Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
67525/14.6YIPRT.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDA
PAGAMENTO
INCUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
MEIOS DE PROVA
RECIBO DE QUITAÇÃO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.ºS 1 E 2, 344.º, N.º 2 E 786.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 417.º, N.º 2.
Sumário :
I - Em matéria de cumprimento do ónus da prova num contrato de arrendamento, a regra é no sentido de que o credor tem de provar a celebração do contrato e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC.

II - Por sua vez, o cumprimento da respectiva obrigação, designadamente o pagamento da renda convencionada, como facto extintivo do direito de crédito invocado, incumbe ao devedor, nos termos do art. 342.º, n.º 2, do CC, tanto mais que, em direito, o pagamento não se presume a não ser em casos expressamente previstos na lei (cfr. art. 786.º do CC).

III - Há, porém, regras especiais de distribuição do ónus da prova para dirimir o non liquet probatório, por via da inversão desse ónus, como preceitua o art. 344.º do CC; um desses casos ocorre quando a parte contrária impossibilitou culposamente a prova de determinado facto ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais (cfr. art. 344.º, n.º 2, do CC, e art. 417.º, n.º 2, do CPC).

IV - A circunstância da autora senhoria não ter apresentado os respetivos elementos de contabilidade, no âmbito da perícia determinada nos autos com vista a apurar se, através da contabilidade das sociedades envolvidas na acção, se recolhiam elementos que esclarecessem a questão do pagamento das rendas, não é, só por si, susceptível de inverter o ónus da prova nos termos referidos em III quando não decorre dos autos que tal omissão tenha sido deliberada, ou sequer culposa, ou que o recorrente estivesse impossibilitado de fazer essa prova, já que lhe seria lícito utilizar qualquer outro meio de prova legalmente admitido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. “AA - Construções e Empreendimentos Urbanisticos, Lda” instaurou procedimento de injunção, transmutado em ação declarativa, contra “BB - Exploração Hoteleira, Lda” e CC pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de EUR 82.690,10, acrescida de juros de mora vincendos até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Por contrato de arrendamento, datado de 1.1.2007, deu de arrendamento à ré a loja sita na rua …, nº …-B, em Lisboa, mediante o pagamento mensal de EUR 1.200,00.

O réu interveio no contrato, como fiador.

A ré, contudo, nos períodos indicados no requerimento inicial, não procedeu ao pagamento de rendas no montante de EUR 41.962,14.

Em face disso, a autora pediu a condenação dos réus a pagar-lhe a importância em dívida, a título de rendas, uma indemnização igual a 50% daquele quantitativo e ainda os respectivos juros de mora.

2. Contestou o réu, alegando, em síntese, que os montantes das rendas se encontram pagos.

3. No decurso da ação, a autora reduziu o pedido a “EUR 53,943,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento”.

4. Na 1ª instância, foi proferida sentença que absolveu os réus do pedido.

5. Inconformada com a sentença, dela apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação de … proferido acórdão em que, julgando parcialmente procedente a apelação, condenou, solidariamente, os réus a pagar à autora a quantia de EUR 37.469,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação da ré até integral pagamento.

6. Inconformado com o decidido pela Relação, o réu veio interpor recurso para este Supremo Tribunal.

Nas suas alegações, em conclusão, disse:

1. No douto acórdão, e com interesse para o objeto do presente recurso, foi decidido julgar parcialmente procedente a apelação apresentada pela Autora e, em consequência, condenar o Recorrente a pagar à Autora a quantia de € 37.469,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação.

2. Entende o Recorrente que deverá o acórdão ser revisto, devendo, em consequência, manter-se a decisão proferida em sede de Primeira Instância.

I - Da Nulidade do acórdão por excesso de pronúncia

3. Em sede de conclusões, no recurso apresentado pela Autora da decisão de primeira instância, submetia-se à reapreciação do Tribunal da Relação, apenas e tão-somente, a impugnação das matérias vertidas nos pontos 23 (“A Autora omitia a emissão de recibos de quitação das rendas") e 25 (“As rendas peticionadas estão, pelo menos, parcialmente pagas”) da matéria dada como provada.

4. Assim, andou mal o Tribunal da Relação ao considerar como questões a resolver (citando o douto acórdão recorrido): "Saber se ocorre erro na apreciação dos pontos de facto da decisão recorrida: 23 "A Autora omitia a emissão de recibos de quitação das rendas" 25 "As rendas peticionadas estão, pelo menos, parcialmente pagas" e "Destes elementos emergiu com clareza para o tribunal que haverá rendas pagas, não se sabendo, porém, em que exato quantitativo",' e "Saber se ocorre na decisão recorrida erro na interpretação das disposições dos arts 342/2, 787, nºs 1 e 2 e 813 e 334 do CCiv.", Porquanto, em momento algum, tais premissas ou sequer disposições legais.

5. Pelo que, o douto acórdão Recorrido ultrapassou largamente as questões que lhe foram submetidas para apreciação, quando relevou uma conclusão retirada pelo Tribunal de Primeira Instância, designadamente, "Destes elementos emergiu com clareza para o tribunal que haverá rendas pagas, não se sabendo, porém, em que exato quantitativo" e quando apreciou a aplicação e interpretação de determinados preceitos legais, porquanto estas não eram sequer do conhecimento oficioso, devendo portanto ser declarada a nulidade insuprível nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), in fine do Código de Processo Civil.

Não obstante, unicamente à cautela, por mero dever de patrocínio e a título subsidiário,

II - Da Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia

6. Se pretendesse o Digm. Tribunal a quo apreciar a conclusão teria sempre de o fazer em toda a sua extensão e com base em todos os fundamentos em que aquela assenta e nunca apenas no ponto 23 e 25 da matéria dada como provada.

7. Caso se entenda que andou bem o Digm. Tribunal a quo ao apreciar a conclusão alcançada pelo Tribunal de Primeira Instância, mais concretamente, "Destes elementos emergiu com clareza para o Tribunal que haverá rendas pagas, não se sabendo, porém, em que exato quantitativo, podendo mesmo dar-se o caso de estarem pagas na totalidade." teria de o ter feito uma exaustiva, no que respeita aos seus fundamentos e não apenas dos indicados nas alegações de recurso apresentadas, mais concretamente através da reapreciação dos pontos 6, 7, 18 a 27 da matéria de facto dada como provada, bem como, de outros factos instrumentais dados como assentes, porquanto apenas assim a referida conclusão era validamente entendida, o que não se verificou.

8. Dessa forma, será de concluir que, caso se entenda que andou bem o Tribunal da Relação ao apreciar a referida conclusão, necessariamente teria de se concluir que, atendendo à forma superficial com que a mesma foi analisada, ignorando a sua total dimensão e fundamentos, incorreu em nulidade, desta feita por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.

III - Da Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia - Inversão do ónus da prova

9. Acresce que, ao considerar que seria de apreciar se ocorre na decisão recorrida erro na interpretação das disposições dos arts. 342/2, 787, n.ºs 1 e 2 e 813 e 334 do CCiv., teria o Tribunal da Relação de verificar se haveria fundamento, ou não, para ter ocorrido inversão do ónus da prova, porém, em concreto e sobre a questão em que relevava discutir-se a questão da inversão do ónus da prova, nos termos do Artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil, o Tribunal a quo absteve-se de se pronunciar.

10. Mais, ao não considerar invertido o ónus da prova, o acórdão recorrido teria de desconsiderar a livre apreciação da prova por parte do Tribunal de primeira instância e ainda apreciar a conjugação de todos os elementos de prova e fundamentos, o que também não fez.

11. Da análise da sentença, bem como, da respectiva fundamentação, dúvidas não podem restar que se encontram reunidas todas as condições necessárias para a inversão do ónus da prova, ou, em última instância, para uma livre apreciação da prova mas que em ambas as situações permitiram alcançar as conclusões jurídicas e de facto decididas em primeira instância, porém sem a devida análise e fundamentação, o Tribunal da Relação perfilhou entendimento diverso, omitindo uma análise que lhe era imposta, pelo que, incorreu em nulidade, por omissão de pronúncia nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.

Ainda que assim não se entendesse, mais uma vez unicamente à cautela e por mero dever de patrocínio,

IV - Da Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia - Abuso de direito

12. Em sede de sentença proferida em primeira instância, entendeu a meritíssima Juiz de Direito: "a presente ação se reconduz, na prática, à tentativa de fazer o fiador pagar por aquilo que a sociedade R., cujos sócios se confundem parcialmente com a A, poderia ter em dívida. Assim, mesmo a existir o direito da A, o que não se determinou, sempre este seria de obstaculizar no que concerne ao R., com fundamento na existência de abuso de direito, que nas modalidades supra elencadas, quer pelo relacionamento existente entre A e R.. "

13. Ora, em última instância, caso o Tribunal da Relação tivesse entendido de forma diversa da supra exposta, sempre se impunha a análise da decisão no que concerne à conclusão supra transcrita, estando obrigado o referido tribunal a pronunciar-se, em concreto, sobre a questão do abuso de direito e do entendimento pelo qual não o perfilha.

14. Não obstante, facto é que, não só em primeira instância a Meritíssima Juiz faz constar da decisão que, ainda que não absolvesse os RR., sempre seria de concluir pela verificação do abuso de direito, como tal como tal verificação tem sido entendida como de conhecimento oficioso, pelo que, a sua análise se impunha.

15. Ora, mais uma vez, a omissão de pronúncia quanto a esta matéria fere o douto acórdão de nulidade, nos termos do Artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.

V - Da Violação ou errada aplicação da lei de processo - Inversão do ónus da prova

16. Andou mal o douto acórdão recorrido ao considerar, sumariamente, que não existe fundamento para que operasse a inversão do ónus da prova, nos termos do Artigo 344.º do Código Civil, tendo a Autora ora Recorrida logrado realizar a prova que lhe competia, bem como, a alegação do contrato, do montante das rendas e da falta de pagamento de rendas.

17. Mais considerou que a Autora e ora recorrida logrou fazer prova e alegação da matéria que lhe competia, designadamente, contrato, montante das rendas e da falta de pagamento das rendas, não tendo, de outro modo, o ora Recorrente feito a demonstração do cumprimento, ou seja, do facto extintivo, nos termos do Artigo 342º, n.º 2 do Código Civil, não se verificando a presunção de culpa do credor contemplada no Artigo 1039º, n.º 2 do Código Civil.

18. Porém, da mera análise dos autos, será forçoso concluir que a A. não logrou sequer provar os meses que considera efetivamente devidos, mais se dizendo que os cálculos por aquela apresentados também não sustentam sequer o alegado.

19. Acresce que, e salvo o devido respeito e melhor entendimento, não pode o ora recorrente concordar com a distribuição do ónus da prova operada pelo Digm.º Tribunal a quo, em detrimento do plasmado na sentença de Primeira Instância.

20. Com base nos inúmeros argumentos expendidos na sentença e amplamente elencados nas presentes alegações, a título de exemplo, a posição do Réu perante a prova e a obstrução direta do Autor na sua produção, contrariamente ao entendimento perfilhado pelo Digm.º Tribunal da Relação, o ora recorrente entende que se encontram reunidos todos os pressupostos para que opere a inversão do ónus da prova, nos termos do Artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil.

21. Note-se que esta temática, pese embora redunde numa apreciação liminar da prova, não se inscreve a questão de verificação de erros de apreciação da prova, matéria essa, que, em regra, está arredada dos poderes de cognição deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, com exceção das situações elencadas no número 3 do Artigo 674.º do Código de Processo Civil, porquanto a questão que aqui se debate tem que ver, apenas e só, com a violação de uma norma probatória de direito material que, no entender do Recorrente, é essencial para o apuramento da matéria de facto.

22. A apreciação que, nesta sede, se requer a V. Exas. é a de saber se há que considerar invertido o ónus da prova em virtude da falta de colaboração e até obstrução da Autora na descoberta da verdade, em claro desrespeito pelo princípio processual da cooperação, previsto nos Artigos 7.º e 417.º do Código de Processo Civil.

23. Assim, será forçoso concluir, com base em todos os argumentos amplamente discutidos, que existiu uma conduta obstrutiva da contraparte na ação com vista a impedir a demonstração dos factos que a parte alega, fundamentos bastantes para que opere inversão do ónus da prova.

24. Com as condutas perpetuadas, a Autora e ora recorrida, logrou condenar a produção de prova pelo Recorrente ao insucesso, uma vez que, coartou todos e quaisquer resultados que pudessem vir a ser obtidos com as diligencias probatórias ensaiadas.

25. Ora, em consequência, andou maio Digníssimo Tribunal da Relação ao considerar que as regras do ónus da prova se mantinham inalteradas e que não se encontrava fundamento para que houvesse inversão do ónus da prova, entendendo a Recorrente que o fez, salvo melhor entendimento, até de forma inconstitucional.

26. Deveria o Digníssimo Tribunal da Relação, ter concluído, como foi feito em Primeira Instância, que conseguir provar o pagamento de todas as rendas peticionadas era verdadeiramente diabólica.

27. Acresce que, a prova que fundamentou a aplicação da inversão da prova por parte do Tribunal de Primeira instância, não foi sequer colocada em causa, em sede de recurso por parte da Autora nos termos em que o interpretou o acórdão ora recorrido, pelo que, inexiste qualquer fundamento que permita ao Tribunal da Relação considerar não aplicável a sanção civil prevista no Artigo 344,º, n.º 2 e, em consequência, considerar que não se verifica a inversão do ónus da prova, nos termos supra elencados.

VI - Da Violação da lei substantiva - Erro na Interpretação e aplicação - Abuso de Direito

28. Ainda que sem se debruçar sobre essa matéria de forma aprofundada, porquanto toda a fundamentação anteriormente expendida o fazia concluir, em sede de Primeira Instância, considerou o Digm.º Tribunal ter se verificada a existência de uma atuação em abuso de direito para com o ora Recorrente, ao peticionar as rendas.

29. Porém, em sede de apelação, o Tribunal não se pronunciou sobre a questão, limitando-a estranhamente no que concerne ao montante a liquidar a título de juros de mora.

30. Ora, esta é uma exceção inominada, de conhecimento oficioso e é um instituto de direito civil cujo enquadramento é tardio, ao contrário dos demais. A sua sede normativa reside no Artigo 334.º do Código Civil, estando intimamente ligado à atuação contrária à boa-fé.

31. Ora, nos presentes autos, a Primeira Instância foi clara ao prever que, ainda que se viessem a considerar montantes devidos, sempre estaríamos perante um uso abuso do direito, no que concerne ao aqui Recorrente (leia-se mero fiador) porquanto contrário aos ditames da boa-fé.

32. Facto é que, com base em todos os argumentos apresentados supra, dúvidas não poderão restar que a Recorrida atuou em claro e evidente abuso de direito.

33. Facto é que a primeira instância, claramente identifica as condutas tipificadoras do abuso de direito em sede de sentença proferida em primeira instância, as quais não são sequer colocadas em causa em sede de alegações.

34. Pelo que, encontrava-se o Douto Tribunal da Relação obrigado a declarar o referido abuso de direito, ou, no mínimo, sustentar a sua não aplicação, o que não aconteceu.

35. Assim, ao não ter sequer analisado tal situação, ao não ter verificado que a atuação da Autora ultrapassava o normal exercício de uma posição jurídica, violou o disposto no Artigo 334.º do Código Civil.

36. Atendendo à violação de uma norma de direito substantivo, deve a decisão ser revista em conformidade, sendo reposta a decisão proferida em sede de Primeira Instância.

Por último, mais uma vez unicamente à cautela sem conceder e por mero dever de patrocínio,

VII - Da nulidade do acórdão por oposição com a decisão

37. Entendeu o Tribunal da Relação, em sede do douto acórdão proferido, ser de liquidar as quantias em dívida, abatendo ao peticionado as quantias consideradas liquidadas nos autos.

38. Ora, humildemente, entende o Recorrente que a liquidação jamais caberia ao Tribunal da Relação, porém, ainda que se admitisse tal cenário, sempre os cálculos seriam diversos dos apresentados atenta a total ausência de indicação acerca dos meses que se consideram devidos e daqueles que se consideram já pagas.

39. Ainda assim, com base no supra exposto, caso se pretendesse proceder ao referido cálculo, sempre estaríamos perante montante diverso do indicado no Douto acórdão recorrido, e com base nos cálculos ora apresentados, a existir condenação a mesma jamais poderia ser superior ao montante de € 30.693,93 (trinta mil seiscentos e noventa e três euros e vinte e cinco).

40. Devendo nesta medida, por refletir um erro de cálculo, ser retificado o acórdão de que ora se recorre.

7. Não houve contra-alegações.

8. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), importando, assim, decidir se o acórdão recorrido enferma de nulidade, se há violação das regras do ónus da prova e se estão verificados os pressupostos do abuso de direito.


* * *


II - Fundamentação de facto

9. Factualidade dada como provada no acórdão recorrido:

1 - Por acordo de 1-1-2007, a A. prometeu ceder à R. “BB, Lda.”, representada por DD e EE, temporariamente e mediante contrapartida monetária, a loja sita no ….º B do prédio da …, n.º …, … A e … B, em Lisboa (doc. de fls. 61 a 64).

2 - Nos termos da cláusula terceira, a contrapartida monetária mensal acordada pagar foi de € 1 250, 00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito, na morada da senhoria ou em local por ela indicada e as rendas pagas após o dia 8 de cada mês teriam um acréscimo de 50%, nos termos do art.º 1041.º do C.C..

3 - Nos termos da cláusula quarta, a duração da cedência seria de cinco anos, com início em Janeiro de 2007 e termo em 31 de Dezembro de 2011, nos termos do art.º 98.º do Regime do Arrendamento Urbano.

4 - Nos termos da cláusula décima primeira, o R. CC interveio na qualidade de fiador, declarando assumir solidariamente com o inquilino a obrigação de cumprimento de todas as cláusulas do acordo, seus aditamentos legais e suas renovações até à efetiva restituição do espaço cedido.

5 - Bem assim, declarou que a fiança subsistiria ainda que houvesse alteração de renda e renunciando em caso de execução ao benefício da excussão prévia do património do inquilino, nos termos do art.º 640.º do C.C..

6 - A A. tem como sócios FF, GG, HH e II (doc. de fls. 65 a 75).

7 - A R. “BB” tem como sócios FF e GG (doc. de fls. 76 a 79).

8 - A designação de DD e de EE enquanto gerentes da R. mostra-se registada pela ap. 10, de 14-2-2007 (fls. 77).

9 - A cessação de funções de EE enquanto gerente da R. mostra-se registada pela ap. 139, de 8-2-2012 (fls. 78).

10 - A designação de JJ enquanto gerente da R. mostra-se registada pela ap. 140, de 8-2-2012 (fls. 78).

11 - A cessação de funções de JJ enquanto gerente da R. mostra-se registada pela ap. 34, de 6-12-2013 (fls. 78).

12 - DD enviou o escrito de que se mostra junta cópia a fls. 83, através de carta registada com aviso de receção, em que comunica a renúncia à gerência da R. devido ao facto de ter sido afastado da gerência da mesma, através de um despedimento verbal no passado dia 5 de Dezembro de 2013 por V. Exas. (doc. De fls. 83 a 85),

13 - A carta foi devolvida ao remetente.

14 - DD e de EE enviaram cartas à R., solicitando a regularização do seu despedimento, cartas que foram devolvidas ao remetente (docs. de fls. 86 a 90).

15 - Foi, pelo menos, efetuado o pagamento de € 8 007, 00 referente às contrapartidas dos meses de Setembro a Dezembro de 2010, Janeiro a Dezembro de 2011, Janeiro a Dezembro de 2012 e Janeiro a Novembro de 2013.

16 - A caução entregue não foi devolvida.

17 - Tiveram lugar pagamentos como segue:

- Em 03/01/2012, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 04/01/2012, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 08/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK,

- Em 09/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 10/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 11/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 14/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 15/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 16/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 17/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 18/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 21/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 22/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 22/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 25/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 28/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 29/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 30/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por MM;

- Em 31/01/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 01/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL,

- Em 04/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 05/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 06/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 07/02/2013, em 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 08/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 11/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por MM;

- Em 13/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 14/02/2013, 90,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 15/02/2013 – foi pago 60,00€, conforme papel entregue e assinado por MM;

- Em 18/02/2013, 90,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 19/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 20 e 21/02/2013, 120,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 22 e 25/02/2013, 120,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 26/02/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 27/02/2013, 90,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 04/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 05/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 06/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 07/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por MM;

- Em 08/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 11/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 12/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por MM;

- Em 13/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 14/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 15/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 18/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 19/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 20/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 21/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 22/03/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 26/03/2013, 80,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 26/03/2013, 80,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 28/03/2013, 80,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 03/04/2013, 80,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 04/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 05/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 09/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 10/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 12/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 17/04/2013, 100,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 18/04/2013, 100,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 22/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 23/04/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 29/04/2013, 40,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 30/04/2013, 80,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 02/05/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 03/05/2013, em 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 06/05/2013, em 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 07/05/2013, em 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 08/05/2013, em 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 09/05/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 10/05/2013, 60,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 29/05/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 30/05/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 31/05/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 04/06/2013, 105,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 05/06/2013, 105,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 06/06/2013, 105,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 07/06/2013, 105,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 11/06/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 21/06/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por KK;

- Em 24/06/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 26/06/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 27 e 28/06/2013, 140,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em …/06/2013, 140,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 01/07/2013, 70,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 17/07/2013, 100,00€, conforme papel entregue e assinado por MM;

- Em 22/11/2013, 250,00€, conforme papel entregue e assinado por LL;

- Em 29/11/2013, 250,00€, conforme papel entregue e assinado por MM (doc. de fls. 96 a 115) (confessado).

18 - Requerente e requerida acordaram que o valor das refeições tomadas no estabelecimento comercial da R. pelos sócios seria descontado ao valor da renda mensal (confessado).

19 - A partir de meados de 2012, a requerida passou a efetuar o pagamento de rendas mediante a entrega de quantias em dinheiro, diária ou semanalmente, cujos valores eram depois abatidos no valor mensal da renda.

20 - Em 2011 a R. pagou, pelo menos, € 1.021,55 referentes ao valor de refeições (doc. de fls. 119 a 129) (confessado).

21 - Em 2012 a R. pagou pelo menos € 1.140,50 referentes ao valor de refeições (doc. de fls. 130 a 149) (confessado).

22 - Em 2013, a R. pagou pelo menos € 87,70 referentes ao valor de refeições (doc. de fls. 153 a 155).

23 - A A. omitia a emissão de recibos de quitação das rendas.

24 - As contrapartidas referentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2010 foram pagas através dos cheques de que se mostram juntas cópias de fls. 156 a 158, num total de € 5.750,00.

25 - As rendas peticionadas estão parcialmente pagas nos termos provados nos pontos 15 a 22 e 24.

26 - A A. (e não a R. como por manifesto lapso consta dos temas da prova) omitiu ao R. CC o pedido de pagamento de quaisquer rendas.

27 - FF foi técnico oficial de contas da R. no período compreendido entre 2010 e 2012.


* * *


III - Fundamentação de direito

10. Das nulidades do acórdão recorrido

O recorrente arguiu nulidades do acórdão recorrido, ao abrigo das alíneas c) e d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, normativo aplicável à 2ª instância por força do estatuído no art. 666º, do mesmo Código, sustentando que:

- No recurso de apelação, a apelante apenas impugnou a decisão de facto quanto aos pontos 23 e 25 dos factos provados, em que se deu como provado que a autora não emitia recibos de quitação das rendas e que parte das quantias peticionadas estão pagas;

- Ao sindicar a conclusão a que chegou a Juíza a quo (“destes elementos emergiu com clareza para o tribunal que haverá rendas pagas, não se sabendo, porém, em que exato quantitativo”), bem como ao apreciar e decidir se ocorreu erro de aplicação de determinados preceitos legais, o acórdão recorrido conheceu de questões que não faziam parte do objeto da apelação, enfermando, consequentemente, da nulidade por excesso de pronúncia, prevista na 2ª parte da al. d), do nº1, do art. 615º, do CPC.

Por outro lado, quanto a esta matéria, prevenindo a hipótese de assim não ser entendido, o recorrente arguiu a nulidade por omissão de pronúncia, prevista na 1º parte da al. d), do nº1, do art. 615º, do CPC, alegando que o acórdão recorrido analisou de forma superficial a problemática atinente ao pagamento das rendas.

Vejamos, pois.

As causas de nulidade da sentença são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1, do artigo 615.º, do CPC.

Nele se dispõe, no que aqui releva, que é nula a sentença quando "o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento" (al. d), do nº1, do art. 615º).

A nulidade em causa pressupõe a ocorrência de excesso de pronúncia relativamente às questões de que o Juiz podia e devia conhecer, representando a sanção legal para a violação do estatuído no nº 2, do artigo 608.º, do CPC, no qual se prescreve que o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão de questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

As questões a conhecer são, portanto, as que tenham sido suscitadas pelas partes ou que sejam de apreciação oficiosa, mas não, como se sabe, os argumentos invocados nem a mera qualificação jurídica dada pelas partes. Essencial é que o Tribunal se contenha no âmbito do objeto do recurso, delimitado pelas conclusões (cf. arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC).

Por sua vez, a insuficiência ou mediocridade da fundamentação jurídica não constituem omissão ou excesso de pronúncia, podendo, quando muito, configurar erro de julgamento, mas não “errore in procedendo”.

No caso em apreço, nas alegações da apelação, a recorrente, dando cumprimento ao ónus previsto no art. 640º, do CPC, enunciou os concretos pontos de facto que considerou incorretamente julgados, bem como os meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que deveria ser proferida. E, manifestando a sua discordância quanto à valoração da prova feita pelo julgador, insurgiu-se contra a conclusão a que a MMª Juíza a quo chegou, em sede de apreciação crítica da prova, nos termos acima transcritos.

Neste contexto, é evidente que saber se os meios de prova invocados no recurso de apelação permitem fundar a alteração da decisão de facto, tendo designadamente em conta as premissas e conclusões que o Juiz a quo fez consignar na motivação da sua decisão, se inserem claramente no âmbito dos poderes atribuídos à Relação, em sede de reapreciação da decisão de facto (cf. art. 662º, do CPC).

É, assim, indiscutível que o acórdão recorrido, ao reapreciar a decisão de facto impugnada, nos termos em que o fez (cf. fls. 331-343), não extravasou os limites definidos pela recorrente nas conclusões do recurso de apelação.

Relativamente à alegação de que o acórdão recorrido não podia ter conhecido da questão de saber se a sentença errou na interpretação das normas dos arts. 342º, nº2, 787, nºs 1 e 2, 813º e 334º do CC, é, mais uma vez, completamente infundada a alegação do recorrente, pois, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (cf. art. 5º, nº3,CPC).

Não foi, portanto, cometida nulidade por excesso de pronúncia.

Não se vê também como possa o acórdão recorrido enfermar da nulidade por omissão de pronúncia, prevista na 1º parte da alínea d), do art. 615º, do CPC, por, na perspectiva do recorrente, ter analisado a questão do pagamento das rendas de forma superficial.

Na verdade, o fundamento invocado não é suscetível de configurar a nulidade por ausência de pronúncia, podendo, quando muito, retirar força persuasiva à decisão, ou, eventualmente, traduzir erro de direito, a apreciar em sede de mérito.

O recorrente imputa ainda ao acórdão recorrido a nulidade por omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre a inversão do ónus da prova, nem sobre o abuso de direito.

Mais uma vez, sem razão.

Relativamente à inversão do ónus da prova (cf. art. 344º, nº2, do CC), o acórdão recorrido analisou desenvolvidamente esta questão, e, convocando doutrina e jurisprudência em abono da sua tese, concluiu no sentido da inverificação dos pressupostos do instituto (cf. fls. 336-343).

De igual forma, relativamente ao abuso de direito, o acórdão recorrido explicitou, com total clareza, as razões subjacentes ao entendimento que perfilhou (cf. fls. 346-347).

É, assim, inquestionável que o acórdão recorrido não enferma da nulidade invocada.

Finalmente, veio o recorrente arguir a nulidade do acórdão, por alegada oposição dos fundamentos com a decisão.

Esta nulidade, prevista no art. 615º, nº1, al. c), 1ª parte, do CPC, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.

Como se sabe, a sentença deve conter os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (cf. art. 607º, nº3, do CPC).

Constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência - só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído.

Nesta conformidade, importa ter presente que não ocorre a nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, errou na indagação de tal norma ou na sua interpretação.

Ora, no caso dos autos, não se depreende qualquer relação de exclusão formal entre a fundamentação de facto e de direito e o dispositivo do acórdão recorrido.

O que sucede é que o recorrente discorda da consistência dos fundamentos e dos argumentos em que se apoia a decisão tomada, mas isso constitui já uma questão de mérito a apreciar em sede própria.

11. Da inversão do ónus da prova

No caso que apreciamos, não obstante a terminologia utilizada pelos contratantes, é de considerar que a autora e a ré celebraram entre si um contrato de arrendamento para fim não habitacional, tendo como objeto a loja sita no ….º B do prédio da …, n.º …, …-A e …-B, em Lisboa, mediante o pagamento mensal de EUR 1.250,00, qualificação jurídica atribuída pelas instâncias e que não é sequer contestada na revista.

Por sua vez, nos termos clausulados no contrato, o réu, ora recorrente, obrigou-se como fiador, declarando:

- “Assumir solidariamente com o inquilino a obrigação de cumprimento de todas as cláusulas do acordo, seus aditamentos legais e suas renovações até à efetiva restituição do espaço cedido”; e que

- “A fiança subsistiria ainda que houvesse alteração de renda e renunciando em caso de execução ao benefício da excussão prévia do património do inquilino, nos termos do art.º 640.º do C.C.”.

No arrendamento, a primeira e mais elementar obrigação do locatário consiste em pagar a renda convencionada (cf. arts. 1022º e 1038º, do CC), sob pena de o locador poder, com tal fundamento, resolver o contrato (cf. arts 1047º, 1048º, 1083º e 1084º, do CC).

In casu, está apenas em discussão saber se a ré incumpriu a obrigação de pagar a renda, nos termos contratualizados, cumprimento que o réu, enquanto fiador, se obrigou a garantir.

Na 1ª instância, ao abrigo do disposto no art. 344º, nº2, do CC, entendeu-se que recaía sobre a autora o ónus de provar a falta de pagamento de rendas e, por não ter logrado fazer essa prova, a ação foi julgada improcedente.

A Relação, por seu turno, entendeu que o ónus de prova do pagamento das rendas incumbia aos réus, e, como o não cumpriram quanto a uma parte do pedido, julgou-se a ação (parcialmente) procedente.

Pois bem.

Nesta matéria, a regra é no sentido de que o credor tem de provar a celebração do contrato e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil.

Por sua vez, o cumprimento da respectiva obrigação, designadamente o pagamento do montante da renda convencionada, como facto extintivo do direito de crédito invocado, incumbe ao devedor (cf. art. 342º, nº 2, do CC), tanto mais que, em direito, o pagamento não se presume a não ser em casos expressamente previstos na lei (cf. art. 786º do C.C.) e que aqui se não verificam.

Há, porém, regras especiais de distribuição do ónus de prova para dirimir o non liquet probatório, por via da inversão desse ónus, conforme preceitua o artigo 344º do Código Civil.

Um desses casos de inversão do ónus de prova ocorre quando a parte contrária impossibilitou culposamente a prova de determinado facto ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais (cf. art. 344º, nº 2, do CCC e art. 417º, nº2, do CPC).

No caso em apreciação, foi ordenada a realização de uma perícia tendente a apurar se, através da análise da contabilidade das sociedades envolvidas nesta ação, se recolhiam elementos que esclarecessem a questão do pagamento das rendas, alegadamente em dívida.

O recorrente sustenta que a autora, ao não fornecer determinados elementos da sua contabilidade, o impediu de ter acesso a documentos que poderiam comprovar o pagamento das rendas pela sociedade ré. Esta recusa de colaboração, no entender do recorrente, é suscetível de inverter o ónus da prova (cf. art. 417º, nº2, do CPC) e, por isso, a autora devia ter sido onerada com a prova de que o(s) réu(s) não pagaram as rendas peticionadas.

Não será, contudo, assim.

Na verdade, muito embora a autora não tenha apresentado ao perito determinados elementos, a verdade é que não decorre dos autos que tal omissão tenha sido deliberada, ou sequer culposa.

Por outro lado, incumbindo ao locatário alegar e provar que o locador lhe tornou impossível a prova do pagamento (cf., neste sentido, o ac. do STJ de 8.5.2008, Jus Net 1900/2008), não decorre dos autos que o recorrente estivesse impossibilitado de fazer essa prova, já que lhe seria lícito utilizar qualquer outro meio de prova legalmente admitido (cf. arts. 341.º e 345.º do CC).

Certo é que, in casu, se desconhece a razão que levou a ré a pagar rendas sem exigir quitação, podendo fazê-lo (cf. art. 787º, do CC), bem como a autora a receber determinados quantitativos sem dar a correspondente quitação, sendo de notar, conforme se entendeu no acórdão recorrido, que “a omissão da emissão dos recibos de quitação das rendas não é suficiente para concluir que a autora se recusava a passar os recibos das rendas à sociedade arrendatária, porque para tanto era necessário alegar que a sociedade arrendatária solicitava esses recibos e que a sociedade autora se recusava a passá-los (…).”.

Afigura-se-nos, pois, que a situação descrita nos autos, não permite imputar à autora comportamento que preencha os requisitos previstos nos arts. 417º, do CPC e 344º, nº2, do CC.

Assim sendo, é indiscutível que o ónus da prova do pagamento devia recair sobre os réus, como acertadamente se decidiu no acórdão recorrido.

12. Do abuso de direito

O recorrente sustenta que a autora, ao reclamar nesta ação o pagamento das rendas, está a atuar com abuso de direito. Para fundar a sua pretensão, alegou, em síntese, que: existe uma ligação familiar entre os sócios da autora e da ré; a ré não contestou; as rendas eram liquidadas diária ou mensalmente ou através de mecanismos de compensação; a autora não informou o recorrente da existência da dívida de rendas, nem reclamou o seu pagamento ao fiador; a autora recusou-se a prestar as informações sobre a contabilidade da ré, inviabilizando o recorrente de fazer a prova do pagamento.

Vejamos.

O art. 334º, do CC estabelece que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

O abuso do direito pressupõe manifesto excesso ou desrespeito clamoroso dos limites axiológico-materiais do direito invocado, sendo naturalmente exigível a alegação e prova desse excesso.

Por sua vez, na modalidade de "venire contra factum proprium", o abuso de direito caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.

Importa ainda ter presente, como ensina Menezes Cordeiro, que “havendo solução adequada de Direito estrito, o intérprete-aplicador terá de procurá-la, só subsidiariamente se reconfortando no abuso de direito. Só conjunturas muito ponderosas e estudadas poderão justificar uma solução contrária à lei estrita.”.

No caso dos autos:

Como se sabe, pode ser convencionada uma fiança em garantia do crédito de rendas, respondendo após o esgotamento dos bens do inquilino (cf. arts. 1038º, al. a) e 638º, ambos do CC). Porém, se renunciar contratualmente a esse benefício da excussão prévia ou se tiver assumido a obrigação de principal pagador (cf. art.º. 640º, al. a), do CC), como sucedeu in casu, o fiador posiciona-se como codevedor solidário da integralidade da dívida (cf. art.º. 634º, do CC).

Assim, ao instaurar a presente ação, a autora limitou-se a exercitar o direito que lhe assiste, enquanto locadora, de exigir à arrendatária e ao fiador, solidariamente, o pagamento das quantias em dívida.

Acresce que – e decisivamente - a materialidade provada, não permite imputar à autora um comportamento malicioso que faça atuar o instituto do abuso de direito. Tão pouco se pode considerar que a autora, com a sua conduta, tenha criado no recorrente uma expectativa, sólida e fundada, de que teria renunciado a reclamar o pagamento das rendas em dívida.

Em face do exposto, é de concluir pela inverificação dos traços nucleares do instituto que o recorrente invoca, a fim de se eximir ao pagamento das quantias em causa nesta ação.

13. Do montante da condenação

O Tribunal da Relação condenou os réus, solidariamente, a pagar à autora a quantia de EUR 37.469,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação da ré.

Nas alegações da revista, o recorrente sustentou que o acórdão recorrido enferma de erro de cálculo e que “a existir condenação a mesma jamais poderia ser superior ao montante de EUR 30.693,93.”.

Na Relação, em conferência, os Exmo. Juízes Desembargadores afastaram, a existência de erro de cálculo.

Vejamos, pois.

O acórdão recorrido procedeu – e bem – à liquidação da quantia em dívida, uma vez que o seu apuramento dependia de simples operação aritmética.

O recorrente limita-se a afirmar que há “erro de cálculo”, sem, todavia, demonstrar, como se impunha, a sua afirmação.

Ora, ao quantificar o montante em dívida, o acórdão recorrido explicitou minuciosamente o raciocínio e as operações que conduziram ao apuramento final, em termos que merecem a nossa inteira concordância e que não permitem suscitar a mais pequena dúvida sobre o acerto da decisão.

Resta, assim, concluir pela improcedência do recurso, também nesta parte.


* * *


IV – Decisão


14. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 22.3.2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida