Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
56/18.0YFLSB
Nº Convencional: 3ª SESSÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: PRAZO DE PRISÃO PREVENTIVA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
PENA DE PRISÃO
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
MEDIDAS DE COACÇÃO
MEDIDAS DE COAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 08/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / REVOGAÇÃO, ALTERAÇÃO E EXTINÇÃO DAS MEDIDAS / MODO DE IMPUGNAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / HABEAS CORPUS.
Doutrina:
- ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA, ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 839;
- GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, p. 260;
- J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4-ª Edição revista, I Volume, 2007, Coimbra, p. 495, 508 e 510;
- JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I Tomo, Coimbra, 2005, p. 321, 327, 328 e 479;
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª Edição, 2007, p. 595, 596 e 620;
- SOUSA BRITO, A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, 2.º Volume, p. 253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 215.º, N.º 6, 220.º, N.º 1 E 222.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 16-12-2003, PROCESSO N.º 4393/03, , IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-11-2009, PROCESSO N.º 397/07.1TAFAR-L.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-07-2010, PROCESSO N.º 811/06.3TDLSB-C.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-02-2011, PROCESSO N.º 25/10.8MAVRS-B.S1;
- DE 30-05-2012, PROCESSO N.º 49/12.0YFLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-11-2012, PROCESSO N.º 22/12.9GBETZ-0.S1;
- DE 15-01-2014, PROCESSO N.º 1216/05.9GCBRG-A.S1;
- DE 11-12-2014, PROCESSO N.º 1049/12.6JAPRT-C.S1, , IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-02-2015, PROCESSO N.º 18/15.9YFLSB.S1;
- DE 19-03-2015, PROCESSO N.º 5/13.1SWLSB-D.S2, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-04-2015, PROCESSO N.º 8/13.6MACSC-E.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-03-2016, PROCESSO N.º 289/16.3JABRG-A.S1;
- DE 22-03-2016, PROCESSO N.º 653/14.2TDLSB-B.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 31-08-2017, PROCESSO N.º 140/15.1T9FNC-P.S1, IN SASTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, BOLETIM ANUAL, 2017, WWW.STJ.PT.


-*-


ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 246/99;
- ACÓRDÃO N.º 2/2008, IN DR, 2.ª SÉRIE, DE 14 DE FEVEREIRO DE 2008;
- ACÓRDÃO N.º 603/2009, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT.
Sumário :
I - A providência de habeas corpus tem os seus fundamentos previstos de forma taxativa, nos arts. 220.º, n.º 1 e 222.º, n.º 2, do CPP, consoante o abuso de poder derive de uma situação de detenção ilegal ou de uma situação de prisão ilegal, respectivamente. Tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, esta há-de provir de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 222.º do CPP de: a) ter sido efectuada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto que a lei não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
II - A providência de habeas corpus está processualmente configurada como uma providência excepcional, não constituindo um recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe ainda uma actualidade da ilegalidade da prisão reportada ao momento em que é apreciado o pedido.
III - O requerente foi condenado em 1.ª instância na pena única de 14 anos de prisão pela prática de um conjunto de crimes. O Tribunal da Relação concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, tendo reduzido a pena única para 12 anos de prisão, mantendo as penas parcelares bem como a qualificação jurídica-penal dos factos.
IV - A norma aplicável ao caso, relativa ao prazo da prisão preventiva é a que consta do art. 215.º, n.º 6, do CPP, porque deve entender-se que há confirmação da sentença também quando o tribunal superior aplica uma pena inferior à pena da sentença recorrida, dando provimento “pontual” ao recurso do arguido. Neste caso, o prazo máximo da prisão preventiva é o de metade da pena de prisão aplicada pelo Tribunal da Relação, pelo que ainda não se encontra excedido o prazo máximo de prisão preventiva (6 anos).
V - O art. 215.º, n.º 6, do CP assenta numa concepção «gradualista» do princípio da presunção da inocência, segundo o qual ele não tem a mesma intensidade ao longo do processo, concepção essa que poderá justificar-se desta forma: com a condenação em 1.ª instância, decretada após uma audiência formal em que o arguido pôde apresentar sem restrições a sua defesa, e a posterior confirmação dessa condenação pelo tribunal superior, existe um fundamento sólido de imputação da responsabilidade criminal, que provoca uma natural «erosão» ou «fragilização» do princípio da presunção de inocência; por isso, o estabelecimento de novos prazos de prisão preventiva a partir da confirmação da condenação em 1.ª instância.
VI - O STJ vem sistematicamente entendendo que há confirmação da sentença para efeitos de medida de coacção, isto é, para efeitos do n.º 6 do art. 215.º do CPP, também quando o tribunal superior aplica uma pena igual, inferior ou superior à pena fixada na sentença recorrida, sendo que esta interpretação não infringe qualquer norma ou princípio constitucional. A regra da «confirmação» em matéria de medidas de coacção não deve ser interpretada nos mesmos termos da regra da dupla conforme em matéria de recurso da sentença. A finalidade ou objectivo destas 2 regras é diferente: no caso dos recursos, a dupla conforme visa evitar a interposição de recurso para o STJ, no caso das medidas de coacção a «confirmação» visa alargar o prazo de duração daquelas medidas justamente quando há recurso para o STJ ou TC.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I - RELATÓRIO

            1. AA, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva à ordem do processo n.º 347/10.8PJPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 3, vem apresentar petição de HABEAS CORPUS, redigida por si próprio, alegando que:

«(…) no meu humilde entendimento já foram ultrapassados todos os prazos a que deveria estar sujeito à medida de coacção mais gravosa, que é a Privação da minha liberdade venho requerer ao venerado Supremo Tribunal de Justiça que declare prisão ilegal e me ponha desde logo em liberdade, pelo que passo a expor

1 – A 9 de Janeiro de 2015, por mandato europeu de detenção fui detido na minha terra natal pela Europol.

2 – A 4 de Fevereiro de 2015 dei entrada no EPL, dormindo lá uma noite.

3 – A 5 de Fevereiro de 2015 sou presente ai Juiz de Instrução onde me é decretada a prisão preventiva, estando na situação de preso preventivo até à data de hoje.

4 – Fui entretanto condenado em Tribunal de 1ª Instância a pena de 14 anos de prisão efectiva.

5 – Não conformado com tal pena de prisão, interpus recurso para o Venerado Tribunal da Relação do Porto.

6 – No Venerado Tribunal da Relação do Porto fixa a minha pena de prisão em 12 anos de prisão efectiva.

7 – Ora, como o Venerado Tribunal da Relação do Porto baixou a minha pena de 14 anos de prisão efectiva para 12 anos de prisão efectiva o prazo máximo que deveria estar em prisão preventiva deveria ser 3 anos e 4 meses, prazo já [há] muito ultrapassado.

8 – É de salientar que sou casado, tenho 3 filhos e encontro-me privado da minha liberdade à praticamente 3 anos e 6 meses, o que ultrapassa em muito os 3 anos e 4 meses, tempo máximo a que deveria estar a medida de coacção tão gravosa.

Assim, requeiro a Vossa Excelência pela minha libertação imediata por já ter ultrapassado o tempo máximo de prisão preventiva e a liberdade é um precioso e nunca se pode estar privado da liberdade mais de que humanamente aceitável.»

         2. O Ex.mo Juiz titular do processo exarou a seguinte informação, nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, doravante CPP:

«Referência 7928618- Informe que o arguido AA foi detido em 08.01.2015 e preso preventivamente desde 05.02.2015, condenado na pena de 12 anos de prisão e que atinge o prazo máximo de prisão preventiva em 05.02.2021.

O despacho de revisão da medida de coacção-prisão preventiva- proferido nos termos do art. 213º do CPP e que manteve a mesma, data de 21.05.2018. Para o efeito, envie cópia de fls. 2054 a 2060.»

3. Consta do processo que o peticionante foi condenado na Instância central – Secção Criminal – J3 – da Comarca do Porto, pela prática, em co-autoria material e em concurso real, de crimes de associação criminosa, furo (simples e qualificado) e burla informática (simples e qualificada) na pena única de 14 anos de Prisão.

No âmbito do recurso interposto, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 21-02-2018, deliberou conceder-lhe parcial provimento, mantendo a condenação do arguido, agora requerente, pelos factos, com o enquadramento jurídico-penal e nas penas parcelares aplicadas na decisão da 1.ª instância, alterando, porém, a medida da pena única aplicada, fixando-a em 12 anos de prisão.

4. Convocada a secção criminal e notificados os Ministério Público e o Defensor do requerente, teve lugar a audiência, nos termos dos artigos 223.º, n.os 2 e 3, e 435.º do CPP, cumprindo tornar pública a respectiva deliberação.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A. Os factos

Constam dos autos os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida:

O peticionante AA foi detido em 08.01.2015 na sequência da emissão de mandado de detenção europeu (MDE);

Encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva desde 05-02-2015.

Foi condenado em 1.ª instância na pena única de 14 anos de prisão, pena que foi reduzida para 12 anos de prisão pelo Tribunal da Relação do Posto no âmbito do recurso interposto.

B. O direito

1. Estabelece o artigo 31.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, que o próprio ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ou detenção ilegal.

O instituto do habeas corpus «consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros. (…). «Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade», podendo ser requerido «contra decisões irrecorríveis, (…) mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal»[1].

Visando reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal, o habeas corpus constitui, para GERMANO MARQUES DA SILVA, «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade»[2].

Como o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando, esta providência constitui «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, de prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário…»[3].

Daí que, a providência de habeas corpus tenha os seus fundamentos previstos, de forma taxativa, nos artigos 220.º, n.º 1 e 222.º, n.º 2 do CPP, consoante o abuso de poder derive de uma situação de detenção ilegal ou de uma situação de prisão ilegal, respectivamente.

Tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, situação que se destaca por ser aquela que o requerentes invoca, esta há-de provir, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de:

a) Ter sido efectuada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto que a lei não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Como este Supremo Tribunal vem sistematicamente decidindo, a providência de habeas corpus está processualmente configurada como uma providência excepcional, não constituindo um recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação de liberdade do arguido, nem sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

Assim, como se considera no seu acórdão de 15-01-2014, proferido no proc.º n.º 1216/05.9GCBRG-A.S1 - 3.ª Secção, «está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da decisão, já que, se o fizesse, estaria a criar um novo grau de jurisdição».

2. A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe ainda uma actualidade da ilegalidade da prisão reportada ao momento em que é apreciado o pedido. Trata-se de asserção que consubstancia jurisprudência sedimentada no Supremo Tribunal de Justiça, como se dá nota no acórdão de 21-11-2012 (Proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1 – 3.ª Secção), onde se indicam outros arestos no mesmo sentido, bem como no acórdão de 09-02-2011 (Proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1 – 3.ª Secção), no acórdão de 11-02-2015 (Proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1 – 3.ª Secção), e no acórdão de 17-03-2016, relatado pelo ora relator, proferido no processo n.º 289/16.3JABRG-A.S1 – 3.ª Secção.

Assim, à luz do princípio da actualidade, assim enunciado, o que está em causa no caso sub judice é unicamente a apreciação da legalidade da actual situação de privação de liberdade do requerente.

C. Apreciação

            1. O requerente invoca como fundamento do pedido de habeas corpus a alínea c) do artigo 222.º do CPP, alegando que a prisão preventiva a que se encontra sujeito se mantém para além dos prazos fixados na lei. Segundo alega, «o prazo máximo que deveria estar em prisão preventiva deveria ser 3 anos e 4 meses, prazo já há muito ultrapassado».

            O artigo 215.º do CPP, que fixa os prazos de duração máxima da prisão preventiva, na sua redacção actual, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, dispõe, no que releva para a situação em apreço, o seguinte:

«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

[…];

6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.

[…]».

Como se discorre no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2009[4]:

«A ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo das sucessivas fases processuais. Dentro de cada fase processual, os prazos de duração máxima de prisão preventiva são ainda pré-determinados segundo a gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento (veja-se sobre estes aspectos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 2/2008, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Fevereiro de 2008).

            Na base da introdução do sistema terá estado – como se afirma também no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 404/05 - o propósito de promover o andamento sem delongas do processo, incentivando os respectivos responsáveis a respeitar os prazos de conclusão de cada fase, sob risco de insubsistência de uma prisão preventiva tida por essencial para a prossecução dos objectivos da justiça criminal.

            A lei prevê, no entanto, um outro limite para o prazo máximo da prisão preventiva, através do transcrito n.º 6 desse artigo 215.º, que resulta da confirmação em sede de recurso ordinário da sentença condenatória de primeira instância. O que parece ter-se pretendido, através da previsão legal, é um prolongamento da prisão preventiva quando exista já um suficiente grau de certeza acerca da prática do crime, da sua autoria e da existência de culpa (baseado num duplo juízo condenatório), de modo a evitar que a extinção da medida de coacção pudesse vir a ocorrer por virtude da interposição de novo recurso (para o Supremo Tribunal de Justiça ou para o Tribunal Constitucional) ou da utilização de expedientes dilatórios que prolongassem artificialmente a duração do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 595-596).

A elevação do prazo máximo de prisão preventiva, nessa circunstância, assenta, por sua vez, em dois factores distintos: a confirmação do juízo condenatório por parte do tribunal superior implica de per si a prorrogação do prazo de prisão preventiva; a medida da pena influencia o limite temporal dessa prorrogação, visto que o prazo é ampliado em metade da pena que tiver sido fixada».

No caso sub judice verificamos que o peticionante foi condenado em 1.ª instância na pena única de 14 anos de prisão pela prática de um conjunto de crimes já referenciados.

     O Tribunal da Relação do Porto, no recurso oportunamente interposto, deliberou conceder parcial provimento ao mesmo, tendo reduzido para 12 anos de prisão a pena única, mantendo as penas parcelares bem como a qualificação jurídico-penal dos factos.

           

            Esta situação implica que a norma aqui aplicável relativa ao prazo da prisão preventiva seja a que consta do citado artigo 215.º, n.º 6, do CPP.

            Convocando o que se disse no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-06-2018, proferido no processo de habeas corpus n.º 6/15.5GAPRT-H.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo ora relator, numa situação idêntica à agora em apreço, e como salienta MAIA COSTA, a norma contida no citado artigo 215.º, n.º 6, do CPP «assenta numa concepção “gradualista” daquele princípio [princípio da presunção da inocência], segundo a qual ele não tem a mesma intensidade ao longo do processo, concepção essa que poderá justificar-se desta forma: com a condenação em 1.ª instância, decretada após uma audiência formal em que o arguido pôde apresentar sem restrições a sua defesa, e a posterior confirmação dessa condenação pelo tribunal superior, existe um fundamento sólido de imputação da responsabilidade criminal, que provoca uma natural “erosão” ou “fragilização” do princípio da presunção da inocência; por isso, o estabelecimento de novos prazos de prisão preventiva a partir da confirmação da condenação em 1.ª instância, e tendo como referência a pena fixada, mostra-se materialmente justificado, não podendo considerar-se ofensivo daquele princípio»[5].

No mesmo sentido, em jurisprudência consolidada, vem este Supremo Tribunal entendendo, como em recente acórdão de 31-08-2017, proferido no processo de habeas corpus n.º 140/15.1T9FNC-P.S1 - 3.ª Secção[6], em cujo sumário se pode ler:

«- Ultrapassada a fase de apuramento da responsabilidade de um imputado crime e tendo sido considerado a necessidade de imposição de uma pena, a lei impõe que, tendo o arguido sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória confirmada em sede de recurso ordinário, o modo de fixar a prisão preventiva se transmute (art. 215.º, n.º 6, do CPP). A prisão preventiva deixa de estar indexada às fases processuais, para quedar atracada e conexionada à medida da pena que foi estabelecida pelo tribunal.

- O legislador quis distinguir e separar os 2 parâmetros de validação da prisão preventiva: no primeiro plano o juízo de culpabilidade e de imposição de um sancionamento penal ainda não está formado e consolidado por um órgão jurisdicional que, apreciada a prova e ouvidas ambas as versões, concluiu pela existência de um facto punível, cuja imputação pode ser feita a um concreto sujeito; no segundo plano, a função revisora do tribunal de recurso assenta já numa reavaliação do juízo de inculpação já formado, funcionando como reconstrutor de uma realidade jurídico-penal que já teve um veredicto positivo e de afirmação de todos os elementos de culpabilidade de um agente. O juízo de necessidade de condenação mantém-se, ainda que, no caso, em termos diferentes e com distinta dimensão/extensão sancionatória.

  - Não obsta a essa confirmação e validação da condenação efectuada no tribunal de 1.ª instância o facto de essa confirmação ter sido parcial e para melhor. O juízo de necessidade de condenação mantém-se, ainda que, no caso, em termos diferentes e com distinta dimensão/extensão sancionatória».

            É verdade que na situação que o peticionante nos apresenta não se observa uma confirmação «total», uma sobreposição, da decisão da 1.ª instância pelo tribunal superior.

            Na 1.ª instância o requerente foi condenado, em cúmulo jurídico de várias penas singulares, na pena de 14 anos de prisão, enquanto que na Relação a pena única fixada pelos mesmos crimes foi de 12 anos. Ou seja, verificou-se uma confirmação do juízo condenatório ainda que com redução, em dois anos, da pena aplicada na 1.ª instância.

         Ora, em tal situação, vem o Supremo Tribunal de Justiça sistematicamente entendendo que há confirmação da sentença (para efeitos das medidas de coacção, isto é, para efeitos do n.º 6 do artigo 215º do CPP) também quando o tribunal superior aplica uma pena igual, inferior ou superior à pena fixada na sentença recorrida. Neste sentido, de entre outros, os acórdãos de 12-11-2009 (proc. n.º 397/07.1TAFAR-L.S1 – 3.ª Secção), de 07-07-2010 (proc. n.º 811/06.3TDLSB-C.S1 – 3.ª Secção), de 30-05-2012 (proc. n.º 49/12.0YFLSB.S1 – 3.ª Secção), de 19-03-2015 (proc. n.º 5/13.1SWLSB-D.S2 – 5.ª Secção), de 23-04-2015 (proc. n.º 8/13.6MACSC-E.S1 – 5.ª Secção), de 22-03-2016 (proc. n.º 653/14.2TDLSB-B.S1 – 3.ª Secção)[7].

            A circunstância de a confirmação da decisão da 1.ª instância não ter sido integral, uma vez que o tribunal de recurso deliberou reduzir em dois anos a pena conjunta não constitui obstáculo à aplicação do prazo previsto no citado artigo 215.º, n.º 6, do CPP.

            Ou seja, para efeitos da aplicação deste preceito, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação em sede de recurso para aí interposto é confirmatória da decisão da 1.ª instância.

                       

            Como justamente se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-05-2017, proferido no processo n.º 1183/15.0JAPRT-C.S1 – 3.ª Secção, o prolongamento da prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, tem na génese um suficiente grau de certeza acerca da prática do crime, da sua autoria e da existência de culpa (baseado num duplo juízo condenatório), pelo que fazendo uma interpretação racional deste preceito, não se pode limitar a sua aplicação aos casos em que haja uma absoluta sobreposição entre a decisão da 1ª instância e a decisão de recurso, devendo, antes, ser alargado a outros casos que envolvam igualmente um duplo grau condenatório, designadamente quando o tribunal de recurso rejeita o recurso nos termos do art. 420º do CPP (e, por isso não altera o julgado) ou aplica pena igual, inferior ou superior à pena da sentença recorrida.

Efectivamente, como o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando:

            «A regra da “confirmação” em matéria de medidas de coacção não deve interpretar-se no mesmo sentido que a “dupla conforme” em matéria de recurso de sentença, pois é diferente a finalidade das duas regras. A regra da “dupla conforme” pretende evitar a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto a regra da “confirmação” em matéria de medidas de coacção visa alargar o prazo de duração máxima das mesmas precisamente quando há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ou para o Tribunal Constitucional.

            Por isso, tem-se entendido que há “confirmação” quando o tribunal de recurso rejeita o recurso nos termos do artigo 420.º ou aplica pena igual, pena superior ou pena inferior á fixada na sentença recorrida».

            Neste sentido, entre outros, o citado acórdão de 19-03-2015, a que pertence o trecho transcrito, e o acórdão de 23-04-2015 (proc. n.º 8/13.6MACSC-E.S1 – 5.ª Secção.

            No mesmo entendimento, lê-se no acórdão de 22-03-2016, igualmente já citado:

            «Esta norma, o nº 6 do artº 215º do CPP, não se confunde nem identifica, com a conformidade ou “dupla conforme”, determinada pela al. f) do art.º 400.º do CPP: - Esta tem em vista critério legal definidor e limitativo de irrecorribilidade da decisão da Relação para o Supremo, quando houver confirmado, ainda que in mellius, decisão da primeira instância. Aquela fundamenta-se na razoabilidade do prazo limitativo da liberdade, ínsito à duração de uma medida de coacção que restrinja essa liberdade, tendo pois natureza e função meramente cautelar, na sequência e, de harmonia com o princípio da legalidade, previsto no artº 191º do CPP e, obviamente, sem prejuízo da conformidade normativa constitucional, sendo certo que a Constituição Política da República Portuguesa no artº 27º nº 3 permite a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos ali indicados nas respectivas alíneas, em que se inclui a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponde pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e que o art.º 202º do CPP, burilou, nas respectivas alíneas, entre as quais a al. c)».

            A regra da “confirmação” em matéria de medidas de coacção – afirma-se no mesmo acórdão – «não deve ser interpretada nos mesmos termos da regra da “dupla conforme” em matéria de recurso da sentença (que, no caso, até ocorre, estando-se perante confirmação “in mellius” pois o Tribunal da Relação, embora tenha alterado a decisão da 1ª instância, condenou o arguido em pena inferior á anteriormente aplicada).

            Com efeito, a finalidade ou objectivo daquelas duas regras é diferente: no caso dos recursos, a “dupla conforme” visa evitar a interposição de recurso para o STJ; no caso das medidas de coacção a “confirmação” visa alargar o prazo de duração daquelas medidas justamente quando há recurso para o STJ ou para o Tribunal Constitucional.

            Por isso, deve entender-se que há confirmação da sentença (para efeitos das medidas de coacção, isto é, para efeitos do nº 6 do artigo 215º do CPP) também quando o tribunal superior aplica uma pena inferior á pena da sentença recorrida (como no caso em apreço), dando provimento “pontual” ao recurso do arguido (pois limitou-se a reduzir apenas a pena aplicada (….).

            Neste caso, o prazo máximo da prisão preventiva é o de metade da pena de prisão aplicada pelo tribunal superior (da Relação).

            Entendemos, portanto, que, no caso de condenação em pena de prisão em 1ª instância e em recurso ordinário para o tribunal superior, o prazo de prisão preventiva eleva-se – se for caso disso – para metade da pena de prisão aplicada pelo tribunal superior.

            Esta interpretação, a nosso ver, respeita a intenção do legislador que estabeleceu prazos diferentes para a prisão preventiva consoante a fase processual em que o processo se encontra.

Em idêntico sentido escreve Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 620, nota 18: “A regra da “confirmação” em matéria de medidas de coacção não deve ser interpretada no mesmo sentido que a regra da “dupla conforme” em matéria de recurso de sentença […], uma vez que o propósito destas duas regras é diferente: a regra da “dupla conforme” visa evitar a interposição de recurso para o STJ, a regra da “confirmação” em matéria de medidas de coacção visa alargar o prazo de duração das mesmas precisamente quando há recurso para o STJ ou para o TC.”»

            Cumpre sublinhar que a apontada interpretação normativa do n.º 6 do artigo 215.º do CPP não infringe qualquer norma ou princípio constitucional.

           

A este propósito, prevalecemo-nos das considerações vertidas no já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2009 numa situação em que estava em causa uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida em providência de habeas corpus, que considerou que há confirmação da sentença, para os efeitos previstos no artigo 215º, n.º 6, do CPP, quando o tribunal de recurso aplica uma pena igual ou superior à da sentença de primeira instância.

Estas considerações são perfeitamente transponíveis, até por maioria de razão, para a situação, como a presente, em que o tribunal de recurso reduziu a pena de prisão fixada no tribunal recorrido, de 1.ª instância.

            Lê-se, pois, naquele acórdão do Tribunal Constitucional:

            «3. A única questão a decidir é, pois, a de saber se a norma do n° 6 do artigo 215° do Código de Processo Penal, tal como foi interpretada pelo tribunal recorrido, se encontra ferida de inconstitucionalidade, por violação do princípio ínsito no artigo 18º, n.º 2, bem como do princípio da legalidade penal resultante do artigo 29º, n.º 3, todos da Constituição.

            […]

            Segundo o regime assim consignado [o regime estabelecido no artigo 215.º do CPP, na sua redacção actual, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto], o prazo de duração da prisão preventiva conta-se sempre do seu início e não pode exceder certos limites (acumulados) que se reportam a quatro marcos processuais: 1.º - dedução da acusação; 2.º – prolação de decisão instrutória quando tenha havido instrução; 3.º – condenação em 1.ª instância; 4.º – trânsito em julgado da condenação.

Aos prazos fixados para cada uma dessas fases processuais aplicam-se, consoante os casos, três diferentes regimes: o normal (4 meses, 8 meses, 1 ano e 2 meses e 1 ano e 6 meses); o especial, em que se atende à gravidade dos crimes (6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos); e o excepcional, quando a essa gravidade dos crimes acresce a excepcional complexidade do procedimento (1 ano, 1 ano e 4 meses, 2 anos e 6 meses e 3 anos e 4 meses) – n.os 1, 2 e 3 do artigo 215.º do CPP.

A ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo das sucessivas fases processuais. Dentro de cada fase processual, os prazos de duração máxima de prisão preventiva são ainda pré-determinados segundo a gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento (veja-se sobre estes aspectos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 2/2008, publicado no Diário da República, 2ª série, de 14 de Fevereiro de 2008).

            Na base da introdução do sistema terá estado – como se afirma também no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 404/05 - o propósito de promover o andamento sem delongas do processo, incentivando os respectivos responsáveis a respeitar os prazos de conclusão de cada fase, sob risco de insubsistência de uma prisão preventiva tida por essencial para a prossecução dos objectivos da justiça criminal.

            A lei prevê, no entanto, um outro limite para o prazo máximo da prisão preventiva, através do transcrito n.º 6 desse artigo 215º, que resulta da confirmação em sede de recurso ordinário da sentença condenatória de primeira instância. O que parece ter-se pretendido, através da previsão legal, é um prolongamento da prisão preventiva quando exista já um suficiente grau de certeza acerca da prática do crime, da sua autoria e da existência de culpa (baseado num duplo juízo condenatório), de modo a evitar que a extinção da medida de coacção pudesse vir a ocorrer por virtude da interposição de novo recurso (para o Supremo Tribunal de Justiça ou para o Tribunal Constitucional) ou da utilização de expedientes dilatórios que prolongassem artificialmente a duração do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 595-596).

A elevação do prazo máximo de prisão preventiva, nessa circunstância, assenta, por sua vez, em dois factores distintos: a confirmação do juízo condenatório por parte do tribunal superior implica de per si a prorrogação do prazo de prisão preventiva; a medida da pena influencia o limite temporal dessa prorrogação, visto que o prazo é ampliado em metade da pena que tiver sido fixada.

            Por outro lado, esses dois factores são revelados pela sucessiva actividade cognitiva do tribunal no momento da elaboração da sentença. Em primeiro lugar, como determina o artigo 368º do CPP (também aplicável em sede de recurso – artigo 424º, n.º 2, do CPP), o tribunal aprecia a questão da culpabilidade, verificando se estão definidos os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se actuou com culpa, se se verificou alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, e se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente. Se se concluir que ao arguido deve ser aplicada uma pena, o tribunal pronuncia-se em seguida, nos termos consignados no subsequente artigo 369º, sobre a questão da determinação da sanção, verificando aspectos relativos aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e situação social, para efeito de fixar a espécie e medida da pena.

Facilmente se compreende o peso relativo que o legislador quis atribuir à resposta dada pelo tribunal a estas duas questões: um juízo confirmativo da existência de culpa determina a ampliação do prazo de prisão preventiva; a medida da pena determina o quantum dessa ampliação.

            No caso vertente, o ora recorrente foi condenado em primeira instância numa pena única, em cúmulo jurídico, de 8 anos de prisão. O Tribunal da Relação negou provimento ao recurso interposto pelo arguido e concedeu provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público, condenando o arguido na pena única de 9 anos de prisão. Na sequência, foi produzido despacho judicial que elevou o prazo de prisão para metade da pena aplicada.

            Interposto pedido de habeas corpus, o Supremo Tribunal de Justiça, através da decisão ora recorrida, considerou que há confirmação da sentença, para os efeitos previstos no artigo 215º, n.º 6, do CPP, quando o tribunal de recurso aplica uma pena igual ou superior à da sentença de primeira instância, e manteve assim o entendimento de que o prazo de prisão preventiva se ampliou para 4 anos e meio, correspondente a metade da pena aplicada em recurso.

Sustenta o recorrente que o tribunal recorrido efectuou uma interpretação extensiva ou analógica da disposição do artigo 215º, n.º 6, e que, assim interpretada, essa norma é inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº 2, e 29º, nº 3, da Constituição.

            O Tribunal Constitucional tem vindo a admitir, começando por este último parâmetro de constitucionalidade, que o princípio da legalidade penal, que surge concretizado no artigo 29.º, n.º 3, da Constituição, se torna extensivo às normas processuais que condicionam a aplicação das sanções penais (v.g. as relativas à prescrição, ao exercício, caducidade e desistência do direito de queixa, e à reformatio in pejus), bem como àquelas que possam afectar o direito à liberdade do arguido (v.g. as relativas à prisão preventiva) ou que asseguram os seus direitos fundamentais de defesa, disposições que, assim, poderão entender-se como normas processuais penais substantivas (cfr., neste sentido, o acórdão n.º 551/09 e a doutrina e jurisprudência nele citada).

Como corolário ou consequência do princípio da legalidade penal conta-se a exigência de determinabilidade do conteúdo da lei criminal, que acarreta que devam ser tidas como ilegítimas as definições vagas, incertas ou insusceptíveis de delimitação, e leva igualmente à proibição da aplicação analógica da lei criminal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, I vol., Coimbra, pág. 495; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I Tomo, Coimbra, 2005, págs. 327-328). Neste sentido, o princípio da legalidade, na qualidade de parâmetro constitucional, impõe a formulação da norma penal com um conteúdo autónomo e suficiente, possibilitando um controlo objectivo na sua aplicação individualizada e concreta, como também se afirma no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 93/2001.

Aplicados tais princípios às normas processuais penais substantivas, como antes se expôs, seria sustentável afirmar-se que as normas que definem a duração do prazo de prisão preventiva, e, designadamente, a do artigo 215º, n.º 6, aqui particularmente em foco, não poderão ser objecto de interpretação analógica no ponto em que uma tal interpretação pode pôr em causa o direito à liberdade do arguido. E poderia ainda fazer-se equivaler a essa situação uma interpretação extensiva que, tendo embora no texto legal um mínimo de correspondência verbal, excedesse o sentido possível das palavras da lei, por ser ela ainda assim incompatível com o fundamento da segurança jurídica que está ínsito no princípio da legalidade penal (neste sentido, Sousa Brito, A lei penal na Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., pág. 253; admitindo, em geral, a interpretação extensiva em processo penal, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2004).

No caso vertente, porém, não subsiste qualquer lacuna que careça de ser integrada pelo intérprete através da analogia, nem tão-pouco se adoptou uma interpretação que ultrapasse o que resulta estritamente da letra da lei, limitando-se o tribunal recorrido a escolher, no quadro de uma interpretação declarativa, um dos sentidos literais possíveis, que está ainda coberto pela formulação verbal da norma.

            Como se deixou esclarecido, a norma do artigo 215º, n.º 6, do CPP consagrou uma prorrogação do prazo máximo da prisão preventiva para o caso em que a sentença condenatória de primeira instância tenha sido «confirmada em sede de recurso ordinário» e definiu a proporção do aumento do prazo em função da «pena que tiver sido fixada».

Há lugar à ampliação do prazo da prisão preventiva quando tenha havido confirmação, pela Relação, da sentença condenatória de primeira instância, e corresponde ao sentido literal da lei (ou, pelo menos, a um dos sentidos literais possíveis) que o prazo máximo se eleve para metade da pena que tiver sido aplicada no tribunal de recurso.

            A “confirmação” opera quando o tribunal de recurso rejeita o recurso nos termos do artigo 420.º do CPP (e, por isso, não altera o julgado) ou aplica pena igual, inferior ou superior à pena da sentença recorrida, visto que, em qualquer desses casos há um juízo confirmativo de uma sentença condenatória que preenche, por si, o requisito legal de que depende a elevação do prazo máximo da prisão preventiva.

            Quando houver um agravamento da pena em sede de recurso, pode considerar-se que existe uma ambiguidade na análise literal do inciso «pena que tiver sido fixada» constante do artigo 215º, n.º 6, visto que pode entender-se que essa pena, é a que foi aplicada pelo tribunal de recurso (por ser esse o alcance do juízo confirmativo) ou é a que foi aplicada pelo tribunal de primeira instância (por ser até ao limite dessa pena que ocorreu uma efectiva reiteração pelo tribunal da Relação do juízo da primeira instância sobre a culpa e a gravidade da pena). O Supremo Tribunal de Justiça, no caso em apreço, optou pela primeira dessas possíveis interpretações, mas trata-se, sem sombra de dúvida, de um entendimento que cabe na letra da lei e corresponde a uma forma de interpretação declarativa.

A interpretação efectuada não envolve, por conseguinte, o recurso à analogia ou sequer uma interpretação extensiva, pelo que não há nenhuma razão para considerar verificada a violação do princípio da legalidade penal.

           

            Um outro parâmetro de constitucionalidade invocado tem como referente o disposto no artigo 18.º, n.° 2, da Constituição.

            Como é sabido, o direito à liberdade admite as restrições que se encontram previstas nos n.os 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição, entre as quais se conta a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos. Constituindo as restrições ao direito à liberdade restrições a um direito fundamental integrante da categoria de direitos, liberdades e garantias, estão sujeitas às regras do artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, o que quer dizer que «só podem ser estabelecidas para proteger direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os proteger» (nestes precisos termos, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob cit., pág. 479).

Por outro lado, como decorre do artigo 28.º, n.º 4, do texto constitucional, “[a] prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei”, o que significa que não pode deixar de ser temporalmente limitada de acordo com a sua natureza. Cabendo à lei a fixação dos prazos de prisão preventiva, como resulta desse preceito, dispõe o legislador ordinário, nessa matéria, de uma relativa margem de liberdade de conformação, ainda que deva respeitar o princípio da proporcionalidade (idem, pág. 490; no mesmo sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., pág. 321; entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/99).

Ora, não se vê, no caso concreto, em que medida é que a interpretação adoptada pelo tribunal recorrido poderá ferir o princípio da proporcionalidade. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça assentou na ideia de que há confirmação da sentença condenatória quando o tribunal superior mantém a pena aplicada ou estabelece pena superior. Considerou, por outro lado, que, tendo havido um agravamento da pena em sede de recurso, a elevação do prazo máximo de prisão preventiva, por efeito do disposto no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, passaria a ser metade da pena agravada.

            Independentemente da correcção da interpretação efectuada, no plano do direito ordinário, aspecto que ao Tribunal Constitucional não cabe apreciar, o certo é que a interpretação adoptada é congruente com o espírito do sistema e corresponde a uma solução proporcionada em relação aos objectivos que o legislador pretendeu atingir com a ampliação do prazo para a prisão preventiva.

O recorrente parece defender o entendimento de que só uma decisão confirmativa que se mostrasse ser inteiramente coincidente, quanto à medida da pena, com a sentença condenatória da primeira instância é que poderia preencher os pressupostos da ampliação do prazo de prisão preventiva previsto no artigo 215º, n.º 6, do Código de Processo Penal. Já se viu, no entanto, que a solução legislativa assenta em dois diferentes fundamentos: a confirmação do juízo de culpabilidade é motivo bastante para a prorrogação do prazo da prisão preventiva; a medida da pena (aqui relevando a variação para mais ou para menos resultante do julgamento efectuado pelo tribunal de recurso) determina o prazo pelo qual a prisão preventiva será prorrogada.

Neste contexto, tem pleno cabimento (sobretudo à luz do princípio da proporcionalidade) que ao agravamento da pena em recurso corresponda um agravamento do limite temporal da duração da prisão preventiva. O que não faz qualquer sentido, e seria flagrantemente contrário ao dito princípio da proporcionalidade, é que a medida legislativa – que tem um objectivo de evitar a eventual a libertação de réus presos já condenados por simples efeito da utilização de expedientes dilatórios – apenas pudesse ser aplicada quando houvesse uma absoluta sobreposição entre a decisão de recurso e a decisão de primeira instância, e não já em todos os demais casos que justificam idêntico tratamento (por envolverem um duplo juízo condenatório), mas relativamente aos quais, em razão do poder de reapreciação do tribunal superior, tenha havido uma ligeira discrepância quanto à dosimetria da pena.

            A decisão recorrida não merece, pois, qualquer censura no plano jurídico-constitucional».

            Retornando ao caso sub judice:

            O peticionante encontra-se em prisão preventiva desde o dia 5 de Fevereiro de 2015.

            Foi condenado em 1.ª instância na pena única de 14 anos de prisão.

            O Tribunal da Relação do Porto, por decisão datada de 21 de Fevereiro de 2018, concedeu parcial provimento ao recurso, tendo reduzido aquela pena única para 12 anos de prisão.

            Perante as considerações expostas, reafirmando que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ao aplicar a pena de 12 anos de prisão ao arguido agora peticionante converge com a decisão proferida pela 1.ª instância, sendo, por isso, confirmatório para os efeitos jurídicos decorrentes do disposto no artigo 215.º, n.º 6, do CPP.

            Impõe-se, portanto, concluir que, neste caso, o prazo máximo de duração de prisão preventiva é de 6 anos, metade da pena de 12 anos de prisão fixada pelo tribunal de recurso.

            Encontrando-se o peticionante em prisão preventiva desde o dia 5 de Fevereiro de 2015, inexiste fundamento para deferir a providência de habeas corpus, uma vez que aquele prazo ainda não se encontra ultrapassado.

            III – DECISÃO

     Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA.

            Custas pelo peticionante, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça.

           

            SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 10 de Agosto de 2018

Manuel Augusto de Matos( Relator)

Pires da Graça

            (Processado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

---------
[1] Citou-se J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, 2007. Coimbra Editora, pp. 508 e 510.
[2]              Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, p. 260.
[3]    Acórdão de 16-12-2003, proferido no Habeas Corpus nº 4393/03, 5ª Secção, e acórdão de 11-12-2014 (Proc. 1049/12.6JAPRT-C.S1 – 5.ª Secção), ambos disponíveis, tal como os demais que se citarem sem outra indicação quanto à fonte, nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.
[4]              Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[5]   ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA, ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, Código de Processo Penal Comentado, 2016 – 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 839.
[6]              Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, Boletim anual – 2017 - Assessoria Criminal.
[7]              Disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos citados sem outra indicação.