Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
741/03.0TBMMN.E1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
REPARAÇÃO DO DANO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
INDEMNIZAÇÃO
COMERCIANTE
ESCRITA COMERCIAL
VALOR PROBATÓRIO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 05/31/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DO AUTOR
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / REGULARIZAÇÃO DOS SINISTROS / PERDA TOTAL DO VEÍCULO SEGURADO.
DIREITO COMERCIAL - ESCRITURAÇÃO COMERCIAL / VALOR PROBATÓRIO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 770-773.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2011, Almedina, 904-906; in RLJ, 117º, 31.
- Cassiano dos Santos, Direito Comercial Português, I, Coimbra Editora, 2007, 200.
- Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial, I, 120.
- Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, 165.
- Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2.ª edição, 1970, 362, 363 e 366.
- Júlio Gomes, Cadernos de Direito Privado, nº 3, Julho/Setembro, 2003, 56.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 3.ª edição, 402; Direito das Obrigações, I, 2015, 12.ª edição, Almedina, 298.
- Miguel Pupo Correia, Direito Comercial, 10.ª edição, revista e actualizada, 2007, 94 e 95.
- Paul Esmein, Traité de la Responsabilité Civile, II, 1962, 182.
- Pereira Coelho, O nexo de causalidade na responsabilidade civil, Dissertação de Licenciatura em Ciências Jurídicas, Coimbra, 1950, 53.
- Pereira Coelho, Obrigações, Sumários das Lições ao Curso de 1966/67, Coimbra, 1967, 174.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, I, 4.ª edição, revista e actualizada, 1987, 576, 577, 582.
- Vaz Serra, RLJ, Ano 110.º, 19 a 22.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 2, 380.º, 410.º E SS., 562.º, 564.º, N.º 1, 566.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 44.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 662.º, 674.º, N.º 3, 682.º, N.ºS 1, 2 E 3.
D.L. N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO (SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL), QUE RESULTOU DA TRANSPOSIÇÃO PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL DA DIRECTIVA N.º 2005/14/CE: - ARTIGO 41.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

-DE 11-11-1970, ACÓRDÃOS DOUTRINAIS, ANO 10.º, N.º 111, 387.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 7-10-1976, BMJ N.º 260.º, 138; DE 25-7-1969, BMJ N.º 189.º, 317; DE 26-4-1955, BMJ N.º 48.º, 748.
DE 14-1-1997, P.º N.º 605/96, 1.ª SECÇÃO, WWW.DGSI.PT .
-DE 7-7-1999, CJ, ANO VII, T3, 16 A 19.
-DE 25-2-2003, CJ (STJ), ANO XI (2003), T1, 109; DE 30-1-1997, P.º N.º 96B751/96, 2.ª SECÇÃO;
-DE 27-2-2003, P.º N.º 02B4016, WWW.DGSI.PT .
-DE 18-5-2004, P.º N.º 04A1417, WWW.DGSI.PT .
-DE 4-12-2007, P.º Nº 06B4219; DE 5-7-2007, P.º N.º 07B1849; DE 12-1-2006, P.º N.º 05B4176, WWW.DGSI.PT .
-DE 16-10-2008, P.º N.º 08B2668, WWW.DGSI.PT; DE 7-10-1949, BMJ N.º 15, 393.
Sumário :
I - O art. 44.º do CCom só é aplicável quando ambas as partes são comerciantes, porquanto se apenas uma delas o é, o valor probatório da escrita comercial é o mesmo dos simples documentos particulares, sendo a prova resultante da escrituração comercial, regularmente, arrumada, não obstante assumir um valor probatório especial, de livre apreciação pelos tribunais de instância, não possuindo força probatória plena entre os próprios comerciantes, sendo lícito à outra parte e ao próprio comerciante invocar outros meios de prova em contrário.

II - A definição da hierarquia dos meios de prova de livre apreciação pelo tribunal, e bem assim como a consideração de certas provas, em detrimento da desconsideração de outras, ou de determinados depoimentos, em primazia de outros, sustenta-se no princípio da convicção racional, que não afeta o princípio da igualdade processual das partes.

III - Sendo o fim precípuo da lei que o lesante proveja à direta remoção do dano real, e consistindo este em danos produzidos num veículo, há que proceder à sua reparação ou substituição, por outro idêntico ou similar, por conta do agente, que lhe proporcione igual utilidade e satisfação das suas necessidades, em detrimento do recebimento do correspondente valor em dinheiro, cabendo ainda as despesas tendentes a esta substituição, tal como a reparação material, propriamente dita, na forma de indemnização, por reparação natural, e não na indemnização por equivalente.

IV - Contendendo o princípio geral da restauração natural, em matéria de obrigação de indemnização, com o dano real ou concreto, põe em relevo o valor de uso que o lesado extrai de veículo sinistrado, ou seja, o seu valor patrimonial, não fazendo, portanto, sentido reparar um veículo, «maxime», recorrer à forma de indemnização por equivalente, quando é possível encontrar veículos semelhantes, por um valor inferior ao custo da reparação, não sendo difícil ao lesante, em especial, tratando-se de entidade seguradora, identificar uma viatura idêntica ou similar à sinistrada, com aptidão para o exercício da atividade a que o lesado a destinava.

V - A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.

VI - É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do automóvel, antes do acidente, por um lado, e o custo da sua restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro.

VII - A existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.

VIII - Sendo a regra geral da restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, ou seja, a prova da excepção, isto é, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si.

IX - Não sendo a reparação do veículo acidentado material, ou, economicamente, viável, nem sequer suficiente, no sentido de reparar, integralmente, os danos, nem se tendo provado que fosse impossível encontrar um veículo idêntico ou, mesmo não o sendo, apto para substituir o acidentado, no mercado de veículos usados, o princípio geral da reconstituição natural consente que, em sede de julgamento equitativo, se condene o lesante a entregar ao lesado um veículo automóvel de substituição, com caraterísticas e aptidão idênticas para o exercício da atividade a que este destinava o acidentado, com o valor limite correspondente ao reclamado e constante do pedido, como forma de indemnização por equivalente, contra a entrega ao lesante dos «salvados» ou do respetivo valor.

X - Configurando-se a restauração natural como princípio primário da indemnização, ditada no interesse de ambas as partes, tendo o autor pedido na ação o sucedâneo da indemnização pecuniária, pode o tribunal condenar em temos de reposição natural, sem que tal importe a violação do princípio do pedido, encontrando-se, igualmente, a condenação na obrigação de entrega do bem, estritamente, limitada ao valor do pedido formulado, em termos de indemnização em dinheiro.

XI - A condenação do lesante a entregar ao lesado um veículo automóvel de substituição, com caraterísticas e aptidão idênticas para o exercício da atividade a que este destinava o acidentado, reconstitui a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, restituindo o lesado no estado anterior à lesão, sem constituir, simultaneamente, causa de enriquecimento ilícito do mesmo, à custa do devedor lesante.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:


AA propôs a presente ação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra a “Companhia de Seguros BB, SA”, ambos, suficientemente, identificados nos autos, pedindo que, na sua procedência, esta seja condenada a pagar-lhe, a título de indemnização pelos danos resultantes do acidente de viação inframencionado, a quantia de €45000,00, pelos danos emergentes da perda total do veículo de sua propriedade, conduzido pelo falecido marido da autora CC, e custos de aquisição de um veículo equivalente, a quantia de €3250,00, pelos danos emergentes da perda dos animais transportados, a quantia de €99112,35, pelas despesas emergentes e lucros cessantes, a quantia de €2275,00, relacionada com o parqueamento da viatura, com juros de mora, desde a citação, para além dos danos que ocorram, após a citação, mormente, com o avolumar dos danos emergentes e lucros cessantes, invocando, para o efeito, factos pertinentes.
Na contestação, a ré, admitindo que o acidente ocorreu como é descrito na petição inicial, impugna a generalidade dos danos alegados pelo autor, concluindo no sentido de que a ação deve ser julgada improcedente, por não provada, na parte que excede a confissão efetuada.
A sentença, no segmento que interessa considerar, julgou a ação, parcialmente, procedente, condenando a ré seguradora a pagar ao autor AA, a título de danos materiais, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a data da citação e até integral pagamento.
Desta sentença, o autor AA interpôs recurso, com subsequente apresentação de alegações, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação e, em consequência, confirmou a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Évora, o autor AA interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, integralmente:
1ª – O ora Recorrente na conclusão IV das suas alegações em sede de Recurso de Apelação refere que: «Destarte, julgamos que a resposta aos quesitos - 13 deverá ser alterada/modificada, dando como provado que - Dos elementos documentais juntos aos autos (fls.Jls.305 e 307, 309, 312, 313, 315, 356 a 391, 393 a 406, 889 a 1096), bem como, da produção de prova testemunhal, resulta que o Autor tem necessidade de contratar "fretes" de transporte de gado vivo por si adquirido ou vendido, e ainda na gestão normal da sua presente actividade de criador de gado.».
2ª - No quesito 12 provar-se-á ou não se o Autor teve que contratar os serviços de outras empresas, incluindo a que detém participação social. No quesito 13 provar-se-á ou não se o Autor contratou com «terceiros» a realização de fretes. A relevância desta «pequena-grande» distinção releva no âmbito da própria fundamentação do Acórdão dada à resposta do quesito 13 «a sua resposta está dependente da solução encontrada pelo A. Dentro de uma outra empresa de que é proprietário e a que a Sra. Juiz não deixou de aludir (...)».
- O Acórdão da Relação, não se pronunciou sobre a matéria do quesito 12, nem sequer apreciou a distinção existente entre o quesito 12 e o 13, e que importam uma apreciação distinta e bem diversa da fundamentação dada.
4ª - A nulidade de omissão de pronúncia prevista no art.615° n°1 alínea d) aplicável à 2a instância por força do disposto no art. 666° n°1 traduz-se no incumprimento, por parte do Julgador do dever prescrito no n°2 do art.608° todos do Cód. Proc. Civil, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não se trata dos argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes. Ao invés trata-se das pretensões formuladas ou a elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir.
5ª - Pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 684° n°2 do Cód. Proc. Civil, deverá decretar-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação com base na omissão da pronúncia, e de forma restritiva ser proferida reforma do acórdão cuja anulação ora se invoca e se requer, com subsequente apreciação da matéria ínsita ao quesito 12, cuja matéria não foi distintivamente apreciada face à matéria do quesito 13.
- Toda a prova contabilística abundantemente junta aos autos pelo Recorrente, a par da prova documental reunida pelos Srs. Peritos, acrescido de todos os movimentos bancários (o Apelante prescindiu do sigilo bancário) juntos aos autos de fls.358 a 391 pela própria BANCO CAIXA DD [com o canhoto identificativo onde foi depositado os cheques], e ainda todas as declarações oficiais para efeitos tributários de fls. 1029 a 1090, demonstram que o Recorrente expôs totalmente a sua escrituração comercial nos presentes autos, denunciando nada ter a esconder ao Tribunal nem à parte contrária.
7ª - Contra ela [prova documental e oficial], a Recorrida não produziu qualquer tipo de prova.
8ª - Importa articular com os critérios legais da repartição do ónus de prova, os critérios legais de eficácia probatória (regras probatórias fixadas em abstracto), na medida em que o ónus de contraprova ou carece de prova principal, a chamada prova do contrário em oposição à prova legal plena nos termos do art° 347° Cód. Civil, ou de simples contra-prova indirecta, nos termos do art° 346° Cód. Civil, bastando, neste caso, que a parte não sujeita ao ónus subjectivo lance a dúvida sobre os factos que ao outro incumbe provar.
9ª - Na apreciação da força probatória da documentação contabilística, art° 44° n° 1 C. Comercial - não revogado pelo DL 262/86 de 2.9 que aprovou o Código das Sociedades Comerciais - importa atender ao princípio da indivisibilidade da declaração, cfr. art°s. 376° n° 1 e 2 e 360° Cód.Civil.
10ª - Na medida em que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, cfr. art° 341° Cód. Civil, não é juridicamente admissível postergar as normas de direito probatório e os critérios legais de eficácia probatória dos meios de prova, salvo em caso de disposição legal expressa nesse sentido, na exacta medida em que o princípio da livre apreciação das provas cede perante o principio da prova legal, isto é, cede perante provas com valoração legalmente tabelada, v.g. presunções legais, documentos e confissão - vd. Anselmo de Castro in "Direito Processual Civil Declaratório" Almedina, Vol III, págs. 308/309; Manuel de Andrade in "Noções Elementares de Processo Civil" Coimbra Editora/1979, págs. 211/212.
11ª - Quer o Tribunal a quo quer a Relação confundiram a validade intrínseca dos documentos contabilísticos e bancários, os quais por si só expressam e comprovam as declarações e os factos neles contidos, com a exigibilidade ou não dos danos reclamados.
12ª - A Relação, sem fundamentar ou evidenciar os elementos probatórios adversos, desconsiderou todos os movimentos bancários, efectivamente realizados e bem expressos nas cópias dos cheques originais junto aos autos pela própria BANCO CAIXA DD e que contêem o carinho da sua passagem pela câmara de compensações, e reflectidos contabilisticamente.
13ª - A todos estes elementos documentais não foi produzida QUALQUER contraprova relativa à sua autenticidade ou validade.
14ª - A matéria ínsita aos artigos 14°, 20 a 23.2, 135 e 136 da base instrutória não diz respeito à condição directa, adequada, necessária e causal da realização de tais despesas e encargos como consequência do evento danoso causado pelo sinistro. Apenas é indagado se despendeu determinadas quantias, por conta de tais transportes, e naturalmente o custo de tais serviços.
15ª - Vale, isto por dizer, que independentemente da qualificação e integração jurídica que sobre tais elementos de prova possa ser feita em sede de enquadramento jurídico a despeito do nexo causal ou não, que possa ser aferido sobre o dano causado pelo sinistro e tais despesas, certo é que, a formulação dos quesitos não se encontra efectuada de moldes a se pretender estabelecer uma condição sine qua non com a produção do evento lesivo.
16ª - O fito de tais perguntas destinam-se apenas e tão só a apurar a existência ou não, da realização de tais despesas e encargos, e claro da respectiva quantificação.
17ª - A resposta dada pela Relação [idêntica à do Tribunal a quo] reduz a NADA a existência legal e real, não só para efeitos comerciais como tributários de tais elementos documentais.
18ª - É, um nítido excesso de interpretação, traduzindo-se numa conclusão sobre a qual, não existe UM único elemento de contra-prova produzido.
19ª - Catapultar a análise de tais elementos para a sua inexistência técnica, legal e jurídica é admitir e assumir uma total repulsa à sua própria existência, sem que para tal haja fundamentação de facto ou de direito possível.
20ª - As análises às declarações fiscais derivadas de elementos colhidos na escrita contabilística de um contribuinte, se realizadas tecnicamente, de acordo com os preceitos da revisão, merecem, em principio, relativa fé, valendo como elemento de prova, se a matéria é levada à esfera judicial. Foi este o critério usado na prova pericial que envolveu dois elementos da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas.
21ª - Também alicerça a questão o facto da força probatória dos livros e escrituração comerciais, estar assegurada pelo Código Comercial, art. 44° e segs.
22ª - Trata-se de uma prova "pré-constituída" porque é preparada para em eventualidade futura vir a servir como um instrumento a ser acatado como verdadeiro, sendo esta uma prerrogativa dos empresários e gestores.
23ª - Nos presentes autos não foram apreciados ou apresentados quaisquer factos ou documentos que invalidem a escrituração comercial do Apelante.
24ª - In casu, não foram produzidos elementos de prova que contrariem um só dos documentos apresentados, nem um só item destes constantes.
25ª - No caso dos autos, o Recorrente foi alvo de perícia, que confirmou TODOS os elementos/factos alegados.
26ª - Ora as declarações fiscais feitas de acordo com os critérios exigíveis são instrumentos naturais e idóneos de prova que evidenciem com clareza a situação patrimonial e as mutações neste contidas.
27ª - Dos autos NENHUM facto emerge, quer documental quer testemunhal, que permitisse às instâncias concluir pelo inverso. E este tipo de prova não se faz com regras de experiência comum ou facto notórios. É necessário a alegação concreta de uma factologia real, palpável, documentalmente visível para que o confronto e o contraditório possa ser exercido.
28ª - De igual modo, não é possível, mesmo com recurso a uma qualquer interpretação extensiva e lata de uma conceito suficientemente aberto e difuso da livre apreciação da prova, que permita ao Julgador a quo formular uma "convicão" de que a contabilidade do Apelante não é real e verdadeira.
29ª - Para fundamentar tal convicção não basta a subjectividade impressionista da convicção. Necessário se torna sustentar com elementos concretos, de igual medida, espécie e natureza, isto é, "contabilísticos ou tributários" dos quais se possa inferir a formulação de um juízo de valor.
30ª - Não é possível concluir com singela simplicidade pela não admissibilidade probatória, sem contrapor elementos de facto efectivos e concretamente esclarecidos. Não basta um «Não Provado» com recursos a «sensações» bem expressas na fundamentação quando a dado momento se refere «a sua resposta está dependente da solução encontra pelo A. Dentro de uma outra empresa de que é proprietário e a Senhora Juiz não deixou de aludir conforme citação (...) Assim sendo, a resposta dada (não provada) em nada colide com o relatório pericial e bem assim com a documentação relativa aos fretes alegados».
31ª - A escrita contabilística é uma confissão ampla de factos por parte do contribuinte, que precisa ser examinada de per si quando à questão e objectivar os factores sujeitos a correcção ou mesmo a expurgação, por inexistentes ou errados. É preciso ainda considerar que os livros e as declarações fiscais são decorrências de documentos e que estes os são de factos. O douto Acórdão ora posto em crise violou expressamente a força probatória dos livros e escrituração comercial - art.44° e segs. do Cód. Comercial, e bem assim, os princípios subjacentes ao ónus de prova - art.342° n°2 do Cód. Civil, porquanto, não foi demonstrado nem alegado qualquer elemento de facto contrário ao invocado pelo Autor ou que tenha resultado da prova produzida. Tais elementos traduzem-se em Prova Legal dos factos sobre os quais recaem.
32ª - «Dano em sentido jurídico ê, segundo Fischer, todo o prejuízo que o indivíduo, sujeito de direito, sofre na sua pessoa e bens jurídicos, com excepção dos causados pelo próprio prejudicado»4 conforme é citado por Manuel Gomes da Silva in O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, Vol. I, pág. 64, 1944. O dano é privação dum ou mais benefícios, concretamente considerados (frustração dum ou mais fins em especial) ou de uma generalidade de benefícios (perda da utilidade dum bem), motivada pela colocação do bem, com o qual era lícito ao prejudicado atingir esse benefício, em situação de ele não poder utilizar para tal fim.
33ª - Demonstrado que o dano se relaciona directamente com a utilização dum bem para alcançar um fim, está naturalmente indicado examinar quais as relações dele com a violação do direito, pois é sabido que o bem e o fim são as pedras angulares da noção de direito subjectivo. Consiste este na afectação jurídica dum bem à realização dum ou mais fins duma pessoa individualmente considerada. A violação do direito há-de verificar-se, portanto, pela desvinculação do bem ao fim.
34ª - O Autor/Recorrente demonstrou o pagamento desde a data do sinistro (24.06.2002) até à data do início do julgamento (23.06.2010) do valor de 401.902,18€ relativo a fretes pagos por conta de transporte de gado, por si criado e comercializado, tendo suportado 75.152,21€ a título de IVA relativo a tais transportes.
35ª - E nem se diga que o Autor com recurso aos seus próprios meios resolveu o problema, porquanto, pagou e celebrou com «terceiros» o aluguer de veículo, tal como resulta dos autos e de toda a prova produzida, sem sequer ter havido um só ponto contrário a tal demonstração dos danos emergentes.        
36ª - Deverá ser esta a medida da reparação ressarcitória a título de danos emergentes a que a Recorrida deverá ser condenada a suportar.
37ª - A Relação com base no facto provado de que o veículo do Recorrente, antes do sinistro, tinha um valor comercial de 10.000,00€, tendo na sequência do evento lesivo sofrido danos tecnicamente irreparáveis, entende manter o valor da perda sofrido pelo Autor, ao valor do veículo à data dos factos. Entender que o dano do lesado se cinge ao valor do bem perdido antes do produção do facto danoso é ignorar totalmente o sentido e o valor da utilidade económica que o lesado usava, fruía e disponha com a existência de tal bem. O artigo 562° do Código Civil estabelece o princípio da reposição natural quanto à indemnização: o dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano. A reposição natural, conforme sublinha Vaz Serra, "não supõe necessariamente que as coisas são repostas com exactidão na situação anterior: é suficiente que se dê a reposição de um estado que tenha para o credor valor igual e natureza igual aos que existiam antes do acontecimento que causou o dano. Com isto, fica satisfeito o seu interesse". E acrescenta: "É discutível se o credor pode exigir que o devedor substitua o velho pelo novo, indemnizando ele credor a diferença de valor.
Enquanto uns defendem esse critério, outros impugnam-no. E assim que Enneccesus - Lehmann, contra Ocrtmann, julgam que tal critério não é equitativo e que, se o devedor quiser, pode repor o velho pelo novo, mas sem direito de reclamar a diferença de valor. E deverá admitir-se, sem mais, o critério expresso no adágio popular: "quem estraga velho, paga novo". E acrescenta ainda: "Em regra, não é razoável que tenha de adquirir um objecto já usado e com valor igual ao que perdeu. Temos, portanto, que, para a reparação do dano, deve dar-se o preço do objecto a adquirir para substituir o outro: "Como, porém, o credor vem assim a obter um lucro, deve dar ao devedor a diferença de valor... quando isso não representar um encargo não -equitativo para ele credor... Cabe ao Juiz apreciar, em fase das circunstâncias se é ou não equitativa esta solução..." (Obrigação de Indemnização, in Boletim Ministério da Justiça n. 84, páginas 132 a 138). Esta posição de Vaz Serra, resultante da análise de abundante doutrina estrangeira, formada perante o estatuído legalmente nos respectivos países, não obteve inteira consagração legal no nosso Código de 1966. Por um lado, o artigo 566° n°1 manda, em princípio, reparar o dano mediante a reconstituição natural: "se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa, ou ainda em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e a sua entrega ao lesado, ou ao conserto (reparação) ou substituição da coisa por conta do Agente" (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6. edição, página 875).
38ª - Caso esse dano não tenha valor haverá que atender ao artigo 566 n°3 que prescreve que "se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o Tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados". Nestes casos - o da não determinação (prova) do valor dos danos - os danos têm de ser apreciados equitativamente.
39ª - A apreciação equitativa vem a significar que o Julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem a liberdade de subtrair-se a esse enquadramento rígido e proferir a decisão que lhe parecer mais justa, ou seja, o Juiz funciona como um árbitro, ao qual lhe fosse conferido o poder de julgar "ex aequo et bono". A equidade funda-se, em suma, em razões de conveniência, de oportunidade, e, principalmente, de justiça concreta.
40ª - Perante os enunciados princípios, em conjugação com a factualidade, temos de precisar que o Autor ora Recorrente tem direito a ser indemnizado pelo valor da viatura antes de acidentada (acrescido, naturalmente, dos juros de mora fixados e não discutidos) e, ainda, pelo dano que sofreu, consistente em não poder manter o seu veículo em circulação, com a devida reparação.
41ª - Mas regras do artigo 566° n°1 do Cód. Civil não respeitam a limitação de indemnização mas sim à determinação dos casos em que é licito substituir a reconstituição natural por uma indemnização em dinheiro. O disposto no artigo 566° n°1 do citado diploma não pode funcionar como um meio de o devedor lograr a redução da indemnização devida ao credor.
42ª - Assim, na espécie, não resulta que exista desproporção entre o interesse do lesado, credor da indemnização, e o custo de aquisição de uma outra semelhante. A desproporção verifica-se, pelo contrário, entre a indemnização que é atribuída ao credor pelo Tribunal e o seu interesse legítimo, visto que não resulta que o credor possa com aquela quantia em dinheiro adquirir um veículo equivalente, e especialmente adaptado ao uso que lhe é destinado.
43ª - Ora a mera atribuição do valor do veículo antes do sinistro representa um juízo punitivo para o credor, uma injustificada redução da indemnização visto que não existe culpa do lesado.
44ª - Finalmente, nada, à luz da equidade e da boa-fé, justifica que, a pretexto de se substituir a reconstituição natural por indemnização em dinheiro, o devedor pague menos daquilo que deve. A equidade segundo a boa-fé pode, em muitos casos, justificar a validade da velha máxima de que "quem estraga velho paga novo". Se ao lesado é estragado um fato com algum uso, mas que lhe pode servir perfeitamente não lhe é exigível que receba a título de indemnização uma quantia que apenas chegará para, num adelo, adquirir um fato usado sabe-se lá por quem (Cfr. Dário de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 1. edição, páginas 341 e 342).
45ª - Precisamente, na espécie, onde o Recorrente destinava o veículo ao exercício da sua profissão, não podendo trabalhar sem a respectiva substituição por um outro, é a equidade segundo a boa fé que não permite, antes reprova, a limitação da indemnização.
46ª - In casu, a viatura XX-61-XX à data do sinistro tinha um valor comercial de 10.000,00€ (facto provado 26). A viatura sofreu danos tecnicamente irreparáveis, isto é, perda total (facto provado 27). A actividade do Apelante depende da propriedade do veículo (facto provado 30°). O custo de aquisição de um veículo equivalente, fixa-se entre os 52.000,00€ e 62.000,00€ (facto provado 35).
47ª - Sucede que a Recorrida não logrou sequer fazer contra-prova do quantum necessário à aquisição de um veículo equivalente, nem sequer a isso se referiu em toda a sua defesa. Para esta, liquidar o valor venal em singelo seria o bastante.
48ª - Assim, com recurso à equidade deverá ser o Recorrente integrado com um valor suficiente para poder adquirir no mercado um veículo que possa desempenhar as funções do anterior, que recorde-se, necessita de uma específica adaptação técnica atento o destino que lhe dado - transporte de gado vivo, e para o qual necessita de homologação pela Direcção Geral de Veterinária.
49ª - Julga-se adequado o recurso ao princípio da diferença em sede ressarcitória, atribuindo ao Autor um justo valor equitativo, suficiente a reparar o dano por este sofrido, reintegrando-o no estado anterior à produção do facto danoso. O valor peticionado pelo Apelante de 45.000,00€ afiguras-se equitativamente adequado, destinando-se a reintegrar na sua esfera jurídica deste, a quantia suficiente para adquirir em condições de normalidade de facto (mercado) uma outra viatura que satisfaça o fim útil e económico que o Autor conferia ao veículo sinistrado.
50ª - O lucro cessante pressupõe que o lesado tinha, no momento da lesão, um direito ao ganho que se frustou, ou melhor a titularidade de uma situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a esse ganho. O prejuízo haverá de ser estabelecido à luz do disposto no art.566° n°2 do Cód. Civil, e assim, perfilhando-se a solução legal, o prejuízo será avaliado à luz do «dano concreto».
51ª - Isto é, entendido como frustração efectiva das utilidades do bem. O prejuízo só existirá quando, havendo lesão, o respectivo titular não consegue, na realidade, usufruir das utilidades do bem, ou só consegue satisfazer essas utilidades com maior esforço, hipótese em que o prejuízo consiste nesse maior esforço.
52ª - O Autor teve no decurso destes últimos anos que (a) Suportar a perda de ganho, pelo facto de não possuir um veículo, o qual é essencial para o exercício da sua actividade - relatório pericial e (b) Teve um encargo acrescido de suportar a contratação com terceiros de contínuos alugueres de veículo.
53ª - Ora o critério jurídico do art° 564° n° 1 Cód. Civil tem como momento temporal de referência a data da lesão e atende à perda ou diminuição de valores patrimoniais de que o lesado já era titular (dano emergente) por contraposição aos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, à falta de aquisição de um acréscimo patrimonial (lucro cessante).
54ª - Não deixando entre parêntesis as dificuldades da distinção entre dano emergente e lucro cessante, tanto no plano dos factos como no plano jurídico e de que nos dá sobejamente conta a doutrina, o exposto significa a opção por configurar o dano emergente como "frustração de vantagem já existente", o lucro cessante como "não concretização duma vantagem que, doutra forma, operaria" (A. Menezes Cordeiro); dano emergente como "privação de um bem existente" contraposto a lucro cessante como "privação de um bem que se esperava adquirir e não se adquiriu" (Castro Mendes): dano emergente como "diminuição de valores já existentes no património do lesado", lucro cessante como "acréscimo patrimonial frustrado" (Almeida Costa); dano emergente, o "prejuízo causado nos bens ou direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão", lucro cessante os "benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão" (Antunes Varela) in Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Vol. I, Coimbra Editora/ 2008, pág. 680; Vol. II, págs., 1088/1092.
55ª - Destarte, somente com recurso à equidade, se pode entender o arbitramento de uma indemnização (arts. 564° n°1, 566° n°3 e 569° 1a parte todos dos Cód. Civil) a título de lucro cessante.
56ª - A fórmula proposta pelo recorrente, na senda do pedido primitivo [Danos que supervenientemente ocorram], parte do seguinte pressuposto:
- Atendendo a que em 2005 o Autor reconduziu a sua actividade, estabilizando-a apenas como criador de gado (que já o era desde 2001 fls.309 a 315) em face da impossibilidade de dispor de um veículo permanente para transporte de gado para o exercício da actividade de comerciante, levou a que o mesmo passasse a ter um volume de proveitos em média de 346.000,00€;
- Isto por contraposição a um volume de proveito que rondaria cerca de 2.000.000,00€ antes de 2005;
- O Apelante sugere a divisão do volume médio actual por ano de proveitos por 8 anos já decorridos, fixando-se em 43.250,00€;
- Por sua vez, este valor deverá ser multiplicado pelo número de anos decorridos entre 2005 até efectivo e integral pagamento por parte da Ré Seguradora.
            57ª - Com recurso à equidade, julga-se equitativo a fixação de um valor ressarcitório de 346.000,00€ a título de lucros cessantes.
            A ré não apresentou contra-alegações.

                                                               *
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, com reflexo na alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão da desconsideração da força probatória dos documentos e das regras do ónus da prova, com reflexo na alteração da decisão sobre a matéria de facto.
III – A questão dos danos emergentes.
IV - A questão da medida da reparação ressarcitória dos danos emergentes, em caso de perda total.
V – A questão dos lucros cessantes.

I. DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA COM REFLEXO NA ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
I. Entende o autor que o acórdão é nulo, por omissão de pronúncia sobre a matéria do quesito 12, e sobre a distinção existente entre os quesitos 12 e 13, pelo que, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 684° n°2 do Cód. Proc. Civil, deverá decretar-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação, e de forma restritiva ser proferida reforma do acórdão cuja anulação ora se invoca e se requer, com subsequente apreciação da matéria ínsita ao quesito 12, cuja matéria não foi distintivamente apreciada face à matéria do quesito 13”.
O acórdão recorrido, a respeito da matéria da arguição desta nulidade, considerou que, “relativamente ao quesito 13.º…, a sua resposta está dependente da solução encontrada pelo A. dentro de uma outra empresa de que é proprietário e a que a Senhora Juiz não deixou de aludir conforme citação acima transcrita. Assim sendo, a resposta dada (não provada) em nada colide com o relatório pericial de fls. 394 e ss e bem assim com a documentação relativa aos fretes alegados (fls. 305 a 309, 358 a 391, etc)”.
No que concerne à matéria do quesito 12º, que foi dada como provada e, aliás, aludida, circunstancialmente, no acórdão recorrido, quando fala “Conforme resulta da Prova Pericial, o Tribunal a quo deu como provado (artigo 12º) a realização pelo Autor de transportes de gado vivo entre os anos de 2002 a 2005”, a mesma não foi, diferencialmente, apreciada, em confronto com a matéria do quesito 13º, porque tal não foi, desde logo, suscitado pelo autor, nas suas alegações da apelação.
Deste modo, o acórdão impugnado conheceu da matéria do quesito 13º e não alterou a matéria do quesito 12º, por tal não lhe ter sido solicitado.
Assim sendo, não ocorre a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, a que se referem os artigos 615º, nº 1, d), 666º, nº 1 e 608º, nº 2, não importando, consequentemente, determinar a reforma do acórdão, nos termos do estipulado pelo artigo 684º, nº 2, todos do CPC.

II. DA DESCONSIDERAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROVA LEGAL E DAS REGRAS DO ÓNUS DA PROVA COM REFLEXO NA ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
II.1. Alega o autor, neste particular, que “o acórdão ora posto em crise violou expressamente a força probatória dos livros e escrituração comercial - artigo 44° e segs. do Cód. Comercial, e bem assim, os princípios subjacentes ao ónus de prova – artigo 342° n°2 do Cód. Civil, porquanto, não foi demonstrado nem alegado qualquer elemento de facto contrário ao invocado pelo Autor ou que tenha resultado da prova produzida”, subentendendo-se, porque tal não resulta escorreito das conclusões recursivas, que a aludida violação contende com “a matéria ínsita aos artigos 14°, 20º a 23º.2, 135º e 136º da base instrutória…” [14º/i], porque outra não se alcança, como se impunha, sob pena de se não poder tomar conhecimento do objeto desta questão.
Aos quesitos 14, 20 a 23.2, 135 e 136 da base instrutória, o tribunal de 1ª instância respondeu, negativamente, em decorrência da fragilidade da prova apresentada, a esse propósito.
Por seu turno, o acórdão recorrido, referindo-se aos apontados quesitos [14.º, 20.º a 23º.2, 135º e 136º], esclareceu que “…a sua resposta está dependente da solução encontrada pelo A. dentro de uma outra empresa de que é proprietário e a que a Senhora Juiz não deixou de aludir conforme citação acima transcrita. Assim sendo, a resposta dada (não provada) em nada colide com o relatório pericial de fls. 394 e ss e bem assim com a documentação relativa aos fretes alegados (fls. 305 a 309, 358 a 391, etc)”.
II.2. Tem-se afirmado, de forma sistemática e unívoca, que o Supremo Tribunal de Justiça aplica, em definitivo, o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não podendo ser objeto de recurso de revista a alteração da decisão por este proferida quanto à matéria de facto, ainda que exista erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou, finalmente, quando considere que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682º, nºs 1, 2 e 3 e 674º, nº 3, do CPC.
Com efeito, só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extratada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respetiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e, através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º, do CPC.
Assim sendo e, em síntese, compete às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo, a este título, residual a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, destinada a averiguar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes[2].
Deste modo, tudo está em saber se o acórdão recorrido que decidiu sobre a matéria de facto, dando como provados certos factos, de acordo com a prova pessoal obtida e a análise do teor dos documentos existentes nos autos, com expressão na motivação da respetiva decisão, adquirindo os elementos de convicção probatória, em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do CPC, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, decidiu a matéria de facto com violação de algum meio de prova de produção ilícita.
O autor traz à colação a violação da força probatória dos livros e escrituração comercial.
A propósito da força probatória da escrita comercial, preceitua o artigo 44º, do Código Comercial, que “os livros de escrituração comercial podem ser admitidos em juízo a fazer prova entre comerciantes, em factos do seu comércio, nos termos seguintes:…”.
Com efeito, o disposto pelo artigo 44º, do Código Comercial, é, apenas, aplicável às questões surgidas entre comerciantes e relativas a factos do seu comércio, não se aplicando, consequentemente, às questões entre comerciantes e não comerciantes, mesmo que relativas a factos ocorridos no âmbito do comércio daqueles, nem às questões entre comerciantes, mas relativas a factos estranhos ao seu comércio, relativamente às quais se aplicam os princípios gerais do artigo 380º, do Código Civil, e dos artigos 410º e seguintes, do CPC[3].
Assim sendo, o normativo legal em análise só é aplicável quando ambas as partes são comerciantes, porquanto se, apenas, uma delas o é, o valor probatório da escrita comercial é o mesmo dos simples documentos particulares, sendo a prova resultante da escrituração comercial, regularmente, arrumada de livre apreciação pelos tribunais de instância[4].
Deste modo, a escrituração comercial, ainda que organizada com observância dos preceitos legais respetivos, não possui força probatória plena entre os próprios comerciantes, porquanto, tendo em consideração o princípio constante do artigo 380º, do Código Civil, à outra parte e ao próprio comerciante a quem pertence é lícito invocar outros meios de prova em contrário, não obstante assumir um valor probatório especial[5], devendo ser apreciada, à luz do princípio da prova livre, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do CPC[6].
Assim, o acórdão recorrido manteve-se, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, porquanto essa factualidade pode ser obtida, através dos vários meios probatórios de que o Tribunal se serviu, sem preferência ou sub-alternidade de qualquer deles.
Por outro lado, a definição da hierarquia dos meios de prova de livre apreciação pelo tribunal, e bem assim como a consideração de certas provas, em detrimento da desconsideração de outras, ou de determinados depoimentos, em primazia de outros, sustenta-se ainda no aludido princípio da convicção racional, que não afeta o princípio da igualdade processual das partes[7].
Deste modo, não se demonstrando qualquer uma das circunstâncias excecionais que permitem ao Supremo Tribunal de Justiça a alteração da decisão sobre a matéria de facto emitida pelas instâncias, ou seja, “a ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto”, a que alude o artigo 674º, nº 3, do CPC, importa considerar demonstrados os factos consagrados pelo Tribunal da Relação, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do CPC, mas reproduz:
1. No dia 24 de junho de 2002, pelas 16.00 horas, na Estrada Nacional n.º …, ao km …, entre … e …, a cerca de … km desta última localidade, ocorreu um acidente de viação, no qual estiveram envolvidos os seguintes veículos:
- Pesado de mercadorias, com a matrícula XX-77-XX, pertencente a “EE, Lda.”, conduzido por FF, seguro pela ré;
- Pesado destinado ao transporte de animais vivos, com a matrícula XX-61-XX, pertencente ao autor AA, conduzido por GG;
- Trator agrícola, com a matrícula XX-45-XX, pertencente à Câmara Municipal de …, conduzido por HH.
2. O local onde o acidente ocorreu é uma recta com boa visibilidade, com duas hemi­faixas de rodagem, uma em cada sentido de marcha, com uma ligeira curva, bastante aberta, em ambos os sentidos, sendo a curva à esquerda, no sentido de marcha do veículo XX-61-XX, e o inverso, no sentido dos veículos XX-45-XX e XX-77-XX.
3. Era dia, estava bom tempo e o piso, em asfalto, em bom estado de conservação, estava seco.
4. Não existia qualquer sinalização, quer vertical, quer horizontal, a condicionar ou a limitar o tráfego rodoviário, estando as hemi-faixas delimitadas, por um traço contínuo, à berma, e um traço descontínuo, ao centro.
5. O XX-61-XX circulava na EN …, no sentido … - …, à velocidade de 60 km/hora.
6. No sentido oposto e, após uma recta de 450 metros, circulava o XX-45-XX, a uma velocidade entre 30 e 35 km/hora, rebocando o atrelado, com a matrícula C-XXX93.
7. O XX-45-XX circulava com o rodado direito junto à linha delimitadora da berma direita.
8. À retaguarda do XX-45-XX, a uma distância de vinte metros, circulava o XX-77­-XX, à velocidade de 100 km/hora.
9. Trinta metros antes da curva à direita, no sentido em que seguiam os veículos XX­-45-XX e XX-77-XX, o condutor do XX-45-XX avistou, no seu retrovisor, a luz intermitente do sinal luminoso de mudança de direcção à esquerda do XX-77-XX, sinalizando a sua intenção de ultrapassar.
10. O condutor do XX-45-XX ainda se encostou um pouco mais à direita, ultrapassando mesmo, com o seu rodado direito, a linha longitudinal contínua delimitadora da berma, de forma a facilitar a ultrapassagem ao XX-77-XX.
11. Porém, poucos momentos depois e já a circular sobre a curva ali existente, o atrelado do XX-45-XX foi, fortemente, embatido, na retaguarda, lado esquerdo, pela frente direita do XX-77-XX.
12. Ato contínuo, o conjunto formado pelo XX-45-XX e pelo atrelado C-XXX93 foi projectado para a frente, tombando ambos sobre o seu lado direito e sendo arrastados sobre o asfalto, numa extensão de 30 metros, vindo o atrelado a cair na valeta e imobilizando-se o trator, atravessado, na sua hemi-faixa de rodagem.
13. Após o embate do XX-77-XX no atrelado C-XXX93, este último foi, fortemente, impulsionado para a traseira do primeiro, provocando a perfuração da sua galera, por embate no hidráulico do trator, com a consequente destruição do engate do reboque.
14. O XX-45-XX foi, assim, abalroado pelo XX-77-XX, tendo, de imediato, provocado a projeção do seu condutor para fora da cabine, a uma distância de 12 metros.
15. Após este primeiro embate, o XX-77-XX, já fora de controlo, com os travões a fundo e consequente bloqueio dos rodados, alterou a sua trajetória para a esquerda, indo invadir a hemi-faixa contrária.
16. O condutor do XX-61-XX, apercebendo-se de toda esta sucessão de factos e da rota do XX-77-XX, que vinha na sua direcção, encostou o XX-61-XX, o mais à direita possível, como manobra de recurso, invadindo a berma ali existente.
17. Porém, foi impossível ao condutor do XX-61-XX desviar-se da trajetória do XX­-77-XX, acabando por se verificar um segundo embate, frontal (mais sobre ambos os lados esquerdos dos condutores) entre o XX-77-XX e o XX-61-XX.
18. Tal colisão veio a verificar-se, parte na hemi-faixa direita, parte na berma direita, atento o sentido de marcha do XX-61-XX, a 0,80 metros do limite da berma e a 4,10 metros de um poste dos TLP.
19. O condutor do XX-77-XX, apesar de ter sinalizado a sua intenção de ultrapassagem, não se assegurou, previamente, de que poderia efetuar essa manobra, sem perigo de colidir com o veículo que transitava no mesmo sentido e com o veículo que circulava, em sentido contrário.
20. O condutor do XX-77-XX invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito que circulasse no sentido …-…, iniciando a ultrapassagem, e, somente, ao aproximar-se da curva onde seguia, no mesmo sentido, o XX-45-XX se apercebeu de que, naquela hemi-faixa e, em sentido contrário, circulava o XX-61-XX.
21. O XX-77-XX era conduzido sob as ordens e no interesse da sociedade “EE, Lda“.
22. O XX-61-XX encontrava-se afecto, única e exclusivamente, ao transporte de animais vivos, estando para tal licenciado pela Direcção-Geral de Veterinária.
23. O XX-61-XX era o único veículo que o autor AA tinha disponível para o exercício da sua atividade de transporte de gado.
24. O autor AA não possuía outro veículo com caraterísticas idênticas ou, regularmente, autorizado para realizar o mesmo tipo de transporte; todavia, era proprietário de outra empresa, à qual, após o acidente, passou a alugar veículos para o comércio de gado.
25. De 2002 a 31 de Março de 2005, o autor AA fez transportes de gado vivo.
26. Antes do acidente, o valor comercial do XX-61-XX era de €10.000, em face do seu bom estado de conservação e regular manutenção.
27. Em consequência do embate entre o XX-77-XX e o XX-61-XX, este último sofreu danos, tecnicamente, irreparáveis, em face de não ser possível garantir que, após a reparação, ele reunisse as condições de segurança necessárias para circular, nem determinar a rigidez da estrutura e chassi.
28. Apesar de se tratar de um veículo com alguns anos, o XX-61-XX satisfazia, inteiramente, os interesses sócio-profissionais do autor AA.
29. O autor AA deu conhecimento à ré de que foi obrigado a proceder ao aluguer de um veículo para o normal exercício da sua atividade.
30. O exercício da atividade do autor AA depende da propriedade de um veículo.
31. Durante o período de impossibilidade do autor AA dispor do seu veículo, o mesmo não teve que suportar os custos inerentes à manutenção do XX-­61-XX, mormente, gastos em seguro, inspeção obrigatória, manutenção, limpeza e desinfeção.
32. Como consequência do embate entre o XX-77-XX e o XX-61-XX, o condutor deste último, então com 53 anos de idade, faleceu.

33. O autor AA exerce, de forma regular, a sua atividade de comerciante e criador de gado.

34. O XX-61-XX, da marca Scania, trata-se de um modelo (LB 80 8/54/RM 160) já inexistente no mercado de pesados, fora do mercado de usados, atenta a idade do veículo (1979).

35. O custo da aquisição de um veículo equivalente, em estado novo, fixa-se entre €52.000 e €62.000.

36. O XX-61-XX, na altura do acidente, transportava gado bovino, sendo 3 novilhos e 1 vitelo.

37. Um dos novilhos teve morte imediata, sendo que os outros três animais foram abatidos, ainda no local do acidente, atentas as lesões que sofreram, mediante parecer técnico do veterinário da Câmara Municipal de ….

38. O transporte de gado bovino é condição necessária para o exercício da atividade do autor AA.

39. Após o acidente, o XX-61-XX foi rebocado para a oficina “Auto II, Lda.”, encontrando-se à sua guarda e aí permanecendo, ocupando um lugar nos terrenos desta, até que o veículo seja reparado.

40. A oficina “Auto II, Lda.” imputa ao autor AA a quantia de €5, por dia, em virtude de a mesma estar à sua guarda, ocupando um determinado espaço, montante esse que, apenas, será pago, após a resolução do presente litígio.

41. A ré celebrou com “EE, Lda.”, um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório, do ramo automóvel, titulado pela apólice nº …071, tendo por objeto o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula XX-77­-XX.

42. O valor dos salvados fixava-se em €2000,00, que não permitia ao autor adquirir um veículo substitutivo do sinistrado.

                         III. DOS DANOS EMERGENTES

Alega o autor que a medida da reparação ressarcitória que o réu deverá ser condenado a suportar, a título de danos emergentes, deverá traduzir-se, no valor de €401.902,18, relativo a fretes pagos, por conta do transporte de gado, por si criado e comercializado, tendo suportado €75.152,21, a título de IVA respeitante a tais transportes.

No que concerne aos chamados danos emergentes, diz o acórdão recorrido que “não encontramos, pelas razões já apontadas, factualidade suficiente para os acolher, sendo de sufragar o entendimento sustentado pelo ilustre julgador “a quo” a fls. 1707 dos autos de que…a solução para o problema decorrente da falta do XX-61-XX foi encontrada pelo autor AA com recurso aos seus próprios meios, o que certamente explica a ausência de prova dos prejuízos que ele alegou “.

Recuperando a factualidade que ficou consagrada, neste particular, importa enfatizar que o veículo do autor encontrava-se afeto, única e exclusivamente, ao transporte de animais vivos, estando para tal licenciado, pela Direcção-Geral de Veterinária, sendo o único veículo que tinha disponível para o exercício da sua atividade de transporte de gado, pois que não possuía outro com características idênticas ou, regularmente, autorizado para realizar o mesmo tipo de transporte, sem embargo de ser proprietário de outra empresa, à qual, após o acidente, passou a alugar veículos para o comércio de gado.

O autor realizou transportes de gado vivo, entre 2002 e 31 de Março de 2005, dando conhecimento à ré de que foi obrigado a proceder ao aluguer de um veículo para o normal exercício da sua atividade.

Ora, sendo certo que o autor fez transportes de gado vivo, entre 2002 e 31 de Março de 2005, dando conhecimento à ré de que foi obrigado a proceder ao aluguer de um veículo para o normal exercício da sua atividade, também, se provou que era proprietário de outra empresa, à qual, após o acidente, passou a alugar veículos para o comércio de gado.

De todo o modo, não se demonstrou, como vem alegado, que o autor tenha suportado o pagamento do valor de €401.902,18, relativo a fretes pagos, por conta do transporte de gado, por si criado e comercializado, desde a data do sinistro (24.06.2002) até à data do início do julgamento (23.06.2010) e de €75.152,21, a título de IVA, respeitante a tais transportes.

IV - DA MEDIDA DA REPARAÇÃO RESSARCITÓRIA DOS DANOS EMERGENTES EM CASO DE PERDA TOTAL

IV.1. Alega o autor, neste particular, que “tem direito a ser indemnizado pelo valor da viatura antes de acidentada (acrescido, naturalmente, dos juros de mora fixados e não discutidos) e, ainda, pelo dano que sofreu, consistente em não poder manter o seu veículo em circulação, com a devida reparação, sendo um justo valor equitativo a quantia de 45.000,00€”.

A este respeito, o acórdão recorrido entendeu que “no que concerne ao valor do veículo sinistrado, há que considerar que o seu valor, antes da ocorrência do sinistro, cifrava-se em €10.000,00, valor este considerado no montante indemnizatório arbitrado…pois não é o valor de uma viatura semelhante, em estado novo, que deve ser considerado já que isso representaria um enriquecimento ilícito do património dos apelantes face aos princípios consignados nos artigos 562.º e 566.º do C. Civil…e, no caso concreto, não é o ressarcimento da privação do uso do veículo que se encontra em discussão, mas tão só a medida da indemnização do dano verificado, inexistindo qualquer outro critério objectivo que permita arbitrar um outro tipo de medida indemnizatório, não existindo base legal para o recurso à equidade (art. 4.° do C. Civil)”.

A base de sustentação do acórdão recorrido reconduz-se à inadmissibilidade da opção pela reconstituição natural do veículo, em favor do seu valor comercial antes do acidente, porquanto, atento o valor venal deste e o previsível custo daquela, face à inviabilidade económica da reparação específica, a mesma apresentar-se-ia, excessivamente, onerosa para o devedor.

A responsabilidade civil é uma modalidade da obrigação de indemnizar, que visa eliminar o dano ou prejuízo reparável, que pode ser patrimonial ou não patrimonial, consoante seja ou não reconduzível a interesses avaliáveis em dinheiro.
Em consagração do princípio da restauração ou reposição natural, estipula o artigo 562º, do Código Civil (CC), que “quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, assumindo, porém, a indemnização em dinheiro caráter subsidiário, enquanto sucedâneo, como acontece quando não seja possível a reconstituição da situação anterior à lesão, isto é, a reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano, mas, também, quando não repare, integralmente, os danos ou seja, excessivamente, onerosa para o devedor, em conformidade com o disposto pelo artigo 566º, nº 1, do mesmo diploma legal[8].
É que a reconstituição natural constitui o meio-regra do cumprimento da obrigação de indemnização, face à indemnização pecuniária, quer através da reparação do bem danificado, quer da entrega de um outro bem idêntico ao lesado.

E o dever de indemnizar compreende, desde logo, o prejuízo causado, ou seja, o dano emergente, como decorre do estipulado pelo artigo 564º, nº 1, do CC.

Por seu turno, nos termos do preceituado pelo artigo 566º, nº 2, do CC, “a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”.

Conjugando o teor deste preceito com o texto do já citado artigo 562º, ambos do CC, conclui-se que foi intenção do legislador atribuir ao lesado uma quantia correspondente ao valor atual dos danos sofridos, porquanto só, assim, será colocado na situação em que estaria se não se tivesse verificado o dano.

Efetivamente, no caso concreto, o valor comercial do veículo, antes do acidente, ou seja, em 24 de junho de 2002, era de €10.000,00, não se havendo demonstrado em quanto foi estimado o custo da sua reparação, embora, seguramente, superior aquele, em virtude do veículo ter sofrido danos, tecnicamente, irreparáveis, em face de não ser possível garantir que, após a reparação, reunisse as condições de segurança necessárias para circular, nem determinar a rigidez da estrutura e chassi, tratando-se de um modelo já inexistente no mercado de pesados, fora do mercado de usados, atenta a idade do veículo, com matrícula de 1979.

De todo o modo, não se provou que “fosse impossível encontrar um veículo idêntico ou, mesmo não sendo apto para substituir o XX-61-XX, no mercado de veículos usados”.

Por seu turno, ficou demonstrado que o custo da aquisição de um veículo equivalente, em estado novo, importava entre €52.000 e €62.000.

IV.2. O artigo 41º, nº 1, do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto (Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), que resultou da transposição para o ordenamento jurídico nacional da Directiva n.º 2005/14/CE, reequacionou o regime da perda total, entendendo que “um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique”, nomeadamente, a hipótese contemplada pela respetiva alínea b), ou seja, em que “se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;”.

O nº 2 do diploma legal em apreço estatui que “o valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente”, acrescentando o seu nº 3 que “o valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização”.

Deste modo, por força da Lei do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, o patamar da indemnização pecuniária situa-se, atualmente, em 100% do valor venal do veículo, no caso de veículos com menos de dois anos, e, em 120% desse mesmo valor, para os veículos com mais de dois anos, sendo certo, outrossim, que o valor venal do veículo antes do sinistro é aferido pelo seu «valor de substituição», assim como, na hipótese de perda total, o valor de indemnização corresponde ao valor venal do veículo antes do acidente [valor de substituição], deduzido do valor do respetivo salvado, caso este permaneça na posse do seu proprietário, com vista a alcançar a reconstituição da «situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização».

IV.3. Recuperando a factualidade que ficou consagrada, importa registar que sendo a viatura acidentada um pesado de transporte regular de gado bovino vivo, licenciada pela Direcção-Geral de Veterinária, não se demonstrou que o autor pudesse adquirir um veículo idêntico com o dinheiro correspondente ao seu valor comercial, sendo certo que o custo da aquisição de um veículo equivalente, em estado novo, se fixou entre €52.000 e €62.000.

Nestes termos, é razoável aceitar que existe uma declarada diferença entre o valor do veículo sinistrado e o custo da reparação de que o mesmo carece, aliás, tecnicamente, inviável, como ficou demonstrado, reportando-se os termos da análise comparativa, à ocasião do acidente, sem entrar em linha de conta com os valores actuais, decorridos que estão mais de treze anos sobre aquela data.

Tendo sido danificado o veículo do autor, este, em princípio, tem direito a que o lesante lhe restitua um veículo idêntico ou, então, que proceda à sua reparação, se tal for possível, sendo que a reparação do bem danificado, em consequência do acidente, constitui a forma de indemnização, por reposição natural, e não de indemnização por equivalente.

Com efeito, sendo o fim precípuo da lei que o lesante “proveja à direta remoção do dano real”, e consistindo este em “estragos produzidos na coisa (veículo, prédio, mercadorias, etc.), há que proceder ao seu conserto, reparação, ou substituição por conta do agente”[9], razão pela qual as despesas tendentes à substituição de uma coisa por outra idêntica cabem ainda na reparação natural[10].

Por outro lado, a consideração do princípio geral da restauração natural, em matéria de obrigação de indemnização, tal como decorre do preceituado pelo artigo 562º, do CC, por contender com o dano real ou concreto, põe em relevo o valor do uso que o lesado extrai do veículo sinistrado, ou seja, o seu valor patrimonial, e, no quadro do regime da perda total, aconselha o reforço da proteção dos lesados, com a finalidade de conferir tutela legal aos seus legítimos interesses na entrega de um veículo idêntico ou similar, que lhes proporcione igual utilidade e satisfação das suas necessidades, em detrimento do recebimento do correspondente valor em dinheiro.

Efetivamente, não faz sentido reparar um veículo, «maxime», recorrer à forma de indemnização por equivalente, quando é possível encontrar veículos semelhantes, por um valor inferior ao custo da reparação, razão pela qual conhecendo, seguramente, a ré, com particular profundidade, o mercado de automóveis usados, não lhe teria sido difícil identificar uma viatura idêntica ou similar à sinistrada, com aptidão para o exercício da atividade a que o autor a destinava.

IV.4. Apresentando-se a reconstituição ou reposição natural como o princípio geral, em matéria de obrigação de indemnização por danos, sendo a exceção a indemnização em dinheiro, a excessiva onerosidade da reconstituição natural, prevista no artigo 566.º, n.º 1, in fine, do CC, deve ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor que o veículo representa, dentro do património do lesado, e que se designa por valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial do veículo pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário, devendo o conceito de «excessiva onerosidade para o devedor» ser interpretado, restritivamente, sob pena de se por em causa o direito do lesado a dispor do seu património[11].

É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do automóvel, antes do acidente, por um lado, e o custo da restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro, só, então, sendo possível concluir, com segurança, acerca da impropriedade ou inadequação da reconstituição natural[12].

E a existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé[13], pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas quando se apresente, manifestamente, desproporcionada, em face do sacrifício que importa exigir do lesante[14], quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património[15].

Com efeito, se não pode deixar de se considerar onerosa a restauração, já não será razoável qualificá-la de excessiva, sendo certo, também, que a excessividade deve ser aferida, objetivamente, face aos elementos que a traduzam, de modo iniludível[16], em termos de não poder dizer-se que há uma manifesta desproporção entre o interesse do credor e o custo da reparação natural para o devedor[17], além de que os danos emergentes para aquele não se medem, apenas, pelo valor do veículo, havendo que levar em conta, igualmente, outros interesses do mesmo.

Finalmente, a restauração natural não ofende a equidade, nem a boa-fé, uma vez que o lesado se limita a ver reparada ou reposta a funcionalidade do veículo que, à data do acidente, em consequência do qual sobrevieram danos próprios para o mesmo, que, apesar de se tratar de um veículo, com vinte e três anos de matrícula, mas em bom estado de conservação e regular manutenção, satisfazia, inteiramente, os interesses sócio-profissionais e as necessidades do autor AA.

Ora, sendo regra geral a da restauração natural, consagrada pelo artigo 562º, imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, conforme se dispõe no artigo 566º, nº 1, nos termos do preceituado pelo artigo 342º, nº 2, todos do CC, isto é, a prova da exceção, ou seja, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si.

A isto acresce que a ré, na contestação, nem sequer, veladamente, aludiu ao caráter demasiado oneroso do custo da reparação, limitando-se a afirmar que o valor da indemnização a conceder ao autor não deve exceder €10000,00, por ser o valor comercial da viatura, à data do acidente.

IV.5. No caso em apreço, certamente, que o lesado não seria ressarcido do prejuízo verificado no veículo, se viesse a receber, em pagamento, o seu valor venal, deduzido do valor dos salvados, sem embargo de a reconstituição implicar um valor da reparação superior ao valor da viatura, antes do acidente, aos preços demonstrados, nessa ocasião, e bem assim como, igualmente, aquando do encerramento da audiência de discussão e julgamento, em primeira instância[18].

De facto, o interesse do credor não tem, necessariamente, de ser equacionado com o valor atual do veículo, porquanto se impõe antes averiguar quais os danos emergentes que aquele suportou e responsabilizar por eles o devedor, procurando-se fazer ressurgir o bem, como se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, segundo preceitua o artigo 562º, do CC, solução esta que não redunda numa sobrevalorização dos prejuízos, sabido como está, pela experiência do que é normal acontecer, que o veículo, após a reparação/reposição, raramente, terá um valor superior ao que apresentava, à data do acidente, ou aquele outro que, se este não houvesse acontecido, teria, hoje, na mesma data.

Mas, sendo inquestionável que o dono do veículo não pode ser beneficiado com a reconstituição natural, a título de enriquecimento ilegítimo, tal viria a acontecer se recebesse um veículo novo, em substituição do acidentado, ou o valor do veículo de substituição do automóvel acidentado, sem, correlativamente, devolver os «salvados» ao réu que, por se tratar de uma situação de perda total, constituem propriedade deste.

Ora, não tendo a ré efetuado a demonstração dos factos impeditivos bastantes da regra geral da restauração natural, isto é, que o valor patrimonial, e não venal, do veículo do autor era, substancialmente, inferior ao custo da reparação, a não ser que o veículo tinha o valor comercial de €10000,00, subsistem os factos constitutivos provados pelo autor, ou seja, prevalece, no fundo, a regra sobre a excepção[19], porquanto aquela não provou o segundo polo da comparação que permite avaliar a eventual onerosidade excessiva, no âmbito do binómio restauração natural/indemnização por equivalente.

Assim sendo e, pelo que exposto ficou, sem embargo de a reparação do veículo não ser material, ou, economicamente, viável, nem sequer suficiente, no sentido de reparar, integralmente, os danos, existe fundamento legal para decidir em função do princípio geral que preside à obrigação de indemnizar, ou seja, o da reconstituição natural, atento o disposto pelo artigo 566º, nº1, pelo que, em sede de julgamento equitativo, em conformidade com o preceituado pelo artigo 566º, nº 3, ambos do CC, sendo certo que não se provou que “fosse impossível encontrar um veículo idêntico ou, mesmo não sendo, apto para substituir o XX-61-XX, no mercado de veículos usados”, se condena a ré “Companhia de Seguros BB, SA”, a entregar ao autor AA um veículo automóvel de substituição, com características e aptidão idênticas para o exercício da actividade a que o autor destinava o acidentado, no prazo de dois meses, mas com o valor limite de €45000,00, conforme consta do pedido, contra a entrega à ré dos «salvados» ou do respetivo valor de €2000,00.

Efetivamente, configurando-se a restauração natural como princípio primário da indemnização, ditada no interesse de ambas as partes, e a indemnização por equivalente como o modo imperfeito da reparação, tendo o autor pedido na ação o sucedâneo da indemnização pecuniária, pode o tribunal condenar, em temos de reposição natural, sem que tal importe a violação do princípio do pedido[20], sendo certo, além do mais, que a condenação na obrigação de entrega de um veículo de substituição se encontra, estritamente, limitada pelo valor do pedido formulado, em termos de indemnização em dinheiro.

O objetivo da indemnização que o autor solicita na acção, sob a formulação de um pedido de expressão pecuniária, consiste em por “a cargo do lesante a pratica de certos actos, cuja finalidade comum é criar uma situação…que se aproxime o mais possível daquela outra situação…em que o lesado provavelmente estaria, de acordo com a sucessão normal dos factos, no momento em que é julgada a ação de responsabilidade, se não tivesse tido lugar o facto que lhe deu causa”[21].

Deste modo, a condenação da ré a entregar ao autor um veículo automóvel de substituição, com características e aptidão idênticas para o exercício da atividade a que o autor destinava o acidentado, “reconstitui a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, na terminologia já citada do artigo 562º, do CC, restituindo o lesado no estado anterior à lesão, sem constituir, simultaneamente, causa de enriquecimento ilícito do mesmo, à custa do devedor que, dentro dos limites da expressão monetária do pedido, logrará repor o «status quo ante», cumprindo o objetivo da lei, que concede preferência à indemnização específica.

                            V. DOS LUCROS CESSANTES

Por outro lado, no que respeita aos lucros cessantes, o autor entende equitativa a fixação do respetivo valor ressarcitório, em €346000,00.

A este propósito, ficou demonstrado que o autor AA exerce, de forma regular, a sua atividade de comerciante e criador de gado, e que o transporte de gado bovino era condição necessária para o exercício da mesma actividade, a qual depende da propriedade de um veículo, sendo que o XX-61-XX era o único que o autor tinha disponível para o efeito, não possuindo outro com características idênticas ou, regularmente, autorizado para realizar o mesmo tipo de transporte.

Todavia, ficou, igualmente, demonstrado que o autor era proprietário de outra empresa, à qual, após o acidente, passou a alugar veículos para o comércio de gado, sendo certo, também, que, entre 2002 e 31 de Março de 2005, efetuou transportes de gado vivo.

De todo o modo, não ficou provado que, como consequência direta e necessária da privação do aludido veículo, de matrícula XX-61-XX, o autor tenha ficado impossibilitado de desenvolver a atividade comercial de transportador de gado bovino ou que tenha suportado qualquer estiolamento da mesma, certamente, porque logrou superar a adversidade, com recurso aos seus próprios meios, não sendo despicienda a circunstância de o autor ser “proprietário de outra empresa, à qual, após o acidente, passou a alugar veículos para o comércio de gado”.
CONCLUSÕES:
I – O artigo 44º, do Código Comercial, só é aplicável quando ambas as partes são comerciantes, porquanto se apenas uma delas o é, o valor probatório da escrita comercial é o mesmo dos simples documentos particulares, sendo a prova resultante da escrituração comercial, regularmente, arrumada, não obstante assumir um valor probatório especial, de livre apreciação pelos tribunais de instância, não possuindo força probatória plena entre os próprios comerciantes, sendo lícito à outra parte e ao próprio comerciante invocar outros meios de prova em contrário.
II – A definição da hierarquia dos meios de prova de livre apreciação pelo tribunal, e bem assim como a consideração de certas provas, em detrimento da desconsideração de outras, ou de determinados depoimentos, em primazia de outros, sustenta-se no princípio da convicção racional, que não afeta o princípio da igualdade processual das partes.

III - Sendo o fim precípuo da lei que o lesante proveja à direta remoção do dano real, e consistindo este em danos produzidos num veículo, há que proceder à sua reparação ou substituição, por outro idêntico ou similar, por conta do agente, que lhe proporcione igual utilidade e satisfação das suas necessidades, em detrimento do recebimento do correspondente valor em dinheiro, cabendo ainda as despesas tendentes a esta substituição, tal como a reparação material, propriamente dita, na forma de indemnização, por reparação natural, e não na indemnização por equivalente.

IV – Contendendo o princípio geral da restauração natural, em matéria de obrigação de indemnização, com o dano real ou concreto, põe em relevo o valor de uso que o lesado extrai de veículo sinistrado, ou seja, o seu valor patrimonial, não fazendo, portanto, sentido reparar um veículo, «maxime», recorrer à forma de indemnização por equivalente, quando é possível encontrar veículos semelhantes, por um valor inferior ao custo da reparação, não sendo difícil ao lesante, em especial, tratando-se de entidade seguradora, identificar uma viatura idêntica ou similar à sinistrada, com aptidão para o exercício da atividade a que o lesado a destinava.

V - A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.

VI - É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do automóvel, antes do acidente, por um lado, e o custo da sua restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro.

VII – A existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.

VIII - Sendo a regra geral da restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, ou seja, a prova da excepção, isto é, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si.

IX – Não sendo a reparação do veículo acidentado material, ou, economicamente, viável, nem sequer suficiente, no sentido de reparar, integralmente, os danos, nem se tendo provado que fosse impossível encontrar um veículo idêntico ou, mesmo não o sendo, apto para substituir o acidentado, no mercado de veículos usados, o princípio geral da reconstituição natural consente que, em sede de julgamento equitativo, se condene o lesante a entregar ao lesado um veículo automóvel de substituição, com caraterísticas e aptidão idênticas para o exercício da atividade a que este destinava o acidentado, com o valor limite correspondente ao reclamado e constante do pedido, como forma de indemnização por equivalente, contra a entrega ao lesante dos «salvados» ou do respetivo valor.

X - Configurando-se a restauração natural como princípio primário da indemnização, ditada no interesse de ambas as partes, tendo o autor pedido na ação o sucedâneo da indemnização pecuniária, pode o tribunal condenar em temos de reposição natural, sem que tal importe a violação do princípio do pedido, encontrando-se, igualmente, a condenação na obrigação de entrega do bem, estritamente, limitada ao valor do pedido formulado, em termos de indemnização em dinheiro.

XI – A condenação do lesante a entregar ao lesado um veículo automóvel de substituição, com caraterísticas e aptidão idênticas para o exercício da atividade a que este destinava o acidentado, reconstitui a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, restituindo o lesado no estado anterior à lesão, sem constituir, simultaneamente, causa de enriquecimento ilícito do mesmo, à custa do devedor lesante.

DECISÃO[22]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder, em parte, a revista do autor e, em consequência, revogam, no correspondente segmento, o acórdão impugnado, condenando a ré “Companhia de Seguros BB, SA”, a entregar ao autor AA um veículo automóvel de substituição, com caraterísticas e aptidão idênticas para o exercício da actividade a que o mesmo destinava o acidentado, no prazo de dois meses, mas com o valor limite de €45000,00, conforme consta do pedido, contra a entrega à ré dos salvados ou do respetivo valor de €2000,00, confirmando-se, em tudo o mais, o decidido pelo douto acórdão recorrido.
                                                   *

Custas, a cargo da ré e do autor, na proporção de 1/9 e de 9/9, respetivamente, atento o disposto pelo artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

                                                   *

Notifique.

Lisboa, 31 de maio de 2016

Helder Roque (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

 

_______________________________________________________
[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa; 2º Adjunto: Conselheiro Gabriel Catarino.
[2] STJ, de 25-2-2003, CJ (STJ), Ano XI (2003), T1, 109; STJ, de 30-1-97, Pº nº 96B751/96, 2ª secção;
STJ, de 14-1-97, Pº nº 605/96, 1ª secção, www.dgsi.pt
[3] Miguel Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª edição, revista e actualizada, 2007, 94 e 95; Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial, I, 120; Cassiano dos Santos, Direito Comercial Português, I, Coimbra Editora, 2007, 200.
[4] STJ, de 7-10-1976, BMJ nº 260º, 138;STJ, de 25-7-1969, BMJ nº 189º, 317;STJ, de 26-4-1955, BMJ nº 48º, 748.
[5] Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª edição, 1970, 362, 363 e 366; Vaz Serra, RLJ, Ano 110º, 19 a 22; STJ, de 16-10-2008, Pº nº 08B2668, www.dgsi.pt; STJ, de 7-10-1949, BMJ nº 15, 393; STA, de 11-11-1970, Acórdãos Doutrinais, Ano 10º, nº 111, 387.
[6] Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, 165.
[7] STJ, de 18-5-2004, Pº nº 04A1417, www.dgsi.pt
[8] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, Almedina, 2011, 905 e 906; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 576 e 577; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 770 a 772.
[9] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, 2011, Almedina, 904.
[10] Júlio Gomes, Cadernos de Direito Privado, nº 3, Julho/Setembro, 2003, 56.

[11] «Imaginemos, por exemplo, que alguém danifica um automóvel usado de reduzido valor comercial, mas que o lesado quer continuar a utilizar para as suas deslocações. Não faria sentido autorizar-se o lesante a indemnizar apenas o valor em dinheiro do automóvel, sob pretexto de a reparação ser mais cara que esse valor, já que tal implicaria privar o lesado do meio de locomoção de que dispunha e que não pretendia trocar por dinheiro», Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 3ª edição, 402; STJ, de 27-2-2003, Pº nº 02B4016, www.dgsi.pt
[12] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, Almedina, 2011, 906; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 771.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 582.
[14] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 201 5 - 12ª edição, Almedina, 298.
[15] STJ, de 4-12-2007, Pº nº 06B4219; STJ, de 5-7-2007, Pº nº 07B1849; STJ, de 12-1-2006, Pº nº 05B4176, www.dgsi.pt
[16] STJ, de 7-7-1999, CJ, Ano VII, T3, 16 a 19.
[17] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, Almedina, 2011, 906.
[18] Paul Esmein, Traité de la Responsabilité Civile, II, 1962, 182.
[19] Antunes Varela, RLJ, 117º, 31.
[20] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 772 e 773; Pereira Coelho, Obrigações, Sumários das Lições ao Curso de 1966/67, Coimbra, 1967, 174.
[21] Pereira Coelho, O nexo de causalidade na responsabilidade civil, Dissertação de Licenciatura em Ciências Jurídicas, Coimbra, 1950, 53.
[22] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa; 2º Adjunto: Conselheiro Gabriel Catarino.