Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2481/17.4T8BRR.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇAO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
REQUISITOS
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
CULPA
PROGENITOR
PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE MENORES
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DIREITO DE AUDIÇÃO
MENOR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – No âmbito dos processos especiais de promoção e protecção, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça limita-se à apreciação das decisões tomadas de acordo com a legalidade estrita, pelo que pode verificar o respeito pelos pressupostos, processuais e substantivos, do poder de escolher a medida mais conveniente aos interesses a tutelar, bem como o respeito do fim com que tais poderes foram atribuídos, mas não a conveniência ou a oportunidade da escolha.

II - A norma do artº 1978º nº1 al.d) CCiv (ex vi  artº 38º-A LPPCJP) não exige uma verificação de culpa, de vontade consciente ou de imprevisão censurável, por parte dos progenitores, mas antes uma simples situação de impreparação, de falta de aptidão, de inexistência de possibilidade de simbolizar conscientemente a necessidade de criação de vínculos cuidadores.

III – Ainda que se considere que o “comprometimento sério dos vínculos afectivos próprios da filiação”, referido no corpo do artº 1978º nº1 CCiv, é o verdadeiro requisito da confiança com vista a futura adopção, apenas indiciado ou presumido pelas previsões das diversas alíneas citadas do normativo, tais vínculos afectivos não se constituem como uma abstracção, isto é, não constituem vínculos de pertença tout court, mas de cuidado e responsabilização, com recíproca identificação, vínculos esses que podem nascer fora do sangue ou da família natural ou biológica – sendo todavia necessário que uma recíproca vinculação subjectiva nasça e se torne para todos consciente.

IV – Se à data do acordo inicial de acolhimento, os 5 menores estavam em situação de perigo, sem condições dignas de habitação (partilhando com diversos adultos todos os seus espaços), não integrados em estabelecimento de infância, as principais refeições tomadas na cantina social, apresentavam problemas notórios de higiene e atraso no desenvolvimento e na linguagem, o progenitor estava alheado dos filhos e do seu cuidado, e se, passados mais de 3 anos de acolhimento residencial, a situação profissional, habitacional e familiar do agregado parental não tinha registado quaisquer progressos, continuando os progenitores a pugnar pela institucionalização dos menores, pode dizer-se que “os pais, por acção ou omissão, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento dos menores” – artº 1978º nº1 al.d) CCiv.

V – Dos normativos dos artºs 10º nº2 e 84º nºs 1 e 2 LPPCJP não emerge uma regra imperativa que abarque a audição de menores de idade inferior 12 anos – a necessidade da sua audição deve ser casuisticamente apreciada em face de considerações relativas à sua maturidade, com ponderação ainda de outras circunstâncias do caso e do superior interesse da criança.

VI – Se os menores se encontram institucionalizados há mais de 3 anos (perto de 4 anos), inexistindo alternativa à institucionalização, mostra-se sobre o mais premente que se encontre uma solução que defina o seu futuro e evite o prolongamento da situação de acolhimento institucional, a qual passa pela confiança dos menores com vista à sua futura (e eventual) adopção.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça*



Súmula do Processo

O Digno Magistrado do Ministério Público interpôs acção com processo especial de promoção e protecção em favor dos menores AA (n. .../10/2010), BB (n. ..../10/2011), CC (n. .../3/2013), DD (n. .../9/2014) e EE (n. .../12/2016), todos de apelido da FF.

São filhos de GG e de HH, AA e BB acolhidos no Instituto dos ..., no ..., CC, DD e EE acolhidos na instituição ..., no ....

A acção teve por base a falta de condições por parte dos progenitores para assumirem o cuidado das crianças, acolhidas que foram antes na sequência de acordo de promoção e protecção, mas não assumindo, após, os progenitores alternativa para receber e cuidar dos filhos, inexistindo família alargada que o possa fazer.

Pediu a substituição da medida de acolhimento por confiança judicial com vista a futura adopção.

Nas alegações prévias a debate judicial, o defensor das crianças requereu fosse aplicada às mesmas a medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para adopção ou a instituição com vista a futura adopção, prevista no artigo 35º, nº.1, alínea g) da Lei nº147/99 de 1 de Setembro, caso não existisse alternativa válida a apresentar por parte dos progenitores, porquanto é essa a medida que melhor poderá proteger os superiores interesses das crianças.

Foram elaborados pela Segurança Social (Serviço de Assessoria Técnica aos Tribunais) diversos relatórios sociais de promoção e protecção, designadamente os datados de 12/2/2019, 17/4/2019, 13/12/2019 e 9/7/2020.


As Decisões Judiciais

Na Comarca, após debate judicial, foi proferido acórdão, que decidiu pela aplicação a todos os indicados menores a medida de confiança judicial com vista a futura adopção (artº 35º nº1 al.g) LPPCJP), bem como a inibição dos progenitores quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos (artº 1978º-A CCiv), medida para durar até ser decretada adopção, sem estar sujeita a revisão (artº artºs 38º-A al.b) e 62º-A LPPCJP).

Foram nomeadas curadoras provisórias dos menores AA e BB a directora técnica da casa residencial onde estes se encontram acolhidos (Instituto dos ..., no ...) e dos menores CC, DD e EE a directora técnica da casa residencial ondes estes também se encontram acolhidos (Casa de Acolhimento ..., no ...), nos termos do artº 62º-A nºs 3 e 5 LPPCJP), ficando excluídas as visitas por parte da família biológica após o trânsito da decisão (artº 62º-A nº6 LPPCJP).

Inconformados, os progenitores dos menores apresentaram, autonomamente, recursos de apelação.

No conhecimento de tais recursos, a Relação confirmou o acórdão proferido em 1ª instância.

A deliberação da 2ª instância apresentou, porém, um voto de vencido, no sentido de que deveria ter sido prorrogada a medida de promoção e protecção que já vigorava, quanto mais não fosse atendendo à situação pandémica vivida; aliás, entendeu o vencido que, enquanto a ligação entre os filhos e a mãe não regredir, não há o fundamento legal do artº 1978º CCiv para a confiança para adopção.

As Revistas  

Ainda inconformados, a mãe e o pai dos menores recorrem, de novo separadamente, de revista, apresentando as seguintes conclusões:

A Mãe

I. Requerida pelo Ministério Público a instauração de processo judicial de promoção e protecção a favor dos menores AA, BB, CC, DD e EE, foi determinado, por decisão proferida em 31.07.2017, fls (…), a medida provisória de acolhimento, pelo período de um ano, com base na falta de condições por parte dos progenitores para assumir os cuidados destas crianças, não assumindo os mesmos alternativas para receber e cuidar dos filhos, nem existindo família alargada que o possa fazer.

II. Esta medida foi objecto de revisão, tendo por sentença proferida em 24.11.2020, sido decretada a medida de confiança judicial com vista a futura adopção (artigo 35.º n.º 1 alínea g) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, e inibição do exercício das responsabilidades parentais (artigo 1978.º - A do Código Civil).

III. Não se conformando com esta decisão, a progenitora recorreu da mesma para o Tribunal da Relação, que veio confirmar a decisão proferida em 1.ª Instância, com um voto vencido, que aqui se reproduz: «Vencido. Não encontro razão bastante para uma medida tão drástica como a que foi tomada pela 1.ª Instância e se mantém na posição que ora fez vencimento. Trata-se de, invocando o “superior interesse da criança”, tirar a estas crianças a mãe e os irmãos, sem nunca sequer lhes ter sido perguntado o que achavam ou lhes ter sido falado de tal projeto de vida. Dos sucessivos relatórios sociais e dos factos provados resulta que entre as crianças e a mãe existe uma relação filial e afetiva forte, mostrando as crianças o desejo de estar com a mãe e gosto em conviver com os irmãos. O prazo suplementar que no acórdão de 20.05.2019 foi dado aos pais para se reorganizarem caiu em cheio na pandemia, sendo evidente que as condições de vida da mãe sofreram uma relevante degradação, a que o contexto actual não é certamente alheio. Não vejo como se pode considerar ser do interesse destas crianças cortar-lhes o vínculo afetivo, identitário e securizante (como é admitido nos relatórios sociais), que têm com a mãe e os irmãos, que é real e efetivo, para os lançar no vazio de um hipotético relacionamento adotivo. A circunstância de a mãe sofrer de falta de assertividade e de dependência afetiva face ao pai dos seus cinco filhos basta para a afastar crianças e enviá-las para adopção? A lei estipula que vão para adoção as crianças cujos pais não disponham de apoio familiar consistente que lhes permitam assegurar os cuidados dos filhos? Trata-se de uma mãe de fracos recursos, a braços com uma família numerosa que, conforme resulta dos relatórios sociais e está provado, tem lutado para subsistir, arranjando sucessivos empregos (aquando da intervenção inicial estava desempregada), que a dada altura conseguiu melhorar as condições habitacionais que tinha face à situação inicial, mas que não conta com o apoio do progenitor das crianças – embora conte, conforme resulta dos relatórios sociais, com a ajuda de algumas pessoas amigas. O facto de a mãe se ter candidatado a uma habitação social tipo T0 e não a uma habitação adequada a uma família numeroso, suscita interrogações que, por não esclarecidas, não constituem base para uma decisão como a que fez vencimento. Situações destas, de famílias numerosas, têm de beneficiar de um apoio estatal reforçado. Creio que se deveria prorrogar a medida de promoção e proteção que já vigora, quanto mais não seja atendendo à atual situação de pandemia. E enquanto a ligação entre os filhos e a mãe não regredir, não há fundamento legal (art.º 1978 do Código Civil) para a confiança para adoção. Embora a situação não seja a mais desejável, as crianças estão bem adaptadas às instituições onde se encontram – ponto é que se mantenham os contactos regulares com a mãe e entre elas e, se possível, com o pai (que também recorreu e manifestou – agora – interesse nas crianças) e se vá forcejando por que as condições dos progenitores se alteram para melhor, com o apoio das instituições. Com base nestas considerações concederia provimento às apelações.»

IV. É facto assente que as crianças se encontram acolhidas desde 01.08.2017, ou seja, há cerca três anos e cinco meses, a AA e o BB no Instituto dos ..., no ..., o CC a DD e a EE no ..., no

....

V. No entanto, não podemos deixar de referir que o ano de 2020 (e início de 2021) foi marcado pela pandemia provocada pelo vírus Covid 19, o que deixou muitas famílias com a vida em suspenso, e muitas em situação de desespero económico, social e profissional.

VI. Se é verdade que o tempo dos adultos não é o tempo das crianças, não podemos negar que o País e o Mundo atravessam uma situação atípica que deveria de ter sido levada em consideração pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal recorrido.

VII. A medida de confiança com vista a futura adopção exige que não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, nomeadamente se os pais tiverem abandonado a criança ou se, por acção ou por omissão, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do filho, ou sendo este acolhido por particular ou instituição, tiverem revelado manifesto desinteresse pelo mesmo, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança (artigos 38.º - A da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e 1978.º do Código Civil).

VIII. A aplicação desta medida tem que assentar no preclaro abandono dos progenitores, ou seja no rompimento dos laços de filiação biológica por parte dos pais, e só quando se tiver a certeza de que esta relação parental se esvaziou de forma absoluta é que se poderá encetar o caminho destinado à procura de saber se a adopção é a melhor medida para a criança, (neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – processo 8605/13.3TBCSC.L1.S1).

IX. A medida aplicada e da qual se recorre não respeitou os princípios de proporcionalidade e necessidade e ainda de atualidade e da adequação, nem respeitou, como devia, os interesses dos menores.

X. Com efeito, a decisão de institucionalização com vista a adopção tem que surgir como recurso único e último, depois de esgotadas todas as hipóteses previstas no artigo 35.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e preenchida alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil, que não se verifica na situação em apreço, na medida em que, não demonstra a decisão recorrida a inviabilização de alternativas válidas e eficazes, e/ou rompimento dos laços de filiação biológica por parte dos pais, ou neste caso específico, da mãe.

XI. As crianças não se encontram em situação de perigo, estão estáveis e integradas nas respetivas instituições onde estão acolhidas, sendo certo que, a aplicação da medida provisória de acolhimento não resultou da existência de um perigo grave para a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento das mesmas, apenas a falta de condições de habitabilidade por constrangimentos económicas dos progenitores.

XII. Resulta provado, dos diversos relatórios, que a mãe das crianças, aqui recorrente, nutre por elas amor e preocupação, o que se demonstrou pela regularidade das visitas que fez aos seus filhos, e do acompanhamento que foi fazendo mesmo à distância resultante das restrições impostas pelo Estado de Emergência e os menores nutrem afeto pela mãe e pelos irmãos, mostrando contentamento e felicidade quando estão juntos.

XIII. O próprio relatório da perícia médico legal realizado à progenitora conclui que “fora dos constrangimentos económicos e materiais, e se apoiada por supervisão psicossocial dos serviços, teria provavelmente capacidade de autonomia psicológica para assumir sozinha os cuidados aos menores”.

XIV. Face ao exposto, deveria o douto Tribunal a quo ter tomado uma decisão diversa da aplicada que visa a separação destas crianças da progenitora com quem partilham laços fortes de afetividade, e futuramente, quem sabe, a separação destes cincos irmão em famílias diversas, quebrando-se igualmente e irreversivelmente as ligações afetivas entre os mesmos, nomeadamente a prorrogação da medida provisória de acolhimento, reforçando-se o acompanhamento da progenitora pelos serviços técnicos, designadamente pelo Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental, tal como sugerido no relatório da perícia médico legal realizado à progenitora.

O Pai

I. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão de fls… dos autos, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de ..., ... Secção, no âmbito do Processo de Promoção e Protecção n.º 2481/17.4... que, nos termos da fundamentação nele constante, confirmou o acórdão recorrido, e em cuja decisão, em Primeira Instância, fora decidido aplicar aos menores AA, BB, CC, DD e EE, a medida de confiança judicial com vista a futura adopção, nos termos do disposto no art.º 35.º, n.º 1, al. g) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e, determinando ainda que, com aquela decisão, ficassem os progenitores inibidos do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos ( art.º 1978.º-A do Código Civil).

II. Vindo a concluir o douto acórdão que o veio a confirmar, e que fez vencimento, que seria de manter a decisão recorrida, porquanto se afigurar “… adequada a medida decidida, atento os interesses das crianças…”.

III. Não obstante, verifica-se in casu, a existência de voto vencido, e por força do qual e das respectivas considerações se “… concederia provimento às apelações.”

IV. No âmbito dos processos de jurisdição voluntária atender-se-á à apreciação das decisões enquanto aplicam lei estrita: é, nomeadamente, o que sucede, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.

V. O recorrente entende, assim, e por total concordância com as razões aduzidas no voto vencido, que o douto acórdão recorrido, e que fez vencimento, violou os pressupostos imperativamente fixados por lei para que possa ser determinada a medida de confiança para adopção, ficando as cinco crianças, com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos, à guarda das instituições onde se encontram actualmente, e não respeitou os princípios básicos da proporcionalidade, da prevalência da família, da responsabilidade parental, e ainda da actualidade e da adequação, nem respeitou, como devia, o superior interesse dos menores.

VI. A aplicação da medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção, prevista no art.º 35, n.° 1, al g) da LPCJP, para além da verificação dos pressupostos contidos no art.º 1978° do Código Civil, impõe que aos pais dos menores sejam dadas todas as garantias e direitos de que dispõem.

VII. Sendo o pressuposto genérico da medida a inexistência ou o sério comprometimento dos “vínculos afectivos próprios da filiação” ( corpo no n.º 1 do art.º 1978.º do CPC), e só pode ser decidida nas situações descritas nas diversas alíneas do mesmo n.º 1, objectivamente avaliadas.

VIII. Mantendo-se a matéria de facto dada como provada no douto acórdão que fez vencimento, viria o douto Tribunal da Relação a considerar, que a análise daquela e da fundamentação de facto e de direito constante do acórdão recorrido, que a medida aplicada à fratria das cinco crianças se mostrava assim perfeitamente ajustada ao condicionalismo que rodeia toda a situação envolvente!

IX. Vindo a considerar que, por referência aos progenitores “a situação pouco se alterou.”

X. Mas alterou, assim como o mundo também alterou! As circunstâncias de vida das famílias, sobretudo as mais carenciadas, em face da pandemia que vivenciamos há mais de um ano, foi de feição a espartilhar ainda mais as oportunidades, quer a nível de acompanhamento técnico a fomentar junto dos pais, quer de melhoria das condições de vida destes.

XI. Os contactos com os menores também se mostraram restringidos, despersonalizados, por intermédio unicamente em largos meses de vídeo chamadas, por vezes pela janela.

XII. Considerar como veio a fazer o douto Tribunal da Relação “… que os progenitores não dispõem das competências necessárias para garantir aos menores as condições de vida minimamente adequadas, muito embora a mãe revele algum sentimento de pertença e afecto pelos filhos. Não se descortina, por outro lado, que tenha(m) capacidade para inverter essa situação.”

XIII. E sem que se mostrem, assim, em nosso entendimento, e salvo melhor e mui douto entendimento, já esgotadas à luz das circunstâncias actuais, e dos seus condicionalismos, todas as ferramentas que possam socorrer os progenitores, mas que, com a manutenção da medida de acolhimento em instituição, já pudessem vir a assumir.

XIV. Pelas idades dos menores mais velhos, apresentar-se-ia factor atendível, inclusive, a audição dos mesmos, de forma a apurar a sua projecção sobre os pais.

XV. E, como bem referido no voto vencido, “embora a actual situação não seja a mais desejável, as crianças estão bem adaptadas às instituições onde se encontram- ponto é que se mantenham os contactos regulares com a mãe e entre elas e, se possível, com o pai ( que também recorreu e manifestou- agora- interesse nas crianças) e se vá forcejando por que as condições dos progenitores se alterem para melhor, com o apoio das instituições.”

XVI. Entendemos que nos presentes autos não foram seguidos os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e protecção das crianças e jovens em perigo, designadamente o do superior interesse das crianças, segundo o art. 3.º, n° 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança e em nosso entender é do interesse destas crianças que a sociedade use de todos os meios ao seu alcance na recuperação desta família, cujas falhas não são inultrapassáveis se houver coerência nos métodos de ajuda.

XVII. In casu, a adopção não visará realizar o superior interesse das crianças, não apresenta reais vantagens para os adoptandos e não se suporta em motivos legítimos.

XVIII. Inexistindo, segundo o voto vencido, tese que subscrevemos por inteiro, fundamento legal.

XIX. Conclui-se, pois não estarem reunidas as condições para a criança poder ser confiada com vista à adopção, uma vez que não estão verificadas as condições previstas no artigo 1978.°, n.° 1. alíneas d) e e) do Código Civil.

XX. Devendo-se, outrossim, prorrogar a medida de promoção e protecção que já vigorava, e que, na expectativa também, do afastamento da situação pandémica que se prevê, permitirá aos progenitores adquirir e fortalecer competências parentais nas diversas dimensões da vida familiar e compreenderá níveis diferenciados de intervenção de cariz pedagógico e psicossocial que, de acordo com as características das famílias, integram as modalidades de preservação familiar e reunificação familiar, que visam o regresso da criança ou do jovem ao seu meio familiar, designadamente nos casos de acolhimento em instituição ou em família de acolhimento, através de uma intervenção focalizada e intensiva que pode decorrer em espaço domiciliário e ou comunitário (Portaria n.° 139/2013 de 2 de Abril - art.° 8.º), fomentando a passagem, logo que as restrições suscitadas pela pandemia sejam levantadas, de fins-de-semana com os progenitores e ainda épocas festivas e aniversário.

XXI. E colhendo, se possível, a voz dos menores, designadamente os mais velhos, quanto ao projecto de vida.


O Digno Magistrado do Ministério Público pugna pela confirmação do acórdão recorrido.

São os seguintes os Factos Provados no processo:

1) AA nasceu em .../10/2010, na freguesia de ..., concelho de ... e é filha de GG e é filha de GG e de HH (fls. 869 e 870).

2) BB nasceu em .../10/2011, na freguesia e concelho do ... e é filha de GG e é filha de GG e de HH (fls. 871 e 872).

3) CC nasceu em .../3/2013, na freguesia e concelho do ... e é filho de GG e é filha de GG e de HH (fls. 873 e 874).

4) DD nasceu em .../9/2014, na freguesia de ... e CC, concelho do ... e é filha de GG e é filha de GG e de HH (fls. 875 e 876).

5) EE nasceu em .../11/2016, na freguesia de ..., concelho do ... e é filha de GG e é filha de GG e de HH (fls. 877 e 878).

6) Aquando da sinalização, as crianças viviam com os pais e com a avó paterna (II) e um tio, numa habitação arrendada, constituída por uma casa térrea, com 2 quartos, sala e uma divisão utilizada como quarto, cozinha, casa de banho e um pequeno quintal.

7) A casa não apresentava condições de habitabilidade, arrumação e limpeza, sendo evidenciada em visita domiciliária uma total desorganização, sendo dotada de electricidade, mas estando com a água cortada há algumas semanas por iniciativa do senhorio, com base na falta de pagamento de rendas (no valor mensal de € 270,00).

8) Durante a visita domiciliária, não foi dada qualquer explicação congruente sobre os locais onde dormiam as crianças.

9) O progenitor exercia actividade profissional irregular (biscates) numa oficina, auferindo uma remuneração mensal de cerca de € 800,00 e a progenitora estava desempregada, recebendo o agregado familiar prestações familiares no valor de € 386,00 e um apoio do avô materno no valor de € 100,00.

10) A avó materna exercia actividade como auxiliar de limpeza e o tio trabalhava na construção civil, não se conseguindo apurar os rendimentos destes.

11) As crianças não estavam integradas em qualquer estabelecimento de infância, efectuando as refeições principais na cantina social, com excepção do pequeno almoço e dos lanches, evidenciando problemas ao nível dos cuidados de higiene (unhas e cabelos).

12) Apresentavam atrasos no desenvolvimento, nomeadamente ao nível da linguagem e não se verificava uma contribuição equilibrada para as despesas de gestão doméstica e rotinas dos filhos, sendo o progenitor completamente ausente destas rotinas ou pouco inteirado das necessidades de cada um, não sabendo identificar as datas de nascimento e as idades dos filhos.

13) O pai assumia que delegava essas funções na mãe, a qual se encontrava sobrecarregada em gerir as necessidades dos filhos, assumindo encontrar-se desgastada e pouco apoiada pelo companheiro e pela avó paterna, sabendo identificar as necessidades dos filhos e evidenciando afecto relativamente a estes, os quais também demonstravam o seu afecto relativamente à progenitora.

14) Por decisão proferida em 31/7/2017, foi homologado acordo de promoção e protecção relativamente aos menores, sendo aplicada a favor dos menores AA e BB medida de acolhimento residencial, pelo período de 1 ano, na Casa de Acolhimento Instituto dos .... No ..., e aos menores CC, DD e EE, na Casa de Acolhimento Residencial ..., no ..., sendo esta revista semestralmente, mediante o acompanhamento da equipa técnica multidisciplinar de apoio ao tribunal (fls. 576 a 580, 583 e 584).

15) No referido acordo, ficaram fixadas as seguintes obrigações para os progenitores (fls. 576 a 580, 583 e 584):

- Manter contactos e visitas às crianças, de acordo com os horários e regras das casas de acolhimento;

- manter contactos telefónicos com as equipas técnicas, no sentido de estarem inteirados das rotinas dos filhos e das suas necessidades;

- reorganizarem a sua condição de vida no que concerne à situação económica, habitacional e social, no sentido de criarem condições adequadas a um eventual retorno das crianças ao meio familiar;

- recorrer aos serviços sociais da comunidade, no sentido de solicitarem os apoios necessários para que possam reorganizar a sua condição de vida;

- caso a progenitora pretenda autonomizar-se, deverá solicitar apoio junto dos serviços sociais e da técnica da equipa multidisciplinar.

16) Foram também fixadas as seguintes obrigações para as casas de acolhimento (fls. 576 a 580, 583 e 584):

- proporcionarem a estabilidade e as condições essenciais para o bem-estar das crianças;

- prestarem os cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação;

- providenciarem pelo acompanhamento em consultas de saúde infantil, vacinação e consultas de especialidade, consoante as necessidades;

- garantirem a frequência em estabelecimento de infância adequado às idades das crianças, no sentido de promover uma maior estimulação, contactos com outras crianças e desenvolvimento das competências pessoais e sociais;

- articularem em proximidade com a família, avaliando a periodicidade e qualidade dos contactos e visitas dos pais e familiares de especial relevância às crianças, no contexto residencial.

17) Por decisão proferida em 9/5/2018, a medida de promoção e protecção aplicada a favor de AA, BB, CC, DD e EE foi mantida, mediante o cumprimento das obrigações estabelecidas no plano de intervenção apresentado pela segurança social (fls. 628 a 838, 645 e 646).

18) Por decisão proferida em 10/8/2018, a medida de promoção e protecção aplicada a favor de AA, BB, CC, DD e EE foi prorrogada por mais 6 meses, determinando-se ainda a suspensão das visitas durante os fins-de-semana e férias (fls. 666 a 669, 676 e 677).

19) Por despacho proferido em 17/10/2018, foram retomadas as visitas em meio familiar das crianças, junto dos pais (fls. 733).

20) Aquando da última decisão de prorrogação da medida, os progenitores viviam num apartamento suportando uma renda mensal de € 550,00, sendo o pagamento suportado pelos pais e avó paterna das crianças.

21) O agregado familiar era também constituído pelo tio paterno, com 18 anos de idade, dispondo o apartamento de 3 quartos, sala, cozinha e duas casas de banho, não dispondo de frigorífico.

22) A progenitora exercia actividade profissional numa fábrica de enchidos no ..., efectuando horário nos dias úteis entre as 8h e as 16h e 30m.

23) É a progenitora a única que continua a comparecer nas sessões do ....

24) O progenitor apenas efectuou três ou quatro visitas aos filhos nas casas de acolhimento.

25) A progenitora efectua regularmente essas visitas, existindo afectividade entre esta e os filhos.

26) Por acórdão proferido em 20/5/2019, foi prorrogada a medida de acolhimento residencial a favor das crianças, com as seguintes obrigações para as instituições acolhedoras (Instituto dos ... e ...) – fls. 881 a 893:

- Proporcionarem, estimularem e acompanharem o desenvolvimento das crianças aos seus cuidados, proporcionando-lhes que cresçam num ambiente de tranquilidade emocional e afectiva;

- acompanharem o percurso escolar das crianças, bem como assegurar as condições necessárias à sua educação;

- cumprirem o acompanhamento das crianças às consultas médicas, de modo a assegurar-lhes uma adequada e efectiva vigilância médica;

- assegurarem os contactos pessoais das crianças com os progenitores e com outras pessoas com quem aquelas tenham relações afectivas, com uma regularidade mínima semanal, prestando ainda as informações que lhes sejam solicitadas pelos pais das crianças;

- avaliarem os contactos pessoais das crianças com os progenitores durante as visitas presenciais efectuadas, designadamente o relacionamento afectivo e a adequação dos cuidados prestados, de forma a poder aferir se são desenvolvidos os vínculos afectivos e os cuidados próprios da filiação;

- fornecerem à equipa técnica multidisciplinar da segurança social os elementos necessários para a avaliação trimestral e final desta medida, incluindo expressamente as informações pertinentes e necessárias em função das obrigações estabelecidas;

- informarem a segurança social e o tribunal de qualquer alteração relevante na vida das crianças confiadas aos seus cuidados.

27) Na mesma decisão, foram ainda estabelecidas as seguintes obrigações para os pais:

- Obterem ou garantirem as condições habitacionais para ter os filhos consigo, devendo a habitação dispor, pelo menos, de um quarto para o casal  ou para os elementos adultos, um quarto para as raparigas (AA, DD e EE) e um quarto para os rapazes (BB e CC);

- garantirem as condições de habitabilidade, higiene e organização da habitação;

- garantirem a obtenção de meios de subsistência, quer através do exercício de actividade laboral, quer através da obtenção de apoios sociais em caso de desemprego ou motivo semelhante;

-  caso se perspective a possibilidade de regresso dos filhos ao agregado familiar, providenciarem pela inscrições destes em estabelecimento de ensino ou de educação pré-escolar, garantindo a sua frequência com assiduidade e pontualidade;

- efectuarem as visitas regulares aos filhos ou contactarem regularmente com as instituições onde estes se mostrem acolhidos;

- submeterem-se a avaliação psicológica determinada pelo tribunal e colaborarem com os técnicos e com as demais entidades envolvidas;

- cumprirem em conjunto as obrigações decorrentes do plano de intervenção da medida de promoção e protecção, sem prejuízo da iniciativa de qualquer um deles resolver assumir um projecto autónomo relativamente aos filhos;

- informarem a segurança social e o tribunal de qualquer alteração relevante no processo educativo ou de desenvolvimento dos filhos ou do seu agregado familiar.

28) E foram estabelecidas as seguintes obrigações para a equipa técnica multidisciplinar da segurança social:

- Assegurar o acompanhamento da medida, articulando o cumprimento da mesma com o Instituto dos ..., a Casa de Acolhimento ... e outras entidades que possam ter intervenção no âmbito do projecto de vida destas crianças;

- prestar aos progenitores o apoio necessário para o cumprimento da medida ou efectuar o seu encaminhamento para a entidade competente;

- prestar aos progenitores o apoio necessário e o eventual encaminhamento para a realização da avaliação psicológica, caso sejam evidenciadas dificuldades que o justifiquem.

29) No âmbito do relatório de perícia médico-legal realizado à progenitora, este concluiu que esta não sofre de qualquer patologia, manifestando condições psicológicas para ter consigo os filhos e não apresentando qualquer limitação na capacidade de compreensão e integração de regras e normas sociais ou perturbações ao nível da personalidade, apresentando como pontos fortes variáveis afectivas, cognitivas e sociais relacionadas com a capacidade para estabelecer relações adequadas no cuidado a menores, nomeadamente flexibilidade, altruísmo, empatia e equilíbrio emocional, apresentando como pontos fracos défices nalgumas daquelas variáveis, tais como assertividade, autoridade pessoal, independência, autoestima e capacidade para resolver problemas tomando decisões acertadas  em função de planeamento, possuindo capacidade para reconhecer as necessidades dos filhos, embora a capacidade de as satisfazer esteja condicionada por diminuição de componentes como assertividade, autoridade pessoal, independência e resolução de problemas, evidenciando um vínculo afectivo forte com os filhos, possuindo aparentemente capacidade para partilhar e assumir os cuidados dos filhos, embora deparando-se com uma atitude de não envolvimento por parte do progenitor, referindo ainda uma dependência económica face ao marido e dificuldade em autonomizar-se, com traços pessoais de submissão, retraimento e baixa autoconfiança, comportando aspectos de dependência emocional, procurando segurança compensatória numa relação de suporte e apoio emocionais (fls. 914 a 917v.).

30) O progenitor não compareceu aos exames periciais realizados.

31) Os progenitores estão actualmente separados, sendo a progenitora a única que continua a realizar visitas regulares aos filhos.

32) O progenitor demitiu-se da vida dos filhos, não tendo encetado qualquer esforço no sentido de manter os convívios com os filhos e reorganizar a sua vida para os ter consigo.

33) A progenitora continua a evidenciar dificuldades em incrementar procedimentos educativos consistentes e assertivos durante as visitas aos filhos, subsistindo apenas o aspecto afectivo.

34) Exerce actividade profissional em termos parciais, auferindo cerca de € 350,00 mensais e estando em risco de perder a habitação onde reside, por falta de pagamento das rendas.

35) Nenhum dos progenitores dispõe de apoio familiar consistente que lhes permita assegurar os cuidados aos filhos.


Conhecendo:


I


A questão substancial colocada pelos recursos visa saber se existe nos autos uma verdadeira ausência da caracterização de uma situação de perigo para a fratria de cinco crianças, nos termos do disposto nos artºs 3º LPCJP e 1978º CCiv e uma não comprovação da “não existência ou do sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação”, conforme exigido pelo nº1 do artº 1978º CCiv.

Trata-se da apreciação da decisão recorrida enquanto aplicadora de lei estrita e, como assim, autorizando recurso de revista – recurso não autorizado na apreciação de resoluções tomadas com base em simples critérios de conveniência ou oportunidade (cf. Ac.S.T.J. 21/5/2020 Col.II/76 – Nuno Pinto Oliveira), i.e., implicando a apreciação da decisão recorrida mediante critérios alheios a um juízo prudencial e casuístico, iluminado por considerações de conveniência ou oportunidade, a propósito do caso concreto – S.T.J. 22/4/2015, pº 17892/12.3T2SNT.L1.S1 (Maria Clara Sottomayor).

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no julgamento de recursos interpostos no respectivo âmbito limita-se, assim, à apreciação das decisões tomadas de acordo com a legalidade estrita – Ac.S.T.J. 28/2/2008, pº 07B4681 (Maria dos Prazeres Beleza).

Nomeadamente, pode verificar o respeito pelos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida mais conveniente aos interesses a tutelar, bem como o respeito do fim com que tais poderes foram atribuídos aos tribunais, mas não a conveniência ou a oportunidade daquela escolha.

No caso, a revista pode pronunciar-se sobre os requisitos legalmente exigidos para que possa ser decretada a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, analisados do ponto de vista que deve prevalecer, e que é o da protecção dos interesses do menor.

Reconhece-se que todas as medidas de promoção e protecção pressupõem:

- uma determinada situação de perigo;

- proporcionar condições para a promoção da segurança, saúde, formação, educação, bem-estar, desenvolvimento integral;

- a garantia de recuperação física ou psicológica das crianças (artº 34º LPPCJP).

Nesse sentido, a ponderação de medidas de promoção e protecção possui alguma porosidade entre as diversas medidas, que passa “não tanto pela constatação das dificuldades parentais, mas sobretudo”:

“a) pela avaliação e constatação da impossibilidade de mudança do comportamento parental (…);”

“b) pela ponderação do que é mais ameaçador para o desenvolvimento da criança, se a permanência num contexto familiar caracterizado por dificuldades e inconsistências da parentalidade, aliadas a alguma negligência, se o corte de uma filiação que, embora atribulada, constitui uma referência num percurso desenvolvimental marcado por uma ou mais rupturas” (Madalena Alarcão, Incumprimentos da Parentalidade, RMP, 116º/125).

Procuraremos, todavia, o alheamento do juízo prudencial, fixando-nos nas normas legais que permitem o acolhimento e encaminhamento para a adopção.


II


Como quadro geral, e suporte para o raciocínio de aplicação ao caso, temos de atender às convenções internacionais vinculantes do Estado Português, à Constituição da República e à lei.

A Convenção Sobre os Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (20/11/89, publicada em D.R., Is., de 12/9/90), estabelece que todas as decisões relativas a crianças, adoptadas, entre outros, pelos tribunais, deverão ter em conta, acima do mais, o interesse superior da criança – artº 3º nº1.

Este superior interesse será a consideração primeira no domínio da “adopção” – artº 21º.

Só este interesse pode justificar a separação da criança de seus pais, contra a vontade destes, em casos exemplificados de maus tratos ou negligência – artº 9º nº1.

Os Estados comprometeram-se a respeitar as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e a assegurar, na máxima medida, a sobrevivência e o desenvolvimento da criança e a garantirem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes o decidirem, sem prejuízo de revisão judicial, em face do superior interesse da criança, designadamente nos casos de maus tratos e de negligência.

Os pais, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, asseguram as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança – artº 27º nº2 da Convenção.

Já a Constituição refere que os filhos só poderão ser separados dos pais quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com aqueles, sempre mediando decisão judicial – artº 36º.

As crianças têm o direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono (…), devendo o Estado assegurar protecção às crianças por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal – artº 69º.

A Constituição vê na família um elemento fundamental da sociedade – artº 67º.

Em face do disposto no artº 3º nº1 LPPCJP (Lei de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo – Lei nº147/99 de 1/9), a intervenção para a promoção dos direitos da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais (…) ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou jovem, e que aqueles se não oponham de modo adequado a removê-lo.

O nº2 do artº 3º LPPCJP exemplifica várias situações que podem configurar a de criança em perigo, salientando-se que não se mostra a necessidade de que ocorra efectiva lesão, bastando tão só um perigo iminente ou provável.

Entre essas situações exemplificadas encontra-se a da criança sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional – artº 3º nº2 al.f).

Os princípios orientadores da intervenção constam do artº 4º, salientando-se o interesse superior da criança e do jovem (sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto) – artº 4º al.a).

A intervenção deverá ser precoce (efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida), proporcional e actual (necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada, só cabendo interferir na sua vida e na da sua família na medida em que for estritamente necessário a essa finalidade) – artº 4º als. c) e e) LPCJP.

Avultam ainda os princípios da responsabilidade parental e da prevalência da família (artº 4º als. f) e g), no sentido de que a intervenção deverá ser orientada para que os pais assumam os seus deveres para com a criança, devendo ser dada prevalência a medidas que integrem o menor na sua família, em detrimento das medidas de colocação familiar ou institucional.

O artº 35º estabelece diversas medidas de promoção e protecção, a saber: a) Apoio junto dos pais; b) Apoio junto de outro familiar; c) Confiança a pessoa idónea; d) Apoio para a autonomia de vida; e) Acolhimento familiar; f) Acolhimento em instituição; g) Confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição, com vista a futura adopção.

Esta última medida, em causa nos autos (de “confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição, com vista a futura adopção”) é aplicável no caso de se revelarem inadequadas as restantes medidas.

O artº 38º-A LPPCJP remete para o disposto no artº 1978º nº1 CCiv, norma considerando que, para a aplicação da medida em análise, devem não existir ou encontrar-se seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:

a) Se o menor for filho de pais incógnitos ou falecidos;

b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;

c) Se os pais tiverem abandonado o menor;

d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor;

e) Se os pais do menor, acolhido por particular ou por uma instituição tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante pelos menos os três meses que precederam o pedido de confiança.

A al. d) citada coloca, ao lado de situações reveladoras de dolo ou de negligência, as que resultam de verdadeira incapacidade devida a razões de “saúde mental”, indiciadas por situações “objectivas”, como aludido no corpo do nº1 da norma em causa, portanto despidas da culpa ou da responsabilidade subjectiva dos pais.

O artº 1978º CCiv vigora na redacção da Lei nº 31/2003 de 21/8, diploma elaborado porque o legislador considerava inaceitável o facto de 11.300 crianças viverem em instituições ou em famílias de acolhimento, quando existem muitas famílias capazes e disponíveis para adoptar, sem que o logrem fazer em tempo útil – e posto que  a institucionalização da criança não é uma solução ou um projecto de vida, antes uma medida de protecção de natureza temporária.

Assim, quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e securizante com a criança, impõe a Constituição que se salvaguarde o superior interesse da criança, particularmente através da adopção – realçou, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 57/IX, que deu origem à Lei nº 31/03, o Ac.S.T.J. 30/11/04 Col.III/130 (Azevedo Ramos).


III


Cabe-nos então olhar para a factualidade dos autos e verificar se a mesma preenche os requisitos do disposto no artº 1978º nº1 CCiv.

As medidas de promoção e protecção iniciaram-se na CPCJ do ..., com apoio junto dos pais.

À data do início da instrução do processo em juízo, em Julho de 2017, os membros da fratria tinham entre 6 anos de idade (a mais velha) e 8 meses de idade (a mais nova). Hoje possuem 10 anos (AA), 9 anos (BB), 7 anos (CC), 6 anos (DD) e 4 anos (EE).

Revelavam carências notórias quanto à sua situação de saúde (consultas e plano de vacinação por realizar), deficiências notórias de higiene, atraso no desenvolvimento, quanto à linguagem e à estimulação.

Como se nota dos factos provados 11 e 12, “as crianças não estavam integradas em qualquer estabelecimento de infância, efectuando as refeições principais na cantina social, com excepção do pequeno almoço e dos lanches, evidenciando problemas ao nível dos cuidados de higiene (unhas e cabelos) e apresentavam atrasos no desenvolvimento, nomeadamente ao nível da linguagem e não se verificava uma contribuição equilibrada para as despesas de gestão doméstica e rotinas dos filhos, sendo o progenitor completamente ausente destas rotinas ou pouco inteirado das necessidades de cada um, não sabendo identificar as datas de nascimento e as idades dos filhos”.

Portanto, a cantina social providenciava duas refeições diárias e higiene pessoal (banhos), o espaço habitacional (sala e 2 quartos) abrigava as cinco crianças, mais o casal dos progenitores, a avó paterna e dois tios das crianças (irmãos do pai, de 21 e 17 anos de idade). Nestas circunstâncias, alguns dos menores partilhavam quarto e/ou cama com adultos. A organização do espaço residencial era caótica. A habitação não tinha água corrente.

O progenitor era alheio à educação e ao passadio geral de vida do agregado, incluindo os filhos.

Os rendimentos do agregado passavam substancialmente por apoios sociais, de escassa expressão.

As crianças eram afectivamente dependentes da mãe, mas a tonalidade afectiva da mãe era de matiz abandónico, ou seja, pouco activa e interactiva com os filhos, por sua vez apresentando uma dependência ideal, seja do marido, seja da família de origem do marido (mãe do marido e irmãos dele).

Existia portanto o perigo grave denunciado na norma do artº 1978º nº1 al. d) CCiv - pode dizer-se que “os pais, por acção ou omissão, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento dos menores”.

Corroboramos, aliás, os pontos da matéria de facto sublinhados no acórdão recorrido: à data do acordo inicial de acolhimento, os menores não estavam integrados em estabelecimento de infância; as principais refeições eram tomadas na cantina social; apresentavam problemas notórios de higiene e atraso no desenvolvimento e na linguagem; o progenitor estava alheado dos filhos e do seu cuidado.

Em 27/7/2017, o acordo de promoção e protecção instituiu a medida de acolhimento residencial em instituição para os cinco irmãos – os dois mais velhos acolhidos numa das instituições, os três mais novos em outra instituição.

Pode afirmar-se que, fora de dúvida, as crianças, assim colocadas em instituições passaram a ter acompanhamento escolar e também médico – aqui sobretudo quanto à AA (mais velha, acompanhada em terapia ocupacional, da fala e psicológica), e, no grupo dos mais novos, ao CC (acompanhado em terapia da fala), à DD (acompanhada em terapia da fala e oftalmológica) e à EE (preparando-se para seguimento em oftalmologia).

A situação de saúde e acompanhamento escolar melhorou porque as crianças foram retiradas do meio familiar e acolhidas nas instituições.

Nos cerca de três anos até à última informação da assessoria técnica ao tribunal (e nos cerca de três anos e quatro meses até à decisão em 1ª instância) a situação habitacional, de desresponsabilização do pai e de dependência emocional da mãe perante o marido e perante os membros da família de origem deste marido não se alterou, pese a constante sensibilização dos técnicos para a necessidade de mudança de estilo de vida de ambos os progenitores.

O pai das crianças demonstrou total alheamento no decurso do processo, visitando os filhos apenas por três vezes e faltando à avaliação psicológica designada, em medicina legal.

Mantiveram-se as carências de habitação (com acumulação de dívidas de rendas) e a dependência emocional da mãe face ao pai e ao agregado de origem do pai, de que nem o pai nem a mãe das crianças se pretendem separar.

Pese embora as visitas regulares da mãe aos locais de acolhimento das crianças, a interacção entre progenitora e filhos era de pouca consistência, revelando a carência afectiva da mãe.

Dos diversos relatórios apresentados no processo pela Equipa Multidisciplinar de Assessoria Técnica aos Tribunais, o último, datado de 10/7/2020, concluía pela alteração da medida de acolhimento residencial, no sentido da aplicação, agora, da medida de confiança a instituição com vista à adopção, prevista no artº 35º nº1 al.g) LPPCJP.

E dizia:

“As acções contempladas no plano de intervenção relativas às necessidades das crianças ao nível do se desenvolvimento, saúde, cuidados básicos e necessidades escolares estão devidamente garantidas pelas respectivas equipas das casas residenciais e serviços de 1ª linha.”

“Verifica-se uma total demissão do progenitor da vida das crianças, não tendo encetado quaisquer esforços no sentido de manter convívios com os filhos e reorganizar a sua condição de vida.”

“A frequência das visitas/convívios com a mãe revela-se um facto de protecção consistente, sendo o principal aspecto que foi cumprido pela progenitora, denotando-se porém, nesta sede, dificuldades em incrementar procedimentos educativos consistentes e assertivos.”

“Presentemente, a progenitora apresenta uma condição pessoal e social menos favorável para receber as crianças; terá um trabalho a tempo parcial, pelo qual aufere 350 euros mensais e terá acumulado uma dívida de renda de casa no montante de 1.100 euros, estando sujeita a possível acção de despejo, tendo manifestado o propósito de mudar para um quarto na residência de um casal amigo.”

“Pese embora a equipa do CAFAP tenha registado algumas melhorias por parte da progenitora, as mesmas não foram consistentes, mantendo uma postura muito idêntica àquela que o CAFAP já conhecia: refere sempre a necessidade de fazer diferente, manifesta desejo em se autonomizar, reorganizar a sua vida para ter os filhos junto de si, mas, na prática, verifica-se uma grande resistência à mudança, nomeadamente no que concerne à sua independência e à organização da sua vida para que possa receber os seus filhos e proporcionar-lhes uma vida estável, tranquila e com os cuidados a que as crianças têm direito.”

“As equipas que prestam apoio psicossocial têm vindo a manter o apoio e a orientação à progenitora desde o acolhimento das crianças, sendo que as mudanças têm sido pouco expressivas, significativas e consistentes, o que levanta muitas dúvidas quanto à capacidade da progenitora para assumir sozinha os cuidados aos cinco filhos, atendendo designadamente a que se tratam de crianças com vulnerabilidades ao nível do desenvolvimento físico e psicológico, beneficiando de consultas de especialidade, o que exigirá um acompanhamento muito próximo e regular nas diferentes especialidades de saúde.”

“Da história familiar deste agregado, constata-se que a família no passado já beneficiou de acompanhamento psicossocial de grande proximidade, tendo sido garantido apoio alimentar e higiene diária por meio de serviços de primeira linha, apoio também ele continuado no âmbito do processo judicial e promoção e protecção, com a intervenção da equipa do ...; todavia, a dependência destes serviços não poderá ser garantida em permanência até à maioridade das crianças, em virtude de se pressupor a autonomização e a independência das famílias.”

“Acresce o facto de o tempo das crianças não se compadecer com o tempo dos adultos, afigurando-se que a dependência da progenitora em relação ao companheiro continua a manifestar sinais evidentes de se constituir uma prioridade.”

“As crianças têm necessidade de dispor de figuras parentais protectoras e dedicadas, com direito a um desenvolvimento harmonioso e um ambiente que exige afeição, responsabilidade e ausência de descontinuidades graves no seu desenvolvimento afectivo e educacional, tornando-se urgente traçar um projecto de vida estruturado e consistente, necessitando de uma família e atenção personalizada, necessidades que, até à data, a família biológica não tem conseguido assegurar.”


IV


E como referenciou o acórdão recorrido, em juízo que aqui inteiramente sufragamos:

“Os progenitores foram alertados, quando da prolação do anterior acórdão da 1ª instância (em Maio de 2019) de que teriam de se comprometer e empenhar no cumprimento de obrigações então impostas, visando criar as condições e reorganizarem-se para que pudessem acolher os seus filhos, no seio da família natural. Verifica-se que a situação pouco se alterou. A mãe, que foi conduzida pelos Serviços a solicitar uma casa junto da Câmara, ao invés de referir que  amesma se destinaria à sua família de 5 filhos, referiu pretender uma casa para si, tipo T0, tendo assim ficado mal graduada nesse concurso. Dada a sua instabilidade emocional, foi-lhe indicado pelos serviços um psicólogo, sendo que apenas foi à 1ª consulta, faltando à 2ª, que se encontrava marcada, e nada mais dizendo quanto a essa questão. Por razões não apuradas, deixou de se relacionar com uns amigos – D. JJ e Sr. LL – que constituíam o único suporte de apoio que detinha e que sempre a tinham ajudado nas tarefas inerentes à sua prole. Não detém qualquer apoio de família sua ou do pai dos menores e vem mantendo com este um relacionamento muito instável, com sucessivas aproximações e afastamentos, sendo que este não denota o mínimo interesse pelas crianças. A mãe, detentora de uma personalidade instável, no âmbito das suas prioridades deu preferência ao seu relacionamento anacrónico com o pai dos menores, em detrimento do investimento que deveria ter realizado no sentido da criação de condições para acolher os seus filhos.”

E pese embora a mãe revele, pelos filhos, algum sentimento de pertença e afecto, não dispõe de competências pessoais (para além de competências materiais mínimas) que garantam condições de vida adequadas aos menores, nem mostrou capacidade ou motivação, para, ao longo dos anos, ter invertido ou poder inverter a situação.


V


Portanto, o facto é que, à data em que foi proferida a decisão em 1ª instância (momento relevante para a decisão de promoção e protecção – Ac.R.L. 13/10/2009 Col.IV/113 – Ana Resende), a situação profissional, habitacional e familiar dos menores não tinha registado quaisquer progressos – o progenitor cuidador (a mãe), pese embora visitando com alguma regularidade os filhos, apresentava carências acentuadas na interacção com esses filhos e mantinha acentuada dependência emocional do pai das crianças. Não existia qualquer espécie de apoio familiar à mãe.

A norma do artº 1978º nº1 al.d) CCiv, como vimos, não exige uma verificação de culpa, de vontade consciente ou de imprevisão censurável, por parte dos progenitores, mas antes uma simples situação de impreparação, de falta de aptidão, de inexistência de possibilidade de simbolizar conscientemente a necessidade de criação de vínculos cuidadores, posto que, antes da idade adulta, o ser humano é totalmente dependente de terceiros para sobreviver.

Por outro lado, ainda que se considere que o “comprometimento sério dos vínculos afectivos próprios da filiação”, referido no corpo do artº 1978º nº1 CCiv, é o verdadeiro requisito da confiança com vista a futura adopção, apenas indiciado ou presumido pelas previsões das diversas alíneas citadas do normativo, é necessário salientar que esses vínculos afectivos não se constituem como uma abstracção, isto é, “não basta que haja relação afetiva entre pais e filhos, é necessário que esta assuma a natureza de verdadeira relação pai/mãe – filho, com a inerente auto-responsabilização do progenitor pelo cuidar do filho, por lhe dar orientação, estimulá-lo, valorizá-lo, amá-lo e demonstrar esse amor de forma objetiva e constante, de molde que a própria criança encare o progenitor como referência com as referidas caraterísticas; pais são aqueles que cuidam dos filhos no dia a dia, são aqueles que cuidam da segurança, da saúde física e do bem estar emocional das crianças, assumindo na íntegra essa responsabilidade” – Ac.R.L. 27/2/2014, pº 1035/06.5TBVFX-A.L1-2 (Jorge Leal).

O vínculo afectivo da filiação é um vínculo de pertença, mas também de cuidado e responsabilização, com recíproca identificação.

Caracterizados assim os vínculos de “pertença”, próprios da filiação, eles podem nascer fora do sangue ou da família natural ou biológica – é sempre necessário que uma recíproca vinculação subjectiva nasça, seja consciente do seu porquê e se celebre.

E é necessário que a vinculação ou a evolução edipiana se possa afirmar junto de pais biológicos ou não – pese embora sempre com respeito pela verdade sobre a geração fundacional de um ser humano e com respeito pela vontade que ele próprio afirmou em nascer.

No caso dos autos, a pequena idade com que os menores foram institucionalizados e o tempo entretanto decorrido indicia que se formaram vínculos com figuras tutelares terceiras longe dos progenitores e que, destes, o pai é uma figura ausente e a mãe é uma figura idealmente pouco consistente, presente fisicamente mas em termos simbólicos e de atribuição de autoestima menos relevante.

Resta o apelo recíproco dos irmãos, apelo que, todavia, está ausente da ponderação da norma do artº 1978º nº1 CCiv.

Inexistem condições materiais para o cuidado das crianças fora da institucionalização e bem revelador é o facto de os próprios progenitores continuarem a defender na revista não terem condições para terem os seus filhos consigo – pretendem apenas que não sejam encaminhados para a adopção, sendo certo que, no processo, foram tomadas por duas vezes, e em dois momentos temporais distintos (20/5/2019 e 4/11/2019), decisões judiciais que prorrogaram por 6 meses a medida resultante do acordo inicial de Julho de 2017, de acolhimento residencial, com apoio junto da mãe.

Não é justo, nem adequado, que uma medida de institucionalização se prolongue indefinidamente, tendo já sido objecto de duas prorrogações de 6 meses e decorridos mais de 3 anos sobre o início da execução em acordo (artº 61º LPPCJP).

Pedia-se às instâncias, no momento da decisão, que pudessem compatibilizar os interesses radiciários da família biológica, com os interesses dos menores em serem criados, educados, junto de figuras parentais que os queiram, com quem se identifiquem subjectivamente (e que com eles reciprocamente se identifiquem) – e, na impossibilidade comprovada de, na prática, compatibilizar tais interesses, que efectivamente sobrelevassem os indicados interesses das crianças.

Nada obstava, desta forma, à confiança com vista à futura adopção, satisfeitos os requisitos das normas legais enunciadas.


VI


Suscita ainda a revista do pai a questão da audição dos menores.

A norma do artº 10º nº2 LPPCJP estipula, quanto à intervenção para promoção de direitos de jovens em perigo, que “a oposição da criança com idade inferior a 12 anos é considerada relevante de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção”. É esse também o critério seguido pela Lei em matéria de adopção – artºs 1981º nº1 al.a) e 1984º al.a) CCiv.

Nos termos do disposto no artº 84º nºs 1 e 2 LPPCJP, as crianças e os jovens com mais de 12 anos, ou com idade inferior, quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção aconselhe, são ouvidos pela comissão de protecção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e protecção, em separado ou na companhia dos pais, do representante legal ou de pessoa por si escolhida, de advogado da sua escolha ou oficioso.

Mas como se exarou no Ac.R.L. 17/11/2015, pº 761/15.2.T8CSC.L1-7 (Graça Amaral), “fora das situações em que a lei considera obrigatória a audição do menor, é a prática judiciária que assegura, no âmbito do poder discricionário que é atribuído ao julgador, a necessidade de fazer funcionar esse direito, concedendo (ou não) à criança a oportunidade de expressar as suas opiniões, tendo em conta a respectiva maturidade e capacidade de compreensão e expressão dos seus interesses. Igualmente é ao juiz que cabe, em cada situação, decidir a forma que considera adequada para realização dessa diligência”.

Na verdade, “pertencendo o processo em causa ao âmbito da jurisdição voluntária, onde predominam os princípios do inquisitório, da equidade, da conveniência e da oportunidade, podia o tribunal a quo ordenar as diligências que, no seu critério e tendo por subjacente as finalidades do processo, se mostrassem convenientes”.

Dos normativos citados não emerge uma regra imperativa que abarque a audição de menores de idade inferior 12 anos – a necessidade da sua audição deve ser casuisticamente apreciada em face de considerações relativas à sua maturidade, com ponderação ainda de outras circunstâncias do caso e do superior interesse da criança.

Os factos traduzidos nos autos revelam que os menores foram institucionalizados com a idade de 6 anos (a mais velha) a 8 meses de idade (a mais nova) – à data, apenas os dois mais velhos (6 e 5 anos, menina e rapaz) tinham atingido a idade edipiana de confronto, identificação e rivalidade com as figuras parentais ou de identificação de género mais próximas.

Significa isto que a audição dos mais novos, hoje com 7, 6 e 4 anos de idade (institucionalizados com 4 anos, 2 anos e 8 meses de idade, respectivamente) é destituída de significado relevante.

As crianças mais velhas apresentavam atraso no desenvolvimento, sobretudo nos aspectos de estimulação e linguagem – frequentando o 1º ciclo do ensino básico, a mais velha (AA) tem, como se referiu, apoio em terapia da fala e ocupacional e revela muitas dificuldades de compreensão e aplicação de conteúdos em todas as áreas curriculares.

A menina possui vínculo afectivo à mãe, solicitando contactos.

Diferentemente, o menino não revela dificuldades na aprendizagem e é ele precisamente quem revela maior distanciamento afectivo dos pais e da fratria, raramente pedindo contactos ou verbalizando pedidos ou informações a eles referentes.

Ora, é precisamente sobre a menina que poderiam recair as maiores dúvidas quanto à maturidade e à compreensão do sentido da intervenção em matéria de promoção e protecção.

A este propósito, porém, são definitivamente relevantes os considerandos do Ac.S.T.J. 18/10/2018, pº 533/14.1TBPFR.P2.S1 (Abrantes Geraldes):

“Nenhuma das normas por que se regem os processos de promoção e de proteção de menores em situação de risco pode ser interpretada de modo a converter-se em obstáculo à realização dos superiores interesses das crianças que é o objetivo final desses processos, não estando afastada, mesmo nestes casos, a ponderação das vantagens e dos inconvenientes que estariam associados a mais um recuo do processo, com dilação ainda mais longa de uma solução que definitivamente possa pôr fim aos “sinais de sofrimento” que evidenciam e à situação de carência afetiva individualizada.”

“A este respeito verificamos que todos os menores se encontram internados numa instituição há mais de 3 anos, sendo pouco frequentes os contactos com os progenitores (…).”

“Os progenitores apresentam como única alternativa a de os menores continuarem submetidos à medida de acolhimento institucional, enquanto estes estão a “evidenciar sinais de sofrimento, com manifestações físicas e emocionais decorrentes do impacto da institucionalização prolongada”, mostrando-se “extremamente carentes de atenção individualizada, sendo bastante recetivos, correspondendo à troca de afetos com outras figuras de referência na CA”.

“Todas estas circunstâncias – e especialmente esta última - tornam desnecessária mais uma diligência que, a ser decretada, obrigaria a que o processo retomasse a tramitação na 1ª instância, com arrastamento, ainda mais longo e grave, da situação em que os menores se encontram, sendo premente, isso sim, que se encontre uma solução que defina o seu futuro e evite o prolongamento da situação de acolhimento institucional que, independentemente da qualidade dos serviços, não constitui para nenhuma criança uma solução que deva eternizar-se.”

“Se nestes últimos quatro anos em que está pendente o processo judicial o futuro das crianças tem estado em suspenso, a verdade é que o relógio biológico está em constante movimento, urgindo que se encontre uma solução estável enquanto a idade dos menores ainda o permitir, a qual passará pela passagem a uma outra importante fase, qual seja, a da confiança dos menores com vista à sua futura (e eventual) adoção.”


Concluindo:

I – No âmbito dos processos especiais de promoção e protecção, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça limita-se à apreciação das decisões tomadas de acordo com a legalidade estrita, pelo que pode verificar o respeito pelos pressupostos, processuais e substantivos, do poder de escolher a medida mais conveniente aos interesses a tutelar, bem como o respeito do fim com que tais poderes foram atribuídos, mas não a conveniência ou a oportunidade da escolha.

II - A norma do artº 1978º nº1 al.d) CCiv (ex vi  artº 38º-A LPPCJP) não exige uma verificação de culpa, de vontade consciente ou de imprevisão censurável, por parte dos progenitores, mas antes uma simples situação de impreparação, de falta de aptidão, de inexistência de possibilidade de simbolizar conscientemente a necessidade de criação de vínculos cuidadores.

III – Ainda que se considere que o “comprometimento sério dos vínculos afectivos próprios da filiação”, referido no corpo do artº 1978º nº1 CCiv, é o verdadeiro requisito da confiança com vista a futura adopção, apenas indiciado ou presumido pelas previsões das diversas alíneas citadas do normativo, tais vínculos afectivos não se constituem como uma abstracção, isto é, não constituem vínculos de pertença tout court, mas de cuidado e responsabilização, com recíproca identificação, vínculos esses que podem nascer fora do sangue ou da família natural ou biológica – sendo todavia necessário que uma recíproca vinculação subjectiva nasça e se torne para todos consciente.

IV – Se à data do acordo inicial de acolhimento, os 5 menores estavam em situação de perigo, sem condições dignas de habitação (partilhando com diversos adultos todos os seus espaços), não integrados em estabelecimento de infância, as principais refeições tomadas na cantina social, apresentavam problemas notórios de higiene e atraso no desenvolvimento e na linguagem, o progenitor estava alheado dos filhos e do seu cuidado, e se, passados mais de 3 anos de acolhimento residencial, a situação profissional, habitacional e familiar do agregado parental não tinha registado quaisquer progressos, continuando os progenitores a pugnar pela institucionalização dos menores, pode dizer-se que “os pais, por acção ou omissão, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento dos menores” – artº 1978º nº1 al.d) CCiv.

V – Dos normativos dos artºs 10º nº2 e 84º nºs 1 e 2 LPPCJP não emerge uma regra imperativa que abarque a audição de menores de idade inferior 12 anos – a necessidade da sua audição deve ser casuisticamente apreciada em face de considerações relativas à sua maturidade, com ponderação ainda de outras circunstâncias do caso e do superior interesse da criança.

VI – Se os menores se encontram institucionalizados há mais de 3 anos (perto de 4 anos), inexistindo alternativa à institucionalização, mostra-se sobre o mais premente que se encontre uma solução que defina o seu futuro e evite o prolongamento da situação de acolhimento institucional, a qual passa pela confiança dos menores com vista à sua futura (e eventual) adopção.


Decisão:

Negam-se as revistas.

Gozando os Recorrentes de Apoio Judiciário, não são devidas custas.


S.T.J., 13/5/2021


Vieira e Cunha (relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Exmº Senhor Conselheiro António Abrantes Geraldes e do Exmº Senhor Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, que compõem este coletivo. 

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· Rec. 2481/17.4T8BRR.L1.S1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Exmºs Conselheiros António Abrantes Geraldes e Manuel Tomé Soares gomes.