Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2894
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
FÓRMULAS TABELARES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: SJ20081015028943
Data do Acordão: 10/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Sumário :
I - Na concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, as Relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º, n.º 1, do CPP) – reapreciação por um tribunal superior das questões relativas à culpabilidade.
II - O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação total pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação daquele, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas em suporte técnico ou transcritas quando tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP, na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29-08, aplicável no caso –, ou da sua renovação nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
III - Porém, a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida, transcrita nos autos»).
IV - A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui, por isso, um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.
V - Numa situação em que, perante o thema submetido à cognição do tribunal de recurso, nos termos definidos pela recorrente (com indicação de dois pontos de factos que considera incorrectamente julgados e enunciação das provas que impunham decisão diversa), o acórdão recorrido, referindo «que o tribunal [da 1.ª instância] foi exaustivo na apreciação da prova e na sua fundamentação», que «é de facto a partir de todas as provas produzidas em audiência de julgamento que o julgador forma a sua convicção, quer daquelas que permitem ter uma percepção directa e formar um juízo imediato sobre os factos imputados aos arguidos, como seja o depoimento das testemunhas com conhecimento presencial dos factos, quer daquelas que, ainda que indirectamente, possam levar a concluir pela verificação desses factos», e que «a prova é apreciada na sua globalidade para efeitos de convencimento e de busca da verdade material», conclui ser «nesta medida» «cristalino e objectivo que a sentença recorrida, fez uma criteriosa análise da prova, apreendendo a essencialidade e o objecto da matéria em litígio», sem que se pronunciasse especificamente sobre qualquer dos meios de prova indicados – não permitindo, por isso, seguir o percurso lógico e racional na formação e formulação da convicção segundo as exigências do princípio da livre apreciação da prova –, mostra-se verificada a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), ex vi art. 425.º, n.º 2, ambos do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Na 2ª Vara Mista do tribunal da comarca de Loures, sob acusação do Ministério Público, foi julgada, entre outros, a arguida AA, solteira, vendedora ambulante, nascida em 12/01/1964, natural de Valência – Espanha, de nacionalidade espanhola, filha de ... e de... , residente no Barro, Loures, e condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de cinco anos e seis meses de prisão.

2. A arguida recorreu para o tribunal da Relação, definindo ao objecto de recurso a impugnação da decisão em matéria de facto relativamente aos factos referidos nos pontos 21 e 23 da matéria de facto e, subsidiariamente, a questão da qualificação dos factos, que na sua perspectiva, integram apenas o crime de tráfico de menor gravidade p. no artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.


O tribunal da Relação negou provimento ao recurso.



3. Não se conformando, recorreu para o Supremo Tribunal arguindo a nulidade do acórdão da Relação por omissão de pronúncia, por falta de conhecimento e apreciação, nos termos exigidos, da impugnação da decisão em matéria de facto.


O Supremo Tribunal considerou procedente o motivo e anulou o acórdão da Relação por omissão de pronúncia – artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.



4. O tribunal da Relação, em consequência, renovou o seu julgamento em execução do que fora decidido pelo Supremo Tribunal, e manteve o que anteriormente decidira na improcedência do recurso da arguida AA.

5. Não se conformando, a arguida recorre, de novo, para o Supremo Tribunal, com os fundamentos constantes da motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1ª. O recurso que a ora recorrente interpôs no TRL tinha por objecto as seguintes questões:


I - Erro de julgamento da matéria de facto, pondo-se em causa a decisão da matéria de facto, relativamente à factualidade vertida nos pontos 21 e 23 dos factos provados do acórdão.


Sem conceder:


II - Errada qualificação jurídica dos factos provados, porquanto no entender da recorrente estes integram apenas a dimensão de ilicitude definida no art. 25°, al. a) do DL 15/93 de 22.01.


III - Saber se a decisão revidenda, no plano da determinação da medida da pena, padece de inadequação e desproporcionalidade.


2ª. Contrariando o comando da 3ª Secção do STJ, no que concerne ao vício invocado pela recorrente no ponto “I - Erro de julgamento da matéria de facto, pondo-se em causa a decisão da matéria de facto, relativamente á factualidade vertida nos pontos 21 e 23 dos factos provados do acórdão” - a 9ª Secção do TRL, no acórdão sob censura, de 03/Julho/2008, decidiu, em síntese:


3ª. “O acórdão desta instância de recurso que foi anulado já tinha analisado as razões pelas quais considera que a recorrente não tem razão, no seu recurso referente à impugnação da matéria de facto assente”( f1s 76).


4ª. “Efectivamente, indica-nos o art. 374°, nº 2, do CP P. que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal" (fls 77).


5ª. Seguindo-se um enorme rol de conceituados Homens de Leis, com cujas citações o TRL pretende explicar à recorrente, em que consistem a fundamentação de uma sentença e as regras da livre apreciação da prova insertas no art. 127º do CPP, veja-se: Toda Pinto; Eduardo Correia; Germano Marques da Silva; Marques Ferreira; Maia Gonçalves; Cavaleiro Ferreira; entre alguns acórdãos do STJ.


6ª. O que muito grato é para a recorrente, quando tiver que arguir esses vícios. O que não é o caso do seu recurso nestes autos...


7ª. Embora tais autores, decerto, debatam também sobre o que seja o erro de julgamento da matéria de facto, que é arguido pela recorrente.


8ª. Dizendo ainda que “… o tribunal recorrido pronunciou-se sobre todas as questões levantadas no processo e que se resumiam a uma única - a de saber se arguida tinha, ou não cometido o crime de tráfico de estupefacientes de que foi acusada.


9ª. “Da leitura da decisão recorrida não vislumbramos o vício apontado ( fls 83).


(Qual vício")?


10ª."Na verdade o tribunal “a quo” procedeu a uma rigorosa e ponderada avaliação e valoração crítica sobre toda a prova, como resulta, inquestionavelmente, da fundamentação e da respectiva motivação da decisão sobre a matéria de facto” ( fls 83)


11ª. Nesta medida é cristalino e objectivo que a sentença recorrida, fez uma criteriosa análise da prova, apreendendo a essencialidade e o objecto da matéria em litígio pelo que não podia deixar de condenar a arguida"
Por muitas voltas que a arguida recorrente dê é sempre de duvidosa credibilidade, face às regras da experiência comum e da lógica, ter sido apanhado muitas gramas de droga, no seu avental, e dizer que não sabia de nada e que desconhecia que o estupefaciente aí se encontrava guardado e escondido. É' uma peça de roupa normalmente usada com frequência pelas mulheres em casa que pertencia à arguida e não ao seu marido co-arguido CM. (…)" ( fls 84).


12ª. Finalizando […] conclui: “Assim sendo, porque a matéria assente vertida nos pontos 21 e 23 encontram-se correctamente elencados de acordo com a produção de toda a prova que foi produzida em julgamento, e, contrariamente ao que vem alegado, não se descortina qualquer nulidade por via de omissão de pronuncia, no acórdão em recurso, pelo que o mesmo deverá ser mantido por não merecer censura ou reparo” ( fls 86 e 87).


13ª. O recurso da matéria de facto, que se funda na existência de um erro de julgamento detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1ª instância e implica que o tribunal ad quem reaprecie essa prova, não se confunde com a mera invocação dos vícios da sentença enunciados no n° 2 do artigo 410º do CPP, que devem resultar sempre do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.


14ª. Neste último caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.


15ª. A recorrente, na defesa do seu ponto de vista quanto à existência de erro de julgamento da matéria de facto, pondo-se em causa a decisão da matéria de facto, relativamente à factualidade vertida nos pontos 21 e 23 dos factos provados do acórdão do tribunal de 1ª instância, veio requerer ao TRL a reanálise da prova testemunhal produzida em Audiência de Julgamento, entre outra, aquela que levou o tribunal de 1ª instância a decidir como decidiu, no que à recorrente diz respeito, ou seja, “as declarações dos arguidos CM; JL e AR; as declarações da ora recorrente AA; os depoimentos das testemunhas de acusação MR e Manuel Macedo, ambos agentes da PSP e ainda os depoimentos das testemunhas de defesa JF, JMF e FT", apontando as cassetes, bem como as passagens das testemunhas que, no seu entender, colidiam com a decisão tomada, impondo uma outra diversa, impugnando-se, assim, matéria de facto,


16ª. Pedindo-se, deste modo, ao tribunal de recurso, como é óbvio, uma intromissão no julgamento da matéria de facto.


17ª. Solicitação que o TRL ignorou, mais uma vez, consubstanciando esta omissão uma atitude susceptível de ser considerada clara denegação do direito ao recurso em sede de matéria de facto.


18ª. Ao indicar que, relativamente aos considerandos, não há fundamento legal para recorrer, o douto acórdão revela que não foi reexaminada a prova factual, tal como a recorrente indicou, nos termos definidos pelo art. 412º, nº 3, alínea b) e n° 4 do CPP.


19ª. Pelo que, verifica-se a omissão da pronúncia pelo TRL, no que concerne a um facto sobre o qual se deveria pronunciar - a impugnação da matéria de facto - que é prejudicial para a recorrente, porquanto a instituição própria para conhecer de matéria de facto é aquele Tribunal, sendo que os poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, em termos fácticos são, não pode a recorrente deixar de lamentar, diminutos.
20ª. Verificando-se a omissão de pronúncia nos termos do art. 379°, nº l, al. c) do CPP, padece, o acórdão da 9ª Secção do TRL, mais uma vez, de nulidade, devendo ser ordenada a baixa do processo para sua reforma nos termos do disposto no art. 731°, n° 2 do CPC.


A magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

6. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se pelo provimento do recurso porque, «salvo melhor entendimento, se verifica omissão de pronúncia».


O acórdão recorrido, no entender do magistrado, «fica aquém de quanto se mostra exigível, em termos do reexame da matéria de facto, ou seja que “demonstre que, no caso concreto, os pontos questionados da matéria de facto têm efectivo suporte na fundamentação, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considerem imporem “decisão diversa”».


«Efectivamente, a recorrente questiona a factualidade considerada assente nos pontos 21 e 23, considerando manifestamente insuficiente a prova em que assenta a convicção do tribunal quanto a tais pontos – fls. 2489. E indica, como prova a reanalisar, as declarações dos arguidos CM; JL e AR; as declarações da ora recorrente AA; depoimentos das testemunhas de acusação MR e MC, agentes da PSP, e ainda os depoimentos das testemunhas de defesa JF, JMF e FT” - fls. 2489 e 2218».


Não obstante o «aprofundado enquadramento teórico», o Exmº magistrado considera que «o acórdão recorrido limita-se à indicada análise crítica das versões e das explicações apresentadas pelos arguidos AA e CM, sendo totalmente omisso quanto às restantes declarações e depoimentos invocados pela recorrente».


«No ponto 6.1. 2 do acórdão, são feitas referências às declarações e depoimentos que o tribunal levou em atenção na formação da sua convicção, nos quais estão abrangidos os elementos indicados pela recorrente. Só que essa parte é mera reprodução de quanto já constava do anterior acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-12-2007, anulado pelo STJ, por acórdão de 14-05-2008 – cf. o confronto entre 2435-2450 e 2163-2178».


Não foi, assim, no entender do Exmº Procurador-Geral Adjunto, «dado cumprimento a quanto no caso se exige, ou seja, usando a linguagem do acórdão do STJ, de 14-05-2008 reexame substitutivo das provas, a (re)fixação ou não dos factos e os meios de prova que, devidamente ponderados, levam a que solução factual é elegível em vez de outra, numa prestação de contas a que o Tribunal superior está adstrito na sua missão de julgar a matéria de facto», com a consequente omissão de pronúncia.

7. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.

8. Nas conclusões da motivação a recorrente suscita de novo, como primeira questão objecto do recurso, a nulidade por omissão de pronúncia do acórdão da Relação no que respeita à impugnação da decisão em matéria de facto.


As relações conhecem de facto e de direito (artigo 428º, nº 1 do CPP), na concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto – reapreciação por um tribunal superior das questões relativas à culpabilidade.
O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe, todavia, uma reapreciação total pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP, na redacção anterior à Lei nº 48/2007, aplicável no caso, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.


Porém, a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida.


A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui, por isso, um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.


Nos limites da impugnação, o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação, não bastando, para tanto, uma referência mais ou menos genérica aos termos da fundamentação da decisão recorrida.


A decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode, pois, resumir-se à afirmação de que foi efectuado o cotejo entre a análise das provas e os termos da fundamentação da decisão recorrida, sendo exigível ao tribunal de recurso que, no caso concreto, formule o seu próprio julgamento sobre a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, resultante da avaliação e da comparação especificada dos meios de prova indicados na decisão recorrida e dos meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem «decisão diversa», para concluir e decidir se a decisão sobre os factos controvertidos tem efectivo suporte nas provas e se o julgamento do tribunal de recurso coincide ou diverge do julgamento da decisão da 1ª instância.


Nesta perspectiva de enquadramento dos poderes (e deveres) de cognição do tribunal da Relação como tribunal de recurso em matéria de facto, o acórdão recorrido tem de ser analisado para verificar se contém suficiente pronúncia relativamente às questões que lhe foram submetidas e que se integrem no perímetro dos seus poderes de cognição na reapreciação da decisão em matéria de facto, nos termos definidos no acórdão do Supremo Tribunal de 14 de Maio de 2008 (fls. 2272 ss.), que se referiu à necessidade de uma «análise» «critica» dos factos, à «verificação do mérito ou demérito dos meios de prova», à sua «credibilidade», como a inerente «intromissão» do tribunal da Relação «no julgamento da matéria de facto».


Os termos da impugnação da decisão em matéria de facto foram delimitados pela recorrente através da identificação dos «pontos de facto» que considerou «incorrectamente julgados». Para decidir sobre esta matéria nos termos em que lhe estava deferidos, o acórdão da Relação deveria analisar cada um dos pontos de facto questionados e apreciar, em juízo e ponderação autónomos pela valoração das provas de que processualmente podia dispor, se tais elementos de prova impunham ou não, segundo a sua própria convicção, um juízo diverso do da decisão recorrida.


Mas a convicção autónoma sobre a sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar concretizadamente; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assumpção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. Com todos os limites ditados pela natureza (de remédio), pelo momento de apreciação (de segunda linha e em suporte estático, não sendo caso de renovação da prova) e pelos termos, modelo e modo de impugnação, a ponderação e a convicção têm de ser autónomas e autonomamente formuladas.
A verificação de que a decisão em matéria de facto tomada pelo tribunal de 1ª instância é racionalmente suportável pelos meios de prova em que se baseou tem, pois, de ser efectuada pelo tribunal de recurso. «Para julgar um recurso de uma decisão sobre matéria de facto, interposto com o fundamento de que tal decisão resulta de uma errada apreciação de depoimentos testemunhais em que se baseou, o tribunal de 2ª instância tem, naturalmente, de proceder à apreciação desses depoimentos. Nessa apreciação, igualmente feita nos termos do princípio da livre apreciação da prova, mas obtida a partir do registo dos depoimentos que a 1ª instância pode valorar com respeito pela regra da imediação, o tribunal de recurso forma a sua própria convicção», que pode «naturalmente» «coincidir ou não com a que se formou na 1ª instância». O mesmo se pode dizer «de outros meios de prova sujeitos à regra da livre apreciação» considerados na 1ª instância e «apontados pelo recorrente como levando a conclusão diversa» (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional, nº 116/07, de 16 de Fevereiro de 2007, no DR, II série, de 23 de Abril de 2007, que julgou inconstitucional a norma do artigo 428º, nº 1 do CPP, «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposta da decisão de facto que o tribunal de 2ª instância se limita a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida transcrita nos autos».


Isto é, uma apreciação que fique aquém deste procedimento metodológico de conhecimento não teria caução de constitucionalidade na interpretação da norma que fixa os poderes de cognição das relações (artigo 428º, nº 1 do CPP).


A este dever de apreciação (reconhece-se que possa ser tarefa complexa e muitas vezes sem efectivos benefícios processuais para os interessados pelo limitação instrumental que está inerente), o acórdão recorrido respondeu de p. 75 a 87 (fls. do processo).


Todavia, não obstante a reformulação e a adição de fundamentos por referência à anterior decisão proferida no processo e anulada (acórdão de 13 de Dezembro de 2007; fls. 2084 ss.), o modo como o acórdão recorrido responde ao objecto do recurso da decisão em matéria de facto mantém-se no essencial, não satisfazendo ainda inteiramente as exigências supostas pelos poderes e deveres de cognição do tribunal de recurso na matéria em causa.


Com efeito, entre os termos da impugnação delimitados pela recorrente e o traçado da decisão sob recurso do tribunal da Relação existem espaços de não confluência. E na exacta medida da não confluência fica um espaço de não pronúncia, com a consequente «omissão».
No que respeita ao objecto do recurso para a Relação que se encontrava delimitado, o acórdão recorrido, no rigor, não seguiu, ou não seguiu inteiramente o procedimento metodológico exigido pela decisão de um recurso da decisão em matéria de facto. Tendo a recorrente indicado os «pontos de facto» que considerou «incorrectamente julgados» e as «provas que impõem decisão diversa da recorrida» (artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b) do CPP)), a reapreciação imposta nos limites da cognição impunha uma ponderação específica dos meios de prova indicados e a fixação do resultado probatório segundo a enunciação dos fundamentos da convicção do próprio tribunal de recurso, isto é, o resultado a que o tribunal de recurso chegasse pela sua «livre convicção» e não pela aceitação da razoabilidade do resultado da livre convicção do tribunal de 1ª instância.


Não bastam, como se salientou, referências genéricas nem a remissão simples para a convicção do tribunal recorrido, ou de que o cotejo das provas foi efectuado.


A opção metodológica do acórdão recorrido suscita, assim, dúvidas sobre a sua adequação para a apreciação do objecto do recurso. Tal opção poderá estar, em boa medida, condicionada pelo pressuposto de que parece partir a decisão e que se manifesta na afirmação de que «o acórdão desta instância que foi anulado tinha analisado as razões pelas quais considera que a recorrente não tem razão no recurso referente à impugnação da matéria de facto assente» (p. 76 do acórdão, fls. 2420) que, aparentando revelar uma divergência com o sentido da decisão do tribunal superior, gera o risco de produzir desvios de método para enfrentar a questão nos exactos termos em que o tribunal superior a delimitou.
De todo o modo, a omissão de pronúncia que está em causa era do acórdão da Relação, por falta de apreciação, nos termos devidos, da impugnação da matéria de facto, e não da decisão da 1ª instância; o objecto do recurso e da necessária pronúncia do tribunal da Relação não será, assim, verificar «se ocorreu omissão de pronúncia» da decisão da 1ª instância, que o acórdão recorrido analisa detidamente de p. 76 (fls. 2420), fine a 83 (fls. 2427), concluindo não vislumbrar «o vício apontado» através da «leitura da decisão recorrida».


Os «pontos de facto» que a recorrente considerou «incorrectamente julgados» são os pontos 21 e 23 da matéria de facto:
«Desde pelo menos meados de Março de 2006 até ao dia 5 de Abril de 2006, os arguidos CM e AA procederam à venda diária de cocaína e heroína a consumidores desses produtos no descampado existente nas traseiras do Mercado Municipal, em Loures, através do arguido JL, conhecido por “Porto”, e da arguida AR, conhecida por “Xana”» - ponto 21.
«Os estupefacientes a vender pelos arguidos AR e JL eram entregues a este pelos arguidos CM e AA ao longo do dia, conforme aqueles os iam vendendo, sendo que para isso o arguido JL se deslocava à barraca de CM e AA, sita no Casal ... – Loures, que dista da sua barraca, onde procediam à venda, cerca de três minutos a pé».


As provas que, na perspectiva da recorrente, «impõem decisão diversa da recorrida», vêm enunciadas nas conclusões da motivação – são as declarações dos arguidos CMs, JL, AR e AA e os depoimentos das testemunhas de acusação MR, MA e da defesa JF, JMF e FT (conclusões 4ª a 26ª da motivação de recurso – fls. 1993-1997).


Perante o thema submetido à cognição do tribunal de recurso nos termos definidos pela recorrente, o acórdão recorrido, referindo «que o tribunal [da 1ª instância] foi exaustivo na apreciação da prova e na sua fundamentação», que «é de facto a partir de todas as provas produzidas em audiência de julgamento que julgador forma a sua convicção; quer daquelas que permitem ter uma percepção directa e formar um juízo imediato sobre os factos imputados aos arguidos, como seja o depoimento das testemunhas com conhecimento presencial dos factos, quer daquelas que, ainda que indirectamente, possam levar a concluir pela verificação desses factos», e que «a prova é apreciada na sua globalidade para efeitos de convencimento e de busca da verdade material», conclui ser «nesta medida» «cristalino e objectivo que a sentença recorrida, fez uma criteriosa análise da prova, apreendendo a essencialidade e o objecto da matéria em litígio» (p. 84; fls. 2428).


Porém, dentro do plano traçado pela lei para o conhecimento do recurso, esta perspectiva, como se salientou, não é adequada como método para a decisão de um recurso em matéria de facto. O plano de conhecimento traçado pela lei supõe uma metodologia que não dispensa a apreciação autónoma das provas nos limites e no âmbito definido pela recorrente no objecto de recurso, dentro das limitações inerentes à natureza do respectivo suporte.


Perante a enunciação, aliás extensa e com a indicação de várias provas referidas e mesmo transcritas na motivação da recorrente e respectivas conclusões, o acórdão recorrido não se pronunciou ou apreciou especificamente qualquer dos meios de prova indicados.
No que respeita à apreciação das declarações da recorrente e do co-arguido CM, produziu apenas considerações genéricas e afirmou rejeições probatórias. Tal juízo pode certamente resultar da convicção íntima que formou sobre os factos controvertidos, mas não está suportado por modelos de avaliação da prova relativamente a cada um dos meios de provas indicados pela recorrente, com projecção e revelação externa, de modo a permitirem seguir o percurso lógico e racional na formação e formulação da convicção segundo as exigência do princípio da livre apreciação.


E – há que acrescentar – a apreciação, genérica, que faz das declarações da recorrente e do co-arguido CM (p. 84-86; fls 2428-2430) refere-se aos factos descritos no ponto 25 da matéria de facto e não aos pontos de facto (pontos 21 e 23) indicados pela recorrente como objecto de recurso em matéria de facto.


Quanto ao restante, não existe qualquer traço de referência e apreciação das declarações das testemunhas indicadas pela recorrente como «provas» «que imporiam decisão diversa».


Neste aspecto essencial, o acórdão sub juditio apenas refere que «ressalta à saciedade que o acórdão recorrido não é omisso quanto à enumeração dos factos provados e não provados com relevo para a decisão da causa», salientando que «a convicção do julgador mostra-se, assim, perfeitamente plausível perante a globalidade da prova, no caso, as declarações dos arguidos, os depoimentos das testemunhas e a prova documental».


E acrescenta: «veja-se que, aliás, o acórdão recorrido debruçou-se sobre as declarações dos co-arguidos e sobre os depoimentos das testemunhas assinaladas no recurso».


Estes são os termos em que o acórdão decidiu o recurso da matéria de facto que lhe foi submetida.


Porém, como resulta do que ficou referido quanto às exigências impostas ao julgamento do recurso em matéria de facto, não basta a afirmação geral do acórdão recorrido quando, como fundamento da decisão, afirma que «assim sendo, porque a matéria assente vertida nos pontos 21 e 23 encontram-se correctamente elencadas de acordo com a produção de toda a prova que foi produzida em julgamento, e, contrariamente ao que vem alegado, não se descortina qualquer nulidade por via de omissão de pronúncia, no acórdão em recurso, pelo que o mesmo deverá ser mantido por não merecer censura ou reparo».


Tal como decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de 14 de Maio de 2008, impor-se-ia um apreciação especificada e concreta das provas indicadas pela recorrente nas conclusões da motivação, que, pela metodologia seguida no acórdão recorrido, não tem suficiente sequela de verificação nos termos supostos pelo objecto de recurso e pelo âmbito dos poderes de cognição em recurso da matéria de facto.


O acórdão recorrido não se pronunciou, pois, no essencial, sobre os termos em que lhes estava deferido o objecto de recurso da decisão em matéria de facto. A omissão integra a nulidade do artigo 379º, nº 1, alínea c), ex vi artigo 425º, nº 2 do CPP.



9.Deste modo, anula-se o acórdão recorrido, baixando o processo para conhecimento do recurso da decisão em matéria de facto nos termos referidos.



Lisboa, 15 de Outubro de 2008


Henriques Gaspar ( relator)
Oliveira Mendes