Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5608/05.5TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: CONTRATO PROMESSA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
MORA
FIXAÇÃO JUDICIAL DO PRAZO
RESOLUÇÃO DE NEGÓCIO
SINAL
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 12/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA
Doutrina: - Abel Pereira Delgado, Do Contrato-Promessa, p. 179.
- Antunes Varela, Obrigações em Geral, 1970, p. 371 e seguintes; Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, p. 76; Das Obrigações em Geral, Volume II, 7ª edição, p. 124.
- Batista Machado, obra e páginas citadas no Acórdão da Relação do Porto de 19/12/1996, Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, página 226.
- Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pp. 55, 76.
- Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª edição, pp. 81/82.
- Januário Nunes, In T. J., 35º, 2/3.
- Oliveira Ascensão, Direito Civil, Volume II, p. 273.
- Pedro Pais de Vasconcelos, a Procuração Irrevogável, pp. 205, 206.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “ Código Civil Anotado”, Volume I, 4ª edição, pp. 229, 298 e ss., 409.
- Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2ª edição, p. 146.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 262.º, N.º1, 265.º, N.ºS 2 E 3, 289.º, 290.º, 334.º, 350.º, N.º2, 432.º, 433.º, 434.º, 440.º, 441.º, 442.º, 808.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 661.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 31/05/2011, IN CJ, ANO XXXVI, TOMO 3º, P. 38.
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12/12/1995, BMJ, 452º/423.
-DE 8/11/1983, DE 2/05/1985, DE 25/10/1990, TODOS NO BMJ, RESPECTIVAMENTE, 331º/515; 347º/375; 400º/621.
-DE 30/1/2003, IN CJSTJ, T. I, P. 64.
Sumário :

I - O contrato promessa caracteriza-se especificamente pelo seu objecto (uma obrigação de contratar), a qual pode ser relativa a qualquer outro contrato, do qual será, pois, um contrato preliminar.
II - A resolução, depois das alterações introduzidas pelo DL n.º 379/86, de 11-11 – enquanto declaração unilateral recipienda ou receptícia pela qual uma das partes, dirigindo-se à outra põe termo ao negócio retroactivamente, destruindo assim a relação contratual – além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, exige a gravidade da violação, não sendo esta apreciada em função da culpa do devedor, mas das consequências desse incumprimento para o credor.
III - A interpelação admonitória, necessária à conversão da mora em incumprimento definitivo, nos termos do art. 808.º, n.º 1, do CC, supõe que se fixe prazo suplementar, entendido como aquele que, fixado pelo credor, segundo um critério que, atendendo à natureza e ao conhecido circunstancialismo e função do contrato, aos usos correntes e aos ditames da boa - fé, permite ao devedor satisfazer, dentro dele, o seu dever de prestar.
IV - A procuração irrevogável e o negócio que lhe está subjacente não são negócios inextinguíveis: aquela pode ser revogada por mútuo acordo ou por justa causa (art. 265.º, n.º 3, do CC) e a resolução deste pode determinar a extinção da procuração.
V - As quantias entregues, ainda que correspondentes à totalidade do preço, presume-se constituir sinal, a menos que haja convenção expressa das partes.
VI - Não constitui abuso do direito a resolução do contrato promessa pelo vendedor quando – ainda que o promitente - comprador já haja pago a totalidade do preço e disponha de procuração irrevogável que lhe permite celebrar o contrato prometido –, havendo sido fixado o prazo para realização do contrato prometido o dia 23-11-1991 e feita interpelação admonitória a 27-01-2005, aquele persiste (por mais de 13 anos) em não marcar a escritura, como lhe incumbia.
Decisão Texto Integral:
      Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

      1.

      AA, residente que foi na Rua D. ............., n.º .......,.... ., Pedrouços, Maia, por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de seu marido, BB, veio intentar acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra “V.............”, associação desportiva, com sede na Rua ................, n.º 000, Vila Nova de Gaia, pretendendo que fosse declarado resolvido o contrato-promessa celebrado em 23/02/1991 entre a demandante e seu marido BB, enquanto promitentes-vendedores, e o Réu, enquanto promitente-comprador, com a restituição por si da quantia de 10.000 contos prestados por este último.

      Para o efeito e em síntese, alegou ter sido celebrado o mencionado contrato-promessa de compra e venda, tendo por objecto metade indivisa do prédio melhor identificado nos artigos 2.º a 4.º da petição inicial, sendo que, apesar de ter ficado estabelecido que a celebração do contrato definitivo devia concretizar-se até 23/11/1991, o certo é que o Réu não havia providenciado, como se obrigara, pela marcação da respectiva escritura, apesar de ter sido interpelado para esse efeito, inclusive através de notificação judicial avulsa, assim entrando em incumprimento definitivo do aludido contrato-promessa, a justificar, por sua vez, o respectivo pedido de resolução.

      O Réu, citado para os termos da acção, contestou, defendendo-se por excepção e impugnação. No âmbito daquela invocou a ilegitimidade da Autora para intentar a acção. No âmbito desta, alegou, além do mais, inexistir fundamento para ser decretada a resolução do mencionado contrato, quando é certo já ter sido pago integralmente a totalidade do preço convencionado pela concretização do negócio definitivo, dispor a contestante de procuração irrevogável a seu favor, possibilitando a realização de negócio consigo mesmo, bem assim não ter sido interpelada nos termos invocados no articulado inicial.

      A Autora replicou, rejeitando a procedência da matéria da excepção, concluindo nos precisos termos do inicialmente peticionado.

      Findos os articulados, foi proferido despacho saneador em que, por força de terem intervindo na acção os demais herdeiros da herança deixada por óbito do falado BB, se considerou sanada a invocada excepção de ilegitimidade activa.

      Fixou-se ainda a factualidade tida como assente entre as partes e organizou-se base instrutória, peças estas que não sofreram reclamação.

      Por entretanto ter ocorrido o óbito da referida AA (autora inicial e cabeça-de-casal da herança deixada por óbito do seu marido BB) vieram a ser habilitadas, como seus herdeiros e com legitimidade para prosseguirem com a lide, as várias pessoas identificadas na decisão constante de fls. 244 a 247.

      Estabilizada a instância em termos subjectivos, veio a realizar-se audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos nela prestados, tendo sido proferida decisão da matéria de facto, após o que foi a causa sentenciada, julgando-se a acção improcedente, nessa medida se absolvendo o Réu do pedido formulado contra o mesmo.

      Inconformados com o decidido, interpuseram recurso de apelação os mencionados herdeiros habilitados como Autores na acção, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de 12 de Abril de 2012, julgado improcedente a apelação e, nessa medida, confirmado a sentença recorrida.

      De novo, inconformados, recorreram de revista, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

      1ª - O presente recurso é admissível face ao disposto no artigo 721º do CPC vigente à data da propositura da ação;

      2ª - O comportamento dos autores tem de ser apreciado à luz dos valores éticos dominantes da postura assumida pelo Réu;

      3ª - De facto se é expectável que alguém, depois de ter recebido o preço dum bem prometido vender e de ter outorgado procuração a favor do promitente-comprador com poderes para fazer negócio consigo mesmo, não venha pedir a resolução do contrato promessa;

      4ª - Também não é expectável que o promitente-comprador fique inúmeros anos sem celebrar a escritura de compra e venda a seu favor e que não pague a contribuição predial antes e depois do IMI;

      5ª - Nem se responsabilize pelos prejuízos que a falta de conservação da propriedade causa a terceiros;

      6ª - E também não é expectável que utilize o direito de não celebrar de imediato a escritura para evitar um potencial exercício do direito de preferência pelo comproprietário;

      7ª - Ou para frustrar os créditos que tem (que são notórios, porque publicados na Comunicação Social) para com o Fisco e a Segurança Social;

      8ª - Ponderada a atuação dos recorrentes e do recorrido constata-se que o exercício do direito de resolução do contrato por parte dos Autores foi precedido da interpelação admonitória pelo que só a conduta mal - intencionada e relaxada do Réu justificou a situação em que ficou;

      9ª - Ao não ter celebrado, porque não quis, antes e depois de interpelado para tal, o recorrido é o único culpado pela situação a que forçou os Autores - a resolução do contrato;

      10ª - Posição que não coloca os valores éticos dominantes bem pelo contrário - a posição do Clube é que choca os valores éticos dominantes pois é antinatural, é ilógica e move-se por razões obscuras;

      11ª - Até porque é manifestamente exagerado o tempo que decorreu para o Clube regularizar e não regularizou.

      12ª - A decisão impugnada violou o disposto no artigo 234º do C. Civil.

      O Réu não contra – alegou.

      Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

      2.

      As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

      1 - No dia 23/02/1991, AA, casada com BB (1.os Outorgantes) e “V.............” (2.º Outorgante) celebraram entre si um contrato que denominaram de «contrato-promessa de compra e venda», através do qual os 1.os declararam prometer vender ao 2.º a metade indivisa de um campo com área de 10.000 m.2, sito na Rua da ..............., Vila Nova de Gaia, a confrontar de Nascente com CC e outros, Poente com Rua ........, Norte com Rua .....e Sul com DD e outro, pelo preço de 10.000.000$00, a pagar da seguinte forma:

      a) - 1.000.000$00, no acto da celebração do contrato-promessa;

      b) - 1.000.000$00, a pagar no dia 23/05/1991;

      c) - O restante no dia da celebração da escritura pública, que será marcada pela segunda, dentro do prazo de nove meses a contar da data da celebração do contrato, tudo conforme consta de fls. 18 a 21 que aqui se dão como reproduzidas (alínea A).

      2 – Dá-se por integralmente reproduzido o teor do documento de fls. 22 e 23, datado de 18/01/1992, denominado de «procuração», onde AA e BB declaram que constituem seu procurador o aqui Réu e conferem poderes especiais para vender a si próprio, pelo preço de 10.000.000$00, a metade indivisa do terreno referido em 1 supra, conferindo poderes de administração relativamente a tal fracção a alienar (alínea B);

      3 - Em 18/01/1992, AA e BB tinham recebido da Ré a quantia de 10.000.000$00 referida em 1 supra (alínea C);

      4 – Dá-se por integralmente reproduzido o teor do documento de fls. 25: - certidão de notificação de EE, datada de 27/01/2005, em cumprimento de pedido de notificação judicial avulsa requerida por AAe em que é pessoa a notificar o aqui Réu (alínea D);

      5 - BB faleceu em 6/03/2003, no estado de casado com AA (alínea E);

      6 - BB e AA casaram um com o outro em 25/12/1944, no regime de comunhão de bens (alínea F);

      7 - A Autora e seu marido perguntaram ao Réu quando iria celebrar a escritura referente ao contrato mencionado em 1º (resposta ao quesito 1º);

      8 - A Autora interpelou o Réu para celebrar a referida escritura através da notificação referida em 4 (resposta ao quesito 2º);

      9 - O Réu teve conhecimento da interpelação referida em 4º (quesito 3º).

      3.

      Por força das conclusões formuladas pelos recorrentes/autores, que afinal delimitam o âmbito e o objecto do recurso, as questões fundamentais que importa decidir são as seguintes:

      1ª – Natureza do Contrato celebrado por autores e réu;

      2ª - Da resolução do contrato;

      3ª – Do abuso do direito.

      4.

      Natureza do contrato celebrado por autores e réu.

      De acordo com a definição prevista no artigo 410º, n.º 1 do Código Civil, o contrato – promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar novo contrato. Estamos assim perante um contrato preliminar de outro contrato, o denominado contrato definitivo.

      O contrato promessa caracteriza-se especificamente pelo seu objecto, uma obrigação de contratar, a qual pode ser relativa a qualquer outro contrato.

      O contrato promessa será, pois, um contrato preliminar que tem por objecto a celebração de um outro contrato, o contrato prometido. Constitui, no entanto, uma convenção autónoma deste, uma vez que se caracteriza normalmente por ter eficácia meramente obrigacional, mesmo que o contrato definitivo tenha eficácia real.

      Reportando-nos ao caso dos autos, é inquestionável estarmos perante um contrato promessa de compra e venda, obrigando-se os autores a vender e a ré a comprar metade indivisa do prédio urbano, identificado no artigo 2º da petição inicial, por 10.000.000$00, a pagar da seguinte forma: (i) um milhão de escudos no acto do contrato promessa; (ii) um milhão de escudos no dia 23/05/1991; (iii) a parte restante do preço, no dia da celebração da escritura.

      Consta da cláusula 6ª do contrato que “os promitentes vendedores manterão todos os direitos e obrigações inerentes ao senhorio e proprietário até outorga da correspondente escritura, mormente quanto ao recebimento da sua parte de renda”.

      5.

      Resolução do contrato:

      Pela cláusula 5ª do contrato obrigou-se a ré a marcar a escritura pública, para a formalização do contrato definitivo, no prazo de nove meses a contar da data da celebração do contrato promessa, ou seja, até ao dia 23 de Novembro de 1991.

      Porém, no dia 18 de Janeiro de 1992, depois de terem recebido integralmente o preço acordado, disseram os promitentes vendedores que “constituem sua procuradora a referida associação «O V.............», a quem conferem poderes especiais para vender a ela própria, pelo preço de dez mil contos, já recebido, metade indivisa do prédio urbano, composto por campo, (parque de jogos), com dependências, (…), podendo outorgar e assinar a respectiva escritura.

      Mais conferem todos os poderes gerais de administração, relativamente à indicada fracção a alienar, mormente receber rendas e requerer, declarar e assinar o que for necessário, nas respectivas Repartições Públicas”.

      Entretanto, em data não determinada, mas anterior a 6/03/2003, os promitentes vendedores perguntaram ao réu quando iria celebrar a escritura referente ao mencionado contrato (resposta ao quesito 1º).

      Em 18/08/2003, já depois de haver falecido o marido, a promitente vendedora foi notificada de que ficava arrestado o direito que o réu detinha no contrato promessa, ficando o mesmo impedido de dispor, por qualquer forma, de tal direito, para garantia do pagamento da quantia de 69.382,78 euros, juros e custas (vide documento de fls. 24).

      Mantendo-se a inércia do Vilanovense em promover a marcação da escritura, a autora, em 6/01/2005, veio requerer a notificação judicial avulsa do réu para marcar a escritura pública até ao dia 15 de Fevereiro, sob pena de se converter a mora em incumprimento definitivo. O réu foi notificado em 27/01/2005 (vide documentos de fls. 14 a 17 e de fls. 25).

      Nada fazendo o réu, a autora e demais herdeiros do promitente vendedor vieram, através da presente acção, intentada em 6/06/2005, peticionar a resolução do contrato por incumprimento definitivo daquele.

      5.1.

      A resolução é uma declaração unilateral recipienda ou receptícia pela qual uma das partes, dirigindo-se à outra põe termo ao negócio retroactivamente, destruindo assim a relação contratual.

      O Código Civil prevê e regula a resolução em termos gerais no artigo 432º e seguintes.

      Ao contrário da revogação, que é em princípio livre, a resolução é vinculada e só admitida se fundada na lei ou em convenção” (artigo 432º).

      Assim, “ao lado da resolução legal, como, por exemplo, nos casos de não cumprimento da obrigação, impossibilidade do cumprimento ou alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, em que o direito é conferido por lei a uma das partes, admite este artigo que, por convenção, se atribua a uma das partes ou a ambas elas o direito de resolver o contrato[1]”.

      Deste modo, o direito de resolução dum contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado (artigo 432º CC). Fica, pois, a parte que invoca o direito à resolução obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual (resolução fundamentada).

      A resolução, além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, exige a gravidade da violação, não sendo esta apreciada em função da culpa do devedor mas das consequências desse incumprimento para o credor[2]. Não é, portanto, qualquer incumprimento, ainda que definitivo, que viabiliza a resolução.

      É hoje pacífico que, depois das alterações introduzidas pelo DL 379/86, de 11 de Novembro, a aplicação das sanções previstas no artigo 442º do Código Civil pressupõe o incumprimento definitivo do contrato - promessa, não bastando a simples mora.

      Segundo o artigo 808º, n.º 1, do Código Civil, são duas as causas que podem estar na origem do incumprimento definitivo: a perda objectiva de interesse do credor no cumprimento da prestação (causa subjectiva) e o decurso do prazo suplementar ou admonitório de cumprimento estabelecido pelo credor (causa objectiva). A estas duas causas a doutrina e a jurisprudência aditam uma outra: a declaração expressa do devedor em não querer cumprir.

      Defendem os autores ter-se verificado um incumprimento definitivo e culposo imputável ao réu, já que este não outorgou a escritura, dentro do prazo que lhe havia sido fixado na notificação judicial avulsa, continuando sem nada fazer, pelo que, entretanto, perderam o interesse no cumprimento do contrato promessa.

      O pedido de resolução do contrato - promessa assenta, assim, nas duas primeiras causas acima referidas.

      5.2.

      O decurso do prazo suplementar ou admonitório de cumprimento estabelecido pelos autores:

      A realização da escritura dever-se-ia concretizar até finais do mês de Novembro de 1991. Trata-se, como considerou a sentença, de uma data prevista, por não se afigurar que se tratasse de uma data limite, absoluta, pois nada é referido, nesse sentido, no contrato e ainda em 2005 (factos 5 e 8), a promitente vendedora quer a celebração do contrato.

      Assim, a conversão da mora em incumprimento definitivo supunha uma interpelação admonitória, nos termos do n.º 1 do artigo 808º do Código Civil.

      “Este prazo, destinado a conceder ao devedor uma derradeira possibilidade de manter o contrato, (…), tem de ser uma dilação razoável em vista da sua finalidade[3]”.

      No mesmo sentido, explica o Prof. Januário Nunes[4] que se deve entender por “prazo razoável” o necessário para o aprestamento da obrigação.

      A jurisprudência tem vindo a decidir da mesma forma, considerando-se a este propósito que “tem-se por razoável o prazo suplementar que fixado pelo credor, segundo um critério que, atendendo à natureza e ao conhecido circunstancialismo e função do contrato, aos usos correntes e aos ditames da boa - fé, permite ao devedor satisfazer, dentro dele, o seu dever de prestar[5]”.

      No caso sub judice, a declaração da autora constitui, inequivocamente, a interpelação admonitória a que se refere a segunda parte do n.º 1 do artigo 808º, contendo os indispensáveis elementos, isto é, (i) a intimação para cumprimento, (ii) a fixação de um termo peremptório para esse cumprimento e (iii) a admonição ou a cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.

      Tendo a autora, nessa notificação judicial, concedido ao réu um prazo para que fosse marcada a escritura, fixando o dia 15 de Fevereiro de 2005, como prazo limite, o prazo afigura-se como razoável.

      Não havendo marcado a escritura de compra e venda, dentro do aludido prazo, o incumprimento do réu tornou-se definitivo, havendo consequentemente fundamento para a resolução.

      6.

      Abuso de direito:

      Não obstante, a sentença acolheu os argumentos invocados pelo réu de que não havia fundamento para que fosse decretada a resolução do contrato, repristinando dois deles: ter o réu já pago a totalidade do preço e dispor de procuração irrevogável a seu favor, possibilitando a realização do negócio consigo mesmo, concluindo que o direito de resolução que os autores detêm por incumprimento definitivo do contrato não pode ser usado por se excederem manifestamente as regras de boa-fé, acrescentando a inexistência ao longo de todo esse tempo e até ocorrer a notificação judicial avulsa (reportada a Janeiro de 2005) de qualquer intimação formal para ser concretizada a respectiva escritura, pelo que a pretensão dos autores constituiria abuso de direito, improcedendo o pedido.

      O acórdão recorrido acolheu estes fundamentos da sentença, retirando a mesma conclusão.

      Nesse âmbito, questionam os recorrentes o recurso por parte do acórdão recorrido, tal como acontecera com a sentença na 1ª instância, ao instituto do abuso de direito para fazer paralisar a sua pretensão de verem resolvido o contrato-promessa que a AAe marido celebraram com o réu, não obstante a mora se haver convertido em incumprimento definitivo.

      Como se disse, o quadro tido em conta para rejeitar o pedido de resolução formulado na acção teve a ver com a circunstância do recorrido/réu ter liquidado integralmente o preço previsto pela realização do contrato prometido, tendo esse pagamento ficado realizado na íntegra cerca de 1 ano após a concretização do aludido contrato-promessa; vir o Réu ao longo de mais de 13 anos a utilizar e a fazer a administração do prédio identificado no dito contrato-promessa, dispondo de procuração bastante para o efeito, inclusive para celebrar negócio consigo mesmo; inexistência ao longo de todo esse tempo e até ocorrer a notificação judicial avulsa (reportada a Janeiro de 2005) de qualquer intimação formal para ser concretizada a respectiva escritura.

      Pergunta-se, pois, se será (ou não) contra os ditames da boa - fé acolher, na base do aludido circunstancialismo, a pretensão dos Autores de verem declarado destruído esse contrato-promessa, por via da sua resolução, constituindo a sua pretensão um claro abuso do exercício desse direito.

      Conforme dispõe o artigo 334º, do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa - fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

      Infere-se do citado preceito que o exercício de um direito só poderá qualificar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente, os limites impostos pela boa - fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante[6].

      O sentido da boa - fé assenta, como o refere Coutinho de Abreu[7], no princípio de que “as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”. No abuso de direito não há falta ou ausência de direito.

      Estamos sempre dentro do direito e não fora dele. Temos o exercício de um poder formal, consubstanciado num direito subjectivo, que é seu pressuposto, conferido pela ordem jurídica ou por determinada pessoa.

      O exercício de um direito, a priori legítimo, se feito de forma que ofenda manifestamente a boa - fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, torna-se ilegítimo, daí advindo a paralisação dos respetivos efeitos, tudo se passando como se aquele direito não existisse na esfera patrimonial do titular (na realidade, a sua existência será tão-só aparente). Pode, por isso, entender-se juridicamente por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto - materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[8].

      Para que haja lugar ao abuso de direito, é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito[9]”.

      O instituto do abuso de direito é uma verdadeira «válvula de segurança» para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o acto ilícito.

      Importa ainda que o titular do direito invocado se proponha exercê-lo “em termos, clamorosamente, ofensivos da justiça”.

      Para determinar os limites impostos pela boa - fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

      A penalização do abuso de direitos exige também, apesar da conceção objetiva decorrente do preceito legal, a necessidade de que, ao comportamento abusivo do autor se juntem os requisitos gerais, designadamente o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano[10].

      Deste modo, como ensina o Prof. Batista Machado[11] «duma pura relação de causalidade não pode concluir-se para a responsabilidade» pois é preciso, designadamente:

      Que haja uma espécie de «culpa do agente perante si próprio», no sentido de que conscientemente assim se quis conduzir, podendo e devendo prever, se usasse do cuidado usual, que tal conduta o poderia vincular de futuro segundo os ditames da boa- fé;

      Que a confiança digna de tutela radique em algo objectivo;

      Que o «investimento» na confiança (organização de planos de vida de que surgirão os danos) haja sido feito apenas com base na dita confiança e que o dano que provocaria a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória; e,

      Que haja boa-fé da parte que confiou e que esta tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.

      Sempre seria indispensável que os limites impostos pela boa-fé tivessem sido manifestamente, clamorosamente, excedidos. O seu aproveitamento sempre seria consentido pela ordem jurídica civil. Importa, portanto, que o titular do direito invocado se proponha exercê-lo “em termos clamorosamente ofensivos da justiça[12]”.

      Tomando como referência o circunstancialismo fáctico – aquele que atrás se realçou –  e os princípios expostos, vejamos se o caso se pode considerar como abuso de direito.

      6.1.

      O 1º argumento de que o acórdão recorrido se serviu no percurso racional para demonstrar a existência de abuso de direito foi o facto de o réu em 1992 haver já satisfeito aos autores a totalidade do preço que só deveria suceder aquando da celebração do contrato definitivo.

      Este argumento não parece consistente.

      Quando celebraram o contrato promessa as partes obrigaram-se à celebração do contrato definitivo, tendo fixado como data limite o dia 23/11/1991.

      Assim, tendo o réu satisfeito aos autores, em 1992, a totalidade do preço acordado, isso significa que tal pagamento foi efectuado antes da celebração do contrato definitivo, mas não exime a obrigação de as partes celebrarem tal contrato.

      Ao contrário do que parece fluir da sentença e do acórdão recorrido, o pagamento da última prestação convencionada não deixou de constituir mais uma entrega a título de sinal.

      Com efeito, dispõe o artigo 440º do C.C. que, “se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa o carácter de sinal”.

      Porém, segundo o estatuído no artigo 441º, “no contrato-promessa de compra e venda, presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.

      Conjugando estas normas, é de notar que o pagamento ou princípio de pagamento da prestação actual ou futura só assume a natureza de sinal se as partes lho atribuírem (artigo 440º). Todavia, quanto ao contrato – promessa de compra e venda, a lei presume que valerá como sinal toda a quantia (em dinheiro) entregue pelo promitente – comprador ao promitente – vendedor, ainda que as partes se limitem a dizer que a entrega é feita como antecipação total ou parcial do pagamento do preço (artigo 441º). A lei estabelece esta presunção por a qualificação como sinal corresponder, na promessa de compra e venda, à vontade normal das partes – presunção juris tantum, como tal ilidível por prova em contrário (artigo 350º, n.º 2 C.C.).

      Embora não seja muito habitual que, a título de sinal, seja paga a totalidade do preço, o certo é que a letra da lei é taxativa quando, no normativo indicado, faz presumir como sinal “toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.

      Assim, não estabelecendo a lei qualquer limite, não importa, por isso, que “o sinal seja inferior, igual ou superior à prestação[13]”.

      “A existência de sinal é especialmente frequente na promessa recíproca de compra e venda. Quase sempre, quando se celebra uma tal promessa, o promitente – comprador entrega ao promitente – vendedor uma importância correspondente a parte do preço, ou, até, a todo ele. Há o cumprimento antecipado, parcial ou total, da futura dívida de preço: e dizemos «futura» porque ela na realidade só se constituirá com a celebração da prometida compra e venda. E, além disso, as partes querem, normalmente, que a entrega funcione também como sinal. De maneira que, se o promitente – comprador faltar à promessa, poderá o promitente – vendedor reter a importância recebida; se faltar este, poderá aquele reclamar a restituição dessa importância, em dobro.

      Mesmo que as partes não qualifiquem expressamente como sinal a entrega feita, semelhante qualificação valerá em princípio, por presunção legal, na hipótese a que estamos a referir-nos de promessa recíproca de compra e venda.

      Tudo isto decorre do disposto nos artigos 440º e 442º C.C.[14]

      Assim, reportando-nos ao caso, a quantia que o réu/promitente – comprador pagou aos promitentes/vendedores, nos termos do contrato-promessa em causa, corresponde à totalidade do preço mas tem carácter de sinal (confirmatório), subsistindo o contrato enquanto contrato promessa de compra e venda, até que se realize a escritura pública que formalize o contrato definitivo.

      O que significa que o réu, porque se tinha obrigado a marcar a data escritura, não podia arrastar indefinidamente esta situação, conservando os promitentes – vendedores as faculdades que legalmente lhes são concedidas, para demoverem o réu da inércia em que se deixara cair.

      Assim, porque o não cumprimento do contrato, que se tornou definitivo, foi devido ao promitente – comprador, assistia aos autores a faculdade de exigirem a resolução do contrato.

      Falece este primeiro argumento.

      6.2.

      O 2º argumento invocado traduz-se no facto do réu, ao longo de mais de 13 anos, vir a utilizar e a fazer a administração do prédio identificado no dito contrato-promessa, dispondo de procuração bastante para o efeito, inclusive para celebrar negócio consigo mesmo.

      Procurando interpretar este segmento do acórdão recorrido, parece poder concluir-se que, sendo, como é, irrevogável a procuração que os promitentes vendedores outorgaram ao réu, estariam os mesmos impedidos de peticionar a resolução do contrato promessa.

      Também aqui a decisão é passível de censura.

      Pelo facto do réu dispor de uma procuração irrevogável que lhe conferes poderes para vender a si próprio, a mesma não lhe confere o direito de permanecer indefinidamente com os poderes do proprietário mas sem quaisquer obrigações nem substitui a escritura de compra e venda, negócio a que as partes se haviam obrigado a celebrar.

      A procuração é um negócio cujo efeito consiste em alguém, o dominus, atribuir a outrem, o procurador, poderes para que este celebre negócios ou pratique outros actos jurídicos em sua representação e o substitua assim na prática desses actos ou negócios (artigo 262º, n.º 1 do CC). Como não carece de aceitação pelo procurador para que a outorga do poder de representação seja eficaz, consubstancia um negócio jurídico unilateral.

      Assim, via de regra, o procurador, quando exerce poderes de representação, age não só em nome do dominus, mas também no interesse do dominus. A procuração típica reflecte exclusivamente o interesse do dominus.

      “A lei todavia não delimita as razões para a outorga da procuração, deixando as “razões” entregues à autonomia privada. Daí que a procuração tenha evoluído deste extremo, em que se situa a procuração outorgada no exclusivo interesse do dominus, permitindo-se, com esta desfuncionalização, usar a procuração como instrumento de garantia ou de execução de negócios jurídicos ou outros fins lícitos que esse tipo seja adequado a satisfazer”[15].

      No direito português, estão expressamente previstas a procuração no interesse exclusivo do dominus (artigo 265º, n.º 2), que é livremente revogável e a procuração também no interesse do credor ou de terceiros (artigo 265º, n.º 3), que é irrevogável, salvo acordo do interessado ou justa causa.

      Como se refere no citado acórdão, “o interesse é de facto um ponto - chave na compreensão da disciplina da procuração. É o “interesse” que funciona e estabelece o critério de acção/actuação do procurador no exercício dos poderes de representação outorgados.

      Onde é que está, donde resulta o interesse na procuração?

      Através da procuração, o dominus outorga poderes de representação e, em consequência, os actos praticados pelo procurador no exercício desses poderes produzem efeitos jurídicos directamente na esfera jurídica do dominus.

      No entanto, da procuração não resulta nenhuma obrigação do procurador exercer esses poderes nem resulta, normalmente, qualquer indicação sobre como os deverá exercer.

      É na relação subjacente à procuração que se encontra o conteúdo, que está estabelecido e de onde resulta o critério de comportamento de cada um, dominus e procurador, no que respeita aos poderes de representação. É da relação subjacente que se pode inferir qual é o interesse, de quem é o interesse, quais os fins que se pretende atingir com a procuração, quais as necessidades que se pretende ver satisfeitas[16].

      Com efeito, a procuração é um negócio jurídico incompleto[17]. A procuração funciona em conjunto com uma relação jurídica que lhe está subjacente. Donde, o equilíbrio de interesses que preside a tal relação subjacente, não pode deixar de reflectir-se na disciplina da obrigação.

      É pois em tal “equilíbrio de interesses”, ou seja, na relação subjacente, que residem as justificações ou explicações para as soluções de revogabilidade, irrevogabilidade e resolução da procuração.

      Desde que exista um interesse relevante do procurador na procuração e que este interesse seja emergente da relação subjacente, a procuração é irrevogável, nos termos do artigo 265º, n.º 3 do Código Civil.

      A irrevogabilidade da procuração no interesse comum do dominus e procurador é, portanto, uma consequência necessária da coexistência de um interesse do procurador com o interesse do dominus.

      In casu, a procuração outorgada é pois irrevogável.

      Mas mesmo a procuração irrevogável não é um negócio inextinguível.

      É certo que o dominus não pode revogar (ad nutum) eficazmente a procuração naturalmente irrevogável, uma vez que tal revogação implicaria uma actuação sobre a esfera jurídica do procurador ou de terceiro.

      Uma solução – a possibilidade do dominus revogar a procuração irrevogável – passa pela obtenção de legitimidade: Daí, desde logo, a situação de mútuo acordo, em que os titulares dos interesses na manutenção da procuração podem permitir que o dominus a revogue (artigo 265º, n.º 3).

      Outra solução passa pela revogação por justa causa (artigo 265º, n.º 3, in fine).

      Para o que é necessário que se verifique um facto/situação superveniente que implique a reapreciação do negócio e que crie a possibilidade para o dominus de poder extinguir o negócio: facto/situação que tanto pode consistir num incumprimento da outra parte, como num facto externo ao negócio.

      E o que deve entender-se no caso por justa causa?

      “A justa causa verifica-se quando, surgindo um facto, situação ou circunstância novos, deixe de ser exigível ao sujeito manter-se vinculado. Tanto pode verificar-se no âmbito da relação de representação como no da relação subjacente. Destina-se a permitir ao dominus extinguir a procuração, para proteger os seus interesses[18]”.

      Independentemente do jogo de interesses na procuração, o procurador deverá sempre pautar a sua actuação por esses interesses, respeitando quer o âmbito e os limites da procuração, quer a relação subjacente.

      Caso o procurador actue de modo a quebrar esse equilíbrio de interesses, quer por violar o sentido ou os limites ao exercício dos poderes outorgados, que são ditados pela relação subjacente, quer por desrespeitar os poderes em si, que são ditados pela relação subjacente, quer por desrespeitar os poderes em si, que são ditados pela procuração, verificar-se-á então uma situação de justa causa para a resolução da procuração, nos termos gerais do artigo 265º, n.º 3, do Código Civil[19]”.

      Não podemos, portanto, partir da irrevogabilidade da procuração, para concluir que o negócio subjacente é inextinguível.

      Pelo contrário, tendo-se verificado, posteriormente à outorga da procuração, uma situação – o incumprimento definitivo do contrato – que permite aos promitentes vendedores a resolução do contrato promessa, tal situação cria a possibilidade para o dominus de poder extinguir a procuração.

      Se assim é, o facto de a procuração ser irrevogável não invalida a resolução do contrato promessa em causa nos autos. Pelo contrário, a resolução do contrato promessa é que determinará a extinção da procuração.

      Face ao que deixamos exposto, seria forçado configurar o caso como abuso de direito, posto estarmos diante do exercício duma posição jurídica que não foi deduzida por um longo período de tempo, tornando-se o incumprimento em definitivo.

      De facto, é expectável que alguém, depois de ter recebido o preço dum bem prometido vender e de ter outorgado procuração a favor do promitente – comprador para fazer negócio consigo mesmo, não venha pedir a resolução do contrato promessa, porque é expectável que o promitente - comprador, obtida tal procuração, venha a celebrar a escritura, num prazo razoável. Ou seja, não é expectável que o promitente – comprador deixe passar os anos, uns atrás dos outros, sem celebrar a escritura de compra e venda a seu favor, sabendo que os promitentes – vendedores mantêm todas as obrigações inerentes ao proprietário até à outorga da escritura, recaindo sobre eles, por exemplo, a obrigação de pagarem a contribuição predial, ora IMI e a responsabilidade pelos prejuízos que a falta de conservação da propriedade cause a terceiros.

      E também não é expectável que utilize o direito de não celebrar de imediato a escritura para se frustrar ao pagamento dos débitos que tem.

      Acresce que, como se comprova pela leitura dos autos, a direcção do réu tem mudado com muita frequência, não sendo, por vezes, fácil encontrar os seus responsáveis.

      Ponderada a actuação dos recorrentes e do recorrido, constata-se que o exercício do direito de resolução do contrato por parte dos autores foi precedido da interpelação admonitória, pelo que só a conduta relaxada do réu justificou a situação em que ficou.

      Ao não ter celebrado o contrato definitivo, porque não quis, antes e depois de interpelado para tal, o recorrido é o único culpado pela situação a que forçou os autores.

      Assim, ao contrário do decidido, não decorre dos factos provados qualquer conduta dos autores que nos permita concluir que os mesmos hajam excedido “manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico” no exercício do seu direito que, efectivamente, lhes assiste, conduta essa, aliás, que competia ao réu demonstrar.

      7.

      Como regra a resolução importa a destruição do negócio e a consequente restituição de tudo o que as partes houverem recebido (vide artigos 433º, 289º, 290º e 434º do Código Civil).

      Tratando-se de contrato promessa, o seu regime deve ser articulado com o do sinal.

      O sinal funciona então como fixação das consequências do incumprimento, uma vez que, se a parte que constituiu o sinal, deixou de cumprir a sua obrigação, a outra parte tem o direito de fazer sua a coisa entregue. Se o não - cumprimento partir de quem recebeu o sinal, tem este que o devolver em dobro (artigo 442º, n.º 2, 1ª parte). Caso, porém, se verifique o cumprimento do contrato, a coisa entregue será imputada na prestação devida, valendo, então, como princípio de pagamento ou restituída, caso essa imputação não seja possível (artigo 442º, n.º 1 Código Civil).

      In casu, os autores pretendem apenas que o réu seja condenado a ver declarado resolvido o contrato e devolver a propriedade aos autores, pretendendo estes restituir os 49.879,79 euros, correspondentes aos 10.000.000$00 prestados pelo réu.

      Assim sendo, uma vez que a sentença não pode condenar ultra petitum, (artigo 661º, n.º 1 CPC), a condenação restringir-se-á ao peticionado.

      8.

      Concluindo:

      I - O contrato promessa caracteriza-se especificamente pelo seu objecto (uma obrigação de contratar), a qual pode ser relativa a qualquer outro contrato, do qual será, pois, um contrato preliminar.

      II - A resolução, depois das alterações introduzidas pelo DL n.º 379/86, de 11-11 – enquanto declaração unilateral recipienda ou receptícia pela qual uma das partes, dirigindo-se à outra põe termo ao negócio retroactivamente, destruindo assim a relação contratual – além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, exige a gravidade da violação, não sendo esta apreciada em função da culpa do devedor, mas das consequências desse incumprimento para o credor.

      III - A interpelação admonitória, necessária à conversão da mora em incumprimento definitivo, nos termos do art. 808.º, n.º 1, do CC, supõe que se fixe prazo suplementar, entendido como aquele que, fixado pelo credor, segundo um critério que, atendendo à natureza e ao conhecido circunstancialismo e função do contrato, aos usos correntes e aos ditames da boa - fé, permite ao devedor satisfazer, dentro dele, o seu dever de prestar.

      IV - A procuração irrevogável e o negócio que lhe está subjacente não são negócios inextinguíveis: aquela pode ser revogada por mútuo acordo ou por justa causa (artigo 265.º, n.º 3, do CC) e a resolução deste pode determinar a extinção da procuração.

      V - As quantias entregues, ainda que correspondentes à totalidade do preço, presume-se constituir sinal, a menos que haja convenção expressa das partes.

      VI - Não constitui abuso do direito a resolução do contrato promessa pelo vendedor quando – ainda que o promitente - comprador já haja pago a totalidade do preço e disponha de procuração irrevogável que lhe permite celebrar o contrato prometido –, havendo sido fixado o prazo para realização do contrato prometido o dia 23-11-1991 e feita interpelação admonitória a 27-01-2005, aquele persiste (por mais de 13 anos) em não marcar a escritura, como lhe incumbia.

      9.

      Pelo exposto, concedendo provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido, declarando-se a resolução do sobredito contrato promessa de compra e venda e, por via disso, condena-se o réu a devolver aos autores a metade indivisa do prédio identificado nos artigos 2º a 4º da petição inicial e estes a devolverem àquele os 49.879,79 euros prestados por aquele.

      As custas deste recurso, tal como as custas de ambas as instâncias são a cargo do réu.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2012

Granja da Fonseca (Relator)

Silva Gonçalves

Ana Paula Boularot

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[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, página 409.
[2] Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, pág. 146.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 7ª edição, página 124.
[4] In T. J., 35º, 2/3.
[5] Ac. do STJ de 12/12/1995, BMJ, 452º/423. No mesmo sentido, Acórdãos de 8/11/1983, de 2/05/1985, de 25/10/1990, todos no BMJ, respectivamente, 331º/515; 347º/375; 400º/621.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, página 229.
[7] Do Abuso do Direito, página 55.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/1/2003, citando Castanheira Neves, in Coletânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64.
[9] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, página 76.
[10] Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, página 76 e Antunes Varela, Obrigações em Geral, 1970, páginas 371 e seguintes.
[11] Obra citada, páginas 415 e seguintes, citado no Ac. da Relação do Porto de 19/12/1996, Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, página 226.
[12] Pires de Lima e Antunes varela, in Código Civil Anotado, Volume I, páginas 298 e seguintes.
[13] Abel Pereira Delgado, Do Contrato – Promessa, página 179.
[14] Inocêncio Galvâo Telles, Direito das Obrigações, 3ª edição, página 81/82.
[15] Ac. da RC de 31/05/2011, in CJ, Ano XXXVI, Tomo 3º, página 38.
[16] Ver acórdão citado, página 38.
[17] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Volume II, página 273.
[18] Pedro Pais de Vasconcelos, a Procuração Irrevogável, página 205.
[19] Pedro Pais de Vasconcelos, a Procuração Irrevogável, página 206.