Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3844/15.5T8PRT.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
NULIDADE DO CONTRATO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DEVER DE INFORMAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / EXCEPÇÕES DILATÓRIAS ( EXCEÇÕES DILATÓRIAS ) / CASO JULGADO.
Doutrina:
- ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2.ª ed. revista e ampliada, Almedina, Coimbra, 1998, 192-193, 203.
- FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, 626.
- JOÃO DE CASTRO MENDES, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, Lisboa, s.d., 111 e ss., 178-179.
- JOSÉ LEBRE DE FREITAS, «Caso Julgado e causa de pedir. O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil», Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, na R.O.A., 2006.
- MARIE MALAURIE, Les Restitutions en Droit Civil, Éditions Cujas, Paris, 1991, 45
- MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, «Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil», Scientia Iuridica 2013, tomo LXII, n.º 332, 395 e ss., 401-404;
«Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado», na R.D.E.S., 1977, ano XXIV, 304 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 581.º, N.ºS 1, 3 E 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 21/11/2016.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19/02/2009;
-DE 08/04/2010;
-DE 23/11/2011.
Sumário :
I - Na acção de responsabilidade civil contratual em que se pede que o banco seja condenado a pagar uma indemnização por danos patrimoniais, portanto, a reparar um dano, não se verifica a excepção de caso julgado – por falta de identidade de pedido e de causa de pedir – se em anterior acção se pediu, contra o mesmo banco, a declaração de nulidade de negócio, ainda que ambas se fundem na violação de deveres de informação e aconselhamento.

II - Do mesmo modo, não se verifica o efeito preclusivo, nem a autoridade de caso julgado: a improcedência da anterior acção, tendo o tribunal afirmado a validade do negócio, não impede que o autor peça noutra acção a reparação de danos causados por violação de deveres pré-contratuais de informação e de aconselhamento, sendo a responsabilidade pré-contratual perfeitamente compatível com a validade do mesmo negócio.

III - Ocorre, porém, excepção de caso julgado quanto ao pedido de compensação por danos não patrimoniais, se numa e noutra acção os danos invocados são fundamentalmente os mesmos, bem como idênticos os factos consubstanciadores da violação dos deveres de informação e de aconselhamento.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção)

Processo n.º 3844/15.5T8PRT.S1

Relatório

No processo n.º 471/09.OTVPRT as mesmas partes – AA, BB e CC – tinham intentado uma acção com o seguinte pedido:

“Deve a presente acção ser julgada provada e procedente, e, por via disso:
a) Declarada a nulidade das operações de aquisição de 216 “acções DD” em nome dos Autores acima referidos, a que alude o doc. n.º 19;
b) Declarada a nulidade do financiamento feito pelo BANCO EE com vista a essa aquisição de acções, a que alude o doc. n.º 20;
c) Declarada a nulidade da troca de acções a que alude o doc. n.º 22;
d) Declarada a nulidade das operações de aquisição de 2000, 4000, 1000 e de 1679 “acções BANCO EE” em nome dos Autores a que aludem os docs. n.ºs 23, 26,27 e 31;
e) Declarada a nulidade dos financiamentos feitos pelo BANCO EE com vista a essas aquisições de acções a que aludem os docs. n.ºs 24, 28, 29 e 32;
f) Declarada a nulidade do mútuo com hipoteca, datado de 20/10/2005, a que respeita o instrumento que constitui o n.º 34;
g) Declarada a nulidade da hipoteca constituída em execução do convencionado no instrumento a que respeita o doc. n.º 34, decretando-se o cancelamento da inscrição respectiva;
h) Declarada a restituição recíproca das prestações efectuada à luz dos negócios cuja nulidade deverá ser declarada, fazendo-se ingressar na esfera jurídica do BANCO EE, em substituição das “acções BANCO EE” adquiridas em nome dos Autores com financiamento do BANCO EE, e já vendidas, o valor pelo qual os Autores as venderam, valor esse que deverá ser liquidado posteriormente;
i) Declaradas compensadas as quantias que, no âmbito daquelas aquisições de acções foram financiadas aos Autores e que estes teriam de devolver ao BANCO EE com as quantias que o BANCO EE cobrou destes pelas aquisições das acções e demais encargos e que o BANCO EE teria de devolver aos Autores;
j) Condenado o BANCO EE a restituir aos Autores todos os valores que estes lhe foram pagando em sede de reembolso daqueles financiamentos, valores esses que deverão ser liquidados posteriormente, com juros contados da citação, ao que haverá que deduzir i valor referido em h), operando-se a compensação parcial e recebendo os Autores o remanescente;
k) Condenado o BANCO EE a pagar aos Autores, a título de ressarcimento de danos não patrimoniais o valor de 15000 euros a cada um dos Autores varões e o valor de 5000 euros à Autora, com juros contados da citação;
l) Condenado o BANCO EE a devolver aos Autores todos os documentos por estes assinados e entregues a título de garantia, nomeadamente livranças”.

Apresentaram como fundamento para este pedido a nulidade dos vários negócios invocados, nulidade essa que resultaria de “fraude à lei, ofensa dos bons costumes, da ordem pública, violação de diversas normas legais imperativas e, ainda, do regime jurídico do crédito ao consumo” (como se pode ler na Sentença desse processo, f. 1239) e invocaram, ainda, a responsabilidade civil extracontratual (relativamente aos danos não patrimoniais). Como na Sentença expressamente se afirma “relembre-se que não pedem indemnização por prejuízos patrimoniais decorrentes de actos ilícitos praticados pelo R” (f.1291).

O Tribunal decidiu não existir motivo para declarar a invalidade de qualquer dos negócios. Sublinhe-se que o Tribunal considerou que o Réu violou normas legais com a sua conduta provada nesses autos: assim, violou os artigos 304.º n.ºs 1,2 e 3; 305.º n.ºs 1 e 2; 309.º n.ºs 1,2 e 3; 310.º n.ºs 1 e 2; 311.º n.º 1 e 312.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do CVM. Contudo, o Tribunal afirmou que tal não poderia acarretar a invalidade dos negócios já que a lei previa expressamente outra sanção, a saber a responsabilidade civil (f. 1284). E quanto a esta afirmou que “tendo sido esta [a nulidade] e não aquela [a responsabilidade civil] a consequência peticionada pelos Autores não pode, desde logo, por força do artigo 661.º n.º 1 CPC o tribunal acolhê-la”.

Também em relação aos artigos 73.º, 74.º e 77.º do Decreto-Lei n.º 298/92 de 31/12 o Tribunal decidiu que mesmo considerando que tais normas eram imperativas “não parece que a sua violação deva implicar senão responsabilidade civil, pelo que chegaríamos á mesma solução preconizada no ponto anterior” (f.1285)

Por Sentença proferida a 07/03/2012 o Tribunal absolveu o Réu dos pedidos contra ele formulados pelos Autores.

Os presentes autos têm a sua génese em acção intentada pelos mesmos Autores contra o mesmo Réu que conclui com o seguinte pedido:

“Termos em que, julgada provada e procedente a presente acção, deverá ser decretado o seguinte:
a) A condenação do BANCO EE a pagar aos Autores, a título de ressarcimento de danos patrimoniais, a quantia não liquidada, correspondente a todos os valores pagos pelos Autores no âmbito das operações ajuizadas, sempre em valor não inferior a 29.794,71 €, com juros legais contados desde a citação até integral pagamento;
b) A condenação do BANCO EE a pagar aos Autores a título do ressarcimento de danos não patrimoniais a quantia de 7.000,00 € a cada um, com juros legais contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento”.

Da petição inicial consta, designadamente, que “a presente acção tem em vista obter a condenação do BANCO EE em sede de responsabilidade civil contratual, com fundamento na violação dos seus deveres perante os Autores, no âmbito das operações de aquisição de “acções BANCO EE” que tiveram lugar durante a “Campanha Accionista”, nos termos acima referidos” (n.º 430 da PI), invocando-se a “inerente violação dos deveres de protecção dos legítimos interesses dos seus clientes, aqui Autores, nomeadamente o dever de protecção, o dever de actuação de boa fé, o dever de evitar ou reduzir os conflitos de interesses e o dever de dar prevalência aos interesses dos clientes” (n.º 433 da PI).

O Réu contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação. Entre outras defesas, pediu a sua absolvição da instância por se verificar a excepção de autoridade do caso julgado (números 27 e seguintes da Contestação) defendendo que a presente acção era “a mesma e uma só” (n.º 28 da Contestação) que a anteriormente proposta pelos mesmos Autores contra o mesmo Réu.

Foi proferido a 21 de Abril de 2016 despacho saneador que julgou verificada a excepção da autoridade do cado jugado, tendo absolvido o Réu da instância.

Nesse despacho saneador pode ler-se, designadamente, que:

“Em suma, embora os AA qualifiquem de forma distinta a responsabilidade do Réu, nesta acção e na acção n.º 471/09.OTVPRT, invocando naquela a violação de deveres gerais e de intermediário financeiro para lograr obter a nulidade dos negócios com ele celebrados, pretendendo na presente acção demandá-lo a título de responsabilidade contratual, pela já invocada violação dos deveres consagrados no CVM para lograr obter uma indemnização (em parte já reclamada naquela primeira acção) , os factos essenciais, concretos, que servem de fundamento ao efeito pretendido são exactamente os mesmos, o facto jurídico de que precede a causa de pedir desta acção é o mesmo da primeira (os factos concretos que se traduzem na violação dos deveres de intermediário financeiro) e, como os AA na primeira acção não lograram a procedência por via da responsabilidade geral, pretendem agora consegui-la por via da responsabilidade contratual, não invocando outros factos mas os mesmos dos já apreciados, pelo que, pela autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida na acção n.º 471/09.0TVPRT ficou precludido quer a invocação pelos autores de factos que visam completar o objecto da acção anteriormente apreciada, mesmo que com uma decisão de improcedência, quer a invocação de diferente qualificação jurídica dos mesmos fundamentos de facto, não podendo ver reapreciada a mesma situação ainda que perspectivada sob outro tipo de responsabilidade” (f. 1990, negritos e sublinhados no original).

Sublinhe-se que noutro lugar do mesmo despacho procede-se a uma citação de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA em que este Autor afirma que:

 “(…) a excepção de caso julgado impede que um efeito jurídico pretendido ou obtido com fundamento numa qualificação jurídica possa ser requerida com base numa outra qualificação dos mesmos factos. Por exemplo se o autor não conseguiu obter a condenação do demandado com fundamento na responsabilidade contratual, a excepção de caso julgado impede a reapreciação da mesma situação perspectivada como responsabilidade delitual”

A esta citação segue-se, no despacho, a seguinte observação:

“E é esta hipótese exemplificativa que o referido autor menciona que de facto se verifica nesta acção” (f. 1988).

Deste despacho foi interposto recurso per saltum nos termos do artigo 678.º do CPC.

No seu recurso o Autor invoca falta de rigor no tratamento da excepção de caso julgado e da autoridade de caso julgado no despacho saneador que “acabou por misturá-las ao arrepio da lei, da doutrina e da jurisprudência” (artigo 102 do Recurso), sustenta que não existe excepção de caso julgado uma vez que embora as partes sejam as mesmas, não existe nem identidade de pedido, nem identidade de causa de pedir (artigos 80 e seguintes e números 4 e 5 das Conclusões) e defende, igualmente, que não pode falar-se em autoridade do caso julgado (n.º 6 das Conclusões), embora aceite, “porque assim o impõe a seriedade intelectual” que se verificou excepção de caso julgado quanto ao pedido de compensação por danos não patrimoniais já que “nesta parte a matéria invocada em ambas as acções é essencialmente a mesma” (artigo 94.º do Recurso) e a diferença estaria apenas na qualificação jurídica (artigo 95.º do Recurso e n.º 11 das Conclusões). O Autor pede, por conseguinte, a revogação do despacho saneador recorrido.

O Réu contra-alegou pedindo a confirmação do despacho recorrido, mantendo-se a absolvição da instância do Réu. Invocou que “o recurso se destrói a si mesmo” ao terem os Recorrentes aceitado expressamente que se verifica a excepção de caso julgado quanto aos danos não patrimoniais, pelo que, na realidade, estariam a invocar na presente acção os mesmos factos, alterando apenas a sua qualificação jurídica. Mais acrescentam que cobrindo a autoridade do caso julgado “o deduzido e o dedutível”, “impede, num caso como o dos autos, que numa nova acção o autor possa obter a título de responsabilidade civil o que em acção anterior fundada nos mesmos factos só pediu a título de nulidade” (f. 2044).

Fundamentação

Uma vez que o despacho saneador recorrido, embora tenha o cuidado de distinguir excepção de caso julgado e autoridade de caso julgado, na sua fundamentação acaba por invocar tanto a excepção de caso julgado, como o efeito preclusivo e ainda a autoridade de caso julgado, bem como a circunstância de as próprias contra-alegações do Réu fazerem menção ao efeito preclusivo (cuja autonomia é, como adiante diremos, controversa) aconselha a que se apreciem estas três questões: a excepção de caso julgado, a preclusão e a autoridade de caso julgado.

De acordo com o artigo 581.º n.º 1 do CPC “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”. O n.º 3 do mesmo artigo dispõe que “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e o n.º 4 estabelece que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”. A excepção de caso julgado pressupõe esta tríplice identidade: de partes, de causa de pedir e de pedido.

A identidade das partes é manifesta e reconhecida, de resto, pelos próprios Autores.

Mas haverá identidade de causa de pedir e de pedido?

O conceito de causa de pedir tem sido intensamente debatido – na sugestiva expressão de LEBRE DE FREITAS[1], “martirizado” – na doutrina portuguesa. Muito embora se entenda que a causa de pedir é representada por factos concretos, não se trata de factos “brutos”, independentes de qualquer previsão normativa. Na esclarecedora lição de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica”[2] [3], acrescentando o mesmo Autor que “o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais”[4]. Por outro lado, o conceito de causa de pedir não deve ser entendido de forma extensa já que uma visão mais restrita – “deflacionada”[5] – é a que melhor se adequa tanto ao princípio dispositivo[6], que apesar de temperado ou mitigado continua a imperar no nosso sistema processual civil, como à opção do legislador pelo sistema da substanciação da causa de pedir[7]. Os factos concretos que constituem a causa de pedir – e que nem sequer serão, porventura, para MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, todos os facto necessários para assegurar a procedência da acção – são pois “iluminados” e selecionados por uma certa previsão legal. Assim, por exemplo, os factos concretos que constituem a causa de pedir de uma anulação de um contrato por dolo podem não ser os mesmos, atendendo ao pedido e às regras jurídicas invocadas, que constituem a causa de pedir para um pedido de responsabilidade précontratual, a qual, como é sabido, é compatível com a validade do contrato. Naquele primeiro caso os factos – a utilização por exemplo por uma das partes de sugestões e artifícios ou de omissões conscientes – têm que ter uma intensidade e gravidade tais que justifiquem a anulação de um contrato, ao passo que a violação de deveres de informação e aconselhamento não tem que assumir a mesma gravidade ou intensidade para que se imponha a reparação de um dano, apesar da validade do contrato[8]. Por isso mesmo entendemos que os factos concretos que constituem a causa de pedir nas duas acções – uma em que se pede a declaração de nulidade de uma série de negócios e outra em que se pede a reparação de um dano, resultante de violação de deveres de informação e aconselhamento, violação essa que pode ocorrer e determinar a existência de um dano reparável mesmo que as partes venham a celebrar um negócio válido – não são, em rigor, os mesmos do ponto de vista das respectivas previsões legais.

E haverá identidade de pedido?

Com a declaração de nulidade de um negócio surge o dever de restituição das prestações realizadas em execução do mesmo, ao passo que quando se invoca um dano em sede de responsabilidade civil pede-se a reparação do mesmo. Ora restituição e reparação parecem ser efeitos jurídicos distintos. É certo que a fronteira é delicada e que até já se afirmou que a restituição e a reparação são remédios que pertencem à mesma família e que são “aparentados”. No entanto, parece poder afirmar-se entre nós o que MARIE MALAURIE afirmou a respeito do sistema francês: a reparação tende a colocar o lesado na situação em que estaria se o evento danoso não tivesse ocorrido, ao passo que a restituição “opera apenas  o regresso de um bem ao seu património de origem”[9].

Não havendo nem identidade de causa de pedir, nem de pedido não se verifica a excepção de caso julgado. Mas será que se verifica aqui um efeito preclusivo[10] que, como pretende o réu nas suas contra-alegações, preclude que “numa nova acção o autor possa obter a título de responsabilidade civil o que em acção anterior fundada nos mesmos factos só pediu a título de nulidade”?

Como já dissemos, os factos não são em rigor os mesmos do ponto de vista da previsão das diferentes normas legais invocadas.

É certo que por força do princípio da concentração da defesa[11] se tem afirmado a propósito do Réu este efeito preclusivo, sendo certo que na doutrina não é pacífico se o mesmo deve ser integrado no caso julgado ou tratado com autonomia.

A este respeito observa FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA que “este ónus de concentração da defesa na contestação, cominado no n.º 1 do art. 573.º, vale para todos os fundamentos defensórios, designadamente para todas as exceções perentórias oponíveis á pretensão do demandante, pelo que qualquer exceção não invocada – como, por exemplo, a invalidade do negócio ou o pagamento da dívida – se considera definitivamente precludida”[12]. Tal entendimento tem sido defendido, no entanto, a propósito do Réu[13].

Com efeito, a posição do Autor e do Réu a este propósito pode não ser simétrica[14]. Já CASTRO MENDES observava “sem sombra de dúvida que a pretensão do autor não está sujeita a este efeito preclusivo” e acrescentava que “De jure condito (…) é lícito ao autor em processo civil formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir”[15]. E importa neste aspecto atender, mais uma vez, à lição de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA quando este Autor destaca que “a causa de pedir também define o âmbito da preclusão decorrente do trânsito em julgado da decisão, isto é, também delimita os factos que, na hipótese de o autor não ter obtido ganho de causa, não podem ser invocados por esse autor numa acção posterior”[16]. E daí que no Acórdão do STJ de 19/02/2009 (MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA) se tenha afirmado que “o caso julgado não preclude a possibilidade de invocar diferentes causas de pedir para o mesmo pedido, tal como não impede a formulação de outros pedidos, com relação à mesma causa de pedir”. Não se verifica, pois, em relação ao Autor o efeito preclusivo pretendido pelo Réu: quem propõe uma acção em que pede a nulidade de um negócio, acção essa que não procede, tendo o Tribunal afirmado que o negócio celebrado entre as partes era válido, não está impedido de vir depois em outra acção pedir a reparação de danos causados por violação de deveres pré-contratuais de informação e de aconselhamento porquanto a responsabilidade pré-contratual é perfeitamente compatível com  a validade do mesmo negócio.

Poderá dizer-se, no entanto, que embora não ocorra a excepção de caso julgado se verifica a autoridade de caso julgado, sendo que em relação a esta última não se exige a tríplice identidade? Tem-se entendido, com efeito, que “a autoridade de caso julgado, por via da qual é exercida a função positiva do caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade [a que se reporta o artigo 498.º n.º 1 do CPC], pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida” (Acórdão do STJ de 23/11/2011 (PEREIRA DA SILVA)). Sublinhe-se, no entanto, que não se vislumbra aqui qualquer decisão prejudicial[17] que tenha sido tomada na primeira Sentença e que não possa agora ser contraditada: decidiu-se, é certo, que os negócios celebrados entre as partes eram válidos, mas tal questão não é prejudicial porquanto, como reiteradamente se afirmou, a responsabilidade pré-contratual tanto pode existir nos casos de invalidade, como nos casos de validade do contrato.

Relativamente aos danos patrimoniais cuja reparação os Autores pedem na presente acção não se verifica, por conseguinte, nem caso julgado, nem efeito preclusivo, nem tão-pouco autoridade de caso julgado.

E relativamente à compensação por danos não patrimoniais?

Antes de mais, importa reconhecer que os danos invocados são fundamentalmente os mesmos. Pode-se dizer, é certo, que a causa de pedir em uma acção de responsabilidade civil é complexa e não se resume aos danos sofridos, havendo que ter em conta os outros pressupostos da responsabilidade civil. Contudo, e ao contrário do que sucede com um pedido de restituição fundado na mera invalidade do negócio, o pedido de reparação dos danos não patrimoniais já apresentado na anterior acção fundava-se na violação dos deveres de informação e de aconselhamento que agora novamente se invocam, ainda que já não para invalidar o negócio. Neste segmento e só neste existe, por conseguinte, caso julgado

Decisão: Concedida a Revista, negando-se a existência tanto da excepção de caso julgado, como da autoridade de caso julgado em relação aos danos patrimoniais invocados

Custas em proporção do decaimento

Lisboa, 17 de Janeiro de 2017

Júlio Gomes- Relator

José Rainho

Nuno Cameira

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[1] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Caso Julgado e causa de pedir. O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229 do Código Civil, Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, ROA 2006
[2] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Iuridica 2013, tomo LXII, n.º 332, pp. 395 e ss.., pp. 401-402
[3] Em sentido próximo observa LEBRE DE FREITAS que “embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos”. E sublinha também que “fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo”.
[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., p. 402. O mesmo Autor observa, ob. cit., p. 395, que: “A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada pelo autor. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico: é a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. Portanto, a causa de pedir é um conceito processual que é construído com base no direito substantivo”. Cfr., também, o que se afirma a p. 403. “para que haja causas de pedir distintas é sempre necessário que os factos alegados pela parte sejam subsumíveis a diferentes previsões legais”.
[5] A expressão é de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pp.398-399, “a orientação actualmente consagrada no direito português impõe uma concepção “deflacionista” da causa de pedir (…) segundo a qual a causa de pedir é constituída apenas pelos factos necessários à individualização do pedido do autor”. “A função da causa de pedir é individualizar o pedido que o autor formula”
[6] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado, RDES 1977, ano XXIV, pp. 304 e ss, pp. 309-310: “o princípio dispositivo se coaduna mais facilmente com a tese que concede aos limites objectivos do caso julgado um carácter mais restrito”. Neste sentido cfr., já JOÃO DE CASTRO MENDES, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, Lisboa, s.d., pp. 111 e ss.
[7] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2.ª ed. revista e ampliada, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 192-193: “No art. 498.º o legislador fez uma opção clara entre dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador (…)”.
[8] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, ob. cit., p. 203, dá um outro exemplo: “invocados factos integradores de determinado vício do negócio jurídico (v.g. negócio celebrado contra lei imperativa ou erro sobre o objecto do negócio), a actividade do tribunal está limitada à averiguação desses factos, nada impedindo que, posteriormente, o autor renove o pedido com base noutro fundamento de invalidade que além não tenha sido objecto de apreciação (v.g. negócio contrário à ordem pública ou anulável com base em coacção moral)”.
[9] MARIE MALAURIE, Les Restitutions en Droit Civil, Éditions Cujas, Paris, 1991, p. 45
[10] Segundo informa CASTRO MENDES, ob. cit., pp. 178-179, “na doutrina alemã fala-se em efeito preclusivo (Präklusionswirkung, Ausschlusswirkung) para designar o efeito da sentença segundo o qual não se pode formular a mesma solicitação processual no futuro com base em factos não supervenientes ao momento do “último acto oral de instrução” (…) correspondente ao momento do encerramento da discussão em primeira instância”
[11] Sobre este princípio cfr. o Acórdão do STJ de 08/04/2010 (MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA): “o trânsito em julgado de uma decisão de mérito faz precludir a possibilidade de, em acção subsequente, poderem vir a ser utilizados para a contrariar questões que, na primeira acção, poderiam ter sido invocados como meios de defesa. Assim resulta do princípio da concentração, expressamente definido no n.º 1 do artigo 498.º do Código do Processo Civil: se nem como oposição a uma eventual execução (cfr. al. g) do n.º 1 do artigo 814.º) podem ser utilizados, muito menos podem servir de causa de pedir em acções cujo desfecho possa conduzir à referida contradição. Note-se que este regime tanto vale para os meios de defesa que efectivamente foram invocados (…) como para os que não foram”.
[12] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 626.
[13] MARIANA FRANÇA GOUVEIA, ob. cit., p. 399, observa a propósito do efeito preclusivo que “a doutrina maioritária faz integrar no âmbito do caso julgado todas as excepções que o réu poderia ter alegado na primeira acção” e tal efeito preclusivo “é normalmente inserido pela doutrina no caso julgado”.
[14] Já LEBRE DE FREITAS observou que “não é irrelevante para a delimitação da causa de pedir quem (entre autor e réu) alega o facto constitutivo do direito”.
[15] CASTRO MENDES, ob. cit., p. 179.
[16] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Algumas questões…, cit., p. 404. E o mesmo Autor já em Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado…, cit., p. 312, observava que “a preclusão por ele [pelo caso julgado] operada (…) nunca pode ser negativa, isto é, exclusiva do uso de outros efeitos jurídicos com base nos mesmos factos”
[17] Elucidativo a este respeito é o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2016 (JORGE SEABRA) em que se afirma que “a autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão que correu entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa exclusivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior” (sublinhado no original).