Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
286/10.2TBLSB.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
CAMINHO PÚBLICO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACÇÃO POPULAR
AÇÃO POPULAR
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
MEIOS DE PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OBSCURIDADE
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 09/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS / PRESUNÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 500-501.
- Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 214.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 349.º, 351.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º4, 615.º, N.º1, ALÍNEAS B) E C), 662.º, 663.º, N.ºS 2 E 3, 666.º, N.º1, 674.º, N.º3, 682.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 25/11/2014, PROCESSO N.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
I. As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base da presunção) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), nos termos do artigo 349.º do CC.

II. A presunção centra-se, pois, num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência.

III. Face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, é lícito à 2.ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código. Já em sede de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita.

IV. Assim, cabe ao tribunal de revista sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação, quando a lei o não admita (v.g., por violação do artigo 351.º do CC) ou, quando admitindo-o, tal uso ocorra fora do condicionalismo legal traçado no artigo 349.º do CC, que exige a prova de um facto de base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto essencial presumido.

V. Relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade.

VI. Neste caso, importa que da decisão de facto ou porventura da respetiva motivação constem os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC, de forma a se poder, desse modo, aferir a ocorrência da sobredita ilogicidade. Mas está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre.

VII. No caso concreto, a Recorrente nem sequer equacionou os invocados erros no uso das ditas presunções judicias em conexão com os factos essenciais dados como não provados pela Relação, limitando-se a reportá-los à mera questão jurídica da dominialidade pública do caminho em causa, o que inviabiliza, por si só, qualquer sindicância, ainda que restrita, por parte deste tribunal de revista, no uso das ditas presunções em relação a qualquer desses factos dados como não provados.

VIII. Por outro lado, a Recorrente não invocou a nulidade da decisão recorrida por falta de especificação dos fundamentos de facto ou por ambiguidade ou obscuridade determinativa da ininteligibilidade daquela decisão relativamente aos próprios factos essenciais dados como não provados, ao abrigo, respetivamente, das alínea b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º, aplicável ex vi do artigo 666.º, n.º 1, do CPC, para que se possa sequer aqui apreciar a eventual ocorrência de tais vícios.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (A.) instaurou, em 24/02/ 2010, no então Tribunal Judicial de Lousada, ação popular, ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31-08, seguindo a forma de processo ordinário, contra BB e cônjuge CC (R.R.) alegando, em síntese, que:

. O acesso ao Lugar …, na freguesia de Lustosa, no Município de Lousada, sempre foi efetuado através de um caminho cadastrado sob o n.º 88 dos caminhos públicos daquela freguesia, conforme certidão de fls. 10, com a extensão de cerca de dois quilómetros e a largura média de três metros e meio, com início no lugar de Agros da mesma freguesia, onde diverge, através de um entroncamento, da Estrada Nacional n.º 106 que liga as localidades de Vizela e Pousada;    

. O referido caminho se desenvolve num troço inicial descendente, empedrado por paralelepípedos de granito, de cerca de cem metros, prosseguindo depois em terra batida com uma parte quase rectilínea, atravessada por uma linha de água, e com diversas flexões à direita e à esquerda, até terminar no centro do povoado;

. Tal caminho têm sido utilizado, desde tempos imemoriais, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pelos moradores do Lugar … e pelo público em geral, com trânsito a pé e em carros de bois e outros veículos motorizados e de tração animal;  

. Por isso, o segmento térreo desse caminho apresenta um leito compactado e trilhado por pessoas, animais e rodados dos referidos veículos, sendo bordejado, de ambos os lados, por prédios rústicos dos R.R.;

. Todavia, há cerca de cinco anos, os R.R. colocaram duas cancelas metálicas, fechando o trânsito e a possibilidade de ali circular, apossando-se, desse modo, do indicado caminho.  

. Tal comportamento constitui violação do domínio público, nos termos do previsto no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 83/95, de 31-08;

Concluiu a A. pedindo que:

a) - se declare que o referido caminho pertence ao domínio público da freguesia de Lustosa;

b) - os RR. sejam condenados a retirar as cancelas que colocaram junto ao início e ao termo de tal caminho e a não obstarem, por qualquer outro meio, ao trânsito através do mesmo de pessoas, animais e veículos.


    E pediu ainda que fossem citadas a Junta de Freguesia de Lustosa e a Câmara Municipal de Lousada, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 83/95, de 31/08, para intervirem, querendo, como titulares do interesse difuso em causa, ou declararem se aceitam ser representadas pela A. ou se excluem tal representação. 


2. Os R.R. contestaram mediante impugnação motivada da generalidade dos factos alegados pela A, pugnando pela improcedência da ação e sustentando que:

. Não existe nem nunca existiu caminho que, através do trajeto descrito pela A., estabelecesse a ligação entre o lugar das Agras e da Costa;

. O acesso ao lugar da Costa é feito através da Rua da Costa, cujo trajeto nada tem a ver com o descrito pela A., e que o acesso ao lugar de Agras também se faz pela Rua de Agras, num percurso de cerca de 110 metros, com leito em calçada e electrificado, terminando naquele lugar, sem continuação;

. Em 28/02/1997, os R.R. compraram uma propriedade denominada “Quinta …”, a qual se encontrava, há alguns anos sem ser cultivada e em estado de abandono, tendo-se limitado a proceder à sua vedação, sem interferência com qualquer caminho público ou servidão; 

. O caminho referido como caminho público cadastrado na fotocópia da certidão de fls. 10 não tem o trajeto descrito pela A. nem passa entre os prédios rústicos dos R.R.. 

3. A A. replicou, reiterando o petitório e a Câmara Municipal de Lousada declarou (fls. 36) não pretender intervir nem aceitar ser representada pela A..

4. Citado o MP, nos termos do n.º 1 do art.º 16.º da Lei n.º 83/95, limitou-se a apor o seu visto a fls. 40.

5. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador tabelar, com a fixação do valor da causa, e seguidamente selecionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória (fls. 41-44).

6. Realizada uma inspeção ao local, conforme ata de fls. 151-153, procedeu-se, de seguida, a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, após o que foi proferida a sentença de fls. 168-179, datada de 10/03/2014, na qual foi inserida a decisão de facto e respetiva motivação, a julgar a ação totalmente procedente e, por via disso, decidindo:

a) – declarar que o caminho mencionado nos factos provados sob os pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 pertence ao domínio público da freguesia de Lustosa;

b) – condenar os R.R. a retirarem as cancelas que colocaram junto ao início e ao termo de tal caminho e a não obstarem, por qualquer outro meio, ao trânsito, através do mesmo, de pessoas, animais e veículos.

7. Inconformados com tal decisão, os R.R. recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, impugnando os factos dados como provados sob os pontos 3 a 15, 17 e 18 da sentença, sustentando que tais factos fossem dados como não provados, tendo sido proferido o acórdão de fls. 261-276, datado de 26/01/2016, a considerar esses factos como não provados, revogando a sentença recorrida e julgando a ação improcedente com a consequente absolvição dos R.R. dos pedidos.

8. Desta feita, inconformada agora a A., veio interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O STJ pode censurar o uso de presunções judiciais pela Relação, sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado (cfr. Ac. STJ de 24.05.2007: Proc. 07A979.dgsi.net).

2.ª - Para fixar os factos materiais da causa, o Tribunal da Relação socorreu-se de presunções judiciais falazes quanto aos pressupostos em que assentaram.

3.ª - Uma dessas presunções, que se deflui da argumentação discursiva, parte do suposto erróneo de que todos os caminhos públicos estão ligados em rede, para concluir pela ausência da alegada dominialidade do caminho dos autos, dado que tal circunstância se não verifica in casu.

4.ª - A segunda presunção tem como pressuposto o facto falacioso de que todos os caminhos públicos têm óptimas condições de transitabilidade - que se provou não existirem no caminho sub judicio.

5.ª - Por último, releva-se o desinteresse e a inércia da Junta de Freguesia e da Câmara perante a alegada ofensa ao domínio público, com a apropriação individual do caminho do dissídio, para se negar a natureza pública de tal caminho - sendo que tal presunção é ilidida pela própria lei (cfr. Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto), quando atribui a possibilidade aos cidadãos, individual ou associadamente, de velarem pelos interesses difusos e esta atribuição legal pressupõe, ao menos de modo subliminar, que as entidades públicas não defendam, como lhes cumpre, os bens que tutelam.

6.ª - Mesmo que assim não fosse, sempre seria de considerar que, na sua petição inicial, a apelada clama já contra a inércia das entidades públicas, que atribui - e continua a atribuir a comprometimentos espúrios.

7.ª - A certidão junta com a p.i., sob o documento n.º 2, é um documento autêntico, que faz prova plena quer dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, quer dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (cfr. artigo 371.º, n.º 1, do CC).

8.ª - A força probatória desse documento só poderia ser ilidida com base na sua falsidade (cfr. artigo 372.º, n.º 1, do CC), em incidente que não foi deduzido nos autos.

9.ª - Está, portanto, assente, por prova tarifada, que o "caminho que liga o lugar das Agras, desde a EN 106 ao lugar da Costa, no limite da freguesia de Barrosas, Santa Eulália (Barrosas) se encontra cadastrado com o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa".

10.ª - Esse caminho está bem balizado, quer quanto ao seu início - lugar das Agras, desde a EN 106 -, quer quanto ao seu termo - lugar da Costa, no limite da freguesia de Barrosas, Santa Eulália (Barrosas).

11. Considerado provado, como tem de ser, o facto referido no n.º 14 da fundamentação da sentença da 1.ª instância, torna-se notória uma flagrante contradição entre tal facto e os demais, alterados pela decisão sob recurso, e do respectivo conjunto com a própria decisão a se.

12.ª - O acórdão sob sindicância viola o disposto nos artigos 349.º, 351.º, 370.º e 371.º do CC, bem como os artigos 607.º, n.º 5 {in fine), e 615.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPC.

Pede a Recorrente que seja revogado o acórdão recorrido e substituído por decisão que o caminho em causa como pertencente ao domínio público, julgando a ação totalmente procedente.

9. Por seu lado, os R.R./Recorridos contra-alegaram, a pugnar pela confirmação do julgado, rematando com a seguinte síntese conclusiva:

1.ª - Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, do CPC, o STJ não pode sindicar o modo como a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria do tacto sustentada em meios de prova sujeitos a livre apreciação;

2.ª - A prova por presunções judiciais é aquela em que, num quadro de conexão entre factos, uns provados e outros não provados, a existência dos primeiros, com considerável grau de probabilidade, segundo a experiência comum, juízos correntes de probabilidade, princípios do lógica corrente e os dados da intuição humana, fazem admitir a existência dos últimos;

3.ª - O acórdão impugnado não recorre a presunções judiciais para alterar a decisão da matéria de facto da 1.ª instância;

4.ª - Antes conclui, contrariamente ao decidido pela 1.ª Instância, que a prova produzida não é segura e é manifestamente insuficiente para dar como provados os pontos 3 a 15, 17 e 18 de fundamentação de facto;

5.ª - Destarte, com a presente Revista, a A. apenas pretende impor a sua própria convicção sobre a prova produzida;

6.ª - A fotocópia da certidão exarada pela Chefe de Secção de Apoio Administrativo da Câmara Municipal de Lousada onde se pode ler que "certifica-se que “o referido caminho se encontra cadastrado com o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa”, apenas exprime o conhecimento oficial de um facto através de reprodução de um documento (cadastro) que se encontre nos seus arquivos, não fazendo prova de que seja o concreto caminho em discussão nos presentes autos, com o trajecto descrito pela A., tende sido nesse sentido que os RR. o impugnaram;

7.ª - Aliás, o Tribunal da Relação do Porto salientou que "a 1.ª testemunhe, na qualidade de Presidente da Junta referiu que todos os caminhos públicos se encontravam cadastrados. Consultou o caderno e não encontrou este.”, que “conforme se vê de fls. 78, 80, 81 e 82 parte deste caminho, que é público foi relacionado, recentemente como R. das Agras, existindo, todavia, indefinição quanto ao seu tamanho. Não existem elementos na Câmara Municipal para atestar a natureza e extensão deste caminho” e que a Junto de Freguesia e a Câmara "empedraram parte deste caminho e colocaram luz eléctrica no segmenta que consideram público”.

          

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto do recurso


Estamos no âmbito de uma ação intentada em 24/02/2010, no âmbito da qual as decisões finais impugnadas foram proferidas, respetivamente, em 10/03/2014 (na 1.ª instância) e em 26/01/2016 (na 2.ª instância), pelo que é aplicável o regime recursal atualmente em vigor, nos termos da norma transitória do art.º 5.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26-06.

Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Dentro desses parâmetros, o objeto da presente revista incide sobre as seguintes questões:

a) – o pretenso erro no uso das presunções judiciais em que o tribunal a quo se baseou para alterar a decisão de facto da 1.ª instância;

b) – o alegado erro de direito na ilisão da força probatória plena da certidão de fls. 10 quanto à existência do caminho cadastrado com o n.º 88 como caminho público da freguesia da Lustosa, como consta do ponto 14 da sentença da 1.ª instância;

c) – a contradição entre tal, que deve ser dado como provado, e a demais matéria dada como não provada pela Relação.



III – Fundamentação


1. Enquadramento preliminar


Estamos no âmbito de uma ação popular em que a A., na qualidade de cidadã natural e residente no Lugar da Costa da Freguesia da Lustosa, no Município de Lousada, pede o reconhecimento do caminho acima em referência como caminho do domínio público daquela freguesia e ainda a condenação dos R.R. a retirarem as duas cancelas metálicas que ali colocaram, vedando o seu acesso ao público, bem como a obstar ao trânsito no mesmo.

A 1.ª instância, dando como provada a generalidade dos factos alegados pela A., julgou a ação totalmente procedente, mas o Tribunal da Relação, fazendo a reapreciação da prova produzida sobre os factos essenciais pertinentes impugnados pelos R.R./apelantes, considerou tais factos não provados e revogou essa decisão, julgando a ação improcedente.

Vem agora a A./Recorrente, na presente revista, impugnar o acórdão da Relação, como já acima se deixou enunciado, com base em três tipos de fundamento:

a) – o erro no uso das presunções judiciais em que o tribunal a quo se baseou para alterar a decisão de facto da 1.ª instância;

b) – o erro quanto à ilisão da prova plena que deve ser atribuída à certidão junta a fls. 10, donde consta que o caminho em causa é o caminho cadastrado sobre o n.º 88 como caminho do domínio público da freguesia de Lustosa, conforme dado por provado no ponto 14 da sentença da 1.ª instância;

c) – a contradição entre esse facto e os demais factos dados como não provados pela Relação.


Por seu lado, os Recorridos arguíram a inadmissibilidade da revista quando à pretendida sindicância sobre as presunções judiciais, por considerarem ser matéria subtraída ao âmbito desta espécie recursal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, do CPC

Com efeito, da conjugação dos artigos 662.º, n.º 3, com referência, em particular, ao respetivo n.º 1, e 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, decorre que não cabe recurso de revista do acórdão da Relação com fundamento em erro de julgamento de facto, submetido ao regime de prova livre, não podendo assim o STJ alterar a decisão de facto ali proferida, limitando-se a aplicar o regime jurídico adequado aos factos materiais desse modo fixados, salvo no caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º do mesmo Código e ressalvadas as hipóteses de ampliação e suprimento dessa decisão previstas no n.º 3 deste normativo.

        Assim, nos termos do n.º 3 do citado artigo 674.º, a revista pode ter por objeto o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa com fundamento em ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.” E, no que respeita, às presunções judiciais tem-se admitido, ainda que com alguma controvérsia, que o STJ só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados[1].

Ora, é nessa linha que, no presente recurso, a Recorrente, impugnando a alteração da decisão da 1.ª instância, questiona as ditas presunções judiciais usadas pelo Tribunal da Relação, além de invocar a violação de força probatória plena que atribui ao documento de fls. 10 para provar o facto constante do ponto 14 da sentença e a contradição formal entre este facto e os demais ali dados como não provados.

Neste contexto alegatório, à luz do quadro normativo traçado, tem de se reconhecer que tais fundamentos se enquadram nos contornos formais de admissibilidade da revista, em conformidade com o preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, parte final, do CPC. Saber se tais fundamentos procedem ou não é já questão que respeita ao mérito do recurso.

Termos em que improcede a arguição da inadmissibilidade da revista suscitada pelos Recorridos.

 

Quanto à metodologia do conhecimento das questões suscitadas pela Recorrente, elas serão apreciadas pela seguinte ordem:

i) – em primeira linha, o alegado erro na apreciação do facto constante do ponto 14 da sentença, com fundamento na violação da força probatória plena do documento de fls. 10;

ii) – em segundo lugar, os invocados erros no uso das presunções judiciais;

iii) – em terceiro lugar, a eventual contradição entre o facto constante do ponto 14 da sentença, caso seja de manter, e os demais factos dados como não provados pela Relação, se também e na medida em que forem mantidos;

iv) – por fim, as consequências da eventual procedência das questões precedentes, no plano da solução de direito.


Antes, porém, da apreciação dessas questões, importa atentar na factualidade em causa considerada pela 1.ª instância e, subsequentemente, alterada pela Relação.


2. Da factualidade em causa

  

2.1. Factos dados como provados em 1.ª Instância


Foi dada como provada pela 1.ª instância a seguinte factualidade:

2.1.1. A autora (A.), AA, é titular do cartão de eleitor n.º 15…, da freguesia de Lustosa, concelho de Lousada, de onde consta como natural – ponto 1 dos factos dados como provados na sentença, correspondente à alínea A) dos factos assentes;

2.1.2. A A. reside no lugar da Costa – ponto 2 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 1.º da base instrutória;

2.1.3. O acesso ao lugar da Costa, da freguesia de Lustosa, deste concelho, era efectuado através de um caminho que se inicia no lugar de Agros, da mesma freguesia de Lustosa – ponto 3 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 2.º da base instrutória;

2.1.4. Tal caminho diverge da Estrada Nacional n.º 106 que liga as localidades de Vizela e de Lousada, através de um entroncamento e desce, empedrado, até ao povoado de Agros, a cerca de cento e dez metros – ponto 4 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 3.º da base instrutória;

2.1.5. Depois prossegue, em terra batida, no sentido descendente, flectindo em curva para a direita durante cerca de 55 metros, continuando após em sentido descendente, quase rectilíneo, até atravessar uma linha de água, altura em que flecte para a esquerda e prossegue até atravessar uma outra linha de água que vem de montante – ponto 5 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 4.º da base instrutória;

2.1.6. Nesse local, volta a fletir, novamente à esquerda, e segue quase a direito durante cerca de 255 metros até passar, durante cerca de 50 metros, por debaixo de uma ramada projectada sobre ele, ao lado da casa existente junto à parte setentrional do aludido lugar da Costa – ponto 6 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 5.º da base instrutória;

2.1.7. Então, vira à direita, e desenvolve-se em sentido ascendente até terminar, cerca de 60 metros adiante, no centro do referido lugar da Costa – ponto 7 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 6.º da base instrutória;

2.1.8. Em todo o seu trajeto, o identificado caminho tem cerca de seiscentos metros de extensão, variando a sua largura entre quatro metros e dois metros e meio – ponto 8 dos factos dados como provados na sentença, correspondente, com restrições ao artigo 7.º da base instrutória;

2.1.9. No troço inicial, junto ao lugar de Agros, o leito de tal caminho está empedrado, com paralelepípedos de granito – ponto 9 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 9.º da base instrutória;

2.1.10. No segmento restante, esse leito desenvolve-se em terra que, juntamente com a vegetação rasteira aí existente, se encontra compactada da forma que é característica dos locais por onde existe passagem de pessoas e/ou animais e também de veículos dotados de características para circularem em terrenos de natureza florestal – ponto 10 dos factos dados como provados na sentença, correspondente, com algumas explicitações, ao artigo 10.º da base instrutória;

2.1.11. Desde tempos que escapam à memória dos vivos e dos mortos que os vivos conheceram até à data não concretamente apurada referida no facto provado no ponto 17 da sentença, tal caminho sempre foi utilizado para trânsito dos moradores do referido lugar da Costa, e por quem lá quisesse passar, estando no uso direto e imediato do público em geral, sem entraves ou embaraços – ponto 11 dos factos dados como provados na sentença, correspondente com alguma explicitação ao artigo 11.º da base instrutória;

2.1.12. Desde aqueles tempos imemoriais, as pessoas, de uma forma indiscriminada, serviam-se desse caminho para passarem a pé, com carros de bois e com outros veículos de tracção animal ou mecânica, sempre que entendiam ou careciam … – ponto 12 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 12.º da base instrutória;

2.1.13. fazendo-o à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição ou constrangimento de quem quer que fosse, na convicção de que tal caminho pertencia ao domínio público e de que podia ser utilizado por todos, sem restrição – ponto 13 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 13.º da base instrutória;

2.1.14. O caminho acima referido está cadastrado sob o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa – ponto 14 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 14.º da base instrutória;

2.1.15. Este caminho, até data não concretamente apurada da década de 1980, era o único caminho de acesso ao lugar da Costa – ponto 15 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 15.º da base instrutória;

2.1.16. No trajeto identificado nos pontos 5 e 6 da sentença, o leito do caminho em questão é bordejado de ambos os lados por prédios rústicos que se encontram sob o domínio dos R.R. – ponto 16 dos factos dados como provados na sentença, correspondente ao artigo 16.º da base instrutória;

2.1.17. Em data não concretamente apurada, mas situada seguramente entre os anos de 1998 e de 2005, os RR. colocaram uma cancela metálica próximo do início do trajeto identificado no ponto 5 da sentença e uma outra cancela metálica próximo do início da subida referida no ponto 7, as quais fecharam o trânsito e a possibilidade de circular pelo identificado caminho desde o lugar de Agros até ao lugar da Costa – ponto 17 dos factos dados como provados na sentença, correspondente com algumas explicitações ao artigo 17.º da base instrutória;

2.1.18. A partir de data não concretamente apurada, mas seguramente posterior a 1989, o acesso ao Lugar da Costa passou a poder ser feito através de uma rua, atualmente denominada “Rua da Costa” – ponto 18 dos factos dados como provados na sentença, correspondente com restrição ao artigo 19.º da base instrutória;

2.1.19. O acesso ao Lugar das Agras ou Agros é feito pela rua correspondente ao percurso referido no ponto 4 da sentença, que possui leito em calçada e se encontra electrificado – ponto 19 dos factos dados como provados na sentença, correspondente à matéria do artigo 20.º da base instrutória.



2.2. Factos dados como não provados pela 1.ª instância: 


Foram dados como não provados os seguintes factos:

2.2.1. O trajeto do caminho mencionado nos factos provados nos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da sentença tem dois quilómetros de extensão – correspondente ao facto dado como não provado na alínea a) da sentença como restrição à matéria constante do artigo 7.º da base instrutória;  

2.2.2. O acesso ao Lugar da Costa sempre foi feito através da rua que atualmente se denomina “Rua da Costa” – correspondente ao facto dado como não provado na alínea b) da sentença como restrição à matéria constante do artigo 19.º da base instrutória;    

2.2.3. O caminho que se inicia junto à EN 106 e se desenvolve em sentido descendente até ao Lugar de Agros ou Agras acaba o seu percurso neste lugar – correspondente ao facto dado como não provado na alínea c) da sentença como restrição à matéria constante do artigo 20.º da base instrutória.  


2.3. Da motivação da decisão de facto pela 1.ª Instância


A 1.ª Instância baseou a decisão de facto, no que aqui releva, nos seguintes termos:

«A convicção que presidiu à fixação da matéria de facto provada e não provada baseou-se na análise crítica das declarações prestadas pelas testemunhas na audiência de julgamento, em articulação com os elementos resultantes dos diversos documentos existentes nos autos, bem como da inspecção judicial ao local cujo relatório consta de fls. 152-153.

Face à observação feita no local, mostrou-se desde logo inequívoca a existência de um caminho a estabelecer a ligação entre os lugares de Agros ou Agras e da Costa, mais se tendo percebido que o traçado desse caminho corresponde ao percurso que se encontra assinalado a tracejado no mapa topográfico de fls.79 desde o casario de "Agra" até ao casario que em tal documento aparece denominado como "Lage", mas que, face ao que foi referido pelas testemunhas inquiridas na audiência, se ficou a perceber ser o lugar que a população denomina "Costa" ou "Quinta da Costa" (atribuindo o nome de "Laxe", sim, à quinta até onde se prolonga também aquele caminho caso, perto do seu final, não seja feita a derivação à direita em direcção ao lugar da Costa).

Por outro lado, certificando o documento de fls. 10 dos autos a existência de um caminho cadastrado (com o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa) a ligar, desde a EN. 106, o lugar das Agras e da Costa, ficou igualmente claro que esse é o caminho cujo percurso se mostra descrito no auto de inspecção ao local, para mais quando se constata que a certidão de fls. 78 a 82 não tem a virtualidade de infirmar tal facto, na medida em que, nada esclarecendo quanto ao requerimento que esteve na sua base (destinado a apurar a data em que tal caminho foi cadastrado e o fundamento de o mesmo ter sido classificado como público), também, quanto ao mais que consta na informação que o instrói, se limita a pronunciar sobre "o caminho identificado pelo requerente na planta topográfica à Esc. 1/200...", cujo percurso - como se constata em tal planta - se encontra delimitado ao troço que o requerente da certidão (o ora R.) assinalou, desde a EN. 106 até ao local onde, rio final do lugar de Agros, se encontra o portão/ cancela lá implantado e que (conforme referido por todas as testemunhas, designadamente pelos trabalhadores DD e EE) por ele lá foi colocado.

Desta forma, conjugando-se os dados recolhidos aquando da inspecção judicial com as medidas constantes do mapa topográfico de fls.79, fácil se tornou fixar a factualidade constante dos Factos Provados 4) a 10), relativa ao percurso, dimensões e características do caminho em causa nos presentes autos, e, ao invés, dar como não provados os factos das alíneas a) e c) que tinham sido alegados nos articulados.

Quanto à matéria dos pontos 3) e 11) a 13) dos Factos Provados, a mesma foi fixada com base nos testemunhos de FF, GG e HH, testemunhas que descreveram o tipo de utilização que, desde os tempos da sua juventude, era dada ao caminho, confirmando que, não obstante as más condições de circulação que o mesmo sempre ofereceu, as pessoas sempre puderam circular livremente ao longo do mesmo - como efectivamente acontecia -, até ao momento em que o ora R., depois de adquirir diversos prédios rústicos existentes na sua envolvência, começou a vedar as respectivas propriedades e colocou os dois portões que actualmente impedem a passagem através de tal caminho. Neste mesmo sentido se pronunciou II, antigo presidente da Junta de Freguesia de Lustosa, que - com plena credibilidade ante a forma ciara como prestou o respectivo testemunho - descreveu as circunstâncias em que, já depois do 25 de Abril de 1974, providenciou junto dos serviços camarários para efectuarem uma intervenção no sentido de entubar as águas que se acumulavam no troço descendente do caminho situado após o lugar de Agros, de forma a melhorar as condições de circulação da população através do mesmo.

É certo que, de forma algo diferente das testemunhas atrás referidas, JJ (que revelou ter sido "caseira" dos proprietários da Quinta da Lage desde 1976 até 2005) afirmou que o caminho a que nos temos vindo a referir jamais esteve afectado ao uso indiscriminado da população, por ter sido sempre como que um caminho privativo da Quinta da Lage. Este depoimento, porém, afirmou-se algo parcial, designadamente por a testemunha ter negado que houvesse uma derivação do caminho para a "Costa", o que se afigurou contender, não só com o referido pelas testemunhas já atrás mencionadas, como também com todas as evidências documentadas e existentes no local, estas últimas expressas até no facto de o próprio R. ter colocado no início do troço em causa um portão/cancela, facto só explicável por se situar uma passagem.

Neste contexto, entendeu-se também não haver prova minimamente consistente de que o caminho que se desenvolve desde o lugar de Agros (independentemente do pouco uso que lhe pudesse ser dado, nomeadamente devido às suas más condições e à escassez de população na zona) pertencesse a qualquer propriedade privada, tanto mais que nunca foi feita na audiência de julgamento qualquer alusão minimamente concretizada sobre o facto de o leito do caminho se inserir em solo pertencente a prédios rústicos que agora possam pertencer aos RR. (muito menos disso havendo qualquer tipo de prova documental), tendo somente todas as testemunhas que a tal se referiram (designadamente JJ e também DD e EE) afirmado que os diversos prédios rústicos existentes nas redondezas da Quinta da Lage (entre os quais aqueles que bordejam o caminho desde as imediações do lugar de Agros até às imediações da "Costa") têm vindo a ser adquiridos pelo R. desde a década de 1990. Consequentemente, a propósito da propriedade dos solos envolventes, mais não se pôde fixar do que aquilo que consta no ponto 16) dos Factos Provados.

No que diz respeito à data em que os RR. procederam à colocação dos portões metálicos que agora impedem o acesso a todo o percurso do caminho que se estende desde o final do lugar de Agros até às imediações do lugar da Costa (cuja existência, para além de assinalada na inspecção judicial, foi inequivocamente referida pelas testemunhas), face à fluidez dos diversos testemunhos, não se mostrou possível determiná-la com precisão. De todo o modo, conseguiu-se balizar tal data nos termos que constam no Facto Provado 17) considerando-se, por um lado, que os funcionários dos RR. DD e EE afirmaram que o "patrão" começou a vedar as respectivas propriedades a partir de 1997-1998 e, por outro lado, que JJ afirmou que os portões foram colocados cerca de 2-3 anos antes de ter mudado em 2005 a residência que até aí mantinha no local (assim se aproximando dos testemunhos de FF, GG e HH que estimaram que a colocação de tais cancelas ocorreu já na década de 2000).

Os testemunhos de FF, GG e HH, bem como de II, mostraram-se também decisivos para se determinar o facto de o caminho a que nos temos vindo a referir ter sido, desde tempo imemoriais até à década de 1980, a única via que, a partir da EN.106 que liga Vizela a Lousada, permitia o acesso às casas do lugar da Costa. É certo que, a propósito de tal assunto, KK testemunhou que, no ano de 1983, efectuou transportes de madeira a partir do lugar da "Costa" utilizando um outro caminho situado mais a sul. Todavia, face àquele que foi o depoimento de HH, ficou esclarecido que esse "caminho de cima" corresponde a uma passagem que o pai desta testemunha (e da Autora) - que, outrora, era o proprietário das diversas casas da designada Quinta da Costa -, abriu ("para aí há 30 anos") até à EN.106 por entre prédios rústicos que lhe pertenciam para facilitar o acesso ao local onde vivia, caminho esse que, depois de ter sido objecto de diversos melhoramentos, foi integrado, já como arruamento, no domínio público, correspondendo à actual "Rua da Costa". Desta forma, ficou também explicado o facto de II ter afirmado com plena segurança que, quando em 1989 deixou de presidir à Junta de Freguesia de Lustosa, ainda não havia qualquer outra via pública a estabelecer a ligação entre a EN.106 e o lugar da Costa para além do caminho que partia do lugar de Agros.»


2.4. Alteração da decisão de facto pelo Tribunal da Relação


O Tribunal da Relação deu como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 15, 17 e 18 da sentença, mantendo-se assim como provados os factos constantes dos pontos 1, 2, 16 e 19 da sentença acima vertidos nos pontos 2.1.1, 2.1.2, 2.16 e 2.1.19.


2.5. Da motivação da alteração da decisão de facto pela Relação


O Tribunal da Relação, em sede de reapreciação da prova sobre os factos impugnados pelos R.R., ali apelantes, consignou o seguinte argumentário:  

«Nos autos está em causa um caminho que liga o lugar de Agros ao lugar da Costa, na freguesia de Lustosa, Lousada. O lugar da Costa foi (é) constituído unicamente pela Quinta da Costa, pertencente aos mesmos proprietários.

Este caminho situa-se em zona rural ladeado de quintas agrícolas.

Entende a autora que este caminho é público, alegando que toda a gente aí passou sem oposição de ninguém desde tempos imemoriais. Os réus por sua vez entendem que este caminho é particular e que lhes pertence fazendo parte dos terrenos onde estão implantados.

E face a toda a prova produzida não podemos concluir com segurança que este caminho pertence ao domínio público.

Comecemos pela prova testemunhal analisada no seu conjunto.

O caminho desde Agros até à Costa terá 600 de comprimento e 2/3 metros de largura.

A 1ª testemunha que foi presidente da Junta depois do 25 de Abril até 1989, sustenta que este caminho era público, toda a gente aqui passava, vinda das confecções de Vizela, saíam na Estrada Nacional, no lugar de Agros, em direcção à Costa, onde terminava. A partir daqui distribuíam-se por caminhos e carreiros pelo meio das matas para os diversos locais onde habitavam. Refere que antigamente existiam atravessadouros e carreiros de servidão pelo meio dos campos e matas.

Assim do seu depoimento podemos concluir que depois da Costa, não existiam caminhos públicos, ou seja, este caminho deixava de ser público, segundo a sua opinião, no lugar da Costa. Daqui as pessoas que passavam pelo caminho em litígio tinham de prosseguir o seu destino por caminhos particulares através das matas (distribuíam-se pelos caminhos, refere a testemunha que acrescenta serem caminhos de servidão através da bouça).

Mais refere que este caminho era composto por linhas de água, e que de Inverno era difícil aí passar. As pessoas colocavam pedras no seu leito para poderem atravessar. No Verão passava-se melhor.

Quando passava de carro tinha de usar outro trajecto, já que era impossível passar neste caminho de veículo.

As testemunhas que cresceram nas quintas da Costa e circundantes, irmãos – FF e GG – referem também que este caminho desembocava nos terrenos da quinta da Costa. No lugar de Agros desciam nesse caminho e a cerca de 30 metros encontravam uma linha de água, prosseguindo encontravam outra linha de água, prosseguiam o caminho que marginava um Eucaliptal (clipal, segundo palavras da testemunha), depois seguiam um caminho encimado por uma ramada e entravam directamente em terrenos da Quinta da Costa.

O lugar da Costa era uma quinta e terrenos dos mesmos proprietários, de que os pais das testemunhas eram caseiros e aqui habitavam, existindo também, outros arrendatários só de habitação (os cabaneiros).

Todas as restantes testemunhas confirmam o que se alega. Este caminho era constituído por linhas de água, servia a Costa, local pertencente a um único proprietário.

Por seu turno as testemunhas dos réus, (ex. JJ) que trabalhou na quinta da Lage, refere que o caminho pertence e sempre pertenceu a esta quinta, tendo como limite umas colunas existentes. Além de que cultivavam, tratando a ramada, colhendo as suas uvas (a ramada era nossa, na expressão da testemunha).

Nunca se opuseram a quem quer que fosse a sua passagem, sendo certo que aqui ninguém passava, nestes últimos anos porque o caminho tinha muitas silvas.

E o facto de o carteiro por lá passar não é indício de que este caminho é público. Sabemos que antigamente, nas zonas rurais os carteiros transpunham terrenos particulares para entregar em mão a correspondência. A verdade é que segundo as testemunhas as caixas do correio estão hoje colocadas no lugar de Agra, local público, onde os seus possuidores se devem dirigir para recolher a correspondência. O que inculca desde logo que este caminho é particular. Se fosse público o receptáculo para recolher o correio ficaria colocado à face da via, à entrada das casas da quinta da Costa, ou lugar da Costa.

O facto de por aqui passarem funerais também não indicia de que o mesmo é público. Os funerais tinham de passar por qualquer lugar e, este caminho era o mais perto.

Assim, não podemos concluir com segurança (antes pelo contrario) que este caminho era público. Tudo inculca que seja um caminho de servidão, composto com troços de linha de água, um eucaliptal e caminho com uma ramada.

Acresce que existia um caminho público no lugar de Requeixos e Rodilhão, com acesso à quinta da Costa. Embora fosse igualmente um caminho mau (um barroco).

Acresce que o facto de na inspecção ao local constar caixas das águas/ residuais e saneamento com a inscrição Município de Lousada e Águas do Noroeste de nada acrescenta a esta convicção. Na realidade, uma coisa é a propriedade de águas, outra bem diferente a propriedade do leito do caminho. Por outro lado o saneamento é um serviço público, nada obstando que as caixas sejam colocadas em terrenos particulares - expostos de electricidade e telefones.

  A prova documental, fundamental nestes autos, traz ainda mais incertezas.

Este caminho não se encontrava cadastrado na Câmara Municipal nem na Junta de Freguesia, sendo certo que a 1ª testemunha, na qualidade de Presidente da Junta referiu que todos os caminhos públicos se encontravam cadastrados. Consultou o caderno e não encontrou este.

Conforme se vê de fls 78, 80, 81 e 82 parte deste caminho, que é público foi relacionado, recentemente como R. das Agras, existindo todavia indefinição quanto ao seu tamanho. Não existem elementos na Câmara Municipal para atestar a natureza e extensão deste caminho.

Nem a Junta de freguesia ou a Câmara, alguma vez reivindicaram este fragmento como publico. Acresce que empedraram parte deste caminho e colocaram luz eléctrica no segmento que consideram público.

Assim sendo, não foi feita prova conclusiva quanto aos factos nºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17 e 18, pelo que os mesmos devem merecer a decisão de não provado.»


3. Do mérito do recurso          


3.1 Quanto ao alegado erro na apreciação do facto constante do ponto 14 da sentença


O Tribunal da 1.ª Instância deu como provado sob o ponto 14 da sentença que:

O caminho acima referido está cadastrado sob o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa.


Embora sem referir expressamente à matéria dada como provado no ponto 14, o Tribunal da 1.ª Instância considerou que:  

«Face à observação feita no local, mostrou-se desde logo inequívoca a existência de um caminho a estabelecer a ligação entre os lugares de Agros ou Agras e da Costa, mais se tendo percebido que o traçado desse caminho corresponde ao percurso que se encontra assinalado a tracejado no mapa topográfico de fls.79 desde o casario de "Agra" até ao casario que em tal documento aparece denominado como "Lage", mas que, face ao que foi referido pelas testemunhas inquiridas na audiência, se ficou a perceber ser o lugar que a população denomina "Costa" ou "Quinta da Costa" (atribuindo o nome de "Laxe", sim, à quinta até onde se prolonga também aquele caminho caso, perto do seu final, não seja feita a derivação à direita em direcção ao lugar da Costa).

Por outro lado, certificando o documento de fls.10 dos autos a existência de um caminho cadastrado (com o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa) a ligar, desde a EN. 106, o lugar das Agras e da Costa, ficou igualmente claro que esse é o caminho cujo percurso se mostra descrito no auto de inspecção ao local (sublinhado nosso), para mais quando se constata que a certidão de fls. 78 a 82 não tem a virtualidade de infirmar tal facto, na medida em que, nada esclarecendo quanto ao requerimento que esteve na sua base (destinado a apurar a data em que tal caminho foi cadastrado e o fundamento de o mesmo ter sido classificado como público), também, quanto ao mais que consta na informação que o instrói, se limita a pronunciar sobre "o caminho identificado pelo requerente na planta topográfica à Esc. 1/200...", cujo percurso - como se constata em tal planta - se encontra delimitado ao troço que o requerente da certidão (o ora R.) assinalou, desde a EN. 106 até ao local onde, rio final do lugar de Agros, se encontra o portão/cancela lá implantado e que (conforme referido por todas as testemunhas, designadamente pelos trabalhadores DD e EE) por ele lá foi colocado.

Desta forma, conjugando-se os dados recolhidos aquando da inspecção judicial com as medidas constantes do mapa topográfico de fls. 79, fácil se tornou fixar a factualidade constante dos Factos Provados 4) a 10), relativa ao percurso, dimensões e características do caminho em causa nos presentes autos, e, ao invés, dar como não provados os factos das alíneas a) e c) que tinham sido alegados nos articulados.


Por seu turno, o Tribunal da Relação sobre esse particular ponderou o seguinte:

   «A prova documental, fundamental nestes autos, traz ainda mais incertezas.

Este caminho não se encontrava cadastrado na Câmara Municipal nem na Junta de Freguesia, sendo certo que a 1.ª testemunha, na qualidade de Presidente da Junta referiu que todos os caminhos públicos se encontravam cadastrados. Consultou o caderno e não encontrou este.

Conforme se vê de fls 78, 80, 81 e 82 parte deste caminho, que é público foi relacionado, recentemente como R. das Agras, existindo todavia indefinição quanto ao seu tamanho. Não existem elementos na Câmara Municipal para atestar a natureza e extensão deste caminho.

Nem a Junta de freguesia ou a Câmara, alguma vez reivindicaram este fragmento como público. Acresce que empedraram parte deste caminho e colocaram luz eléctrica no segmento que consideram público.

           

           

Porém, a Recorrente veio sustentar, em síntese, que:

i) - a certidão junta a fls. 10 é um documento autêntico, que faz prova plena quer dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, quer dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, conforme artigo 371.º, n.º 1, do CC;

ii) - a força probatória desse documento só poderia ser ilidida com base na sua falsidade, nos termos do artigo 372.º, n.º 1, do CC, em incidente que não foi deduzido nos autos;

iii) - está, assim, assente, por prova tarifada, que o “caminho que liga o lugar das Agras, desde a EN 106 ao lugar da Costa, no limite da freguesia de Barrosas, Santa Eulália (Barrosas) se encontra cadastrado com o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa”.

iv) - Esse caminho está bem balizado, quer quanto ao seu início - lugar das Agras, desde a EN 106 -, quer quanto ao seu termo - lugar da Costa, no limite da freguesia de Barrosas, Santa Eulália (Barrosas).


Ora, da fotocópia da certidão junta a fls. 10, emitida pelo Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Lousada, em 17/06/2005, consta o seguinte teor:

LL. Chefe da Secção do Departamento de Urbanismo e com delegação de competência dada pela Directora do Departamento de Administração Geral, da Câmara Municipal de Lousada, em dois de Maio de dois mil e dois.          

Certifica a requerimento de MM, Advogado, com cédula profissional n.° 14… - contribuinte n.° … com escritório na rua … n.° 165 - 1°, concelho Paços de Ferreiras, registado nos Serviços de Atendimento Geral sob o n.° seis mil cento e cinquenta e sete barra OU de quinze de Dezembro de dois mil e quatro, pelo qual requer certidão do seguinte:

   1.° Se para a freguesia de Lustosa, deste concelho, existe aprovado e em vigor cadastro das estradas e caminhos municipais.

   2.º Na hipótese afirmativa, se do referido cadastro consta (sob o n.° 88) um caminho que liga o lugar das Agras, desde a EN 106 ao lugar da Costa no limite da freguesia de Barrosas. Santa Eulália (Barrosas).

Nestes termos, e em cumprimento do despacho de catorze de Junho de dois mil e cinco, exarado pelo Director do Departamento de Urbanismo, por delegação de competência dada pelo Presidente da Gamara em nove de Janeiro de dois mil e um. que no aludido requerimento recaiu a seguinte informação:

“Certifica-se que o referido caminho se encontra cadastrado com o n.° 88 dos caminhos públicos de Lustosa.”» 

Sucede que os R.R., sob os artigos 20.º e 21.º da contestação, sustentaram que o caminho cadastrado naquela certidão não tinha o trajeto do caminho descrito pela A. nem passava entre os prédios rústicos daqueles R.R., o que se tornou matéria controvertida, como tal incluída no artigo 14.º da base instrutória.

Assim, independentemente da força probatória a atribuir aquela fotocópia, mesmo que se estivesse em presença de cópia certificada, o certo é que dela apenas consta que se encontra cadastrado com o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa um caminho que liga o lugar das Agras, desde a EN 106, ao lugar da Costa, no limite da freguesia de Barrosas, Santa Eulália (Barrosas), mas não se pode daí extrair, sem quaisquer outras menções topográficas, que tal caminho seja o configurado e peticionado pela A. nestes autos.

Foi, de resto, nessas circunstâncias que o Tribunal da 1.ª Instância, socorrendo-se dos elementos colhidos durante a inspeção judicial e do confronto com a certidão de fls. 78 a 82, em especial com a planta topográfica de fls. 79, concluiu que o caminho cadastrado referido na certidão de fls. 10 era o caminho em causa nestes autos.

Ao invés, o Tribunal da Relação, com base na análise dos mesmos documentos e ainda do testemunho de um antigo Presidente da Junta de Freguesia de Lustosa, acabou por considerar como não provado que o caminho em causa se encontrasse cadastrado em correspondência com o referido na certidão de fls. 10.

Nessa conformidade, a matéria aqui em foco, consistente na questão da correspondência entre o aludido caminho cadastrado sob o n.º 88 da freguesia de Lustosa e o caminho com o trajeto descrito pela A. e peticionado nestes autos, não se mostra compreendida no âmbito da eficácia probatória plena que pudesse ser atribuída ao teor da certidão de fls. 10, não se colocando, por isso, sequer a necessidade da sua ilisão por via do incidente de falsidade. Trata-se antes de matéria sujeita ao regime da prova livre, cujo erro de apreciação está vedado a este tribunal de revista nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, a contrario sensu.

Termos em que improcedem as razões da A./Recorrente constantes das respetivas 7.ª a 10.º e parte da 12.ª conclusões recursórias



3.2. Quanto ao alegado erro no uso das presunções judiciais pelo Tribunal da Relação


Sustenta a Recorrente, neste capitulo, que:

i) - O STJ pode censurar o uso de presunções judiciais pela Relação, sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efetuado (cfr. Ac. STJ de 24.05.2007: Proc. 07A979.dgsi.net);

ii) - Para fixar os factos materiais da causa, o Tribunal da Relação socorreu-se de presunções judiciais falazes quanto aos pressupostos em que assentaram.

iii) - Uma dessas presunções, que se deflui da argumentação discursiva, parte do suposto erróneo de que todos os caminhos públicos estão ligados em rede, para concluir pela ausência da alegada dominialidade do caminho dos autos, dado que tal circunstância se não verifica in casu.

iv) - A segunda presunção tem como pressuposto o facto falacioso de que todos os caminhos públicos têm óptimas condições de transitabilidade - que se provou não existirem no caminho sub judicio.

v) - Por último, releva-se o desinteresse e a inércia da Junta de Freguesia e da Câmara perante a alegada ofensa ao domínio público, com a apropriação individual do caminho do dissídio, para se negar a natureza pública de tal caminho - sendo que tal presunção é ilidida pela própria lei (cfr. Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto), quando atribui a possibilidade aos cidadãos, individual ou associadamente, de velarem pelos interesses difusos e esta atribuição legal pressupõe, ao menos de modo subliminar, que as entidades públicas não defendam, como lhes cumpre, os bens que tutelam.

vi) - Mesmo que assim não fosse, sempre seria de considerar que, na sua petição inicial, a apelada clama já contra a inércia das entidades públicas, que atribui - e continua a atribuir a comprometimentos espúrios.

 

Vejamos.     


Como correntemente tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, as presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base da presunção) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), nos termos do artigo 349.º do CC. A presunção centra-se, pois, num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência[2]. Tais presunções judiciais são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme o disposto no artigo 351.º do mesmo Código.

Hoje, face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, é lícito à 2.ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código. Já em sede de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita.

Com efeito, como já foi referido, nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, ao STJ incumbe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixado pelas instâncias, não podendo alterar a decisão de facto, a não ser no caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º ou de ampliação dessa decisão de facto ao abrigo do n.º 3 do indicado artigo 682.º.

Por sua vez, no domínio do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, segundo o preceituado no n.º 3 do artigo 674.º, a revista só pode ter por fundamento “a ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de provas. E, como já foi anteriormente dito, no que respeita, às presunções judiciais tem-se admitido, ainda que com alguma controvérsia, que o STJ só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados[3].

Poderá assim ser sindicável em sede de revista o uso de presunções judiciais quando a lei o não admita, por violação, por exemplo, do artigo 351.º do CC, ou, quando admitindo-o, tal uso ocorra fora do condicionalismo legal traçado no artigo 349.º do mesmo Código, que exige a prova de um facto de base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto essencial presumido.

Relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade. Para tanto, importa que da decisão de facto ou porventura da respetiva motivação constem os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC, de forma a se poder, desse modo, aferir a ocorrência da sobredita ilogicidade. Mas está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre.


No caso presente, a Recorrente, desde logo, não individualiza os erros no uso das alegadas presunções judiciais em função de cada um dos juízos probatórios sobre os factos essenciais dados como não provados pela Relação. Limita-se sim a censurar o juízo genérico do tribunal a quo de que não se podia concluir com segurança que o caminho em causa pertencesse ao domínio público.

Sucede que a qualificação de um bem como sendo ou não do domínio público reconduz-se a uma questão de natureza jurídica a ser equacionada em função da materialidade fáctica apurada. Por sua vez, a censura ao uso das presunções judiciais, em sede probatória, deve ser arquitetada não em função de tal qualificação, mas sim em função dos factos materiais que a suportam.  

É certo que o tribunal a quo recorreu a uma tal consideração genérica, mas ainda assim, na decorrência da análise da prova, acabou por dar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 15, 17 e 18 da sentença. E o que importava era precisamente perspectivar o uso das ditas presunções em relação às ilações de tais factos essenciais extraídas a partir da prova indiciária, o que a Recorrente não faz.   

Não obstante isso, sempre se dirá que um dos vícios apontados é de que a argumentação discursiva do Tribunal da Relação parte do suposto erróneo de que todos os caminhos públicos estão ligados em rede, para concluir pela ausência da alegada dominialidade do caminho dos autos, circunstância que se não verificaria no caso.

Embora a Recorrente não diga sequer a que factos essenciais concretos dados como não provados se dirige tal censura, mesmo assim não se colhe do teor da motivação do tribunal recorrido qualquer afirmação expressa no sentido de que “todos os caminhos públicos estão ligados em rede”.

O que se respiga, a este propósito, é a consideração de que:

«A 1ª testemunha que foi presidente da Junta depois do 25 de Abril até 1989, sustenta que este caminho era público, toda a gente aqui passava, vinda das confecções de Vizela, saíam na Estrada Nacional, no lugar de Agros, em direcção à Costa, onde terminava. A partir daqui distribuíam-se por caminhos e carreiros pelo meio das matas para os diversos locais onde habitavam. Refere que antigamente existiam atravessadouros e carreiros de servidão pelo meio dos campos e matas.

Assim do seu depoimento podemos concluir que depois da Costa, não existiam caminhos públicos, ou seja, este caminho deixava de ser público, segundo a sua opinião, no lugar da Costa. Daqui as pessoas que passavam pelo caminho em litígio tinham de prosseguir o seu destino por caminhos particulares através das matas (distribuíam-se pelos caminhos, refere a testemunha que acrescenta serem caminhos de servidão através da bouça).»

Seria porventura nesta última asserção que estaria ínsita a ideia de que os caminhos públicos teriam de desembocar noutras vias públicas.

Trata-se, no entanto, de uma mera suposição implícita associada à ponderação de um depoimento, que não chega a revelar-se como juízo probatório instrumental de ilação conexionado especificamente com qualquer dos factos essenciais dados como não provados, que nem a Recorrente – repita-se – individualizou. De resto, é a própria Recorrente quem afirma tratar-se de uma mera suposição errónea do tribunal sobre a dominialidade pública do caminho em causa, o que se reconduz a uma consideração retórica, sem suporte factual no plano do facto presumido.

Nestas circunstâncias, a Recorrente não apresenta uma base objetiva de conexão da sobredita suposição com qualquer dos factos essenciais dados como não provados pela Relação, para que se possa, em sede de revista, descortinar ofensa a qualquer norma legal ou manifesta ilogicidade, no uso de presunções judiciais, mormente à luz do disposto nos artigos 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC. 


Quanto ao vício relativo à chamada segunda presunção, diz a Recorrente que o tribunal incorreu num pressuposto falacioso de que todos os caminhos públicos têm óptimas condições de transitabilidade.

Mais uma vez, a Recorrente não individualiza também aqui os concretos juízos probatórios sobre os factos essenciais dados como não provados que padeceriam do aludido pressuposto falacioso. Aliás, da motivação da decisão recorrida o que consta é a referência a deficientes condições de trânsito pelo trajeto em foco, colhidas dos depoimentos prestados, nomeadamente a existência de linhas de água a dificultar a passagem, o que, em conjugação com o demais circunstancialismo apurado, terá levado o tribunal a dar como não provada a existência de um caminho com as características e uso alegados pela A..


Por último, não se vê que, no contexto da fundamentação do tribunal a quo, tenha relevado de forma decisiva o desinteresse da Junta de Fre-guesia ou da Câmara Municipal pela não reivindicação do dito caminho, o que apenas vem ali referido como consideração meramente acessória.


Em suma, o acórdão recorrido alterou a decisão de facto da 1.ª Instância, partindo da reapreciação dos meios de prova convocados, dela salientando dados circunstanciais que levaram a dar como não provados os factos essenciais constantes dos pontos 3 a 15, 17 e 18 da sentença recorrida.

Todavia, como foi dito, a Recorrente não equacionou os vícios atribuídos ao uso das alegadas presunções judiciais em correspondência com os juízos probatórios sobre qualquer daqueles factos essenciais dados como não provados pela Relação, já que se limitou a reconduzi-los ao mero juízo conclusivo sobre a dominialidade pública do caminho em causa, o que, por si só, inviabiliza qualquer sindicância, ainda que restrita, por parte deste tribunal de revista, no uso das ditas presunções em relação a qualquer desses factos dados como não provados.


Por outro lado, não vem invocada a nulidade da decisão recorrida por falta de especificação dos fundamentos de facto ou por ambiguidade ou obscuridade determinativa da ininteligibilidade daquela decisão relativamente aos próprios factos essenciais dados como não provados, ao abrigo, respetivamente, das alínea b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º, aplicável ex vi do artigo 666.º, n.º 1, do CPC, para que se possa sequer aqui apreciar a eventual ocorrência de tais vícios.


Improcedem, pois, as razões da Recorrente constantes das respetivas 1.ª a 5.ª conclusões recursórias.


3.3. Quanto à alegada contradição entre o facto constante do ponto 14 da sentença e os demais factos dados como não provados pela Relação


A Recorrente sustenta a contradição enunciada em epígrafe na pressuposição de ser tido como provado o facto constante do ponto 14 da sentença no sentido de que o caminho em causa está cadastrado sob o n.º 88 dos caminhos públicos de Lustosa, facto este que a Relação considerou como não provado.

Sucede que acima se concluiu pela improcedência da impugnação da alteração da decisão da Relação sobre esse facto, quer no que respeita ao valor probatório atribuído ao documento de fls. 10, quer no tocante ao uso das presunções judiciais.

Assim sendo, mantendo aquele facto como não provado, prejudicada fica a alegada contradição.    


De igual modo, mantendo-se, como se mantém, a decisão de facto da Relação, prejudicada fica também a reapreciação jurídica exclusivamente sustentada na pretendida alteração dessa decisão.


IV – Decisão

 

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas ficam a cargo da recorrente. 

Lisboa, 29 de setembro de 2016

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

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[1] Neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, relatado por Pinto de Almeida, acessível na Internet – http://www.dgsi. pt/stj.
[2] Sobre a noção de prova por presunção vide, por todos, Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pp. 500-501.  
[3] Neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, relatado por Pinto de Almeida, acessível na Internet – http://www.dgsi. pt/stj.