Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27/22.1GBALM-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRISÃO ILEGAL
ACUSAÇÃO
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 12/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :

I — O arguido encontra-se em prisão preventiva à ordem destes autos, desde 03.06.2022, após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fora de flagrante delito); a 28.11.2020, foi acusado pela prática de seis crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravados, previstos e punidos pelos artigos 172.°, n.°s 1, alíneas a), b) e c), e n.°2, do Código Penal, e 177.°, n.°1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, por referência ao disposto nos artigos 171.°, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a) e c), e 170.°, do Código Penal, um crime de coação sexual agravado: previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 161°, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, e um crime de coação sexual agravado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163.°, n.ºs 1 e 2 e 77.º, n.°1, alíneas a), b) e c), e pelos artigos 22.º e 23.º, n.º 1, do Código Penal. A medida de coação de prisão preventiva foi mantida por despacho de 30.11.2022 (notificado na mesma data à defensora oficiosa do arguido e ao arguido). A acusação foi notificada à defensora e ao arguido a 05.12.2022. A presente providência de habeas corpus foi apresentada, via correio eletrónico, a 13.12.2022 (às 23:34h), com carimbo de entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (unidade Central de ...) a 14.12.2022.

II — Sabendo que foi já deduzida a acusação, não mais podemos dizer que o prazo máximo de privação da liberdade foi ultrapassado sem que tivesse sido deduzida acusação. Valem agora os prazos máximos de privação da liberdade até à decisão instrutória (se a instrução for requerida), isto é, 10 meses, ou até à decisão em 1.ª instância, isto é, 1 ano e 6 meses.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 27/22.1GBALM-A.S1

Habeas Corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. AA, arguido no processo n.º 27/22.1GBALM, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (Juízo de Instrução Criminal ...), preso preventivamente à ordem destes autos desde 03.06.2022, vem, por intermédio de mandatário, requerer a providência de habeas corpus por privação ilegal da liberdade (mediante requerimento 14.12.2022), nos termos do art. 222.º, do Código de Processo Penal (doravante CPP), que terminou com as seguintes conclusões:

«1. O recluso encontra-se detido no Estabelecimento Prisional ... preso preventivamente desde o dia ... de Junho de 2022.

2. Os presentes autos não foram declarados de especial complexidade, nos termos do artigo 215.º n.º 4 do Código de Processo Penal.

3. Ora, até a presente data não foi deduzido nenhuma acusação, nem tão pouco foi notificado de nada.

4. Porém, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva sem que haja acusação é de 6 meses, sob pena de a prisão preventiva se extinguir.

5. Ora, salvo melhor opinião mas a prisão preventiva foi excedida no passado dia 1 de Dezembro de 2022, pelo que o prazo para respeitar o limite de prisão preventiva já se extinguiu há muito tempo.

 6. Pelo exposto, consideramos que a manutenção da  prisão preventiva é ilegal, uma vez que o prazo se encontra excedido desde o dia ... de Dezembro de 2022.

7. Nestes termos e nos melhores, de direito deve ser declarada ilegal a medida de coacção de prisão preventiva que o requerente se encontra sujeito e ordenar a libertação do mesmo, por excesso de prisão preventiva, nos termos do artigo 222.º n.º 2 alínea c) do CPP.».

2. Perante o pedido apresentado, o Ministério Público junto da Procuradoria da República da Comarca de Lisboa (DIAP — ... secção de ...) considerou que a pretensão devia ser indeferida, porquanto o prazo máximo de prisão preventiva não foi ainda ultrapassado, uma vez que está indiciada a prática de diversos crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados e de dois crimes de coação sexual agravados que integram o conceito de criminalidade violenta, segundo o disposto no art.1.º, al. j), do Código de Processo Penal (CPP). Além disto, foi prolatada acusação por estes crimes a 28.11.2022.

3. Foi prestada informação, de acordo com o disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

«1. Por despacho proferido a 3 de Junho de 2022, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi aplicada ao arguido AA a medida de coacção de prisão preventiva.

2. A referida medida de coacção foi revista por despachos de fls. 263 e 362, datados, respectivamente, de 25.08.2022 e 30.11.2002.

3. A última revisão da medida de coacção, onde se alude à dedução de acusação, foi notificada ao arguido e à Ilustre Defensora Oficiosa a 30 de Novembro de 2022, cfr. fls. 364 e 365.

4. A 28 de Novembro de 2022, foi deduzida acusação contra o arguido - fls. 348 e seguintes - imputando-lhe a prática de seis crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos arts. 172.º, nº 1, alíneas a), b) e c) e n.º 2 do Código Penal e 177., n.º 1, alíneas a), b) e c) do Código Penal, por referência ao disposto nos ais. 171.º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a) e c) e 170.º do Código Penal, um crime de coacção sexual agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, e um crime coacção sexual agravado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163.º, n.ºs 1 e 2 e 177 º, n.º1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, e pelos artigos 22.º e 23.º, n.º1, do mesmo compêndio legal.

5. A notificação da acusação foi remetida ao arguido a 5 de Dezembro de 2022, conforme resulta de fls. 372 e, na mesma data, à Ilustre Defensora do arguido.

6. A 13 de Dezembro de 2022, pelas 23h34, via email, deu entrada a presente petição de "habeas corpus".

7. O Ministério Público pronunciou-se conforme resulta de fls. 389.

8. A procuração constante de fls. 388 apenas foi junta aos autos com a apresentação da petição de habeas corpus.»

4. Consta ainda destes autos a notificação da acusação à defensora oficiosa (que não o mandatário que agora apresentou a petição de habeas corpus) a 05.12.2022, e a notificação ao arguido (para o Estabelecimento Prisional ..., onde se encontra) na mesma data.

5. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência, nos termos dos arts. 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II Fundamentação

1.1. Nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito[1].

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal[2]. Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2.3. AA encontra-se privado da liberdade à ordem destes autos, desde 03.06.2022, após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fora de flagrante delito).

A medida de coação foi aplicada porquanto:

«O arguido não nos quis dar certezas ao lugar onde tem o seu domicílio, segundo a sua versão é um sem abrigo reside no sitio onde foi detido e pelo qual terá pago uma quantia de 500 euros, apesar de saber que não tem legitimidade para ali permanecer referindo no mais que se desloca para o estúdio que toda a gente conhece, apesar de ter dois domicílios onde poderia residir, casa dos seus pais onde agora declarou querer prestar TIR, quer a da sua companheira algures em ..., não se compreendendo a razão pela qual ali não residirá.

Tais elementos permitem-nos recear de forma séria pela existência de um perigo de fuga, ciente o arguido estará da gravidade dos factos aliado ao seu passado criminal.

Por outro lado, atentas as suas condições de vida, rendimentos conhecidos, considera-se ainda a existência do perigo de continuidade da atividade criminosa já que o arguido não quis reconhecer o óbvio não colaborando coma justiça.

As exigências cautelares são por sua natureza elevadas atenta a natureza dos crimes, o alarme social que geram e personalidade evidenciada pelo arguido quando confrontado com os factos.

No caso concreto considera o Tribunal que por ora apenas a prisão preventiva se afigura por medida cautelar cabal para arredar todos os perigos que na situação dos autos se verificam, com efeito o arguido não nos facultou qualquer domicílio alternativo onde pudesse vir a residir, sendo certo que se impõe o seu imediato afastamento daquele que vinha sendo o seu lar e local do crime, bem como a sus proibição de contatos com a sua filha, pessoa claramente fragilizada com todo a situação a que tem vindo a ser sujeita, para além da sua situação de base de certo atraso psicológico.

Considera o Tribunal que no caso concreto, restituir o arguido à liberdade seria permitir-lhe condicionar um futuro relato da sua filha para além de permitir também prosseguir a sua actividade criminosa.

Este tipo de crimes cometido em contesto familiar gera enorme alarme social e perturba a ordem e tranquilidades públicas, pelo que deve ser contido com fortes medidas de coação dificilmente se equacionam a cumprir em liberdade, não significa com isto o Tribunal que não se venha a ponderar sujeitar o arguido a uma obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância eletrónica, que neste momento está vedado por falta de indicação de domicílio alternativo.

Donde considerado e suficientes as medidas de coação propostas, determino, nos termos do disposto nos artºs 191º; 192º; 193º; 194°. nºs 1 e 2; 195°; 196º; 202º, nº 1, ais. a) e b) e 204º, als. b) e c), todos do CPPenal, em obediência aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, decide-se sujeitar o arguido às seguintes medidas de coação:

- ao Termo de Identidade e Residência, já prestado;

- prisão preventiva». (sublinhados nossos).

Considerou-se, então, que, dada a existência de perigo de fuga, perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, estavam verificados os pressupostos inscritos no art. 204.º, als. b) e c), do CPP. E por isso se concluiu que apenas a prisão preventiva acautelava os perigos existentes.

A aplicação da medida de coação foi revista e mantida por despacho de 25.08.2022.

A 28.11.2020, o arguido foi acusado nos seguintes termos:

«o arguido AA cometeu dolosamente (artigo 14.°, n.º 1, do Código Penal), como autor material (artigo 26.° do Código Penal), na forma consumada, e em concurso efectivo (artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal), seis crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravados, previstos e punidos pelos artigos 172.°, n.°s 1, alíneas a), b) e c), e n.°2, do Código Penal, e 177.°, n.°1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, por referência ao disposto nos artigos 171.°, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a) e c), e 170.°, do Código Penal, um crime de coacção sexual agravado: previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 161°, n.ºs 1 e 2 e 177.º,  n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, e um crime de coacção sexual agravado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 163.°, n.ºs 1 e 2 e  77.º, n.°1, alíneas a), b) e c), do Código Penal, e pelos artigos 22.º e 23.º, n.º 1, do mesmo compêndio legal».

Consequentemente, foi mantida a medida de coação de prisão preventiva por despacho de 30.11.2022 (notificado na mesma data à defensora oficiosa do arguido e ao arguido). A acusação foi notificada à defensora e ao arguido a 05.12.2022 (o ofício foi nesta data enviado ao Estabelecimento Prisional ... para que aí fosse notificado o arguido).                                                         

A presente providência de habeas corpus foi apresentada, via correio eletrónico, a 13.12.2022 (às 23:34h), com carimbo de entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (unidade ...) a 14.12.2022.

Ora, os factos indiciados relativamente ao Requerente referem-se a atos puníveis com penas de prisão superiores a 8 anos de prisão no caso dos crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravados; e trata-se de criminalidade violenta e especialmente violenta nos termos do art. 1.º, als. j) e l) do CPP.

Sendo assim, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva até à acusação é de 6 meses, até à decisão instrutória é de 10 meses [caso haja instrução — cf. art. 215.º, n,º 1, al. b) e n.º 2, do CPP], e até à condenação em 1.ª instância é de 1 ano e 6 meses [cf. art. 215.º, n,º 1, al. c) e n.º 2, do CPP].

Ora, o Requerente foi acusado a 28.11.2022 e havia sido preso a 03.06.2022.

Sendo assim, o prazo máximo de prisão preventiva não se encontra esgotado. Pelo que não poderemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto ao Requerente, uma vez que a privação da liberdade foi determinada por autoridade competente, por facto por que a lei a permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração.

Acresce referir que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) de modo que não se faça recair sobre os serviços o ónus de cumprimento, pois cabe apenas ao Magistrado Judicial ou ao Ministério Público (consoante a fase processual em que se encontrem os autos) o cumprimento deste prazo.

Na verdade, não se poderia concluir pela ilegalidade da prisão, quando a acusação foi efetivamente deduzida. Porém, só com a sua notificação se iniciam os prazos para que se apresente eventual requerimento de abertura de instrução.

Acresce referir que a norma consagrada no art. 215.º, do CPP, é muito clara — “a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (...) meses sem que tenha sido deduzida acusação”. Pretender que se deve interpretar o momento da dedução da acusação como sendo o momento da sua notificação é não só uma interpretação em violação clara da letra da lei, como também é dizer, em desrespeito do disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador utilizou erroneamente o termo “deduzida” querendo dizer “notificada”, não tendo sabido exprimir o seu pensamento[3].

Sabendo que foi já deduzida a acusação, não mais podemos dizer que o prazo máximo de privação da liberdade foi ultrapassado sem que tivesse sido deduzida acusação. Valem agora os prazos máximos de privação da liberdade até à decisão instrutória (se a instrução for requerida), isto é, 10 meses, ou até à decisão em 1.ª instância, isto é, 1 ano e 6 meses.

Ora, tendo o arguido sido preso preventivamente em junho de 2022, já tendo havido acusação (em novembro de 2022), não foram ultrapassados os prazos máximos de prisão preventiva. Pelo que não podemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto ao Requerente, sendo clara a ausência manifesta de fundamento para a procedência da petição.

Assim sendo, não existe qualquer fundamento para deferir a petição de habeas corpus apresentada pelo Requerente AA.

III Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por manifestamente infundada, a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.

Nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP, condena-se o peticionante ao pagamento de 6 UC.

Custas pelo Requerente, com 2 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de dezembro de 2022

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

António Gama

João Guerra

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[1] Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 20074, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508.
[2] Cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508.
[3] Em outros normativos o legislador referiu-se igualmente ao momento da dedução da acusação fazendo depender deste certos efeitos, ainda que não tenha havido notificação — por exemplo, o art. 57.º, n.º 1, do CPP, onde se determina que assume logo a qualidade de arguido aquele contra quem for deduzida a acusação; ou ainda a obrigatoriedade de constituição de defensor logo após a dedução da acusação (art. 64.º, n.º 3, do CPP); cf. também art.s 280.º, n.º 2,  e 391.º - B, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, onde o momento da dedução assume relevo particular.