Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
144/08.0TBVNC.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
VONTADE DO TESTADOR
PROVA COMPLEMENTAR
HERDEIRO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - Na interpretação dos testamentos a vontade real do testador deve aferir-se, atento o disposto no art. 2187.º do CC, em função do contexto do testamento e da prova complementar, que não relevará se o sentido por via dela obtido não tiver “um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa” nesse contexto, tudo isto significando que não se adequa ao sentido da lei uma interpretação que, para atingir a vontade real do testador, derrogue uma disposição do testamento, procedendo-se a uma interpretação do testamento como se tal disposição não estivesse nele contida.
II - Assim, se do testamento consta que “do remanescente dos seus bens (…) institui únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, os seus sobrinhos existentes à data da sua morte”, com tal expressão final evidencia-se que a instituição de herdeiro do remanescente caduca se ocorrer o decesso do instituído herdeiro antes da morte do testador.
III - O sentido útil dessa disposição, à luz do disposto no art. 2187.º do CC, é o de se considerar que, por via dela, o testador quis instituir herdeiros os sobrinhos na condição de lhe sobreviverem, afastando-se, assim, a representação sucessória (arts. 2041.º, n.º 1, 2229.º e 2317.º, al. b), do CC) o que já não sucederia se tal condição não constasse do testamento, caso em que se aplicaria o disposto no art. 2317.º, al. a), do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e BB demandaram no dia 21-5-2008 CC, DD, EE e FF pedindo o seguinte:

- Que se declare nula a escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 3 de Agosto de 2007, no Cartório Notarial de Vila Nova da Cerveira, a cargo da notária Maria Gabriela Correia Pereira Baptista.

- Que seja efectivamente cumprida a disposição testamentária exarada no testamento deixado pela falecida GG.

- Que sejam os autores reconhecidos como co-herdeiros testamentários da falecida GG, sendo habilitados como tal, e devendo ser restituídos à herança todos os bens alienados.

- Que sejam declarados nulos os eventuais actos de disposição patrimonial efectuados pelos réus e as consequentes aquisições.

A acção foi julgada procedente por sentença de 25-3-2009 nos seguintes termos:

- Julga-se validamente impugnada a escritura de habilitação de herdeiros outorgada por óbito de GG, a 3-8-2007, no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, a cargo da notária Maria Gabriela Correia Pereira Baptista.

- Declara-se que os autores AA e BB são co-herdeiros testamentários de GG, por direito de representação de seu pai HH, sendo habilitados como tal.

- Absolvem-se os réus CC, DD, EE e FF dos restantes pedidos formulados pelos autores relativos à restituição de bens à herança e declaração de nulidade de eventuais actos de disposição patrimonial dos mesmos bens.

2. Interposto recurso pelos réus, a Relação concedeu-lhe provimento, julgando improcedente a presente acção e, consequentemente, absolveu os réus dos pedidos formulados pelos autores.

3. Deste acórdão recorrem agora os autores, de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, findando a minuta com as seguintes relevantes conclusões:

1- GG, entre outras disposições, dispôs assim de parte dos seus bens: “ e) Do remanescente de seus bens, incluindo os 70% do estabelecimento comercial de louças, do prédio da viúva, sito na Rua Q… R…, n.º …, institui únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, seus sobrinhos existentes à data da sua morte.
2- Na disposição testamentária referida em 1, a testadora limitou-se a instituir como herdeiros os sobrinhos.
3- GG não limitou ou excluiu da referida disposição testamentária qualquer grau de parentesco.
4- A testadora quando quis distinguir graus de parentesco fê-lo expressamente, referindo-se a “sobrinha” e a “ bi-sobrinha”.
5- O contexto do testamento é um dos elementos a ter em conta para aferir a vontade real do testador.
6- Os aqui recorrentes são sobrinhos de GG.
7- A testadora, no testamento que, em 16-4-1999, outorgou, não afastou - directa ou indirectamente - o direito de representação.
8- Verifica-se in casu a totalidade dos pressupostos de aplicação da figura do direito de representação no campo da sucessão testamentária.
9- HH era sobrinho de GG.
10- O referido HH pré-faleceu à testadora.
11- Os ora recorrentes são descendentes, filhos, mais concretamente, do falecido HH.
12- Não se verifica in casu qualquer causa de caducidade da vocação sucessória.
13- Os sobrinhos de GG não foram, por ela, instituídos seus herdeiros sob qualquer condição, muito menos suspensiva.
14- Somente a instituição de herdeiro ou de legatário sob condição suspensiva, e no caso do seu falecimento antes da verificação da condição, obsta ao funcionamento da figura do direito de representação.
15- Inexiste neste caso em concreto outra causa de caducidade de vocação sucessória (cf. o disposto no artigo 2317.º do Código Civil)
16- Nenhuma das situações especialmente previstas no n.º2 do artigo 2041.º do Código Civil que, no âmbito da sucessão testamentária, excluem o direito de representação, se verifica in casu.
17- O direito de representação tem, no âmbito da sucessão testamentária sub judice, pleno cabimento.
18- As disposições testamentárias apenas caducam, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 2317.º do Código Civil, se o instituído ou nomeado falecer antes do testador e não havendo representação sucessória.
19- A figura do direito de representação opera na sucessão testamentária em crise. Logo,
20- A disposição testamentária efectuada pela testadora não caducou.
21- Os recorrentes, AA e BB, são co-herdeiros testamentários de GG, em representação de seu pai, HH.
22- O acórdão recorrido, sufragando diferente entendimento, incorreu em erro de interpretação da norma jurídica aplicável e, por via disso, violou a norma jurídica consagrada no artigo 2041.º/1 do Código Civil. Por conseguinte,
23- Da escritura pública de habilitação de herdeiros outorgada, por óbito de GG, no cartório notarial de Vila Nova de Cerveira, a cargo da notária Maria Gabriela Correia Pereira Baptista, constam falsas declarações.
24- Deve revogar-se o acórdão recorrido que julgou improcedente a presente acção e, em consequência, absolveu os réus do pedido.

4. Factos provados:

1- No dia 24 de Março de 2004 faleceu, no estado de viúva, GG, sem deixar ascendentes nem descendentes (A e B).
2- No dia 16-4-1999, no Cartório Notarial de Paredes de Coura, GG outorgou o testamento junto a fls. 21 a 25 (C).
3- Nos termos de tal instrumento, e entre outras disposições, a outorgante declarou: “ do remanescente de seus bens, incluindo os 70% do estabelecimento comercial de louças, no prédio da viúva, na Rua Q… R…, n.º …, institui únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, seus sobrinhos existentes à data da sua morte” (D).
4- No dia 3-8-2007 foi outorgada escritura pública de habilitação de herdeiros, por óbito de GG, no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira (E).
5- No âmbito de tal instrumento, a 1ª ré, na qualidade de cabeça-de-casal, declarou que GG fez vários legados e instituiu herdeiros do remanescente da herança em comum e partes iguais, os seus sobrinhos, todos naturais da freguesia de Vila Nova da Cerveira, ou seja, a própria, DD, EE e FF, acrescentando não existir qualquer outro (F).
6- No dia 10 de Setembro de 2002 faleceu, na freguesia e concelho de Vila Nova de Cerveira, HH que era filho de II e de JJ (G, H).
7- II era irmão de GG (I).
8- Os autores são filhos de HH (certidões de fls. 110/113).
9- A testadora soube da morte de HH.

Apreciando:

5. Nestes autos está em causa a fixação do sentido jurídico constante da disposição testamentária referida em 3 supra, cumprindo saber se a testadora, quando instituiu “ únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, seus sobrinhos existentes à data da sua morte”, subordinou tal instituição à condição de lhe sobreviverem

6. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, admitindo-se prova complementar, aqui não feita, a qual, no entanto, deve encontrar um mínimo de correspondência no contexto do testamento, ainda que imperfeitamente expressa (artigo 2187.º do Código Civil).

7. As disposições devem ser consideradas no seu contexto, ou seja, não em si próprias, mas no seio do conjunto em que se integram (cf. Ac. do S.T.J. de 23-9-1993, B.M.J. 429-819 e de 3-12-1997, B.M.J., 472-493).

8. A determinação da vontade real advém, portanto, da análise texto, do contexto e dos elementos exteriores reconduzíveis que sejam ao que resulta do próprio documento.

9. No caso vertente constata-se que a sentença de primeira instância considerou que, quando a testadora se refere aos “ sobrinhos existentes à data da sua morte” não pode deixar de se considerar “ como únicos destinatários os primeiros, ou seja, os sobrinhos que, na altura do testamento, eram os ora réus e o pai dos autores”. Salienta a decisão que, analisado o contexto do testamento, a testadora refere-se a parentes mais duas vezes nos seguintes termos: “ lega a sua sobrinha e afilhada FF” e “ lega a sua bi-sobrinha e afilhada LL”. Distingue, por isso, sobrinhos, filhos de irmãos, dos bi-sobrinhos, netos de irmãos.

10. Afigura-se correcta tal interpretação, pois, se assim não fosse, ou seja, se a testadora tivesse em vista, sem distinção alguma, todos os sobrinhos existentes ou sobrevivos à data da sua morte, ou seja, os sobrinhos e os sobrinhos-netos, então importaria considerar herdeiros do remanescente todos os sobrinhos existentes à data da sua morte, incluindo-se as autoras e todos os demais sobrinhos netos.

11. A testadora, analisado o contexto do testamento, tinha, com efeito, consciência da distinção em grau dos sobrinhos, os filhos e os netos dos seus irmãos, tendo o cuidado de se referir à sua sobrinha Iolanda como bi-sobrinha. Referindo apenas o nome desta, enquanto legatária, a testadora não carecia de dizer que ela era sua bi-sobrinha, designação interessante, porque a cremos invulgar, sendo mais comum dizer-se sobrinho-neto, o que permite, na verdade, considerar que, quando se referia a sobrinhos, estava apenas a considerar os réus e o falecido pai dos autores.

12. Por isso, os únicos e universais herdeiros que ela instituiu foram efectivamente os sobrinhos existentes à data da sua morte, não se contando, assim, o seu sobrinho pré-falecido, pai das autoras.

13. Prescreve o artigo 2041.º/1 do Código Civil que

1- Gozam do direito de representação na sucessão testamentária os descendentes do que faleceu antes do testador ou do que repudiou a herança ou o legado, se não houver outra causa de caducidade da vocação sucessória.

14. Não oferece dúvida que, se da aludida disposição não constasse a sua parte final ” existentes à data da sua morte” verificava-se a representação sucessória a favor dos filhos, aqui autores, do pré-falecido irmão, pois não havia, em tal caso, caducidade da disposição testamentária, quanto ao herdeiro instituído, porque a lei expressamente ressalva a representação sucessória quando o instituído ou nomeado falecer antes do testador (artigo 2317.º,alínea a) do Código Civil).

15. E, por isso, não se compreende a argumentação do recorrente quando diz que, seguindo-se a orientação do acórdão recorrido que entendeu, com tal condição, limitar a qualidade de herdeiros aos sobrinhos que lhe sobrevivessem à data da morte, então não “ faria qualquer sentido manter-se no ordenamento jurídico português a representação, pois nunca - em circunstância alguma - a figura do direito de representação operaria”.

16. Acaso é sustentável afirmar-se que, se a testadora tivesse disposto que os herdeiros eram os seus sobrinhos tout court, que até poderia identificar, não ocorria direito de representação no caso de o decesso de um deles ser anterior ao da testadora? É evidente que havia direito de representação (artigos 2041.º e 2317.º, alínea a) do Código Civil).

17. Aqui o que está em causa - já se disse - é saber se, com a aludida cláusula, se verifica outra causa de caducidade de vocação sucessória (artigos 2041.º/1 e 2317.º, alínea b) do Código Civil) por via dela ficando afastado o direito de representação.

18. A decisão de 1ª instância entendeu que não está excluído o direito de representação porque considerou aplicável ao caso o disposto no artigo 2317.º,alínea a) do Código Civil que diz:

As disposições testamentárias, quer se trate de instituição de herdeiro, quer de nomeação de legatário, caducam, além de outros casos:
a) Se o instituído ou nomeado falecer antes do testador, salvo havendo representação sucessória.

19. Por via deste preceito entendeu estar “ reconduzida a questão de saber se, neste caso, opera a figura do direito de representação”.

20. Assim seria, na verdade, sem qualquer dúvida, se não constasse da disposição testamentária, a mencionada parte final “ seus sobrinhos existentes à data da sua morte”.

21. É que, por força desta condição, fica afastada o direito de representação visto que o disposto no artigo 2317.º, alínea c) tem de ser conjugado com o disposto no artigo 2041.º, ou seja, se houver outra causa de caducidade da vocação sucessória, não actua o direito de representação. Como refere Oliveira Ascensão “ se o beneficiário morrer antes da verificação da condição suspensiva não se transmite aos sucessores o direito de suceder na deixa condicional” (Direito Civil. Sucessões, 1981, Coimbra Editora, pág 305)

22. Foi este o entendimento do acórdão da Relação de Guimarães quando mencionou o seguinte:

A este respeito […] diremos, desde logo, que ao reportar-se aos “seus sobrinhos existentes à data da sua morte” , está a testadora a estabelecer uma condição - que os sobrinhos lhe sobrevivam.
E, a nosso ver, esta condição parece mostrar, com toda a evidência, que a testadora pretendeu instituir herdeiros do remanescente da sua herança apenas e tão só os sobrinhos que fossem vivos à data da sua morte, com exclusão, precisamente, dos descendentes dos sobrinhos predefuntos.
Na verdade, se não tivesse sido estabelecida aquela condição, manifesto seria que, por morte da testadora, os filhos dos seus sobrinhos predefuntos entrariam na sucessão por direito de representação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2039.º e 2040.º,n.º1, ambos do Código Civil.
Ora, se a testadora estabeleceu aquela condição foi porque pretendeu precisamente evitar a sucessão dos descendentes dos sobrinhos predefuntos, em benefício dos sobrinhos que lhe sobrevivessem.
Quer tudo isto dizer que foi intenção da testadora manifestar uma vontade contrária à representação.


23. A instituição dos sobrinhos, como herdeiros do remanescente, estava dependente da condição suspensiva da sua sobrevivência ao testador (artigos 270.º, 2229.º e 2317.º, alínea b) do Código Civil). Tal condição não se verificou e, por conseguinte, ocorreu caducidade da vocação sucessória do pai das autoras, que fora instituído, com os demais irmãos, herdeiro do remanescente, em conformidade com o disposto na parte final do artigo 2041.º/1 do Código Civil.

24. O entendimento diverso, que visa afastar a referida caducidade, acaba necessariamente por considerar as coisas como se a referida condição não constasse do testamento, expurgando-a, por via interpretativa, reconduzindo-se a solução do caso ao âmbito do artigo 2317.º, alínea a) do Código Civil. Foi esta, como se viu, a posição da 1ª instância.

25. Assim procedendo, no entanto, afastamo-nos das regras de interpretação testamentária, já focadas, que consideram a vontade real do testador com o sentido mais ajustado em função do contexto do testamento e não, como é evidente, em função de um outro possível, mas não verificado, contexto do testamento.

26. A interpretação da aludida cláusula nos termos mencionados no acórdão recorrido afigura-se não apenas a mais ajustada, mas a única que lhe empresta sentido, não tendo os recorrentes, que pugnam pelo não afastamento do direito de representação, indicado outro significado útil para a aludida cláusula conforme à vontade real do testador, salvo o de se considerar que tal cláusula foi uma inutilidade, devendo, portanto, ter-se como não escrita.

Concluindo:

I- Na interpretação dos testamentos a vontade real do testador deve aferir-se, atento o disposto no artigo 2187.º do Código Civil, em função do contexto do testamento e da prova complementar que não relevará se o sentido por via dela obtido não tiver “ um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso nesse contexto”, tudo isto significando que não se adequa ao sentido da lei uma interpretação que, para atingir a vontade real do testador, derrogue uma disposição do testamento, procedendo-se a uma interpretação do testamento como se tal disposição não estivesse nele contida.

II- Assim, se do testamento consta que “ do remanescente dos seus bens […] institui únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, os seus sobrinhos existentes à data da sua morte”, com tal expressão final evidencia-se que a instituição de herdeiro do remanescente caduca se ocorrer o decesso do instituído herdeiro antes da morte do testador.

III- O sentido útil dessa disposição, à luz do disposto no artigo 2187.º do Código Civil, é o de se considerar que, por via dela, o testador quis instituir herdeiros os sobrinhos na condição de lhe sobreviverem, afastando-se, assim, a representação sucessória (artigos 2041.º/1, 2229.º, 2317.º, alínea b) do Código Civil) o que já não sucederia se tal condição não constasse do testamento, caso em que se aplicaria o disposto no artigo 2317.º,alínea a) do Código Civil.

Decisão: nega-se a revista

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 20 de Janeiro de 2010

Salazar Casanova (Relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar