanto ao mais. Julgando-se improcedente a sua pretensão em querer ver ampliada a base instrutória. Mais julgando improcedente o recurso do réu.

De novo irresignada, veio a autora pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

O réu, notificado do recurso de revista da autora, veio interpor recurso subordinado do acórdão recorrido.

Produzindo a A., na sua alegação, as seguintes conclusões:

1ª - O facto de se ter dado como provado que, a partir de 2006, a A. vive maritalmente com outro homem, sob o ponto de vista formal, poderá considerar-se uma violação do dever de fidelidade, já que tal dever, formalmente, apenas deixa de existir com a dissolução do casamento.
2ª - No entanto, dado o tempo decorrido entre a separação de facto e o início dessa relação, tal actuação da A. não merece, sob um ponto de vista ético-jurídico e atentas as concepções dominantes na sociedade, qualquer censura especial que possa fazer atribuir-lhe a culpa da ruptura da relação conjugal e, consequentemente, do divórcio.
3ª - Já que tal situação - sob um ponto de vista meramente formal - não é causa da ruptura mas é antes uma consequência da pré-existência desta.
4ª - E, em face de prolongamento da ruptura por mais de cinco anos, de acordo com os ensinamentos da experiência e de acordo com aquilo que serão as convicções e os sentimentos do cidadão comum, não será o início de tal relação que veio comprometer a possibilidade da vida em comum, comprometimento que, patentemente, já era anteriormente definitivo.
5ª - Assim, a factualidade provada não é passível de permitir a declaração da dissolução do casamento por divórcio por culpa exclusiva da A, mas antes permitirá apenas, em face da patente e consolidada ruptura existente da relação conjugal, decretar tal dissolução como remédio para a irreversibilidade do esgotamento das possibilidades da vida em comum.
6ª - E, desse modo, não se tendo apurado a culpa da A na ruptura da vida conjugal, não podia a mesma ser condenada no pagamento de qualquer indemnização ao R. reconvinte.
7ª - Ao assim não decidir, a douta decisão fez uma errada aplicação do disposto nos artºs 1779º, nº 1, 1787º, nº 1 e 1792, nº 1, todos do Código Civil .

Produzindo, o réu, por seu turno, também na sua alegação, as seguintes conclusões:

1ª - O presente recurso subordinado vem interposto do douto Acórdão do TRL datado de 2009,03.19, estando limitado à parte que, negando provimento ao recurso do R, manteve o quantum da indemnização fixada pelo Tribunal de 1ª instância a título de danos não patrimoniais.
2ª - Em reconvenção, o R veio peticionar a condenação da A a pagar-lhe a importância de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais.
3ª - A douta sentença do Tribunal de 1ª Instância, julgando parcialmente procedente tal pedido, veio fixar tal indemnização em € 1.000,00 (mil euros).
4ª - Tal condenação foi mantida, nos seus precisos termos, pela Relação de Évora.
5ª - Segundo decorre do art° 1792° CC, os danos não patrimoniais directamente resultantes da dissolução do casamento devem ser ressarcidos.
6ª - De acordo com o preceituado no art° 496.º nº 3 CC, o montante indemnizatório deve ser fixado equitativamente pelo Tribunal.
7ª - Atenta a factualidade provada, de que avulta o R, ao contrair matrimónio, ter perspectivado o estabelecimento de uma relação para toda a vida, fundando uma família, com filhos, o facto de ter sofrido enorme desgosto e vergonha com a ruptura matrimonial, da exclusiva responsabilidade da A, o que foi do conhecimento de quantos com eles privavam, de nunca mais ter refeito a sua vida em termos sentimentais, e face à situação patrimonial da A, que, sendo Advogada, gere um vasto património imobiliário, sua propriedade, tendo uma capacidade económica muito superior à do R, afigura-se manifestamente inadequada a indemnização arbitrada - € 1.000,00 - pelo que, ponderada a jurisprudência desse Supremo Tribunal de Justiça, deve ser revogada e substituída por outra, em consonância com a peticionada pelo R, a saber, € 50.000,00. assim se revogando, nessa parte, o Acórdão recorrido.

Foram apresentadas pelas partes contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso da respectiva contra-parte.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

Vem dado como PROVADO:

A e R. casaram um com o outro em 24/7/1993 (A).

Do referido casamento não existem filhos (B).

Desde Maio de 2001 que A. e R. se encontram separados (resposta ao quesito 1.º)

Desde essa altura, A. e R. romperam todos os laços afectivos (resposta ao quesito 3º).

Não comem e não dormem juntos, nem partilham uma economia comum (resposta ao quesito 4.º).

No dia 16/5/2001, a A saiu da casa de morada de família (resposta ao quesito 5°).

Tinha a A. a intenção de não mais viver com o R. (resposta ao quesito 6°).

Levando consigo alguns dos seus bens pessoais e um veículo automóvel, propriedade de ambos (resposta ao quesito 7º).

A A. não regressou a casa (resposta ao quesito 8°).

Algum tempo mais tarde, a A. voltou a casa, na companhia de uma amiga, recolhendo os restantes bens pessoais, que levou consigo (resposta ao quesito 9°).

O R. teve alguns contactos com a A, com o intuito de obter a reconciliação entre ambos (resposta ao quesito10°).

Desde finais de 2006, a A. vive maritalmente com um indivíduo de nome P… S…, em Setúbal (resposta ao quesito 12°).

Em 16/8/1998 o casal contratou com a sociedade "R… - Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários Lda" a compra de uma fracção autónoma com estacionamento, num prédio em construção, localizado num complexo imobiliário sito na Avenida T… C…, Edifício V… R…, P… (resposta ao quesito I3°).

A título de sinal, foi entregue a quantia de 22.146,63 €, titulada por um cheque assinado pelo R., sendo o correspondente contrato subscrito pela A e pelo sócio gerente da empresa vendedora, A… R… (resposta ao quesito 14°).

Em 2003, o R., estranhando ainda não ter sido contactado para intervir na escritura de compra e venda, interpelou a A. sobre tal facto (resposta ao quesito 15°).

Ao que esta respondeu que não se preocupasse, que estava tudo em ordem e sob controlo (resposta ao quesito 16°).

Posteriormente, o R. veio a diligenciar, por sua própria iniciativa, pela obtenção dos elementos referentes ao contrato (resposta ao quesito 17°).

O R. obteve uma cópia do contrato em 24/5/2006 e a certidão da escritura de compra e venda em 12/6/2006 (resposta ao quesito 18°).

O R. apurou que a escritura de venda foi efectuada em nome da mãe da A. (resposta ao quesito 19º)

A escritura foi celebrada no Cartório Notarial de Portimão em 12/6/2001 (resposta ao quesito 20º)

Quando casou com a A., o R. pretendia manter uma ligação até ao fim das suas vidas e que iria fundar um agregado familiar, que o casal iria ter filhos (resposta ao quesito 21º).

O R. é pessoa muito estimada e considerada, quer em termos pessoais quer profissionais (resposta ao quesito 24°).

Até à ruptura e dissolução do casamento era pessoa alegre e feliz (resposta ao quesito 25º).

Depois da ruptura e extinção do vínculo matrimonial o R. ficou triste e abatido com a situação (resposta ao quesito 26°).

A nível laboral, a actividade do R. exige grande concentração, empenho e capacidade de decisão (resposta ao quesito 29°).

O R. nunca refez a sua vida sentimental (resposta ao quesito 30°).

O R. é engenheiro civil sendo gerente de uma pequena empresa do ramo da construção civil (resposta ao quesito 31°).

A A. é advogada e gere um património imobiliário de que é proprietária, tendo rendimentos superiores aos da média dos seus concidadãos (resposta ao quesito 32°).


Como é bem sabido, as conclusões da alegação dos recorrentes delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelos recorrentes nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.


I - Da revista da autora:

São duas as questões suscitadas pelo seu recurso:
1ª – A de não se ter apurado a sua culpa na ruptura da vida conjugal;
2ª – A de não dever ser condenada em qualquer indemnização.

Vejamos, pois:

Entendeu o acórdão recorrido que, embora não tenha ficado apurada, como causa do divórcio, a violação do dever de coabitação por banda da autora, já que o réu, que tal invocou, não logrou fazer qualquer prova, designadamente, de que foi contra a sua vontade e sem que para isso tivesse contribuído, que a autora deixou voluntariamente o lar conjugal, tendo resultado provada a violação do dever de fidelidade por parte da mesma autora, pois, tendo embora saído da casa do casal em 16/5/2001, vive maritalmente com outro homem desde finais de 2006, deveria manter-se a declaração da autora mulher como exclusiva culpada na ocorrência do divórcio.

Assim não aceita a recorrente, sustentando que o facto de, cinco anos após a separação, ter encetado nova relação marital com outro homem, não deve relevar para efeitos de ser decretado o divórcio/sanção, bem como para a culpar por via do mesmo.

Já que, embora numa perspectiva estritamente jurídico-formal se possa considerar que o facto de ter iniciado uma relação de more uxurio constitui uma violação do dever de fidelidade que sobre si impende, por via do casamento, tal violação, atendendo à pré-existência de uma separação de facto e ruptura já consolidadas e ao tempo entretanto decorrido, não se poderá considerar como suficientemente grave para constituir fundamento culposo do divórcio litigioso.

Estamos no domínio da lei civil anterior às alterações provenientes do DL 61/2008, de 31 de Outubro.

Sendo, assim, admitidas três espécies no divórcio litigioso (1):

O divórcio sanção, que pressupõe um acto ou procedimento culposo de algum dos cônjuges e quer ser a sanção contra esse acto ou procedimento. Qualquer violação culposa dos deveres conjugais, desde que, pela sua gravidade ou reiteração, haja comprometido a possibilidade da vida em comum, pode servir de fundamento ao divórcio.

O divórcio remédio, que não assenta na culpa do cônjuge violador dos deveres conjugais, colocando-se antes a tónica no efeito que tal violação provoca na vida conjugal, tornando-a muitas vezes intolerável. Aparecendo o divórcio como um remédio para colmatar uma situação de crise que até pode surgir por culpa de ambos os cônjuges, ou sem culpa de qualquer um deles (2).

E o divórcio confirmação ou divórcio constatação da ruptura do casamento (3), que surge quando há uma separação de facto, como forma de confirmar a ruptura já existente da relação conjugal. O que importa aqui é a existência de uma situação de ruptura do casamento, objectivamente considerada e que o divórcio deve pura e simplesmente constatar (4).
Ora, admitiu o acórdão recorrido que o divórcio sanção não poderia ser decretado com base no abandono do lar conjugal por banda do cônjuge mulher, pois não basta a saída desta da casa do casal, sendo necessário ao autor provar – ónus esse que não conseguiu cumprir - que tal facto foi culposo, em termos de se poder formular um juízo de censura sobre o comportamento de tal membro do casal.
E, sem o preenchimento desse pressuposto, também essencial para que se pudesse decretar o requerido divórcio, com base na violação do dever conjugal de coabitação, não pode tal pedido proceder.

Mas depois, não restando dúvidas que a autora violou o dever conjugal de fidelidade imposto pelo art. 1672.º do CC (5), embora os cônjuges já se encontrassem separados de facto, entendeu-se ainda, face à gravidade e reiteração de tal violação, comprometedora de forma irremediável da vida em comum, ser a mesma causa do divórcio.

Salvo o devido respeito não concordamos com esta posição que, segundo cremos, não respeitará as realidades da vida.

Na verdade, a violação dos deveres conjugais a que os cônjuges estão adstritos por via do casamento, prescritos no art. 1672.º, só é causa de divórcio se for culposa, podendo a culpa assumir a forma de dolo, directo ou eventual, ou de simples negligência, consciente ou mesmo inconsciente. Sendo certo que a distinção entre as formas de culpa e os seus graus não deixa de ser relevante quando se trate de avaliar a “gravidade” da violação.

Devendo o cônjuge autor alegar e provar não apenas a “objectividade da violação do dever conjugal”, mas ainda os factos tendentes a provar a culpa do autor da violação e a gravidade desta ou a reiteração das faltas, factos de que se possa inferir a conclusão de que a vida em comum se acha comprometida em consequência da violação ou das violações praticada(s).

E, se bem que se entenda que o art. 1779.º se basta com a mera culpa do cônjuge ofensor, o mesmo preceito legal continua a formular rigorosas exigências quanto à violação dos deveres conjugais capaz de fundar a dissolução do casamento por divórcio, requerendo-se um apuramento efectivo da culpa.

Não bastando esta.

Já que a violação dos deveres conjugais tem que ser grave ou reiterada, assim comprometendo a possibilidade de vida em comum.

Fazendo-se o juízo sobre tal “gravidade”, concretamente, em face das circunstâncias, nomeadamente as descritas no nº 2 do art. 1779.º.

Devendo-se entender que a ruptura dos laços conjugais, traduzida, v.g., pela separação de facto dos cônjuges, não os desonera, só por ela, dos deveres impostos pelo citado art. 1672.º, assim tornando irrelevante qualquer violação dos mesmos, por mais graves que fossem, desde que cometidas posteriormente àquela ruptura.

Pois, muitas vezes, as situações de ruptura da vida conjugal, implicando embora o comprometimento da vida em comum, podem ser agravadas ou aprofundadas, se ocorre nova violação dos deveres conjugais (6).

Ora bem:

In casu, provado ficou, com interesse para a decisão, que os cônjuges se encontram separados um do outro desde Maio de 2001.
Não se tendo apurado de quem foi a culpa de tal separação.
Desde então romperam todos os laços afectivos, não comendo nem dormindo juntos, nem partilhando uma economia comum.
O réu – desconhecendo-se quando é que tal ocorreu – teve alguns contactos com a A. com o intuito de conseguir a reconciliação de ambos.
Não havendo notícia nos autos de alguma vez, após a separação, os cônjuges haverem reatado qualquer relacionamento.
Mau grado o réu, quando casou com o A. ter pretendido uma ligação até ao fim dos seus dias (7) e de nunca ter refeito a sua vida sentimental.
A A., desde finais de 2006, vive maritalmente com outro homem.

Como se disse no Ac. deste STJ de 8/9/2009 (8) o casamento é um contrato que tem como sinalagma o afecto, sem cuja constituição – afecto profundo, recíproco e autêntico – perde a sua razão de ser.

De facto, a plena comunhão de vida, com a afectio societatis é elemento essencial do casamento – art. 1577.º.

Ora, os cônjuges estavam separados um do outro, nada partilhando entre eles, desde Maio de 2001.

Em finais de 2006, assim volvidos cerca de cinco anos e meio, a autora, violando, é certo, o dever conjugal de fidelidade, passou a viver maritalmente com outro homem.

Cinco anos e meio é tempo.

É muito tempo decorrido após a separação do casal, sem notícia de contactos entre ambos, de troca de afectos, de qualquer tipo de envolvimento sentimental recíproco (9)

Crendo-se, assim, que a culpa que a autora por certo sempre terá tido no relacionamento marital com outro homem, que não seu ainda marido e que, em princípio, face ao vínculo contratual antes assumido, lhe será de assacar, será mitigada, fraca, sem gravidade bastante para ser causa de divórcio.

Pois é manifesto que a separação de facto, em si mesma, enfraquece o conteúdo do dever de fidelidade, cujo expoente máximo da sua violação será o adultério, sendo este, se cometido em tal período, por certo menos grave que se ocorrer no âmbito da vida em comum dos cônjuges (10).

Não sendo, pois, a violação em causa, in casu, tão grave que se deva concluir, face às circunstâncias do caso, que dela resultou o comprometimento da possibilidade da vida em comum.

Não sendo tal falta, em si mesma considerada, face ao circunstancialismo em que foi cometida, causa de divórcio, comprometera da possibilidade de vida em comum.

Possibilidade esta que, com toda a probabilidade, jamais existiria.

Pois a relação conjugal, no presente caso, tanto tempo volvido sem qualquer troca de afectos já desde há muito estava seriamente comprometida.

De facto, decorrido muito tempo – seguramente inferior aos aludidos cinco anos e meio – a esperança de reconciliação torna-se remota, achando até a própria lei socialmente mais vantajoso a situação dos cônjuges divorciados do que separados de facto. Com efeito, o casamento não pode subsistir sem uma disposição comum dos cônjuges, sendo a esperança de reconciliação, tanto tempo decorrido após a separação, objectivamente infundada. É esta a verdade que os cônjuges devem ter a coragem de aceitar.(11)

Sendo, porém, possível o divórcio, que, assim, continua decretado, mas “apenas” face à ruptura da vida em comum, ocasionada pela comprovada separação de facto. Havendo, pelo menos por banda da autora, o propósito de a não restabelecer – arts 1781.º, al. a) e 1782.º.

Mas o juiz, mesmo que o divórcio se funde na separação deve declarar a culpa dos cônjuges, se a houver – art. 1782.º, nº 2.

Devendo a “declaração de cônjuge culpado” exprimir o resultado de um juízo global sobre a crise matrimonial quanto a saber se o divórcio é por igual imputável a ambos os cônjuges ou exclusiva ou predominantemente a um deles.

Devendo a mesma declaração considerar o conjunto da prova produzida, quer as culpas do conjugue réu, quer as do cônjuge autor, e tanto as que foram invocadas quer na acção, quer na reconvenção, como fundamento do pedido, bem como as que não podiam ser invocadas ou que o não foram, como causa do divórcio.
Ponderando as culpas dos cônjuges, se as houver, o juiz decidirá sobre a gravidade relativa das mesmas (12).

Pressupondo, pois, esta declaração de cônjuge culpado, um juízo de censura sobre a crise matrimonial na sua globalidade, de modo a poder concluir-se qual ou quais as condutas reprováveis que deram causa ao divórcio. E desta forma, a determinação da culpa de que trata o art. 1787º é mais um conceito relativo, assente no comportamento recíproco dos cônjuges, do que um juízo de referência individual ou isolado. O que fundamentalmente se pretende saber, por outras palavras, não é se o marido é culpado ou a mulher é culpada, mas sim se um ou outro é o único ou é o principal culpado. Razão pela qual os factos têm de ser enquadrados num todo de vivência conjugal e não serem analisados separadamente (13).

Tendo que se analisar a factualidade provada para dela poder retirar a conclusão de que houve conduta censurável de um, do outro ou dos dois cônjuges que levaram à ruptura conjugal.

Havendo, por isso, que se atentar de novo nos factos a respeito provados, pois só estes poderão guiar o julgador no seu juízo de censura global sobre a culpa dos cônjuges (ou de um deles, apenas).

Não estando mais em causa a apreciação e decisão sobre o direito dos cônjuges obterem o requerido divórcio, mas, agora, apenas a da culpa em apreço.

Ora, a factualidade apurada não nos permite saber se algum dos cônjuges foi culpado ou principal culpado do divórcio.

Pelo que, a este propósito, não haverá lugar à declaração de cônjuge culpado (14).

Nem à condenação da autora a pagar qualquer indemnização ao réu, já que, sem atribuição de culpa, não há lugar a indemnização pela dissolução do casamento – art. 1792.º.

Procedendo, por tudo isto, a revista da autora.
II – Da revista subordinada do réu.

Está a mesma limitada à parte do acórdão recorrido que manteve a condenação da autora no montante indemnizatório fixado na 1ª instância a título de danos não patrimoniais.

Contudo, sem declaração de culpa pela dissolução do casamento, como atrás dissemos, não há lugar a indemnização.

Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se conceder provimento à revista da autora, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que manteve a sua condenação a pagar ao réu a quantia de € 1 000 a título de indemnização por danos não patrimoniais por este sofridos em consequência da dissolução do casamento, ficando o divórcio decretado pela ruptura da vida em comum (separação de facto por três anos consecutivos), sem atribuição de culpas. Mais se negando a revista do réu.
Custas pelo réu em ambos os recursos.

Lisboa, 14 de Janeiro de 2010,
Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Santos Bernardino

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(1) O divórcio litigioso é aquele que é pedido por um dos cônjuges contra o outro, com fundamento em determinada causa.
(2) A. Varela, Direito da Família (I Direito Matrimonial), p. 404 e Queiroga Chaves, Casamento, Divórcio e União de facto, p. 198, que temos vindo a seguir de perto.
(3) Surgido na literatura mais recente.
(4) P. Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, p. 609 e Queiroga Chaves, ob.e pag. cit.
(5) Sendo deste diploma legal todas as disposições citadas sem referência expressa.
(6) P. Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pag. 616 e ss, que também aqui seguimos de perto.
(7) Sendo certo que, em princípio, o casamento exige para o casal uma vocação de perpetuidade.
(8) (Sebastião Póvoas), Pº 464/09.7YFLSB, in www.dgsi.pt.
(9) Acresce, ainda, que do casamento não existem filhos, que bem poderiam funcionar como elo de aproximação do casal progenitor, mais não fosse pela necessidade de deles cuidar.
(10) P. Coelho, RLJ Ano 114.º, p. 184.
(11) P. Coelho e G. Oliveira, ob. cit., pag. 629.
(12) Pereira Coelho e G. Oliveira, ob. cit., pags 650 e ss.
(13) Acs. deste Supremo Tribunal de 27/11/08 (Serra Baptista), Pº 08B3006, de 4-03-97, no proc. 801/96 e de 8-06-99, no proc. 280/99.
(14) No mesmo sentido de não imputar culpa a qualquer dos cônjuges, separados um dos outro há cerca de três anos, convivendo o réu com outra mulher, passado tal período de tempo, cfr. Ac. do STJ de 11/7/2006 (Sebastião Povoas), CJ S Ano XIV, T. II, p. 157.