Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
899/06.7TBTMR.C1.S
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: PESSOA COLECTIVA
EXTINÇÃO
DESTINO DOS BENS
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADA A REVISTA
Sumário :
1 – Se a Magistrada do Mº Pº em determinada comarca, afirmando-se « legitimada pelo disposto nos arts.1º do Dec.lei nº246-A/90, de 27 de Julho e 183º, nº2 do CCivil », vem pedir a extinção de determinada Casa do Povo, com vista à atribuição dos seus bens a determinada associação e, com trânsito em julgado, a acção é julgada inteiramente procedente, declarando-se extinta a Casa do Povo, com vista à atribuição dos bens que a integram a determinada associação, verifica-se a situação de caso julgado quando a mesma Magistrada do Mº Pº vem ( dez anos mais tarde ) instaurar acção especial para adjudicação desses mesmos bens ao Estado Português.
2 – Há na verdade, na 2ª acção um pedido que se repete – o de adjudicação dos bens, uma causa de pedir que se repete – a extinção da Casa do Povo, um sujeito que se repete ( a si próprio ) – o Mº Pº.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


O MINISTÉRIO PÚBLICO instaurou, em 5 de Julho de 2006, no Tribunal Judicial de Tomar, acção especial para atribuição de bens de pessoa colectiva extinta,
concretamente dos bens da CASA DO POVO DE ASSEICEIRA, declarada extinta na acção ordinária nº210/96, daquele mesmo tribunal, por sentença transitada em julgado em 12 de Março de 1998.
Alegou que o património de tal pessoa colectiva, à data da sua extinção, era constituído por
1. a sede, com o valor patrimonial de 21 069,22 euros;
2. o campo de futebol, com o valor patrimonial de 90,46 euros;
3. o recinto de festas, com o valor patrimonial de 301,40 euros;
4. o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2050º, com o valor patrimonial de 8 009,40 euros.

E que o terreno onde foi criado o campo de futebol foi doado à Casa do Povo com a finalidade de lhe ser dado o destino de campo de jogos e tem uma cláusula de reversão; e que a Direcção Geral do Património do Ministério das Finanças se manifestou no sentido de os prédios deverem ser afectados ao património do Estado, que os destinará às finalidades que já cabiam à Casa do Povo.
Concluiu pedindo que, após a « publicidade e citação a que aludem os artigos 1507º-B, nº2 e 1507º-C, ambos do CPCivil », sejam adjudicados ao ESTADO PORTUGUÊS os prédios supra indicados.
Cumprida a necessária citação, foi proferida a sentença de fls.74 a 79, datada de 8 de Janeiro de 2008, que julgou a acção procedente, por provada, e, em consequência, determinou a atribuição dos bens imóveis que foram propriedade da Casa do Povo de Asseiceira, identificados em 2), 4), 6) e 7) dos factos provados, ao Estado Português, através da Direcção-Geral do Património, do Ministério das Finanças, mediante imposição dos seguintes deveres:
1. Relativamente ao prédio identificado em 4) dos factos provados o prédio 2 da petição inicial , é o mesmo atribuído ao Estado Português com o encargo de este o continuar a utilizar como campo de jogos da localidade de Asseiceira;
2. No que se refere ao prédio identificado em 6) dos factos provados o prédio 3 da petição inicial , é o mesmo atribuído ao Estado Português com o dever de este o manter afecto como recinto de festas da localidade de Asseiceira.

Ao abrigo do disposto no nº2 do art.680º do CPCivil, veio A.C..R.D.A. - ASSOCIAÇÃO CULTURAL, RECREATIVA E DESPORTIVA DE ASSEICEIRA interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra que, todavia, por acórdão de fls.159 a 173 julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença.
Inconformada, a apelante A.C.R.D.A. vem agora pedir revista para este Supremo Tribunal.
Alegando a fls.181 apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
1 - O Mº Pº em 1996 propôs Acção Ordinária nº210/96 - que correu seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar - contra incertos, peticionando que se declarasse extinta a Casa do Povo de Asseiceira, com sede em Asseiceira, Tomar, com vista à atribuição dos seus bens à Associação Cultural. Recreativa e Desportiva de Asseiceira;
2 - Atenta a causa de pedir, o pedido e todos os elementos de prova carreados para os aludidos autos, foi proferida ipsis verbis, a seguinte decisão: " julgo a acção procedente, por provada, em consequência declaro extinta a Casa do Povo da Asseiceira, com sede em Asseiceira - Tomar, devendo oportunamente, nos termos do art.1840º, nº1 do Código Civil e das normas processuais adequadas, proceder-se à liquidação do respectivo património, com vista à atribuição dos bens que o integram à Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Asseiceira " - a qual transitou em julgado a 12 de Março de 1998.
3 - Face ao valor e autenticidade inquestionável daquela decisão, a aqui recorrente, através dos seus sócios, confiou que a atribuição a si própria dos bens, era uma realidade.
4 - Mais tarde, após a prolação da supra aludida decisão, o Mº Pº recorreu a processo administrativo, ignorando a recorrente, dando relevância à decisão da Direcção Geral do Património, que se terá pronunciado pela adjudicação ao Estado Português.
5 - Em consequência, o Mº Pº instaurou a presente Acção Especial para atribuição de bens de pessoa colectiva extinta, peticionando que, em conclusão do processo administrativo, os bens da Casa do Povo, fossem adjudicados ao Estado Português, sem ordenar a citação da aqui Recorrente.
6 - Sendo o direito de acesso aos Tribunais dominado por um ideia de igualdade vinculadora da função de jurisdição, perante a anterior decisão, era no mínimo exigível que se chamasse também à acção, a ora recorrente, atento o imperativo constitucional do respeito pelo direito de defesa, consagrado no art.20º da CRP.
7 - A falta de citação da recorrente nos termos e para os efeitos do art.1507º-C, nº1, al. b) do CPCivil, é uma realidade concreta, o que gera nulidade absoluta de conhecimento oficioso – art.194 do CPCivil – e determina a anulação de todo o processado posterior à petição inicial, atento o estipulado no art.195º, al. a), do CPCivil e daí que conduza à nulidade da sentença e revogação da mesma.
8 - A sentença proferida nos autos de acção ordinária 210/96 também constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga -art.673º do CPCivil.
9 - O segmento "limites e termos em que julga", significa que a extensão objectiva do caso julgado, se afere, em regra, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e dos pedidos formulados na acção.
10 - Ora, a sentença proferida em 1ª instância na acção 210/96, além de decidir a extinção da Casa do Povo de Asseiceira - Tomar, também decidiu dever, oportunamente, nos termos do 184°, nº1 do CCivil e das normas processuais adequadas, proceder-se à liquidação do respectivo património, com vista à atribuição dos bens que a integram à Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Asseiceira, ora recorrente.
11 - E se assim o ditou, foi porque o Mº Pº fez constar tal matéria tanto da causa de pedir como do pedido na referida acção.
12 - E foi resultado de constatação do Mº Juiz - resultante da prova então produzida - que os bens, ou pelo menos os prédios nºs 4 e 6, cabiam na previsão do nº1 do art.166° do CCivil. E por isso, a atribuição dos bens, em termos legais, deviam ser a pessoa colectiva, que não ao Estado - Tal, foi inclusive superiormente explanado no douto acórdão recorrido.
13 - A própria Direcção Geral do Património do Ministério das Finanças, no âmbito do Processo Administrativo promovido pelo Mº Pº a que a Recorrente não teve direito de intervir, não excluiu a possibilidade de se averiguar ( como se tal fosse necessário - atento o que foi provado na acção nº210/96 ) se existiam outras pessoas colectivas com maior vocação para assegurar as finalidades que já cabiam à Casa do Povo.
14 - Não há fundamento legal para se considerar que o legislador tenha visado, com a nova formulação do art.673° do CPCivil, excluir do âmbito do caso julgado, as questões que constituam pressuposto necessário da decisão ( foi expresso no Anteprojecto publicado no BMJ nº123 pág.120, que a nova solução legal não teve por finalidade a consagração legal da solução oposta, mas antes deixar a doutrina o seu estudo mais aprofundado à Jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos processos da integração da Lei ).
15 - Assim, com vista a determinar o restante plano de abrangência do caso julgado, importa sempre atentar nas questões fáctico jurídicas prévias ou preliminares ao thema decidendum, tão lógica e necessariamente conexas com o segmento decisório, que este não pode deles ser dissociado na definição do quadro normativo envolvente.
16 - Os segmentos decisórios de sentenças ou acórdãos do tipo de declaração de algo, estão lógica e necessariamente ligados a decisões de outras questões, como que constituindo um todo unitário, que os primeiros só fazem sentido se conexionados com as segundas.
17 - Em consequência, tendo em linha de conta a economia processual e a certeza das relações jurídicas, importa que se conclua no sentido de extensão do caso julgado à decisão das questões preliminares que sejam antecedente lógico / necessário da parte dispositiva do julgado.
18 - Sendo a autoridade de caso julgado comando da acção ou proibição de omissão, respeitante à vinculação subjectiva à decisão anteriormente transitada, o Mº Pº não podia ter olvidado o âmbito de abrangência da douta decisão, proferida e transitada em julgado no Proc.210/96, pondo em causa o princípio da confiança ínsito numa realidade jurídica "supostamente" inalterável aos olhos dos sócios da aqui recorrente.
19 - Existe nesta contenda, violação de caso julgado, com total desrespeito pela decisão proferida nos autos de acção ordinária 210/96.
20 - Tendo a recorrente invocado no recurso de apelação, a nulidade derivada da sua falta de citação na acção e a violação de caso julgado, não se vê, ao contrário do que refere o acórdão recorrido, como atribuir relevância ao facto da recorrente não ter posto em causa, na apelação, os factos considerados provados nesta acção de atribuição de bens.
21 - Ao contrário do referido no douto acórdão recorrido, a recorrente ao alegar fez valer o instituto de caso julgado na perspectiva de autoridade de caso julgado.
22 - Pelo exposto, o douto acórdão recorrido violou as disposições dos arts.194°, 195°, 1507°-C, nº1, al. b), 673°, 659°, nº2, in fine, 713°, nº2 e 726° do CPCivil, bem como violou o principio da igualdade de acesso aos Tribunais e o principio da confiança ínsito em decisão judicial, pelo que deve ser declarada a nulidade da decisão recorrida, revogando-a nos termos formulados pela recorrente.
Contra – alegando a fls.199, o Mº Pº pugna pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, o Relator solicitou ( fls.210 ) ao tribunal de 1ª instância certidão, com indicação de trânsito, da sentença proferida na acção nº210/96 ( com cópia dactilografada ) e com os articulados nessa mesma acção
Cumpre apreciar e decidir.
Na acção nº210/96, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar ( com certidão a fls.213) « a Magistrada do Ministério Público junto desse tribunal, legitimada pelo disposto nos arts.1º do Dec.lei nº246º/90, de 27 de Julho e 183º, nº2 do CCivil, vem intentar e fazer seguir a presente acção, com processo ordinário, de EXTINÇÃO DE CASA DO POVO de Asseiceira ... contra INCERTOS » e pede – a Magistrada do Mº Pº pede – que se declare « extinta a Casa do Povo de Asseiceira, com sede em Asseiceira, com vista à atribuição dos seus bens à Associação Cultural, Recreativa escreve “Associativa”, mas é manifestamente um lapso e Desportiva de Asseiceira ».
A autora – a Magistrada do Mº Pº - sabe que os bens da associação cuja extinção pede não podem ficar sem titular e não quer que eles fiquem sem titular e por isso, desde logo, no art.16º da sua petição diz que « devem assim transitar, igualmente, para a Associação supra mencionada ( cfr. art.166º, nº2 do CCivil ».
Efectuado o julgamento a acção foi julgada procedente e a autora – a Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Tomar – viu ser-lhe reconhecido tudo o que pedia: não apenas a declaração de extinção da Casa do Povo de Asseiceira, mas também essa declaração de extinção ... com vista à atribuição dos bens que a integram à Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Asseiceira.
A sentença – de 25 de Fevereiro de 1998, transitada « na devida oportunidade » ( ver a certidão de fls.213 ) – decide:
« declaro extinta a CASA DO POVO DE ASSEICEIRA ... devendo oportunamente, nos termos do art.184º, nº1 do CCivil e das normas processuais adequadas proceder-se à liquidação do respectivo património, com vista à atribuição dos bens que a integram à Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Asseiceira ».
A sentença à autora – a Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Tomar – tudo aquilo que ela pediu, mas apenas o que ela pediu.
Se a autora pediu mais do que queria ( ou podia ), a verdade é que, mal ou bem ( no processo próprio ou fora dele ), tudo lhe foi dado.
Com trânsito em julgado.
Com trânsito em julgado foi declarada a extinção da pessoa colectiva Casa do Povo; com trânsito em julgado foi declarado o destino dos bens que eram o seu património. Fora da decisão ficou apenas, quando muito, a imposição de deveres, restrições e cauções prevista no nº2 do art.1507º-D do CPCivil.
A autora – a Magistrada do Ministério Público em Tomar – não pode depois, agora, na acção 899/06, sob pena de venire contra factum proprium, reduzir o art.1º da sua petição àquilo a que o reduz - « por decisão de 25.02.98 ... foi julgada extinta a Casa do Povo da Asseiceira » - para poder formular mais à frente o pedido de que « sejam adjudicados ao Estado Português ... os prédios ... que foram propriedade da extinta Casa do Povo de Asseiceira » quando ela, autora, não pode deixar de saber – porque foi, a Magistrada do Ministério Público em Tomar, quem o pediu – que a declaração de extinção foi decretada, por sentença transitada, « com vista à atribuição dos bens que a integram à Associação Cultural Recreativa e Desportiva de Asseiceira ».
A declaração de extinção não foi então uma declaração de extinção pura e simples, mas nos exactos limites da decisão transitada, uma declaração de extinção ... dirigida.
Os limites objectivos do caso julgado são aqueles que constam da sentença e não aqueles a que a autora a pretende reduzir no art.1º da sua petição.
Poderia até dizer-se, de algum contrariando o que acima se escreveu, que o Mº Pº ao pedir mais do que o que queria ( ou podia ) acabou ( como representante dos interesses do Estado ) por pedir menos. Porque querendo e podendo pedir apenas a declaração de extinção ficando livre para posterior adjudicação, definiu desde logo o caminho dessa adjudicação, dirigindo-a à Associação Cultural Recreativa e Desportiva de Asseiceira.
Há, nesta nossa acção, e em relação à acção nº210/96, um pedido que se repete – o de adjudicação dos bens; uma causa de pedir que se repete – a extinção da Casa do Povo.
E há seguramente um sujeito que se repete – o Ministério Público.
Ao menos quanto a ele, o Ministério Público, há-de ter-se por verificado o caso julgado – art.497º do CPCivil. Com os efeitos previstos nos arts.671º, nº1 e 673º.
Sob pena, em teoria, propondo acção contra incertos, o Mº Pº poder constranger o tribunal a repetir indefinidamente as suas decisões – adjudicando os bens a A, ou a B, ou depois a C ou a D.
Ou, em concreto, aqui, a contrariar-se a si próprio – determinado a extinção com vista à atribuição dos bens da Casa do Povo à ACRDA, declarando mais tarde a entrega dos bens ao Estado – ou aceitando e reconhecendo o venire contra factum proprium do Ministério Público.

D E C I S Ã O
Na procedência do recurso da apelada Associação Cultural, Recreativa e Desportiva da Asseiceira, revoga-se o acórdão recorrido e, reconhecendo-se a excepção dilatória do caso julgado, declara-se improcedente o pedido formulado pela autora, Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Tomar.
Sem custas.

Lisboa, 19 de Novembro de 2009

Pires da Rosa (Relator)

Custódio Montes

Alberto Sobrinho